Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11339/12.2TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: UNIDADE E PLURALIDADE DE CRIMES
CONDUTA NEGLIGENTE
CONCURSO EFECTIVO
Nº do Documento: RP2015120911339/12.2TDPRT.P1
Data do Acordão: 12/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais, sejam dolosos ou negligentes, o número de infrações determina-se pelo número de ofendidos.
II – Comete, em concurso efetivo, três crimes de Ofensa à integridade física por negligência, do art. 148.º, do Cód. Penal, o agente que com a sua conduta negligente viola a integridade física de três distintas pessoas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 11339/12.2TDPRT.P1
Origem: Porto- instância local- secção criminal- J3

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Para julgamento em processo comum e perante tribunal singular, o Ministério Público acusou B…, nascido a 8/3/1943, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de três crimes de ofensa à integridade física negligente, previstos e punidos pelo artigo 148º, nºs 1 e 3, do Código Penal, em concurso aparente com a contraordenação prevista e punida pelas disposições dos artigos 24.°, n.º 1 e n.º 3, do Código da Estrada, ainda punível com a sanção acessória de inibição de conduzir nos termos dos artigos 138.°, n.º 1, 139.°, 145.°, n.º 1, alínea e), e 147.° do citado Código.
A final da audiência de julgamento entretanto realizada, o Tribunal da 1ª instância proferiu sentença em que condenou o arguido:
- pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente previsto e punido pelo artigo 148º, n.º 1, (em concurso meramente aparente com dois outros crimes de ofensa à integridade física negligente previstos e punidos pelo mesmo artigo) na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00, num total de €350,00;
- na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 meses, suspensa na sua execução pelo período de 6 meses, nos termos do disposto no artigo 141º do Código da Estrada.
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Discordando do assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, cujos fundamentos sintetizou nas seguintes conclusões:
«1. Incide o recurso sobre o teor da douta sentença que decidiu condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nºs 1, do CP, “em concurso meramente aparente com dois outros crimes de ofensa à integridade física negligente, p. e p. no art. 148º, nº 1, do CP”, e na “sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 meses, suspensa na sua execução pelo período de 6 meses nos termos do disposto no art. 141º do Código da Estrada.”
2. Diverge o Ministério Público recorrente do decidido por considerar que o arguido deveria ser condenado:
- pela prática de três crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, do CP, em concurso efetivo ideal homogéneo;
- na pena acessória prevista no art. 69º. nº 1, al. a), do CP, como consta da acusação.
3. No que concerne ao concurso de crimes temos que a negligência consubstancia a omissão de um dever de cuidado, quando o agente tem a capacidade ou possibilidade de prever corretamente os resultados que adviriam dessa omissão.
4. O número de infrações determina-se pelo número de valorações jurídico-criminais que correspondem a uma determinada atividade.
5. Tratando-se da violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida e a integridade física, a pluralidade de ofendidos determina a pluralidade de crimes.
6. Sendo absolutamente indiferente o facto de a negligência ser consciente ou inconsciente já que, se através de uma ação são mortas ou feridas várias pessoas, estar-se-á sempre perante uma situação de concurso efetivo, sob a forma de concurso ideal.
7. No caso dos autos, sendo o arguido responsável único, a título negligente, por um acidente de viação do qual resultaram ofensas à integridade física para três distintas pessoas, tais resultados danosos, por estarem no âmbito da sua capacidade de previsão, terão que lhe ser forçosamente imputados.
8. No que concerne ao segundo ponto de discordância temos que, aquando da dedução da acusação, o Ministério Público fez constar que o arguido deveria ser condenado, para além dos três crime de ofensa à integridade física por negligência, com a pena acessória prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP, em concurso aparente com uma “contraordenação p. e p. pelas disposições dos arts. 24º, nº 1 e nº 3, do Código da Estrada, ainda punível com a sanção acessória de inibição de conduzir nos termos dos arts. 138º, nº 1, 139º, 145º, nº 1, al. e) e 147º do citado Código.”
9. A douta sentença é, no entanto, omissa quanto à questão da aplicação da pena acessória prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP. Com efeito, o tribunal a quo analisou apenas o regime que decorre da aplicação conjugada das normas previstas nos arts. 18º, nº 1, 134º, nº 1, 138º, 141, nºs 1 e 2, 145, nº 1, al. f) e 147º, todos do Código da Estrada, e concluiu pela aplicação de 2 meses de sanção acessória de inibição de conduzir, suspensa na respetiva execução pelo período de 6 meses, sendo que nada adiantou no que concerne à aplicação, ou não aplicação, da pena acessória prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP.
10. Ora, a contraordenação grave, prevista no art. 18º, do Código da Estrada, que determinou a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º, do mesmo diploma legal, foi considerada causal do acidente.
11. Neste particular, releva o disposto no art. 134º, nº 1, do Código da Estrada: “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.”
12. Atento o exposto, o arguido deve ser condenado, não na “sanção acessória de inibição de conduzir nos termos dos arts. 138º, nº 1, 139º, 145º, nº 1, al. e) e 147º do citado Código”, mas sim na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP.
13. A omissão de pronúncia descrita determina a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, al. c), do CPP, nulidade essa que pode/deve ser arguida em motivação de recurso e pode ser suprida pelo tribunal superior.
14 – Ao condenar o arguido apenas pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1, do CP, em concurso meramente aparente com dois outros crimes de ofensa à integridade física por negligência, violou a douta decisão recorrida o disposto nos arts. 15º, 30º, nº 1, 77º, nº 1, e 148º, nº 1, todos do CP.
15 – A não apreciação da aplicação ao caso sub judice da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP, mencionada na acusação, consubstancia omissão de pronúncia, da qual decorre a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, al. c), do CPP.
Tal omissão determinou a condenação do arguido na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 meses, suspensa na sua execução pelo período de 6 meses nos termos do disposto nos arts. 141º e 147º, do Código da Estrada, e a não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, al. a), do CP.
Em consequência, a sentença revidenda violou, quer o disposto no art. 69º, nº 1, do CP (que não aplica), como os arts. 134º, nº 1, e 141º e 147º, estes do Código da Estrada (que aplica indevidamente).»
Finalizando o seu recurso, o Ministério Público (1ª instância) requereu:
- a revogação da decisão recorrida, e a sua substituição por outra que condene o arguido, como autor material, em concurso efetivo ideal heterogéneo, pela prática de três crimes de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal;
- a absolvição do arguido da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no artigo 147º do Código da Estrada, determinando-se a sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.
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O arguido não apresentou resposta.
Tendo os autos subido à 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que sustenta, por um lado, a procedência parcial do recurso, no que à consideração da efetiva pluralidade de crimes negligentes (concurso efetivo) respeita, mas, por outro lado, a sua improcedência parcial, no que tange à pretendida substituição da decretada inibição de conduzir (do Código da Estrada) por proibição de conduzir (do Código Penal), pois tal substituição implicaria a violação do princípio da aplicação da lei concretamente mais favorável ao arguido, em sede de aplicação de sucessão de leis no tempo.
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Entendendo o relator que o recurso deveria ser julgado em conferência e colhidos os necessários vistos, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Para além da reprodução prévia da parte da sentença recorrida que contém a decisão sobre a matéria de facto provada, encontra-se utilidade na identificação das principais questões a decidir.
Tais questões são, fundamentalmente, as de saber:
- se a conduta do arguido consubstancia a autoria de um só crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punido pelo artigo 148º nº 1 do Código Penal (como se entendeu na sentença recorrida) ou se configura a autoria, em concurso efetivo, de 3 (três) crimes previstos na mesma disposição;
- se é aplicável, no caso, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, atualmente prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Código Penal (como propugnado pelo recorrente), ou se apenas é cabida a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos conjugados dos artigos 134º, 138º, 18º e 145º do Código da Estrada (como se entendeu na sentença recorrida).
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A) Os factos provados (transcrição)
“A – No dia 23 de Agosto de 2012, cerca das 18h 45, o arguido circulava na Avenida …, nesta comarca, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros (serviço de táxi) com a matrícula ..-JR-.., pela via de trânsito da esquerda, no sentido ascendente (…-…).
B - A referida estrada, no local, tem duas vias, com separador central, com regime de circulação de sentido único, configurando uma reta com boa visibilidade conforme croquis de fls. 4, verso.
C - A velocidade, no local, tem como limite 50 kms/hora.
D - Na ocasião, o tempo estava bom e o piso encontrava-se em razoável estado de conservação.
E - Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, no mesmo sentido do arguido, à sua frente, pela mesma via de trânsito da esquerda, seguia o veículo com a matrícula ..-..-UA, conduzido pela ofendida C…, no qual se faziam transportar, as ofendidas D…, nascida a 27/01/98, no banco da frente, com o cinto de segurança colocado, e E…, nascida a 18/09/99, no banco traseiro, lado esquerdo, sem cinto de segurança.
F - Acatando o sinal vermelho emitido pelos primeiros semáforos existentes naquela Avenida, junto ao entroncamento da mesma com a Rua…, atento o referido sentido de marcha dos veículos intervenientes, a ofendida C… imobilizou o seu veículo integrando a fila que ali se formara, na via da esquerda.
G - Porém, o arguido, que seguia desatento e a uma velocidade não concretamente apurada mas não superior a 50 kms/hora, ao aproximar-se dos referidos semáforos e dos veículos que ali se encontravam parados, designadamente o ..-..-UA, conduzido pela ofendida C…, que se posicionava em último lugar naquela fila da via esquerda, não parou nem reduziu a velocidade que imprimia ao seu veículo e foi embater com a parte frontal do mesmo na traseira do ..-..-UA.
H - Em consequência direta de tal embate todas as ofendidas foram projetadas para a frente sofrendo o respetivo impacto nos seus corpos.
I - Em consequência direta e necessária do referido embate, sofreu a ofendida C… "cervicalgia direita e dor ao nível da falange proximal do 5.º dedo da mão direita", pelas quais recebeu assistência no SU do Hospital de São João, lesões que lhe determinaram 1 (um) dia de doença sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional, e sem consequências permanentes objetiváveis, conforme melhor descrito nos autos de perícia de fls. 105 a 107 e 197 a 200 e nos registos clínicos do Hospital de São João, e da Seguradora F…, que se dão por reproduzidos.
J - Igualmente em consequência direta e necessária do referido embate, sofreu a ofendida E… "dor cervical e dorso- lombar e no tornozelo direito" pelas quais recebeu assistência nos SU do Hospital de São João, lesões que lhe determinaram 1 (um) dia de doença sem afetação da capacidade de trabalho geral ou de atividade de formação, conforme melhor descrito nos autos de perícia de fls. 97 a 99 e 202 a 204 e nos registos clínicos do Hospital de São João e da Seguradora F…, que se dão por reproduzidos.
L - Ainda em consequência direta e necessária do referido embate, sofreu a ofendida D… "dor no ombro esquerdo e coluna cervical e dorso-lombar" pelas quais recebeu assistência nos SU do Hospital de São João, lesões que lhe determinaram 1 (um) dia de doença sem afetação da capacidade de trabalho geral ou de atividade de formação, sem consequências permanentes objetiváveis, conforme melhor descrito nos autos de perícia de fls. 101 a 103 e 206 a 208 e nos registos clínicos do Hospital de São João e da Seguradora F…, que se dão por reproduzidos.
M - O arguido circulava desatento ao trânsito, designadamente à sinalização luminosa e aos veículos que circulavam à sua frente, e sem os cuidados necessários, não acatando as normas de circulação rodoviária, em concreto as que impõem a obrigação de circular a uma velocidade que permita ao condutor fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente.
N - Por esse motivo deu o arguido causa ao embate tendo atuado sem a perícia necessária para conseguir imobilizar o seu veículo de modo adequado a evitar a colisão, que podia e devia ter previsto.
O - O arguido sabia que, no exercício da condução, devia manter-se atento ao trânsito e que se encontrava obrigado a respeitar as prescrições constantes das regras de circulação rodoviária, sabendo ainda que devia ter em conta as características da via e as condições de trânsito existentes no momento e imprimir ao seu veículo uma velocidade que lhe permitisse fazer parar o mesmo no espaço livre e visível à sua frente.
P - Podia e devia o arguido ter previsto que ao seguir desatento e ao desrespeitar aquelas normas de trânsito, pudesse embater noutros veículos e que, com a sua conduta, pudesse molestar a integridade física de outrem, causando-lhe lesões corporais, como veio a causar, o que era previsível para qualquer condutor medianamente cauteloso e para o arguido, e, não obstante, agiu sem os cuidados e a atenção necessária para evitar tal colisão confiando que a mesma se não verificaria.
Q - Sabia que tal conduta era proibida e punível por lei.
R – O arguido não tem antecedentes criminais nem contraordenacionais.
S – O arguido encontra-se reformado auferindo cerca de €419,00 de pensão de reforma e presta serviços de motorista de táxi auferindo em média pouco mais de €100,00. É casado e a sua esposa aufere mensalmente a quantia de €150,00 a título de RSI, sendo uma pessoa doente. O arguido tem o 4º ano de escolaridade.”
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B) Unidade ou pluralidade de crimes de ofensa à integridade física negligente
O arguido foi condenado pela prática de um só crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no artigo 148º, nº 1, do Código Penal (em concurso meramente aparente com dois outros crimes de ofensa à integridade física negligente previstos e punidos pelo mesmo artigo).
Alega, a este propósito, o Ministério Público, que, pelas razões referidas no seu recurso, deve considerar-se que o arguido cometeu, em concurso efetivo, 3 crimes de ofensa à integridade física por negligência.
Vejamos.
O critério legal da unidade ou pluralidade de crimes encontra-se, atualmente, expresso no nº 1 do artigo 30º do Código Penal, que assim dispõe: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Isto é, em princípio, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo).
Para melhor ilustrar o relevo desta norma introduzida com o Código Penal de 1982, assinale-se que Cavaleiro de Ferreira [2], no domínio do Código Penal de 1886, sempre entendeu que “a unidade do facto é a substância da unidade do crime: uma acumulação de crimes é sempre uma pluralidade de factos”; “(…) a pluralidade de lesão jurídica, por si só, não multiplica o número de crimes, desde que exista unidade de ação, ou do evento material ou da decisão voluntária; a dupla ou múltipla punição iria afetar o princípio do ‘non bis in idem’”.
No entanto, face ao Código Penal de 1982, o mesmo autor [3] escreve: “O nº 1 do artigo 30º não atenta na unidade ou pluralidade de factos (condutas) para definir o concurso de crimes. Quer seja um facto ou vários factos que infringem plúrimas vezes normas incriminadoras, há concurso de crimes. Ou, dito singelamente, há concurso de crimes desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos.
Com a definição legal, obnubila-se a distinção entre concurso real e concurso ideal, como desnecessária ou irrelevante”.
Com efeito, também Figueiredo Dias [4], em síntese convergente quanto a este aspeto, expende: “Efetivamente, na distinção jurídico-penal da unidade e da pluralidade de crimes, têm sido seguidas, no essencial, duas vias fundamentais: a de atender prioritariamente à unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados; ou a de conferir relevo decisivo à unidade ou pluralidade de ações praticadas pelo agente. A primeira via é assim claramente aceite e prosseguida pela nossa lei vigente. A segunda via impôs-se na jurisprudência e na doutrina germânicas e, a partir destas, em diversos países. Através dela se logra a distinção entre concurso ideal (a mesma ação viola várias disposições penais ou várias vezes a mesma disposição penal) e concurso real (diversas ações autónomas violam várias disposições penais ou várias vezes a mesma disposição penal). De acordo com o disposto no artigo 30º-1, não parece pois haver espaço para a distinção germânica entre um “concurso real” e um “concurso ideal”: no ordenamento jurídico português ou existe um concurso efetivo ou verdadeiro (hoc sensu, se quisermos, “real”), ou há unidade de facto punível e, por conseguinte, de crime.”
Conforme hoje se plasma no artigo 13º do Código Penal (e como se dispunha já nos artigos 2º e 110º do Código Penal de 1886), só são puníveis criminalmente, em regra, os atos cometidos com dolo, reservando-se a punição por negligência para os contados casos em que a lei expressamente o prevê.
Daí que a problemática da unidade ou pluralidade de infrações se coloque, com natural preponderância, relativamente aos crimes dolosos.
A questão da unidade e pluralidade de infrações – adstrita à hipótese de a existência de uma só conduta naturalística negligente do agente ter causado múltiplas violações de bens jurídicos penalmente protegidos – tem sido abundantemente debatida na jurisprudência portuguesa há longas décadas, avultando que o S.T.J. se tem pronunciado, de forma maioritária, no sentido de se verificar um único crime.
Esta orientação, amplamente prevalecente no nosso mais alto tribunal, assenta essencialmente na consideração de que, nas condutas negligentes – mormente quando a negligência seja inconsciente – não prevendo o agente uma pluralidade de resultados típicos, não será possível formular uma pluralidade de juízos de censura, mas apenas um único. Neste sentido, veja-se, com exaustiva fundamentação, o acórdão do S.T.J. de 13/7/2011, publicado, nomeadamente, na C.J./S.T.J., ano XIX, tomo II, páginas 210 e seguintes [5], onde, a folha 217, se recenseiam 38 acórdãos do S.T.J. com idêntica linha de argumentação, desde 23/2/1945 até 21/9/2005.
Esta posição, preponderante no S.T.J., tem vindo, no entanto, a perder terreno, desde logo ao nível doutrinal e, nos últimos anos, também na jurisprudência das diversas Relações.
Com efeito, Jorge de Figueiredo Dias/Nuno Brandão, no Comentário Conimbricense do Código Penal, volume I, 2ª edição, páginas 186/187, sustentam que, se através de uma mesma ação são mortas várias pessoas, estar-se-á perante uma hipótese de concurso efetivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente. Em apoio de tal posição, citam a anotação crítica de Pedro Caeiro/Cláudia Santos, in R.P.C.C., 1996, 127, ao acórdão da Relação de Coimbra de 6/4/1995, “todavia apoiado em jurisprudência corrente, se não mesmo dominante, pelo menos ao nível do S.T.J. (…)”.
No mesmo sentido vão os entendimentos de Germano Marques da Silva [6], Jorge Reis Bravo [7] e Paulo Dá Mesquita [8].
Também Paulo Pinto de Albuquerque [9] anota que, nos crimes que tutelam bens jurídicos pessoais, sejam dolosos, negligentes, cometidos por ação ou por omissão, a ponderação do bem jurídico implica necessariamente a consideração da pluralidade de vítimas.
É esta, igualmente, a nossa posição, pelo que estamos, neste aspeto, em perfeita consonância com o recorrente e, consequentemente, em desacordo com a solução da decisão recorrida.
Entendemos, assim, que o arguido cometeu três crimes de ofensa à integridade física por negligência, previstos pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal.
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Escolha e medida das penas
A moldura penal aplicável a cada um dos crimes cometidos é a de prisão até um ano ou, alternativamente, a de multa até 120 dias.
No atual artigo 70º do Código Penal, estabelece-se que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como frisa Figueiredo Dias [10], as referidas finalidades da punição são exclusivamente preventivas – de prevenção especial e de prevenção geral – e não finalidades de compensação da culpa.
O arguido não tem antecedentes criminais, sendo as necessidades de prevenção geral, no presente caso, de médio relevo, pelo que se mostra perfeitamente suficiente a aplicação de penas de multa. Sufraga-se, assim, a opção pela pena de multa, já feita pelo Tribunal recorrido.
Os danos infligidos às vítimas são idênticos e mínimos (um dia de doença sem incapacidade para o trabalho), não havendo razão para particularizar cada uma das penas parcelares.
O grau de culpa (negligência inconsciente) não suporta penas superiores a 70 dias de multa.
Assim, entende-se como adequado aplicar ao arguido 3 penas de 40 dias de multa à razão diária de 5 euros.
Na atual versão do artigo 77º do Código Penal, o legislador consagrou, para as hipóteses em que o mesmo agente tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, um sistema de pena conjunta obtida através de um cúmulo jurídico.
Os limites que balizam essa pena são estabelecidos no nº 2 do mesmo preceito: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Temos, assim, uma moldura de concurso com um mínimo de 50 dias de multa e um máximo 150 dias de multa – cfr. o citado nº 2 do artigo 77º do Código Penal.
Conforme resulta do nº 1 do artigo acima citado, na medida da pena única devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Não se trata, bem entendido, de uma operação de determinação da medida de pena reconduzível à usada para o achamento de uma pena isolada ou das diversas penas parcelares, cujos critérios vêm balizados no artigo 71º do Código Penal.
Considerando os factos no seu conjunto, importa mencionar que todos os crimes em concurso foram cometidos através da mesma singular atuação.
Não se pode, assim, falar sequer em pluriocasionalidade e muito menos em tendência criminosa.
Justifica-se, portanto, a aplicação de uma pena única de 70 dias de multa, à referida razão diária de 5,00 euros.
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C) Pena ou sanção acessória
Entendeu o Magistrado do Ministério Público da 1ª instância que é aplicável, no caso, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pois decorre do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor, por um período fixado entre três meses e três anos, quem for punido por crime de ofensa à integridade física cometido no exercício da condução de veículo motorizado, com violação das regras de trânsito rodoviário.
Fluindo do quadro factual dado como provado na sentença recorrida uma dessas situações, seria a sentença nula por omissão de pronúncia quanto à questão da aplicação da referida pena acessória prevista no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.
O recorrente incorre, porém, em manifesto lapso.
Com efeito, à data da ocorrência dos factos, o dispositivo legal em causa não continha a previsão a que se alude no recurso, referindo-se, tão-só, aos crimes previstos nos artigos 291º e 292º do Código Penal.
Na verdade, a versão a que o recorrente se reporta só foi introduzida pela Lei nº 72/2013, de 3/9, não se prevendo, até então, a aplicação de qualquer pena acessória (criminal) aos autores de crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física por negligência cometidos no exercício da condução.
Tendo os factos ajuizados sido cometidos a 23 de Agosto de 2012, não lhes seria jamais aplicável a referida neopenalização, pois as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto (cf. nº 1 do artigo 2º do Código Penal). Este é, de resto, um dos principais corolários do princípio da irretroatividade da lei penal incriminadora.
Por esse mesmo motivo, não tinha o Tribunal recorrido que se ter pronunciado sobre a possibilidade de aplicação de tal pena, pois não é função atribuída aos tribunais a de tergiversar sobre hipóteses diversas do caso que têm que julgar.
Inexiste, pois, a nulidade invocada pelo recorrente, improcedendo a respetiva arguição.
De resto, no que tange à aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada, nenhuma censura nos pode merecer a sentença recorrida.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em, julgando parcialmente provido o recurso interposto pelo Ministério Público, revogar parcialmente a sentença recorrida e, consequentemente:
1-condenar o arguido, como autor, em autoria material e em concurso efetivo, de três crimes de ofensa à integridade física negligente, previstos e punidos pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal, em três penas parcelares de 40 (quarenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros);
2- condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 70 (setenta) dias de multa, à referida razão diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a multa global de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);
3- confirmar a sentença recorrida quanto ao mais – e designadamente quanto à sanção acessória de inibição de conduzir.
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Sem custas, nesta instância (isenção do recorrente).
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Porto, 9 de dezembro de 2015
Vítor Morgado
Raul Esteves
___________
[1] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Em Direito Penal Português, 1982, II, página 200.
[3] In Lições de Direito Penal, Editorial Verbo, 2ª edição, 1987, páginas 381-382.
[4] Em Direito Penal, Parte geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, 2ª edição (reimpressão), páginas 981-982.
[5] Note-se que tal acórdão, relatado por Henriques Gaspar, bem como o extenso voto de vencido lavrado por Raul Borges, foi também publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 141.º, n.º 3970, com anotação concordante do Prof. Dr. Faria Costa.
[6] “Responsabilidade pela conduta negligente com pluralidade de eventos – unidade e pluralidade de crimes”, estudo inserido na obra coletiva “Problemas fundamentais de Direito Penal, Colóquio Internacional de Direito Penal em homenagem a Claus Roxin”, Universidade Lusíada Editora, 2002, páginas 141-154.
[7] No seu trabalho “Negligência, unidade de conduta e pluralidade de eventos”, publicado na Revista do Ministério Público, ano 18º, 1997, nº 71.
[8] No seu trabalho “Processo ‘Hemodiálise de Évora’: Pluralidade de ofendidos em resultado da violação de um dever de cuidado – unidade ou pluralidade de infrações”, publicado na Revista do Ministério Público, ano 19º, Out/Dez de 1998, nº 76 páginas 101 a 178, designadamente a página 151.
[9] Comentário do Código Penal (…), Universidade Católica Editora, 2ª edição, páginas 158-159.
[10] Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §557, páginas 363-364.