Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0432890
Nº Convencional: JTRP00036953
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
GESTÃO PÚBLICA
GESTÃO PRIVADA
Nº do Documento: RP200405270432890
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - A competência material - tal como ocorre com qualquer outro pressuposto processual - afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor na demanda.
II - Se uma Câmara Municipal ocupa ou invade terreno alheio sem prévia deliberação, ou mera notificação, não age marcada pelo “ius imperii”, no exercício de uma função pública;
III - Age simplesmente em posição de paridade com qualquer cidadão;
IV - Assim, cabe aos tribunais judiciais (comuns), e não aos tribunais administrativos a competência em razão da matéria para o conhecimento da eventual responsabilidade da Câmara Municipal por virtude dessa ocupação ou invasão;
V - Sendo o tribunal judicial competente para a acção, é-o também para a providência cautelar, dela dependente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, A........................ e mulher B................. deduziram contra a CÂMARA MUNICIPAL DE PAREDES,
Providência Cautelar de Embargo de Obra Nova.

Alega:
Que, tendo cedido à requerida uma parcela do seu terreno com a aproximada de 1650 m2 para a construção de uma estrada, a requerida procedeu ao corte e desaterro do terreno dos requerentes em 3.053 m2, assim extravasando do que foi entre ambos acordado, em violação ilícita do direito de propriedade dos requerentes, pois não solicitou autorização para ocupar o referido terreno na sua totalidade, mas tão somente os aludidos 1650 m2.
Além disso, não teve lugar informação ou notificação dos requerentes por banda da requerida para ocupar o referido terreno, nos aludidos moldes, nem tal foi objecto de qualquer deliberação camarária.

Pede:
Se proceda ao embargo da obra que a requerida está a levar a efeito.

Ouvida a requerida, veio esta opor-se à procedência da providência, invocando, além do mais, a excepção da incompetência, em razão da matéria, deste tribunal para conhecer do presente procedimento.

Por despacho de fls. 43 ss, foi julgada procedente a excepção da incompetência suscitada pela requerida, com a consequente absolvição desta da instância.

Inconformados, vieram os requerentes agravar desse despacho, apresentando as pertinentes alegações que terminam com as seguintes

CONCLUSÕES:
“1. Quando uma Câmara ocupa terreno alheio, sem prévia deliberação, ou mera notificação, não age no exercício de uma função pública.
2. Nem marcada pelo “ius imperium”.
3. Está numa posição de paridade absoluta com qualquer outro cidadão.
4. No caso em apreço, a Requerida não detinha qualquer poder para ocupar terreno de outrem.
5. Nem tal faz parte do exercício da sua actividade pública.
6. Assim e nos termos do artº 212º da C.R.P., a matéria em apreço deve ser julgada pelos Tribunais Comuns.
7. Deve ser revogada a douta decisão.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir, sendo que a instância mantém a sua validade.

II . FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. OS FACTOS:

A factualidade a ter em conta é, essencialmente, a supra referida, alegada pelos requerentes/agravantes - sem prejuízo de eventual referência a um ou outro facto alegado ou documentado nos autos, se se vier a entender necessário.

II. 2. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada no agravo restringe-se à procedência da excepção invocada pela requerida Câmara Municipal de Paredes, de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Judicial de Paredes, para conhecer do pedido de embargo de obra nova formulado contra si, por se entender ser competente, para o efeito, o Tribunal Administrativo de Círculo.
Quid juris?

III. O DIREITO:

Segundo o art. 209º da CRP que “1.- Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de Tribunais:
a)- O STJ e os Tribunais Judiciais da 1ª e 2ª instância:
b)- O STA e os Tribunais Administrativos e Fiscais”

O art. 212º, nº3 daquela Lei Fundamental diz que «compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Na base da repartição da competência está o princípio da especialização reservando para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito (A. Varela, Manual Proc. Civil, pág. 194, 195 e 207).

“Ex vi” da lei ordinária do art. 51º-1 h), ETAF (Dec. Lei nº 129/84. de 27.4, alterado pelo Dec. Lei nº 228/96, de 29.11) «compete aos Tribunais Administrativos de Círculo, conhecer das acções sobre a responsabilidade civil extracontratual dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso».
Por sua vez, o seu art. 4º, nº1, al. f), definindo os limites desta jurisdição, diz que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal, os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
O conhecimento destas questões é que cabe aos Tribunais Judiciais, porque “ex vi” art. 211, nº1, da CRP; 18º, nº1, LOFTJ; e 66º, CPC , são os Tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Para efeitos de mera comparação - embora inaplicável ao presente caso--, citar-se-á, para confronto o disposto no art. 4º-1- a) e g) do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2 e alterado pela Lei nº 107-D/ 2003, de 31.12.
Segundo o disposto no artº 4º, nº1, al. f), do mesmo ETAF, estão fora da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado, mesmo que qualquer das partes seja pessoa de direito público. Tais acções caem, assim, na competência residual dos tribunais judiciais, pois que, segundo os artsº 18º da Lei nº 3/99, de 13.01 e 66º do CPC, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Diga-se, antes de mais, que o facto de estar in casu em causa uma providência cautelar em nada altera a decisão a dar, pois se o tribunal é competente para a acção, é-o também para a providência cautelar dela dependente.
Efectivamente, coo se escreveu no Ac. da Rel. de Lisboa de 13.03.1986, Col. Jur., Ano XI, T. 2, pág. 101, “é competente, em razão da matéria, para o procedimento cautelar, o tribunal competente para a acção principal, de que aquele é dependência”.

Por outro lado, cumpre igualmente referir, desde já, que - como também se escreveu no Ac. do Trib. Rel. de Lisb. de 21.10.2002, in www.djsi.pt, nº convencionl jtrl00012476--, “a norma do artigo 414º, nº1, do CPC não é de competência,...”.

Do até aqui explanado, logo ressalta que importa, essencialmente, averiguar se os actos que os requerentes/agravantes assacam à agravada (CÂMARA MUNICIPAL DE PAREDES) está no âmbito da gestão pública (art. 51º, ETAF aplicável) ou privada (seu art. 4º).
Esta é, de facto, a questão central, pois entendendo-se que está em causa nesta demanda uma conduta ou omissão da Câmara Municipal por acto de gestão pública, é o Tribunal Administrativo respectivo o competente para conhecer do mérito da causa; não o estando, a competência pertencerá ao Tribunal judicial (Comum), in casu o Tribunal Judicial de Paredes.

Uma nota prévia, porém:
Como é sabido, a competência material depende do thema decidendum concatenado com a causa de pedir (Bol. M.J. 459-449 e Ac. STJ in BMJ 364-596).
O mesmo é dizer que tal competência - tal como ocorre com qualquer outro pressuposto processual - afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor na demanda.
Assim, numa coisa tem razão o despacho recorrido. É quando refere - citando o Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 - que a competência “é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos)”.
Ou, como refere no Ac. STJ de 24.01.2002, in www.djsi.pt, nº convencional JSTJ 00042728, a competência do foro- se administrativo, se comum - define-se em função da natureza do acto atacado: de gestão pública ou de gestão privada.
Importa, portanto, ver se a conduta da requerida Câmara Municipal que integra a causa de pedir tal como a configuram os requerentes/agravantes no requerimento inicial se integra, ou não, no conceito de acto de gestão pública (cit. artº 51º do citado ETAF).
Vejamos, pois.

Voltemos, então, à questão gestão púbica/gestão privada:
Muito se tem escrito, na doutrina e jurisprudência, sobre a distinção entre acto de gestão pública e acto de gestão privada, podendo-se aqui citar inúmeros arestos onde se procura fazer tal distinção - o que se tornaria monótono e se nos afigura, porém, desnecessário.
Cremos, porém, que se gerou uma base de consenso na nossa doutrina e jurisprudência, quanto à citada distinção, podendo afirmar-se que as ideias básicas consensuais a tal respeito são estas:
- Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção;
- Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida do poder público (o ius imperii), e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas do direito privado.
No entanto, esta ideia de nos actos de gestão pública haver a submissão às mesmas regras que vigorariam para o caso de serem praticados por meros particulares tem de ser entendida dando atenção à verdadeira realidade que pretende exprimir, pois a sua formulação pode prestar-se com alguma facilidade a uma menos correcta interpretação e conduzir a resultados que ultrapassam aquilo que a ideia realmente deseja traduzir.

Mais expressivamente, diremos que o acto é de gestão pública se for “praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva; isto é, regidos pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade (“ius imperii”) para tais fins” (Vaz Serra, Rev. Leg. Jur. , ano 110, 315; Ac. STJ de 19.03.1998, agravo nº 800/97), independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção ou de regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas (Ac. Trib. de Conflitos de 12.05.1999, AD STA, nº 455, XXXVIII, pág. 1459; Ac. STA, de 30.10.83, BMJ 331-587 e Ac. STA de 05.12.1989, proc. nº 25 858, DR (Ap) de 30.12.94, pág. 6 939).
Acto de gestão privada é, ao invés, aquele que for praticado no quadro de uma actuação nos termos do Direito Privado, por um órgão e agente da Administração, despido de “auctoritatis”, isto é, numa posição de paridade com os particulares, sujeito às mesmas regras que vigoram para a hipótese de esse acto ser praticado por estes, no desenvolvimento de uma actividade exclusivamente sob a égide do Direito Privado (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, ed. brasileira, pág. 1311 e segs.. Ainda, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., pág. 671).

Os requerentes alegam que a requerida com a sua conduta está a causar-lhes “graves prejuízos” ( artº 20 do requerimento inicial).
Ora, segundo cremos, a entrega, aos tribunais administrativos, da competência para conhecer dos pedidos de indemnização formulados à Administração por danos causados por actos dos seus órgãos e agentes, emergentes de actos de gestão pública, radica na presunção de que aqueles órgãos judiciários se encontram melhor preparados para a apreciação de tais litígios, resultante da sua especialização. O que leva a concluir que a atribuição de tal competência assenta na presunção de uma certa conexão das matérias aí a decidir com a organização e o funcionamento dos serviços públicos, ou com o conhecimento de relações jurídico-administrativas, e, ao mesmo tempo, na assunção pela Administração, naqueles casos, da sua veste de poder público, para a realização de uma função pública (Marcelo Caetano, Manual cit., Tomo II, pág. 1198, e Vaz Serra, Revista de Leg. e Jur. , Ano 103º, págs. 348 e 349).
No entanto, porém, esta conclusão tão só respeita à justificação da solução legal, abstractamente considerada, não servindo para definir, em cada caso concreto, a jurisdição competente, pela natureza das normas ou pelas razões que a decisão do litígio irá pôr em causa.

O que dizer, então, da situação sub judice: a responsabilidade assacada à Câmara Municipal, em face da factualidade alegada na petição inicial como causa de pedir da demanda (atendendo, como vimos, a que “a competência material depende do thema decidendum concatenado com a causa de pedir”), insere-se no quadro ou âmbito da gestão privada ou da gestão pública?

Cremos que se insere no âmbito da gestão privada.

Efectivamente, face à factualidade alegada pelos agravantes para alicerçar o seu pedido, este é consubstanciado na prática de danos de natureza patrimonial no seu terreno-- ou melhor, na parte do seu terreno não cedida à requerida (arts. 12 a 17 do requerimento inicial)-- por causa, não só de ocupação de parcela que à requerida/ocupante ou invasora não pertence, como, também, de “corte e desaterro” do mesmo.

Terão tais actos materiais da requerida sido praticados no exercício de um poder público, visando a prossecução de um interesse público - como pretende a agravada?
Parece-nos manifesto que não.
Parece evidente - salvo melhor opinião - que, tendo em conta o presumido pedido indemnizatório que os requerentes por certo irão deduzir contra a requerida pelos “graves prejuízos” que a mesma lhes causou-- pois o procedimento cautelar é mera dependência da acção a propor--, os actos violadores do direito de propriedade e geradores da obrigação de indemnizar se não integram em qualquer relação jurídica administrativa, regulada pelo direito público, mesmo que relacionados com a execução de obra - construção de estrada.
Nem pode considerar-se a referida actuação como acto de gestão pública.
A gestão publica pressupõe uma actuação correspondente ao exercício do poder da autoridade e exige que os meios utilizados sejam adequados ao prosseguimento das atribuições conferidas por lei ao agente. E parece vidente que a ocupação ou invasão de propriedade alheia não é, de todo, adequada ao prosseguimento das atribuições conferidas à Câmara Municipal!
No caso dos autos, a requerida Câmara Municipal, ao invadir, escavar e desaterrar terreno de outrem sem -- segundo os termos da alegação que, como se disse, condicionam a questão da competência, de que ora nos ocupamos-- autorização do seu proprietário, ou, mesmo, deliberação para o efeito, actuou como qualquer particular que procede a obras ou escavações no seu prédio, sem qualquer especial poder de autoridade e muito menos ao abrigo de normas de direito público; a reacção contra essa ofensa tem que ser demandada nos tribunais comuns por não haver jurisdição especial (ver Bol. M.J. 364-603).

Como se escreveu, de forma lapidar, no Ac. do STJ de 19.11.2001 - cuja doutrina aqui podemos aplicar, por a situação ser assaz semelhante, “reproduzindo aqui as razões constantes do Ac. da Relação de Coimbra, de 2.7.96, na Col. 96-IV-25, e lendo os ensinamentos dos Prof. J. Osvaldo Gomes e Alves Correia ( expropriações,...43 e as Garantias..., 172, respectivamente), podemos concluir, com o STJ(Col.(STJ) 94-I-114) que
“Uma coisa é proceder à abertura de uma estrada, expropriando os terrenos necessários à sua implantação e realizando por administração directa ou por empreitada, a obra, e outra é invadir prédio alheio, terraplenar e causar danos, sem autorização dos donos ou prévia expropriação.
Esta ofensa do direito de propriedade, não cabe nas atribuições de uma autarquia, não integra a competência de um agente administrativo, não pode ser considerado um acto administrativo.
O direito dos AA que estes invocam como ofendido é um direito privado e não um direito ou uma garantia de natureza publicista”.
Em situações semelhantes assim decidiu este Supremo Tribunal (Agravo nº 2516/01, Ac. de 27.9.2001-6ª Secção e em 27.11.01, no Agravo 2948/01-1ª Secção)” - os sublinhados e negritos são da nossa autoria.

Portanto, os actos da agravada que provocaram os referidos danos aos agravantes jamais se pede dizer terem sido praticados no âmbito duma gestão pública, nos termos que supra a configurámos.
A agravada simplesmente - na alegação dos requerentes, volta-se a repetir - ocupou uma parcela de terreno que lhe não pertencia, contra a vontade dos donos, ali estando a executar as obras supra referidas.
Como tal, não estamos, efectivamente, perante o exercício do “ius imperii”, mas tão só e apenas face a uma actuação que qualquer pessoa, pública ou privada, singular ou colectiva, na sua gestão comum, pode praticar, em violação de normas exclusivamente de direito privado.
Efectivamente, cremos razão assistir aos agravantes quando referem que “quando uma Câmara Municipal invade a casa de cada um de nós, sem que tenha ocorrido notificação ou qualquer deliberação, não age no exercício de um direito público, mas tão só como um comum agressor e nos domínios do direito privado”
Não há - nem vem referido na decisão recorrida--, efectivamente, norma de natureza administrativa que atribua à requerida o direito de ocupar a propriedade alheia.
Salvo prévia expropriação, naturalmente - e, mesmo aqui, sempre mediante justa indemnização.
É que, o artº 62º da Constituição da República Portuguesa estabelece no seu nº 2 que “A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento da justa indemnização” - o que consagra, portanto, o princípio da justa indemnização como um dos princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico.
Esse direito à indemnização está igualmente previsto no Cód. Civil (artº 1310º).
Idem, o artº 1º do CE --“Os bens imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objectos da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização nos termos do presente Código” --e o artº 23º do Cód. das Exp.

Portanto, não compete às Câmaras Municipais ocupar -- da forma que o fez no caso sub judice-- terrenos de outrem, usando-os a seu bel prazer.
Os prejuízos sofridos pelos requerentes/agravantes não emergem da violação pela requerida de um dever funcional. A lei, de facto, não lhe confere, entre as suas actividades funcionais, a de ocupar e remover terrenos dos particulares, nos sobreditos termos. Pelo que tal actividade jamais pode constituir um acto de gestão pública: a lei não lhe confere tais poderes para o prosseguimento do interesse público de realização de estradas ou vias de comunicação no âmbito territorial da sua jurisdição.

Declarar a ofensa do direito de um particular sobre a sua propriedade rústica, a consequente obrigação de indemnizar e decorrente liquidação dos danos sofridos - tudo a apurar na subsequente acção declarativa de condenação, de que este procedimento cautelar é dependente, como supra já referimos--, é uma actividade jurisdicional típica dos tribunais comuns, de direito civil material e de processo civil.
Estamos em face de uma causa de pedir que se traduz numa actividade que se desenvolveu no âmbito e pelas formas próprias do direito privado; tal como temos um pedido que, por sua vez, também é fundamentado exclusivamente em regras de direito privado.

Para se poder dizer que os aludidos actos da agravada - causadores dos “graves prejuízos” alegados pelos agravantes e de que se pretenderão ver ressarcidos--, se qualificavam como de gestão pública, necessário se impunha, portanto, que tais actos se compreendessem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.
Quando a Câmara Municipal invade uma propriedade alheia, age despida de poder público. Não faz parte deste conceito de poder público a invasão ou a ocupação de terreno alheio.
Não há qualquer norma de carácter público que a proteja ou a autorize a tal - in casu, face ao alegado, nada foi deliberado para tal efeito e não foram os requerentes notificados do que quer que fosse.
Anote-se, porém, que, ao falar-se em actos que se compreendem na realização de uma função pública, pretende-se focar tão só e apenas os actos que integrem, eles mesmos, essa realização, não se abrangendo os actos que somente se destinam a permiti-la ou proporcioná-la.

Posto isto, e considerando que
nos termos do artº 66º do CPC, as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum (judicial);
não sendo atribuída a outra jurisdição o conhecimento da matéria objecto desta demanda,

a conclusão a extrair é que no caso sub judice “a competência em razão da matéria para o conhecimento da eventual responsabilidade da requerida” - cfr. decisão recorrida, a fls. 47-- não pertence ao Tribunal Administrativo, mas, antes, ao Tribunal “a quo”, ou seja, o Tribunal Judicial da Comarca de Paredes.
Assim é imposto pela “natureza do acto atacado”.
Sobre esta matéria, ver, ainda, o Ac. da Rel. do Porto de 7.11.2000, in Col. Jur. , Ano XXV, T. V, págs. 184 ss.

CONCLUINDO:

1. A competência material - tal como ocorre com qualquer outro pressuposto processual - afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor na demanda.
2. Se uma Câmara Municipal ocupa ou invade terreno alheio sem prévia deliberação, ou mera notificação, não age marcada pelo “ius imperii”, no exercício de uma função pública;
3. Age simplesmente em posição de paridade com qualquer cidadão;
4. Assim, cabe aos tribunais judiciais (comuns), e não aos tribunais administrativos a competência em razão da matéria para o conhecimento da eventual responsabilidade da Câmara Municipal por virtude dessa ocupação ou invasão;
5. Sendo o tribunal judicial competente para a acção, é-o também para a providência cautelar, dela dependente.

III. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao agravo, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, julgando improcedente a suscitada excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, determine a competência deste Tribunal para o prosseguimento dos autos.

Sem custas, por a agravada delas estar isenta (cfr. artº 2º,1, e), do CCJ).

Porto, 27 de Maio de 2004
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha