Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1132/12.8TTBRG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL DO TRABALHO
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
CONTRIBUIÇÃO PARA A SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RP201312181132/12.8TTPRG-A.P1
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A competência em razão da matéria fixa-se em função dos termos em que a acção é proposta, atendendo-se ao direito de que o Autor se arroga e que pretende ver judicialmente protegido;
II - Por força do que estatui a alínea b), do artigo 85.º da LOTJ, o tribunal do trabalho é competente para conhecer do pedido formulado pelo trabalhador de condenação do empregador a pagar-lhe uma indemnização decorrente do prejuízo por ele sofrido por o empregador não ter procedido aos descontos para a segurança social sobre as retribuições (do trabalhador).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1132/12.8TTBRG-A.P1
Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) António José Ramos, (2) Eduardo Petersen Silva.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
C… (NIF ………, residente na Rua …, n.º ., …, ….-… Braga) intentou no Tribunal do Trabalho de Braga acção declarativa com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra:
1.º C…, Lda. (NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, …, ….-… Vila Nova de Gaia);
2.º D… (NIF ………, residente na …, n.º.7, …, ….-… Braga),
pedindo, entre o mais, e no que ora releva: «f) – serem, também, os Réus condenados a pagarem ao Autor, a indemnização por danos patrimoniais relativos à repercussão da conduta dos Réus pela falta de pagamento das contribuições e quotizações à Segurança Social, sobre as importâncias aqui reclamadas, no valor da prestação de desemprego e no cálculo da pensão de reforma que venha a auferir, tudo a liquidar em execução de sentença».
Alegou, para tanto e em síntese, que em 28-03-2011 celebrou com a 1.ª Ré um contrato de trabalho a termo certo, mas que antes da celebração de tal contrato já se encontrava há alguns dias ao serviço da mesma Ré, por acordo verbal.
Em 23-03-2012, a 1.ª Ré comunicou ao Autor a não renovação do contrato e caducidade do mesmo com efeitos a partir de 31-03-2012, sendo que a cessação do contrato é ilícita, com as consequências legais daí decorrentes, que peticiona.
Os Réus deliberadamente não cumpriram as obrigações de declarar as retribuições na segurança social e de proceder ao pagamento das respectivas contribuições e quotizações, adoptando, assim, uma conduta culposa e ilícita.
A falta de descontos na segurança social sobre as retribuições devidas provocou prejuízo ao Autor, quer quanto ao montante das prestações relativas ao subsídio de desemprego que venha a auferir, quer no valor da pensão de reforma, uma vez que esses mesmos valores não serão contabilizados.
A responsabilidade do 2.º Réu, gerente e sócio da 1.ª Ré, advém do disposto no artigo 179.º do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 483.º do Código Civil.

As Rés contestaram a acção, alegando, no que ora releva, que a 1.ª Ré sempre pagou todos os descontos e quotizações na segurança social; todavia, não o fez relativamente a trabalho suplementar e nocturno: «[…] Ao contrário do alegado pelo A. [a Ré] não se furtou deliberadamente, e muito menos para causar qualquer tipo de prejuízo ao A. […] De resto, o Autor não tem qualquer razão para se sentir alegadamente triste, revoltado e humilhado, pois sabe bem o que havia acordado com a entidade patronal…».

Foi proferido despacho saneador, tendo-se julgado a incompetência material do tribunal do trabalho para apreciar a pretensão formulada pelo Autor sob a alínea f) da petição inicial [na decisão recorrida menciona-se alínea g) da petição inicial, mas trata-se de manifesto lapso].

Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso para este tribunal, tendo apresentado alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«A) - Vem o presente recurso de apelação interposto do despacho saneador na parte em que decidiu pela existência da excepção dilatória de incompetência material do Tribunal do Trabalho para decidir do que se encontra peticionado na al. f) da inicial, ou seja que os réus sejam condenados "a pagarem ao Autor, a indemnização por danos patrimoniais relativos às repercussões da conduta dos Réus pela falta de pagamento das contribuições e quotizações à Segurança Social, sobre as importâncias aqui reclamadas, no valor das prestações de desemprego e no cálculo da pensão de reforma que venha a auferir, tudo a liquidar em execução de sentença".
B)- afigura-se que a sentença recorrida, ao decidir como decidiu, não fez correcta apreciação da causa de pedir e do pedido da petição inicial, nem interpretou e aplicou correctamente os preceitos legais atinentes;
C) - na parte do despacho saneador que ora se recorre, entendeu a Mm.ª Juiz a quo sustentar a sua decisão por entender que os Tribunais do Trabalho não têm competência para conhecer da regularização de descontos junto da Segurança Social, cabendo a esta instituição providenciar pelo seu cumprimento, invocando, aliás, o Ac. Rel. Porto de 6.11.2006, com o n.º conv. JTRP00039713;
D) - Ora, tal decisão é desconforme com as normas legais aplicáveis e até com a jurisprudência já proferida a este respeito;
E) - o recorrente, na já referida al. f) do pedido, limita-se a formular um pedido indemnizatório em consequência da conduta ilícita dos réus, no âmbito de um contrato de trabalho que vigorou, pelo incumprimento das obrigações para com a Segurança Social;
F) - o recorrente não formulou qualquer pedido para a Empregadora ser obrigada a proceder à inscrição do trabalhador na Segurança Social e o pagamento das contribuições junto dessa instituição que é o que se reporta o acórdão citado pela Mm.ª Juiz a quo e referido na al. C) supra;
G)- tratam-se claramente de situações distintas entre o peticionado pelo Recorrente e o que é referido no dito acórdão;
H) nos presentes autos discute-se unicamente o ressarcimento de um prejuízo causado pelos réus, pelo incumprimento das suas obrigações legais para com a Segurança Social e não no pagamento por parte daqueles de qualquer quantia à esta instituição;
I) - Ora, tal situação de ressarcimento pelos prejuízos causados pelos recorridos ao recorrente resulta unicamente da vigência do contrato e das respectivas obrigações legais inerentes a tal contrato, estando, assim, perante uma situação geradora do direito de indemnização fundada em responsabilidade civil dos Recorridos, pelo que o Tribunal do Trabalho é o materialmente competente para dirimir tal questão;
J)- neste sentido adere-se na integra ao douto acórdão do Tribunal de Conflitos, de 10-12[]-2009, com o n.º 24/08 que debruça-se exactamente sobre a questão ora em análise e conclui pela competência material dos Tribunais do Trabalho para dirimirem estas questões;
K) - afigura-se-nos, assim, não ter sido acertada a decisão vertida no despacho saneador que ora s recorre por não fazer correcta apreciação dos factos, articulado e documentos constantes dos autos e por não interpretar nem aplicar os preceitos legais atinentes, nomeadamente os artºs. 4º, n.º 3, al. d) do ETAF, 18º, n.º 1 e 85º da LOTJ, 59º, nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social, 396º, n.º 3 Cód. Trabalho e 483º do CC.».
E a rematar as conclusões, pede que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho saneador na parte em que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal do Trabalho em razão da matéria para apreciar a pretensão formulada pelo recorrente na alínea f) do pedido.

Os Réus não responderam ao recurso, o qual foi admitido na 1.ª instância, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.

Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer, ao abrigo do disposto no artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, no qual concluiu pela improcedência do recurso.

Ao referido parecer respondeu o recorrente, a reiterar o constante das alegações e conclusões oportunamente apresentadas.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objecto do recurso e factos
Tendo em conta que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, sendo aqueles aqui aplicáveis por força do estatuído nos artigos 5.º e 7.º do respectiva lei preambular), salvo as questões de conhecimento oficioso, que aqui não se detectam, a única questão trazida à apreciação deste tribunal consiste em saber se o tribunal do trabalho é competente para conhecer do pedido formulado pelo Autor, que consta da transcrita alínea f).
Naturalmente que a questão, nesta fase, se cinge apenas ao pressuposto processual da competência ou não do tribunal do trabalho, não envolvendo qualquer apreciação quanto ao mérito do pedido.

A matéria de facto a atender é a que resulta do relatório supra, que aqui se dá por reproduzido, sendo de especificar a seguinte:
1. o Autor intentou acção declarativa, sob a forma comum, contra os Réus, alegando que manteve com a 1.ª Ré um contrato de trabalho, a cessação ilícita do mesmo, com as consequências legais decorrentes, que peticiona, sendo que – sustenta – a responsabilidade do Réu advém do disposto no artigo 179.º do Código das Sociedades Comerciais e no artigo 483.º do Código Civil;
2. alegando que os Réus deliberadamente não cumpriram as obrigações de declarar as retribuições na segurança social e de proceder ao pagamento das respectivas contribuições e quotizações – adoptando, assim, uma conduta culposa e ilícita – e que tal lhe provocou prejuízo, quer quanto ao montante das prestações relativas ao subsídio de desemprego que venha a auferir, quer no valor da pensão de reforma, uma vez que esses mesmos valores não serão contabilizados, formula contra os Rés o citado pedido constante da alínea f).

III. Enquadramento Jurídico
Na sentença recorrida escreveu-se sobre a questão:
«Quanto ao peticionado na al. f) de fls. 29 desde já se decide pela incompetência material deste Tribunal do Trabalho para conhecer do mesmo […] quanto ao estabelecido na LOTJ, nomeadamente no seu artigo 85º, percorrendo as suas várias alíneas, em nenhuma delas se vê estabelecida a competência dos Tribunais do Trabalho para conhecer da regularização de descontos junto da Segurança Social. E verificar-se-á a situação revista na al. o) do citado artigo 85º que estende a competência dos Tribunais do Trabalho, em matéria civil, “das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente.”?
[…].
Para a resposta a tal questão há que lançar mão do artigo 59º, nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social – Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro que preceitua: “as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes.” Também o artigo 60º, n.º 1 do mesmo diploma legal prescreve: “as quotizações e as contribuições não pagas, bem como outros montantes devidos, são objecto de cobrança coerciva nos termos legais”, sendo tal cobrança coerciva efectuada através de processo executivo e de secção dos processos da segurança social (vide artigo 48º da citada Lei de Bases, na inicial redacção dada pela Lei n.º 32/02).
Daqui se retira que a Segurança Social tem competência exclusiva para providenciar pelo cumprimento das obrigações a que está obrigada a entidade empregadora quanto ao procedimento de liquidação e cobrança das contribuições.
A ser assim, como é, a obrigação de liquidar e pagar as contribuições não decorre directamente da violação do contrato de trabalho mas sim da violação de um dever de contributo/tributário. Com efeito, ambas as alegadas violações contratuais (o não pagamento dos créditos laborais peticionais que o autor peticiona e a omissão de contribuições para o sistema de segurança social) estão relacionadas com a existência de um contrato de trabalho, mas cada uma delas tem um conteúdo próprio e independente, já que qualquer um pode ocorrer sem o concurso da outra. Por isso, não se verifica no caso dos presentes autos, uma conexão directa por o pedido formulado pelo autor não estar numa situação de acessoriedade relativamente ao formulado em primeiro lugar ou mesmo de complementariedade e/ou dependência, pelo que não tem aplicação a citada al. o) do artigo 85º da LOT J.
Conclui-se assim, como se iniciou por dizer, pela incompetência material deste tribunal para a apreciação da pretensão formulada pelo autor na supra mencionada al. g) [queria dizer-se alínea f)] do petitório inicial.

Outro é o entendimento do recorrente, que sustenta, em suma, que não formula qualquer pedido de condenação de cumprimento das obrigações perante a Segurança Social, mas sim um pedido de condenação do(s) empregador(es) decorrente da vigência do contrato de trabalho e das obrigações legais inerentes ao mesmo.
Vejamos.

Como é sabido, a competência em razão da matéria fixa-se em função dos termos em que a acção é proposta, atendendo-se ao direito de que o Autor se arroga e que pretende ver judicialmente protegido, não se encontrando, porém, o tribunal vinculado à qualificação jurídica feita pela parte (por todos, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2009 e de 30-03-2011, Recursos n.º 626/09 e n.º 492/09.2TTPRT.P1.S1, respectivamente, ambos da 4.ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt).
Ou seja, a questão da competência deve ser decidida em conformidade com o pedido formulado e a causa de pedir invocada pelo Autor na petição inicial.
Nos termos do artigo 66º do anterior Código de Processo Civil (aqui aplicável, tendo em conta a data da propositura da acção), em consonância com o que estabelece o n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
No mesmo sentido aponta o artigo 18.º da Lei n.º 3/99, de 13-01 (LOTJ), que prescreve que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Daí decorre que a competência dos tribunais judiciais é residual, no sentido de que a eles cabe conhecer de todas as matérias que não forem especificamente atribuídas pela lei a outra jurisdição.
Entre os tribunais judiciais previstos na LOTJ encontram-se os tribunais do trabalho.
A estes compete conhecer em matéria cível, além do mais, das questões emergentes de relação de trabalho subordinado [alínea b) do artigo 85.º da LOTJ] e das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente [alínea o) do mesmo artigo].
Quanto à competência prevista nesta última alínea, escreve Leite Ferreira (Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 79 e segts; embora no domínio do Código de Processo do Trabalho de 1981, o ensinamento mantém-se actual) que contempla um caso de extensão da competência em razão da matéria, uma vez que as questões aí referidas se situam, em regra, fora do círculo da competência dos tribunais do trabalho, mas que para eles são atraídas em consequência de uma posição de conexão que mantém com as causas especializadas, ou seja, com as questões de competência específica e estrutural daqueles tribunais.
Tratam-se, pois, de questões que os tribunais do trabalho não podem conhecer quando se apresentam isoladamente, mas que o legislador entendeu atribuir-lhes competência quando se cumulem com outras para as quais sejam directamente competentes.
E, de acordo com o referido autor, duas causas são conexas quando estejam ligadas por alguns dos seus elementos (sujeitos, causa de pedir e pedido); porém, como adverte, para que a extensão da competência prevista na citada alínea o) tenha lugar não basta uma qualquer conexão: «A alínea o) nenhuma referência faz à conexão subjectiva com origem na identidade dos sujeitos ou coincidências das partes, o que equivale a dizer que a conexão subjectiva não é factor determinativo da extensão da competência nos tribunais do trabalho. E com razão, pois que a competência especializada dos tribunais do trabalho define-se em função da real diversidade de acções e não em função da qualidade dos sujeitos que nelas intervêm – trabalhador, entidade patronal, organismos sindicais, etc.
Resta a conexão objectiva que, num sentido lato, pode provir:
a) da unidade da causa de pedir;
b) da relacionação dos diversos pedidos.
Só que do mesmo facto jurídico, como causa de pedir – Cód. Proc. Civil, art. 498.º, n.º 4 – pode brotar uma pluralidade de relações jurídicas a cada uma das quais corresponda, paralelamente, efeitos jurídicos distintos.
Sempre que isso aconteça, não pode dizer-se, sem mais, que se está perante uma multiplicidade de acções conexas.
Se do mesmo facto nasce uma acção penal e uma acção civil não há conexão. O tribunal do trabalho apenas conhecerá delas se para isso tiver competência directa. (…).
A unidade da causa de pedir não chega, pois, para, por si só, caracterizar a competência por conexão dos tribunais do trabalho.
Perante uma pluralidade de acções emergentes da mesma causa de pedir, os tribunais do trabalho apenas poderão conhecer daquelas para que sejam directamente competentes. (…).
De maneira que, para efeitos de competência, apenas tem relevância a conexão objectiva no sentido estrito, isto é, a conexão que emana da interligação dos diversos pedidos».
E tal conexão pode resultar duma relação de acessoriedade, complementaridade ou dependência: (i) na acessoriedade a causa subordinada é objectivamente conexa e dependente do pedido da causa principal; (ii) na complementaridade, ambas as acções são autónomas pelo seu objecto, mas uma deles é convertida, por vontade das partes, em complemento da outra; (iii) na dependência, qualquer das relações é objectivamente autónoma, tal como na complementaridade, mas existe um nexo de tal ordem entre ambas que não se pode desligar a relação dependente da relação principal.

No caso em apreciação, como resulta do relatório supra, o Autor alega ter mantido um contrato de trabalho com a Ré, que o mesmo é ilícito, pedindo, por isso, as consequências legais daí decorrentes.
Mas alega também, no que aqui importa, que na vigência do contrato de trabalho a Ré devia ter declarado na segurança social as retribuições por ele (Autor) auferidas e proceder ao pagamento das respectivas contribuições: como assim não procedeu, provocou-lhe (ao Autor) um prejuízo, quer correspondente ao montante das prestações relativas ao subsídio de desemprego que venha auferir, quer no valor da reforma, uma vez que, para estes fins, os valores que auferiu ao serviço da Ré não irão ser contabilizados.
Por isso, formula o pedido constante da citada alínea f).

Tem-se por incontroverso que os tribunais do trabalho não têm competência directa para conhecer da relação contributiva que é estabelecida entre o empregador e a segurança social, uma vez que a sua competência é limitada às questões taxativamente previstas no normativo legal supra referido.
E isto porque o trabalhador, embora seja beneficiário do regime de segurança social não é parte na relação contributiva que se estabelece entre o seu empregador e a segurança social.
E, sendo perante as instituições da Segurança Social que os empregadores têm de cumprir a obrigação contributiva e integrando essas instituições a administração directa do Estado, compreende-se que a falta de pagamento das contribuições não pertença aos tribunais de trabalho, por estes pertencerem a uma jurisdição cuja função é dirimir litígios eminentemente entre particulares.
Essa competência pertence à ordem jurídica administrativa e fiscal, mais exactamente aos tribunais fiscais, como resultava do n.º 2 do artigo 46.º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, do n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto, do n.º 1 do artigo 48.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro e ainda do artigo 77.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, ao estabelecer que as acções e omissões da administração no âmbito do sistema de segurança social são susceptíveis de reacção contenciosa nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Na verdade, como resulta de tais normativos legais – como, aliás, também já resultava das Leis n.ºs 2.115, de 18 de Junho de 1962, e 2.120, de 19 de Julho de 1963, que antecederam a citada Lei n.º 28/84 – a contribuição é uma prestação pecuniária que consubstancia o objecto de uma verdadeira obrigação, a que corresponde um direito por parte da Segurança Social, estabelecendo-se entre o contribuinte e a instituição de Segurança Social uma relação jurídica contributiva.
Resulta ainda que os titulares da obrigação contributiva são os trabalhadores e os empregadores e que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, há uma obrigação unitária de pagamento das contribuições a cargo do empregador.
Assim, a relação jurídica contributiva, filiada embora na relação laboral, não se confunde com ela, dado que apenas incide sobre um dos sujeitos passivos, o empregador, a quem cabe a liquidação e pagamento das contribuições, mesmo na parte respeitante ao trabalhador.
Neste sentido, a jurisprudência tem entendido que os tribunais do trabalho não têm competência para conhecer do pedido de condenação do empregador a pagar as contribuições devidas à Segurança Social [vejam-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06-03-2002, de 13-11-2002 e de 15-02-2005 (Proc. n.º 01S3559, 01S4274 e 04S3037, respectivamente), e ainda acórdão do Tribunal dos Conflitos de 27-10-2004 (Proc. n.º 2/2004), todos disponíveis em www.dgsi.pt].

Porém, no caso não é essa a questão colocada, ou, dito de outra forma, o Autor não pede a condenação do(s) Réu(s) na inscrição e/ou no pagamento de quaisquer contribuições à segurança social. Daí que a análise e decisão a proferir, quanto à competência material, não possa ser nesse âmbito, lato sensu de pagamento de contribuições à segurança social.
Face ao que se deixou explanado a propósito da alínea o) do artigo 85.º, da LOTJ, do pedido em causa e fundamentos invocados para o mesmo, também se entende que a questão da competência não se insere em tal alínea.
Com efeito, como se deixou afirmado, em tal alínea prevê-se a extensão da competência em razão da matéria, uma vez que as questões aí referidas se situam, em regra, fora do círculo da competência dos tribunais do trabalho, e, por isso, isoladamente, eles não podem conhecer, mas que o legislador entendeu atribuir competência a esses tribunais quando as questões em causa se cumulem com outras para as quais sejam directamente competentes.
Ora, não é isso que está em causa, pois, como se disse, o Autor não pede a condenação do empregador a proceder a quaisquer descontos para a segurança social, situação que não seria, ao menos isoladamente, da competência dos tribunais do trabalho.
O que o Autor/recorrente pede é o pagamento de uma importância decorrente do incumprimento do contrato de trabalho (ressarcimento dos danos); na verdade, o Autor diz o seguinte (perdoe-se-nos a linguagem directa): mantive um contrato de trabalho com a Ré e esta não cumpriu um dos deveres inerentes ao mesmo (proceder aos descontos para a segurança social), pelo que deve indemnizar-me dos prejuízos que sofri por virtude desse incumprimento.
Encontramo-nos no âmbito da responsabilidade contratual, cujo incumprimento pode determinar a obrigação de indemnizar (cfr. artigos 798.º e 483.º, ambos do Código Civil).
Assim, fazendo a subsunção da matéria/questão à competência dos tribunais do trabalho, entende-se que aquela se insere na alínea b) do artigo 85.º da LOTJ, pois trata-se de uma questão emergente de trabalho subordinado, na medida em que, volta-se a sublinhar, está em causa o (in)cumprimento do contrato e as consequências daí decorrentes.
Como, para um caso com contornos semelhantes aos dos presentes autos, se afirmou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10-12-2009 (Proc. n.º 24/08, disponível em www.dgsi.pt), também convocado pelo recorrente, está «[…] em discussão um pedido indemnizatório submetido a normas de direito privado. A Ré, por alegado incumprimento das suas obrigações para com a Segurança Social, teria causado ao Autor um dano patrimonial cuja reparação este exige na forma de pagamento de determinada quantia.
A esta disputa em torno do ressarcimento do eventual prejuízo é de todo alheia aquela entidade pública que, de resto, nenhum interesse directo tem no seu desfecho, já que não é pedida a condenação da Ré no pagamento de qualquer quantia à Segurança Social. A hipotética existência de uma obrigação contributiva insatisfeita não é discutida a título principal, apresenta-se antes como um mero pressuposto, como uma questão prejudicial autónoma que pode, sem dúvida, condicionar o êxito pedido, mas que, atenta a sua posição na lide, não será abrangida pelo caso julgado que vier a formar-se.».
No mesmo sentido aponta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-02-2003 (Proc. n.º 2673/02) quando nele se escreveu:
«No sistema contributivo da segurança social, todas as operações indispensáveis à liquidação das contribuições estão a cargo das entidades empregadoras, às quais cabe sempre, também, o pagamento destas, mesmo na parte respeitante ao trabalhador" (v. Ilídio das Neves, "Direito da Segurança Social", Coimbra Editora, 1996, págs. 403 e 418).
E esta relação jurídica contributiva, filiada embora na relação laboral, não se confunde com a mesma.
Diz ainda Ilídio das Neves (ob. citada, pág. 328), que tal relação é "na sua natureza, trilateral, mas concretiza-se, efectiva-se, sob a forma de relação jurídica meramente bilateral, dado que apenas incide sobre um dos sujeitos passivos, a entidade empregadora, a responsabilidade pelo pagamento das contribuições".
Quer dizer, nela, a entidade patronal não está constituída perante o trabalhador em qualquer dever jurídico.
Repare-se, no entanto.
As contribuições sobre a retribuição - antecedidas obviamente da respectiva liquidação - representam um elemento fundamental da segurança social mas, do mesmo passo, não deixam de garantir também o direito a um conjunto de prestações, incluindo o respectivo montante (v., nomeadamente, o art. 26º da Lei nº. 28/84, de 14.8, hoje substituída pela Lei nº. 17/00, de 8.8).
Portanto, a violação da lei nesta área atinge, também, interesses do Autor.
Daí a ilicitude e a culpa da Ré, no caso, face à intencionalidade havida.
Os danos e a causalidade entre eles e o facto ilícito resultam claramente do abaixamento das prestações em causa, uma vez que os montantes das contribuições se repercutem naqueles".»
E, em conformidade, no sumário do mesmo acórdão escreveu-se: «Embora no âmbito da relação jurídica contributiva o empregador não esteja constituído perante o trabalhador em qualquer dever jurídico, as contribuições sobre a retribuição não deixam de garantir do mesmo passo o direito a um conjunto de prestações a favor dos trabalhadores […], pelo que a violação da lei nesta área (não declaração pela entidade patronal da totalidade das comissões que integravam a retribuição do autor) pode atingir o trabalhador e fazer incorrer a entidade patronal em responsabilidade civil nos termos dos arts.º 483 e ss. do CC desde que reunidos os demais pressupostos da responsabilidade civil (culpa e nexo de causalidade entre aquele facto ilícito e o abaixamento das prestações da Segurança Social percebidas pelo trabalhador).
[…] Deste modo tem o autor direito a indemnização pelos danos no domínio do apuramento do subsídio de doença e da pensão de aposentação decorrentes da conduta ilícita e culposa da ré ao proceder ao cálculo por defeito e pagamento das contribuições à Segurança Social.».
Nesta sequência, somos a concluir que o tribunal do trabalho é competente para conhecer do pedido constante da alínea f), pelo que deve conceder-se provimento ao recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida – que no despacho saneador declarou a incompetência material do tribunal para apreciação da pretensão formulada pelo Autor na referida alínea –, ordenando-se o prosseguimento dos autos quanto à mesma questão.

As custas do recurso serão suportadas pela parte vencida a final (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto por B…, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que declarou a incompetência material do tribunal do trabalho para apreciar o pedido constante da alínea f) do petitório inicial, que se substitui pela declaração de competência material do tribunal do trabalho para apreciar o referido pedido, ordenando-se, consequentemente, o prosseguimento dos autos quanto ao mesmo.
Custas do recurso pela parte vencida a final.

Porto, 18 de Dezembro de 2013
João Nunes
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
_______________
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(i) a competência em razão da matéria fixa-se em função dos termos em que a acção é proposta, atendendo-se ao direito de que o Autor se arroga e que pretende ver judicialmente protegido;
(ii) por força do que estatui a alínea b), do artigo 85.º da LOTJ, o tribunal do trabalho é competente para conhecer do pedido formulado pelo trabalhador de condenação do empregador a pagar-lhe uma indemnização decorrente do prejuízo por ele sofrido por o empregador não ter procedido aos descontos para a segurança social sobre as retribuições (do trabalhador).

João Nunes