Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0326873
Nº Convencional: JTRP00035900
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
PRIVILÉGIOS
Nº do Documento: RP200403090326873
Data do Acordão: 03/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 4 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Para efeitos de graduação de crédito na falência o crédito garantido por hipoteca voluntária deve ser graduado antes dos créditos garantidos por privilégio imobiliário geral, só tendo que ceder perante créditos que gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório


Na sequência da declaração de falência de “A.........., SA”, com sede na Praça..... n.º ...., ..., Porto, cujo processo havia sido instaurado em 10 de Julho de 1995, vieram os diversos credores reclamar créditos seus sobre a falida e foram juntos ao processo as execuções que então se consideravam pendentes.
Entre os credores reclamantes contavam-se a B.........., pela importância de 1.802.150$80 (€ 8989,09) – reclamação sob o n.º 9 da sentença, e a C.......... SA, pela importância de 384.745.863$00 (€ 1.919.104,28)- reclamação n.º 11.

O crédito reclamado pela B.......... era emergente de um contrato de mútuo garantido por hipoteca voluntária, constituída e registada em 24 de Outubro de 1974, inscrição n.º ......, incidindo esta sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, estabelecimento de ´R/C, com arrecadação na Cave, com entrada pelo n.º ... da Rua de....... e n.º ... da Rua José......., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na cidade do Porto, freguesia de Lordelo do Ouro, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ....., a fls. .... do Livro B-17 e seus averbamentos, que estava apreendido nos autos de falência como sendo a verba n.º 2, e fora entretanto objecto de venda extrajudicial em 2000.03.30. (imóvel descrito a fls. 60 do apenso C- apreensão de bens) pelo preço de 57.000.000$00.

O crédito da C.........., SA. encontrava-se garantido por duas hipotecas sobre o imóvel descrito sob o n.º 20 do auto de apreensão de bens elaborado em 14 de Julho de 1998 (junto a fls. 31 do apenso de liquidação do activo), - hipotecas estas que haviam sido constituídas em 19 de Novembro de 1986 e 4 de Novembro de 1987 - , e estava garantido ainda através de penhor, conforme contratos de constituição de penhor celebrados em 7 de Abril de 1987, e junto aos autos a fls. 188 e 197 do apenso de justificação de créditos.
Pela 1.ª hipoteca estava assegurado o montante máximo de 372.375.000$00 (€ 1.857.398,67), correspondente ao capital em escudos de 225.000.000$00 (€ 690.211,59), com juros à taxa anual de 20,5%, no valor de 138.375.000$00 (€ 690.211,59) e a despesas correspondentes a 9.000.000$00 (€ 44.891,81)
Pela 2.ª hipoteca estava assegurado o montante máximo de 127.600.000$00 (€ 636.466,12), correspondendo ao capital de 80.000.000$00 (€ 399.038,32), aos juros à taxa de 18,5%, no valor de 44.400.000$00 (€ 221.466,27) e a despesas de 3.200.000$00 (€ 15.961,53)
Os bens dados em penhor foram avaliados no primeiro contrato em 10.218.000$00 (€ 50.967,17) e no segundo contrato em 46.017.000$00 (€ 229.531,83)


O M.º Juiz elaborou sentença onde verificou, reconheceu e graduou os créditos, tendo-se limitado a considerar o crédito da B.......... na graduação geral, não atendendo a que estava garantido por hipoteca. [A B.......... ainda reclamou por não ter sido incluído no activo o produto da venda do referido imóvel, assim como pela não inclusão desse crédito como sendo de graduação especial. No entanto, o M.º Juiz desatendeu a enunciada reclamação por ter entendido tratar-se de erro de julgamento, e assim não ser passível de simples rectificação]

No que toca aos créditos reclamados pela C.........., o M.º Juiz graduou os créditos hipotecários sobre o imóvel da verba n.º 20 do auto de apreensão junto a fls. 31 do apenso de liquidação do activo), em 5.º lugar, depois dos créditos reclamados pelos trabalhadores, (quer de natureza retributiva, quer de natureza indemnizatória), e do reclamado pelo Centro Regional de Segurança Social.
E relativamente aos créditos com garantia de penhor, conforme contratos juntos aos autos a fls. 188 e 197 do apenso de justificação de créditos, graduou o crédito pignoratício da C.......... também em 5.º lugar, após os créditos reclamados pelos trabalhadores, (quer de natureza retributiva, quer de natureza indemnizatória), e após o crédito reclamado pelo CRSS.

Tanto a B.......... como a C.......... não se conformaram com a decisão tendo então interposto recursos, que foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo. (fls. 91 na paginação do recurso)

Ambas as recorrentes apresentaram alegações de recurso.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com a adjectivação e demais atributos que lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.
Correram os vistos legais.
.......................................

II. Âmbito dos recursos

De acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC, são as conclusões apresentadas pelos recorrentes nas suas alegações de recurso que vêm a delimitar o respectivo âmbito.
Daí que haja manifesto interesse em transcrever as conclusões apresentadas pelos apelantes em tal peça processual:

II-A) Na apelação da “B..........”: (fls. 1 a 3 destes autos de recurso)


1. Na falência a recorrente alegou e reclamou um crédito no montante de 1.802.150$80 (actualmente € 8.989,09);
2. Crédito garantido por hipoteca devidamente registada (inscrição n.º .... constante da certidão de teor junta aos autos) incidente sobre o bem imóvel apreendido e descrito sob a verba n.º 2, objecto de venda extrajudicial em 2000.03.30;
3. Nos presentes autos foi efectuada uma graduação especial de créditos reclamados, considerando os diversos direitos reais de garantia invocados;
4. Todavia, a sentença de verificação e graduação de créditos, na parte “A- Graduação Especial” é omissa (não relaciona) o produto da venda do referido bem imóvel descrito na verba n.º 2;
5. Em sede de graduação e no que tange à recorrente B.........., deveria o Tribunal “a quo” ter atendido ao direito real de garantia (hipoteca) que acompanha o seu crédito, relacionando-o e hierarquizando-o em conformidade com a prevalência estabelecida na lei, ou seja, através da referida graduação especial, nos termos preceituados no n.º 2 do art. 200.º do CPEREF pelo produto da venda do bem imóvel descrito a fls. 60 do apenso C- apreensão de bens, sob a verba n.º 2;
6. A prolacção da sentença recorrida foi proferida em violação da lei - arts. 686.º-1 e 745.º-2, ambos do CC., art. 868.º-4 do CPC e art. 200.º-2 do CPEREF.
Nestes termos (...) deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e provado, e, em consequência ser revogada a sentença apelada e substituída por outra no sentido que se propõe e defende, como é de inteira e sã Justiça!”


II-B) Na apelação da “C.........., SA” (fls. 5 a 31 destes autos de recurso):


1. O CC que entrou em vigor em 1 de Junho de 1967 apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais – n.º 3 do art. 735.º;
2. Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na alínea b) da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no n.º 3 do art. 735.º do CC. de que os privilégios imobiliários são sempre especiais;
3. A Lei n.º 17/86 não estabelece expressamente que os privilégios imobiliários gerais que instituiu abarcam todos os bens existentes no património da devedora, concretamente, a entidade patronal, que nem sequer regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, in casu, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros;
4. Assim, aos privilégios imobiliários gerais de que beneficiam os créditos laborais – por serem de natureza absolutamente excepcional, por não incidirem sobre bens certos e determinados, por derrogarem o princípio geral estabelecido no n.º 3 do art. 735.º do CC., por nem sequer existirem na realidade jurídica à data da entrada em vigor daquele diploma legal, por afectarem gravemente os legítimos direitos de terceiros, designadamente os do credor cuja hipoteca se encontra devidamente registada, em virtude de não estarem sujeitos a registo -, é-lhes inaplicável o princípio previsto no art. 751.º do CC.;
5. A tais privilégios, pelo facto de serem gerais, deve ser aplicado o regime previsto nos arts. 749.º e 686.º do CC., constituindo pois meras preferências de pagamento, só prevalecendo relativamente aos créditos comuns;
6. Consequentemente, face à lei ordinária, os direitos de crédito garantidos por privilégios imobiliários gerais - sejam os créditos laborais reclamados pelos trabalhadores, sejam os créditos por contribuições para a a Segurança Social - cedem, na ordem de graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca – art. 686.º do CC.;
7. Aliás, através do Ac. n.º 363/2002, publicado no DR-I-A, de 16 de Outubro de 2002, o TC declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do art. 11.º do DL n.º 103/80, de 09/05, e do art. 2.º do DL n.º 512/76, de 03/07 – créditos pelas contribuições para a Segurança Social e respectivos juros – e pelo Ac. n.º 362/2002, publicado no DR-I-A, de 16 de Outubro de 2002, o TC declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do art. 104.º (hoje art. 111.º) do CIRS – todas interpretadas no sentido de que os privilégios imobiliários gerais nelas contidos preferem à hipoteca nos termos do art. 751.º do CC.;
8. Tais declarações de inconstitucionalidade fundamentam-se no facto das referidas normas violarem o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2.º da CRP, e bem ainda, do princípio da proporcionalidade previsto no n.º 1 do art. 18.º do mesmo normativo constitucional;
9. Os mesmos princípios e fundamentos aplicam-se, “mutatis mutandis”, aos privilégios imobiliários gerais instituídos pela al. b) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho e pelo art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, quanto aos créditos laborais;
10. Não obstante, a decisão recorrida interpretou os citados normativos – art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho e pelo art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto -, no sentido de que o privilégio imobiliário geral aí instituído prefere às hipotecas anteriormente registadas, graduando, consequentemente, os créditos dos trabalhadores com preferência aos créditos garantidos por hipoteca;
11. Ora, tal interpretação viola também os mencionados princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica;
12. Com efeito, tal privilégio é de índole geral, sem qualquer conexão com o prédio sobre que incide, e constitui um ónus “oculto” porquanto não é possível aos particulares indagarem sobre a existência desses créditos privilegiados e apurarem o seu montante;
13. Em consequência, os credores hipotecários são, no momento da graduação dos créditos, confrontados e “surpreendidos” com uma realidade que não conheciam, nem podiam conhecer, podendo ver completamente prejudicado o pagamento dos seus créditos, apesar de tudo terem acautelado tendo em vista a certeza e segurança jurídicas;
14. A consagração constitucional dos direitos dos trabalhadores em nada favorece a conformidade da interpretação feita (pela douta decisão recorrida) com a Constituição, na medida em que esses direitos não podem anular ou sacrificar, pura e simplesmente, outros valores, em atenção aos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática;
15. Tais princípios representam uma ideia de harmonização, de proporcionalidade e de igualdade,
16. Essa ideia não é seguida na decisão recorrida não só porque não houve, em concreto, a devida harmonização de valores, mas também porque a restrição do valor da segurança jurídica não era sequer necessária: está legalmente instituído um Fundo de Garantia Salarial que assegura aos trabalhadores o pagamento dos seus créditos, nas circunstâncias dos autos;
17. Esta solução legal evita a lesão de quaisquer valores, mormente dos particulares, ficando, na pior das hipótese, apenas lesado o Fundo, ou seja, o Estado, a quem incumbe prioritariamente a protecção dos direitos dos trabalhadores;
18. Como tal, essa solução é a única respeitante da ideia de igualdade constitucional, dado que seriam todos os contribuintes a suportar um determinado encargo social e não apenas determinados particulares – pelo que também foi violado pela douta decisão recorrida o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP.
19. Em face do exposto – e especialmente atentos os fundamentos ínsitos nos doutos Acs. proferidos pelo TC – as normas contidas na al. b) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e no art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos dos trabalhadores prefere à hipoteca, é inconstitucional, por violação dos princípios da confiança e segurança, proporcionalidade e igualdade, previstos respectivamente nos arts. 2.º, 18.º-1 e 13.º da CRP.
20. Decorre do disposto no art. 666.º do CC. que o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca;
21. Relativamente ao concurso entre créditos com privilégio mobiliário geral, dispõe o art. 749.º do mesmo diploma que o mesmo não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente;
22. Os créditos da Segurança Social e os créditos dos trabalhadores fruem de privilégio mobiliário geral, conforme decorre do disposto no art. 10.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio (relativamente aos primeiros), e do art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e do art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto (relativamente aos segundos).
23. O concurso entre uma garantia geral (privilégios gerais) e uma garantia especial (penhor) terá de ser resolvido pela prevalência da garantia especial;
24. As normas que criam privilégios gerais são necessariamente excepcionais, razão por que não podem sofrer aplicação por analogia;
25. Em qualquer caso, o DL n.º 103/80, de 9 de Maio, é inexistente por falta de referenda, conforme decidiu já o STA em douto Acórdão datado de 1999.06.16, Secção contencioso tributário, processo n.º 23.242, Acórdãos Doutrinais, ano XXXIX, n.º 457, pgs. 44 e ss;
26. Sendo ainda inconstitucional, na parte em que reconhece preferência sobre qualquer penhor ainda que anteriormente constituído, por violar materialmente o princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da CRP;
27. Como são inconstitucionais as normas contidas na al. b) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e no art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, interpretadas no sentido de que o privilégio mobiliário geral nelas conferido aos créditos dos trabalhadores prefere ao penhor anteriormente constituído, por violação dos princípios da confiança e segurança, proporcionalidade e igualdade, previstos, respectivamente nos arts. 2.º, 18.º-1 e 13.º da CRP.
28. Atenta a não sujeição do privilégio reconhecido aos créditos da SS e aos créditos dos trabalhadores a qualquer limite temporal, atento o seu âmbito de privilégio geral e não existindo qualquer conexão entre os bens onerados por esse privilégio geral e o facto que gerou a dívida, contrariamente ao que sucede com o penhor que é uma garantia especial incidente sobre bens determinados do devedor, a preferência que lhe é reconhecida, arredando o penhor anteriormente constituído, lesa de forma desproporcionada o comércio jurídico.
29. A douta sentença recorrida, ao graduar, quanto ao bem imóvel com hipoteca, os créditos dos trabalhadores e os créditos da SS, com preferência sobre o crédito hipotecário da C.........., violou as normas constantes dos arts. 9.º, 686.º, 749.º e 751.º do CC., e dos arts. 2.º, 13.º e 18.º da CRP.
30. E, ao graduar, relativamente aos bens dados de penhor, os referidos créditos dos trabalhadores e da SS, com preferência sobre o crédito pignoratício da C.........., violou as normas constantes dos arts. 9.º, 666.º e 749.º do CC e dos arts. 2.º, 13.º e 18.º da CRP.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a douta sentença recorrida ser revogada ou reformulada com fundamento e em consonância com os juízos de legalidade e de constitucionalidade acima expendidos, por forma a que o crédito garantido por hipoteca e o crédito garantido por penhor, da C.........., sejam graduados preferencialmente aos créditos dos trabalhadores e ao crédito da SS, garantidos por privilégios imobiliários e mobiliários gerais, com o que V.Exc.ª s, (...) farão inteira Justiça”
..........................................
Da leitura destas conclusões vemos que o âmbito dos recursos consiste em pronunciar-nos sobre as questões seguintes:

a) posição em que devem ficar graduados créditos garantidos por hipoteca face aos créditos dos trabalhadores (remuneratórios e indemnizatórios) e da Segurança Social (por contribuições devidas) - questão comum a ambos os recursos
b) posição em que devem ficar os créditos garantidos por penhor face aos créditos dos trabalhadores (remuneratórios e indemnizatórios) e da Segurança Social (por contribuições devidas) – questão apenas respeitante à apelação da C...........

.............................................

III. Fundamentação


Os factos a ter em consideração são os já indicados no Relatório, que, por não serem objecto de controvérsia, se consideram aqui como definitivamente fixados.


Passemos então para a análise das questões colocadas:


III-A) Na apelação da B..........:


Como se depreende do despacho que desatendeu a reclamação da B.........., o M.º Juiz só não corrigiu a falta de referência contida na sentença à existência de garantia hipotecária sobre a fracção A do imóvel, limitando-se a graduar o crédito do B.......... como crédito comum, em virtude de ter entendido que, com a prolacção da sentença, estava esgotado o seu poder jurisdicional.
Desta feita, deu azo a que se concluísse que só por via de recurso, poderia ser alterada a sentença nessa matéria.

Estamos de acordo que, no enunciado contexto, estava esgotado o seu poder jurisdicional, atendendo a que não se tratava de um problema se simples rectificação de erros materiais (de escrita ou de cálculo, inexactidões ou lapsos manifestos), antes se entrava no campo das nulidades de sentença e erro de julgamento, em caso do qual era ainda possível interpor recurso ordinário ( arts. 666.º-1 e 668.º-3 do CPC.), situação que impedia que o Tribunal recorrido pudesse alterar o que entretanto por ele fora decidido.

Há que ter assim em consideração que o crédito da B.......... é um crédito protegido por hipoteca incidente sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, estabelecimento no rés-do-chão, com arrecadação na cave, com entrada pelo n.º .. da Rua... e n.º .. da Rua José....., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Lordelo do Ouro, Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º .... a fls. .. do livro B-17 e seus averbamentos.
Ora, de acordo com o disposto no art. 686.º-1 do CC., “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
No caso encontramo-nos perante uma hipoteca voluntária, pelo que nos termos dos arts.200.º-2 e 3 do CPEREF o crédito da B.......... deveria ter sido contemplado na sentença, na parte a que se reporta a graduação especial de créditos.

O CC. refere expressamente no art. 735.º-3 que os privilégios imobiliários são sempre especiais, nele não se prevendo a constituição de privilégios imobiliários gerais.
As leis avulsas que instituíram os privilégios imobiliários gerais para os créditos laborais (Lei n.º 17/86, de 15 de Outubro e Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto) e para a Segurança Social (Lei n.º 103/80, de 9 de Maio), não previam em lugar algum como concorrer face aos créditos imobiliários especiais, nem regulavam as suas relação com os direitos de terceiro.
Assim, os créditos imobiliários gerais, aportados pelas enunciadas leis avulsas não poderiam prevalecer sobre os créditos imobiliários previstos no Código Civil (sempre especiais), tendo assim de ceder perante estes, [Salvador da Costa, “O concurso de credores”, Almedina, 2.ª ed., pg. 249; Almeida Costa, “Direito das Obrigações, 1994, pg. 850] à semelhança aliás do que já acontecia no concurso entre créditos mobiliários gerais e mobiliários especiais – art. 747.º-f) do CC. [J.M Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 6.ª ed., pg. 569]
Acresce dizer que, a assim não ser entendido, estariam a ser violados os princípios da confiança e da proporcionalidade, consagrados na Constituição, o que levou já o Tribunal Constitucional, através do Ac. n.º 363/2002, DR-I-A, de 16 de Outubro de 2002, a declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do art. 11.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio e do art. 2.º do DL n.º 512/76, de 3 de Julho, quando interpretados no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas contido prefere à hipoteca nos termos do art. 751.º do CC.
E assim, os direitos de crédito garantidos por hipoteca, devem ser graduados antes que sejam garantidos por privilégio imobiliário geral.
Só teria que ceder perante créditos que gozassem de privilégio especial ou de prioridade de registo. (art. 686.º-1 do CC.) [Há que trazer à colação que a sentença foi proferida em 2002.05.31, muito antes da publicação e da entrada em vigor do novo Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, na qual está referido no art. 3.º-1 que o Código aprovado só entraria em vigor no dia 1 de Dezembro de 2003.), e onde no art. 377.º-1-b) se confere agora ao trabalhador, por créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
No n.º 2-b) do mesmo artigo está previsto que o crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no art. 748.º do CC, o que significa que a nova lei passou a graduar os créditos emergentes do contrato de trabalho, mas apenas sobre as instalações do empregador onde o trabalhador exerça o trabalho, à frente dos créditos previstos no art. 748.º (outros privilégios imobiliários por contribuições devidas ao Estado e autarquias) e também à frente das contribuições devidas à Segurança Social (art. 377.º-2-b) do Código do Trabalho), e também à frente das hipotecas (art. 686.º-1 do CC).
Com a nova formulação, deixa, em nosso entender de haver violação do princípio da desproporcionalidade (porque o privilégio é apenas especial, incidindo apenas sobre o imóvel do empregador onde o trabalhador preste serviço e não sobre todos e quaisquer imóveis), e já não pode falar-se no princípio da violação da confiança porque qualquer credor da entidade empregadora passa a saber que, para a satisfação do seu crédito, tem que contar primeiro com o privilégio dos trabalhadores sobre o imóvel da empregadora onde aqueles trabalhem.
Atendendo, no entanto, à aplicação da lei no tempo, não pode fazer-se aplicação retroactiva desta nova norma à situação dos autos, dado que os créditos dos trabalhadores e da segurança social nasceram antes da existência e entrada em vigor da actual legislação que rege esta matéria. - art. 12.º-1 do CC.]
Em face do exposto, a satisfação do crédito da B.......... estava garantida antes de mais, através do pagamento conseguido com o produto da venda do bem imóvel a ela hipotecado, com a observância dos princípios de graduação face aos demais créditos, e que se regeriam pela forma seguinte:
Em primeiro lugar, teriam de estar satisfeitas as custas da falência, despesas da administração e todas as demais custas que deviam ser suportadas pela massa falida, e que saem precípuas, preenchendo-se, em primeiro lugar, com o produto obtido com a venda dos bens da massa falida que não estejam a coberto de garantia especial, e só depois com os decorrentes das garantias especiais;
Em segundo lugar, na parte excedente ou disponível, satisfazer-se-ia o crédito hipotecário da apelante B.........., dentro do produto da venda da fracção do imóvel hipotecado;
Em terceiro e quarto lugar, havendo excedentes, satisfazer-se-iam, rateadamente, os créditos emergentes do contrato de trabalho, sua cessação e indemnizações decorrentes do mesmo, tal como foram reconhecidos e graduados, respectivamente, na sentença recorrida, neles se abrangendo os juros relativos aos últimos dois anos (art. 734.º do CC.):
Em quinto lugar, se continuassem a haver excedentes, o crédito reclamado pelo CRSS;
Em sexto lugar, seriam contemplados, rateadamente os créditos dos credores comuns ou a parte dos créditos que não esteja abrangida pela garantia de pagamento privilegiado.

Se porventura parte do crédito da B.......... não fosse possível obter através do produto da venda do bem hipotecado, teria de entrar no rateio da parte geral dos créditos da massa falida, nessa parte ao lado dos demais credores comuns.



III-B) Na apelação da C...........:


III-B)-a) Quanto às hipotecas:

Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações já feitas em III-A), a respeito do crédito hipotecário do B...........
Assim, a satisfação do crédito da C.......... deveria ocorrer através do pagamento conseguido com o produto da venda do bem imóvel descrito na verba n.º 20, com a observância dos princípios de graduação, e pela forma seguinte:
Em primeiro lugar, teriam de estar satisfeitas as custas da falência, despesas da administração e todas as demais custas que deviam ser suportadas pela massa falida, e que saem precípuas, nos mesmos moldes já referidos em III-A);
Em segundo lugar, o crédito hipotecário da apelante C.........., dentro do produto da venda do imóvel hipotecado, nele se incluindo os acessórios do crédito que constam do registo, não estando aqui, no entanto, abrangidos mais do que juros relativos a três anos, a menos que a segunda hipoteca contemple já créditos resultantes de juros da primeira, não abrangidos pela garantia legal de três anos, e nunca neles entrando os juros decorrentes do crédito a que se reporta a 2.ª hipoteca para além de três anos (art. 693.º do CC); [Não podemos entrar nas especificações concretas uma vez que não dispomos desses elementos nos autos de recurso que nos foram enviados]
Em terceiro e quarto lugar, no caso de satisfação integral dos anteriores créditos, e ser o produto da venda excedente, atender-se-iam com esse excedente, e rateadamente dentro de cada uma dessas categorias, os créditos emergentes do contrato de trabalho, sua cessação e indemnizações decorrentes do mesmo, tal como, respectivamente, foram reconhecidos e graduados na sentença recorrida:
Em quinto lugar, o crédito reclamado pelo CRSS;
Em sexto lugar, e rateadamente, os demais créditos comuns e a parte daqueles que (mesmo dotados de hipoteca, penhor ou privilégios) não estejam abrangidos por essas especiais garantias.

A parte do crédito da C.......... que porventura não fosse possível obter através do produto da venda do bem hipotecado, poderá ainda ser satisfeita com recursos a outros meios.
Só na medida em que não consiga obter cobrança integral do seu crédito por meios dotados de garantia (por estas se mostrarem insuficientes ou por parte desses crédito não estar abrangido por elas), entrará a parte restante do respectivo crédito no concurso com os credores comuns, e rateadamente, para ser pago pelo produto dos demais bens da massa falida.


III-B)-b) Quanto à parte do crédito garantida pignoraticiamente:

O credor pignoratício goza do direito de ser pago pelo produto dos bens empenhados, de preferência sobre os demais credores, na medida em que esse crédito esteja garantido pelos bens empenhados. (art. 666.º-1 do CC.)
Valem aqui, portanto, as considerações tecidas a respeito da hipoteca, apenas com a particularidade de a garantia de pagamento incidir sobre o produto da venda dos bens empenhados, em vez de incidir sobre o imóvel dado em hipoteca.
............................
................................................

Tendo em conta tudo quanto acima escrevemos, entendemos que os apelantes têm razão no seu inconformismo, pelo que as apelações devem proceder.
................................................
Deliberação

Na procedência das apelações, revoga-se a não obstante douta decisão recorrida na parte relativa à graduação dos créditos, substituindo-se essa parte da sentença por outra, onde os créditos das apelantes B.......... e C.......... passam a figurar no lugar e nos termos já definidos atrás, no corpo do Acórdão.
Custas pela massa falida, em ambas as instâncias.

Porto, 9 de Março de 2004
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes