Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716438
Nº Convencional: JTRP00041168
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: PEDIDO CÍVEL
ABSOLVIÇÃO DO CRIME
Nº do Documento: RP200803120716438
Data do Acordão: 03/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 519 - FLS 146.
Área Temática: .
Sumário: I - Em caso de condenação pelo crime, o juiz deve condenar o arguido na indemnização civil, desde que o respectivo pedido seja formulado com base nos factos da acusação, quer a obrigação derive de facto ilícito extracontratual, quer se funde no risco, quer tenha por fonte a violação de um qualquer direito subjectivo.
II - Porém, em caso de absolvição do crime, o juiz só condenará o demandado em indemnização civil, nos termos do art. 377º, 1 do CPP, se estiver em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual, e não quando o caso configurar uma situação de responsabilidade civil contratual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO (Tribunal da Relação)
Recurso n.º 6438/07
Processo n.º …./03.0TDPRT
Em conferência na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
1- No ..º juízo do Tribunal Judicial de Espinho, no processo acima referido, foram os arguidos abaixo referidos julgados em processo comum, com tribunal singular, e a final foi proferida a seguinte decisão.
- arguido B………., condenado pela prática de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo art. 205º, nº 1 e 4, alínea b), conjugado com o art. 202º, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 380 (trezentos e oitenta) dias de multa à razão diária de € 7 (sete), perfazendo um total de € 2660,00 (dois mil seiscentos e sessenta euros);
- arguido C………., absolvido do crime de que vinha acusado;
E na mesma sentença, tratada como questão prévia, foi decidido ser o tribunal incompetente para conhecer do pedido civil formulado pela ofendida “D………., S.A.”, deduziu a fls. 268 e segs., contra os dois arguidos, assim se absolvendo os mesmos da instância
Anteriormente, na audiência de julgamento, o arguido B………. havia invocado a nulidade de um despacho do juiz que havia indeferido a inquirição de uma testemunha por si oferecida aquando da audiência de julgamento

2- Deste despacho referido em último lugar interpôs recurso o arguido B………., alegando em resumo:
O despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação de direito, por não existir qualquer norma capaz de dar suporte ao indeferimento, e tratava-se de testemunha com conhecimento directo dos factos e essencial à descoberta da verdade
Violou-se assim o disposto nos arts. 97.º-4 e 120.º-2-d) do CodProcPenal, pelo que deve ser ouvida a testemunha e anulados os actos posteriores ao despacho impugnado

3- Da decisão que declarou incompetente o tribunal para conhecer o pedido de indemnização civil interpôs recuso a “D………., S.A.”, concluindo a sua motivação como segue:
A recorrente é lesada pois se viu empobrecida na mesma medida do enriquecimento do arguido e tal lesão resultou da prática do ilícito crime e não do incumprimento contratual, até porque este pressuporia a validade do contrato celebrado, mas tal só sucederia no caso concreto se a propriedade do bem locado transitasse para a esfera patrimonial da recorrente, o que não aconteceu atento o comportamento do arguido.
Prejuízo que poderia ter sido ressarcido se o arguido pagasse, por via dos alugueres, o valor do veiculo locado e o devolvesse no fim do prazo
Só “a latere” a recorrente invocou danos derivados do incumprimento contratual, mas para justificar a existência do prejuízo emergente do ilícito criminal
E assim é o tribunal recorrido o competente para conhecer do pedido cível

3- Nesta Relação, o Exmo PGA pronuncia-se no sentido da nulidade do despacho que indeferiu a inquirição, mas que a sentença se deve manter porque não foi afectada pela dita omissão

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência
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FUNDAMENTAÇÃO
Os factos
Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:
A) No ano de 2001 o arguido B………. era o único sócio e efectivo gerente da sociedade “E………., Lda.”, com sede na E.N. nº…, nº…., na freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Gaia.
B) Esta sociedade dedicava-se à importação e comércio de automóveis.
C) No âmbito dessa actividade, no dia 2 de Abril de 2001, a sociedade “E………., Lda.”, representada pelo arguido B………., vendeu à sociedade ofendida “F………., S.A.”, o veículo de marca Mercedes, modelo ………., com matrícula ..-..-RJ.
D) Para pagamento do referido preço a sociedade “F………., S.A” entregou à sociedade “E………., Lda.” a quantia de € 119.711,00 (cento e dezanove mil, setecentos e onze euros), sendo € 94.557,11 (noventa e quatro mil, quinhentos e cinquenta e sete euros e onze cêntimos) através do cheque nº………., do D………., S.A., agência de ………., datado de 2001/04/02, e o restante através da dedução na factura nº…. .
E) Nessa mesma data a sociedade “F………., S.A.” deu o referido veículo de aluguer ao arguido B………., comprometendo-se este a pagar as respectivas rendas, sendo a primeira no montante de € 5.968,52 (cinco mil, novecentos e sessenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos) e as restantes no valor de € 3.645,41 (três mil, seiscentos e quarenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos)
F) Apesar de ter vendido o veículo e ter ficado apenas como locatário do mesmo, o arguido nunca procedeu ao registo do veículo em nome da sociedade ofendida “F……….., S.A.”, nem entregou a esta sociedade os documentos necessários para esta proceder ao respectivo registo.
G) Ao invés, em data em concreto não apurada, mas anterior a 4 de Abril de 2001, actuando sem o consentimento e contra a vontade da sociedade ofendida, o arguido combinou com o seu pai, o ora arguido C………., o registo do referido veículo em nome deste último.
H) Assim, no dia 4 de Abril de 2001, o arguido B………., actuando na qualidade de legal representante da sociedade “E……….., Lda.”, assinou a declaração de fls.144 a 146 em que declarava vender o veículo de matrícula ..-..-RJ ao seu pai C………. .
I) Posteriormente o arguido B………. registou o referido veículo em nome do arguido C………. .
J) Apesar de bem saber que o veículo de matrícula ..-..-RJ não lhe pertencia, no dia 5 de Junho de 2001, o arguido B………. vendeu-o à sociedade “G………., S.A.” tendo esta, por sua vez, alugado o veículo em causa à sociedade “H………., S.A.”.
L) Para pagamento do mencionado veículo, o arguido B………. recebeu da sociedade “H………., S.A” a quantia de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros) de que logo se apropriou não entregando à sociedade ofendida “F………., S.A.” a quantia em causa.
M) Entre os dias 02 de Abril de 2001 e 10 de Abril de 2002, o arguido B………. entregou à sociedade ofendida a quantia de € 46.068,00 (quarenta e seis mil, e sessenta e oito euros) correspondentes às doze primeiras prestações, ficando ainda por pagar as treze restantes.
N) Ao assim proceder agiu o arguido B………. com o intuito de fazer seu o veículo de matrícula ..-..-RJ no valor de, pelo menos, 119.711,00 (cento e dezanove mil, setecentos e onze euros) e, desse modo, pode-lo vender e receber o respectivo preço, como efectivamente veio a acontecer, isto não obstante saber que o veículo em causa era propriedade da sociedade “F………., S.A.” e que apenas o detinha na qualidade de locatário.
O) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o objectivo, concretizado, de causar prejuízo patrimonial à sociedade ofendida, isto não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei.
P) O arguido B………. não tem antecedentes criminais.
Q) O arguido B………. é comerciante, aufere cerca de 600 euros mensais, vive com a mulher que aufere 500 euros mensais e um filho menor de ambos em casa própria.
E foi dado como não provado que:
A) Ao assim proceder agiu o arguido C………. com o intuito de fazer seu o veículo de matrícula ..-..-RJ no valor de, pelo menos, 119.711,00 (cento e dezanove mil, setecentos e onze euros) e, desse modo, poder vende-lo e receber o respectivo preço, como efectivamente veio a acontecer, isto não obstante saber que o veículo em causa era propriedade da sociedade “F………., S.A.” e que o arguido B………. apenas o detinha na qualidade de locatário.
B) O arguido C………. agiu de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e de intentos, na sequência de um plano previamente delineado entre ambos os arguidos, com o objectivo, concretizado, de causarem prejuízo patrimonial à sociedade ofendida, isto não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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O direito
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, extraídas das motivações apresentadas, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.
Recurso do arguido B……….
Dos autos resulta o seguinte quadro:
Na 1.ª sessão do julgamento (fls 387-388), o mandatário do arguido pediu a inquirição de uma testemunha aí identificada, por esta haver referido antes, durante a sua inquirição, «não ser possível a existência de ALD sem registo da viatura a favor da D………., S.A. (...) afigura-se necessário e essencial à boa decisão da causa requerer, nos termos do art. 340.º a audição do sr. I………., locador do veiculo ..-..-LJ (...)». Sobre tal requerimento recaiu este despacho: «uma vez que a testemunha quando inquirida pelo ilustre mandatário do arguido referiu expressamente que os contratos de aluguer de longa duração são assinados antes de se proceder ao registo das viaturas em nome da sociedade locadora, nomeadamente quando tais viaturas são adquiridas ao importador, não se nos afigura relevante nem necessário a audição da testemunha indicada, pelo que se indefere ao requerido»
Na sessão seguinte (fls 410 ss), fazendo referência ao aludido depoimento da testemunha, mais uma vez o mandatário do arguido requereu nestes termos «(...) está presente o sr. J………., antigo funcionário da E……….., Lda, cujo depoimento se afigura necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa, porquanto tem conhecimento directo dos termos do referido negócio e da referida contratação». Então o julgador proferiu o seguinte despacho «(...) defere-se ao requerido por se nos afigurar ser importante esclarecer quais os contornos do negócio em causa nos autos (...)». E logo de seguida foi proferido este outro despacho «verifica-se agora que a testemunha cuja audição foi agora deferida pelo despacho que antecede é a mesma cuja audição foi indeferida pelo despacho que consta de fls 388 (...) no aludido despacho de fls 388 já sido indeferida a sua audição, não pode agora ser a mesma ouvida, porquanto o referido despacho já transitou em julgado»
Deste despacho foi arguida a nulidade, e do mesmo vem agora interposto o presente recurso
Como se vê, não tendo sido a testemunha em causa atempadamente arrolada pelo arguido, convocou ele o disposto no art. 340.º do CodProcPenal para que o tribunal considerasse a inquirição da mesma em julgamento, normativo esse que dispõe: «1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. (...). 3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 328., n. 3, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis. 4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»
Perante a apresentação do caso feita pelo recorrente para justificar a inquirição daquela pessoa, não tinha o tribunal de deferir ao requerido. Mais precisamente: se o arguido pretendia demonstrar, como alegou no primeiro requerimento, que não era possível, ao contrário do que afirmara uma testemunha ouvida, celebrar um contrato de ALD sem previamente se ter procedido ao registo da viatura em nome da queixosa («não ser possível a existência de ALD sem registo da viatura a favor da D………., S.A.», como expressamente alegou), a verdade é que os contratos haviam sido celebrados, subscritos e assinados pelo arguido como vendedor e como locatário sucessivamente, e o que estava em causa era apenas uma divergência em relação ao que uma testemunha afirmara, mas divergência essa que não podia negar o que era evidente: que os contratos existiam e que o arguido neles se tinha obrigado a determinadas obrigações, designadamente a de pagar as rendas devidas pelo aluguer do veiculo e a de usar o veiculo como mero locatário. E assim não se vê, nem o recorrente especificou, qual o interesse concreto para a decisão da causa a audição de tal pessoa, designadamente em termos de exclusão ou de diminuição da culpa ou da ilicitude. No caso concreto configurado nos autos, em que há a celebração simultânea de dois contratos (um de compra e venda dum veiculo do recorrente para a queixosa, outro de aluguer do veiculo pela queixosa para o recorrente como locatário, contratos esses celebrados por escrito e com cláusulas bem precisas quanto às obrigações dos contraentes, e portanto quanto ao tipo de negócios e aos “contornos do negócio”) era bem necessário, para que o tribunal pudesse avaliar do interesse de ouvir tal pessoa, que o recorrente tivesse explicitado as razões que o levavam a pensar que teria interesse a inquirição ou que esse interesse se antevisse como claro para o julgador, o que não é o caso. Perante tal invocação de um interesse abstracto, o tribunal, vista a configuração do caso, não tinha de ouvir a testemunha então oferecida (embora, em boa verdade, o tribunal pudesse, e devesse em termos de completa clarificação do caso, ter convidado o requerente a explicitar melhor as razões do seu requerimento).
O n.º 4 do artigo 340.º citado remete para os limites do objecto do processo e para o princípio da necessidade da prova. É também neste sentido que a jurisprudência do STJ vem considerando que o princípio da investigação oficiosa está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova, cujo conhecimento se afigura necessário para habilitar o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos na fase de julgamento (cfr. os acs. de 25-03-98, CJ-STJ-1998-I-238; de 14-06-95, BMJ 415-418; de 4-12-96, BMJ 462-286; e de 9-07-98, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 97P1509. No mesmo sentido, os acs. da Relação do Porto, de 26-06-2002, 13-03-2002, 20-02-2002 e 10-05-2000, todos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ sob os nºs 0111457, 0111123, 0141332 e 0040035, respectivamente).
E ambos os despachos são claros quanto aos motivos do indeferimento, reportanto-se obviamente, ainda que de forma implícita, para o dispositivo do art. 340.º citado, visto que foi ao abrigo de tal normativo que o requerente pretendeu ouvir aquela pessoa. É certo que a orientação seguida pelo julgador na apreciação do caso revela uma certa desorientação e até equivocidade ao indeferir primeiro com base no não interesse em ouvir a pessoa, deferir depois com base no interesse da inquirição para esclarecer os contornos do contrato, e indeferir logo de seguida com base naquele mesmo interesse. Mas percebe-se que os indeferimentos tiveram como base apenas o facto de não interessar averiguar se o contrato de aluguer poderia ter sido celebrado sem previamente se fazer o registo do veiculo em nome da locadora, pois que era essa a razão apresentada pelo arguido para obter tal audição (embora, mais uma vez para sermos rigorosos, seja incoerente por parte do julgador dizer, no segundo despacho, que a inquirição de uma testemunha podia ter interesse para esclarecer os “termos do referido negócio e da referida contratação”, sem cuidar de previamente saber exactamente em que é que tal depoimento poderia relevar)
Dito isto, não se verifica a nulidade arguida

Recurso da “D………., S.A.”
Para fundamentar a não apreciação do pedido cível a sentença recorrida considerou, em resumo e com interesse: «Sendo esta a causa de pedir do pedido formulado (responsabilidade contratual) (...) na medida em que o art. 129º do Código Penal remete a regulação da indemnização por perdas e danos emergentes de crime para a lei civil, esta só pode ser o art. 483º do Código Civil, que apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos nos casos contemplados na lei. E estas responsabilidades, por um lado a responsabilidade por facto ilícito e a responsabilidade contratual, são essencialmente diferentes, porquanto resulta da inexecução de uma determinada obrigação preexistente entre o devedor e o credor, enquanto a primeira deriva de um facto ilícito prejudicial a alguém independentemente de qualquer obrigação preexistente entre o lesante e o lesado (...) O facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora, nem pode ser, de responsabilidade contratual (...) o regime de adesão não implica uma acção cível qualquer, mas tão-somente um pedido de indemnização civil por ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime (...) Ora, no caso em apreço, a conduta considerada como crime, sinteticamente, será a apropriação do veículo automóvel e não o incumprimento contratual. Daí que o pedido de indemnização cível formulado apenas poderia ter como pedido o valor correspondente aos danos causados com essa mesma conduta, ou seja, o valor do automóvel ou outros danos directamente decorrentes do facto ilícito. Ao invés, a demandante alegou como causa de pedir o incumprimento contratual. (...) Pelo que, declaro este tribunal incompetente para conhecer do pedido civil formulado e, em consequência, absolvo os demandados da instância».
Analisando o pedido cível deduzido pela ora recorrente, apresenta-se ele assim, em substância: depois de descrever a actuação do arguido e de dizer ser ela a possuidora do veiculo, alegou a recorrente, nos artigos 21.º e seguintes do seu pedido de indemnização cível de fls 268 e seguintes, que «em face do incumprimento contratual, a lesada, ao abrigo da cláusula 16.º das condições gerais do contrato (...) procedeu à resolução do mesmo (...) assim mostra-se vencidos e não pagos os alugueres relativos aos meses de (...), no montante global de € 17.206.34 (...) nos termos da cláusula 6.ª (...) são devidos juros de mora (...) acrescidos de 4% a título de cláusula penal 8. nesta data € 6.939,59 (...) por força da cláusula 17.ª (...) a título de cláusula penal (...) e havendo mora na devolução da viatura, uma quantia correspondente ao dobro daquela a que teria direito caso o contrato permanecesse em vigor por um lapso de tempo igual ao período em mora 8. no montante global de € 367.287,39 (...) nos termos da alínea c) da cláusula 16.ª (...) uma indemnização compensatória dos prejuízos resultantes do contrato (...) de € 57.306,02», acabando por pedir o montante global de € 448.739,34.
É manifesto que a acção cível tal como é ali configurada, se fundamenta na violação do contrato celebrado com o arguido. A causa de pedir é a existência do contrato de locação (ALD) e o não cumprimento do mesmo pelo arguido; o pedido traduz-se no pagamento pelo arguido dos montantes devidos pelas diversas cláusulas do contrato celebrado. E não vale dizer, como pretende a ora recorrente, que não chegou a adquirir a propriedade do veiculo, pois que a transmissão do direito de propriedade decorre da mera celebração do contrato de venda do veiculo, como dispõe o art. 874.º do CódCivil; e com a celebração do contrato de aluguer o arguido adquiriu a mera posse (detenção) do veículo (art. 1022.º do CodCivil). Por isso que tem razão a decisão recorrida quando conclui que, estando o arguido acusado da prática de um crime de abuso de confiança, «a conduta considerada como crime, sinteticamente, será a apropriação do veículo automóvel e não o incumprimento contratual. Daí que o pedido de indemnização cível formulado apenas poderia ter como pedido o valor correspondente aos danos causados com essa mesma conduta, ou seja, o valor do automóvel ou outros danos directamente decorrentes do facto ilícito»
Nos termos do n.º 1 do art. 377.° do CodProcPenal «a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a fundar-se fundado ...». A indemnização de perdas e danos é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil, como resulta do disposto nos arts 129.º do CodPenal e 72.º do CodProcPenal, estando apenas excluídos da apreciação em sede penal os casos fundados em responsabilidade contratual, como resulta do acórdão fixador de jurisprudência nº. 7/99 (antigo assento), de 17.06.99 (DR, 1ª. Série-A, nº. 179, de 03.08.99) que diz: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º., nº. 1 do Código de Processo Penal ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extra-contratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual.» Ou seja: o n.º 1 do art 377.º do CodProcPenal só pode funcionar quando esteja em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual, mas já não quando se configura um caso de responsabilidade civil contratual. (Ac. STJ de 10 de Dezembro de 1996; CJ, Acs. STJ, IV, tomo 3, 202).
Por força do que se dispõe neste último normativo, o juiz, apesar de absolver o arguido da acusação contra ele deduzida, deve condená-lo na indemnização civil, desde que o respectivo pedido, formulado com base nos factos da acusação, seja fundado, e, assim, procedente. E essa condenação deve o juiz proferi-la, quer a obrigação derive de facto ilícito extracontratual, quer se funde no risco, quer tenha por fonte violação de um qualquer direito subjectivo (Ac. RP de 19 de Novembro de 1997; CJ, XXII, tomo 5, 227; no mesmo sentido, entre outros: Ac. STJ de 20 de Maio de 1999, proc. n.° 77/99-3., SASTJ, n.° 31, 88 ; Ac. STJ de 12 de Janeiro de 2000, proc. 599199-3.; SASTJ, n.° 37, 61). De outro modo, como se escreveu no Ac. STJ de 10 de Janeiro de 2001 (proc. n.° 3580/00-3., SASTJ, n.° 47, 64) «não pode a condenação ter por base factos diferentes dos imputados, e, de entre estes, os factos provados - embora insuficientes para a condenação pelo crime, determinando a absolvição deste - têm de se mostrar suficientes ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, única que, por força do princípio da adesão, pode estar em causa no processo penal»
Portanto o recurso não pode proceder
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DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e assim:
I- Nega-se provimento a ambos os recursos, mantendo-se assim as decisões recorridas

II- Custas pelos recorrentes, com 2 Ucs de taxa cada um
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Tribunal da Relação do Porto, 12-03-2008
Jaime Paulo Tavares Valério
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto