Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3293/16.8T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
GARANTIA DO VENDEDOR
GARANTIA DO FABRICANTE
Nº do Documento: RP201712143293/16.8T8MTS.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º802, FLS.115-125)
Área Temática: .
Sumário: I - Em paralelismo com o regime civilístico do cumprimento defeituoso na compra e venda, o consumidor adquirente de bem móvel tem de fazer a denúncia da desconformidade no ano posterior à entrega da coisa mas, depois de descoberto o defeito, tem dois meses para o comunicar ao vendedor sob pena de caducidade, incluindo para exercitar o direito a indemnização por danos não patrimoniais.
II - O comprador, beneficiando de garantia, beneficia da assunção, pelo vendedor, da responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem comprado, bastando ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da garantia para ter direito à reparação ou substituição.
III - Todavia, sendo a garantia do fabricante contra defeito de fabrico conferida apenas pelo construtor, ela tem a natureza de uma garantia do fabricante e, não estando aqui demandado, não pode responsabilizar-se a concessionária vendedora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3293/16.8T8MTS
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 3
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B…, NIF ………, residente na Avenida …, n.º …, …. - … Vila do Conde, vem intentar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C…, S.A., NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, …. - … …, pedindo:
a) a declaração de resolução do contrato celebrado entre Autora e Ré;
b) subsidiariamente, por mera cautela de patrocínio, a condenação da Ré a substituir o veículo por outro, no estado de novo, que comprovadamente não padeça dos defeitos apontados ao presente;
c) em qualquer dos casos ser a Ré condenada a pagar a quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Alegou, para tanto, que adquiriu à Ré, em 23-01-2013, o veículo automóvel de marca F…, modelo … . Em 28/01/2013, celebrou com a Ré, enquanto concessionária, um contrato de extensão de garantia, nos termos do qual finda a garantia de fábrica (28/01/2015), iniciaria a garantia contratualmente estipulada. A garantia contratual teve início em 29/01/2015 e estende-se pelo período de 24 meses ou até o veículo perfazer os 80.000km. Para pagamento do valor do veículo celebrou com a D… – Sucursal em Portugal, em 14/01/2013, um contrato em regime de leasing a consumidor. Nos termos deste contrato, efetuou um pagamento inicial de €10.000,00, ficando os restantes €12.000,00 a serem pagos em prestações e o valor residual de €440,00. Em 29/01/2015, foi celebrado entre a Autora e a D… – Sucursal em Portugal acordo de revogação antecipada do contrato de leasing com o n.º …………. O veículo adquirido é um dos veículos equipados com o motor ….., portador da anomalia relacionada com o denominado “kit fraudulento” (manipulação das emissões de gases poluentes). Por via disso resolveu o contrato celebrado com a Ré, dando do facto conhecimento à responsável pela importação do veículo em causa – E… S.A. A Ré declinou a responsabilidade na resolução do assunto em referência e não garante que a reparação do veículo mantenha a performance e consumos nos termos e de acordo com características explanadas à Autora no momento da compra. A garantia convencional terá o seu término em 28/01/2017 e à data a viatura só tinha 72.359km.

Contestou a Ré, alegando que a F…, fabricante da viatura aqui em causa, já assumiu publicamente a existência desta desconformidade. Ademais, a C… não tem qualquer intervenção seja no processo de fabrico ou montagem das viaturas (designadamente da marca F…) nem dos seus componentes – incluindo da viatura concretamente em causa nestes autos – seja no processo de homologação CE de qualquer dos modelos de viaturas daquela marca – incluindo do modelo da viatura sub judice – desconhecendo toda a temática relacionada com a desconformidade existente no sistema de medição de emissões de gás poluente nos motores a diesel tipo .. …. O fabricante da viatura já assegurou, no entanto, que as discrepâncias nos níveis de emissão não têm qualquer impacto ao nível dos demais componentes da viatura, nem na segurança da mesma ou dos respetivos passageiros. Acresce que as medidas técnicas adequadas à remoção desta desconformidade foram já aprovadas pela Autoridade Federal de Transportes Motorizados alemã, a Kraftfahrt-Bundesamt (adiante “KBA”), que já deu início ao processo de avaliação do impacto da correção do defeito em causa em alguns modelos de viaturas F… afetadas, tendo verificado e certificado que, no seguimento da correção da discrepância, o nível de consumo de combustível se mantém em linha com os originariamente indicados pelo fabricante e que a performance do motor se mantém inalterada. De todo o modo, decorreu já o prazo de dois anos a contar da entrega do bem para a autora exercitar os seus direitos, sem alegar quaisquer factos de que resulte que comprou a viatura para uso não profissional. Mesmo neste caso, sempre se imporia a denúncia da falta de conformidade do bem no prazo de dois meses a contar da data em que a mesma tenha sido detetada. O acionamento da garantia e a invocação dos direitos dependeria sempre da denúncia da falta de conformidade do bem no prazo de dois meses a contar da deteção. Ainda que se pudesse entender que assiste à autora o direito a pedir a resolução do contrato ou a substituição do bem, teria de considerar-se a desvalorização da viatura, que conta cerca de 44 meses de utilização à data da petição inicial e tem o valor de cerca de €13.370. Quanto aos danos não patrimoniais não alega um único facto que concretize os supostos danos, pelo que deve ser absolvida dos pedidos. Caso sejam procedentes a autora deve ser condenada no pagamento do valor correspondente à utilização da viatura ou deve o mesmo ser deduzido ao valor de aquisição da mesma.

Dispensando a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva e falta de interesse em agir e procedente a exceção de caducidade do direito da autora com a consequente absolvição da ré do pedido.
Inconformada, a autora assim concluiu a sua alegação:
“1) O presente recurso tem por objeto a reapreciação da sentença que absolveu a Ré do pedido, em razão da procedência da exceção de caducidade.
2) Salvo o devido respeito por opinião contrária, cremos que a douta sentença padece do vício de falta de fundamentação.
3) Estamos perante um despacho saneador que se destinou a decidir exceções, sendo para o que interessa ao caso, a da caducidade.
4) Entendemos não se encontrar devidamente fundamentada a decisão de procedência da referida decisão.
5) Desconhece-se como o tribunal pode referir, sem que para o efeito tenha sido feita prova que a entrega do veículo à Recorrente ocorreu em 28/01/2013.
6) O conhecimento público não implica que no caso concreto a Recorrente tenha tido imediato conhecimento de que o veículo era afetado pelo vício em causa.
7) A Recorrida até recebeu missivas da Recorrente não admitiu que o veículo em causa padecia do vício.
8) Não pode o tribunal a quo referir que a Recorrente teve conhecimento de que o seu veículo padecia do referido vício, por mera alegação da Recorrida.
9) A Autora não reconheceu nunca que reconhecia a desconformidade do veículo desde Setembro de 2015.
10) O saneador/sentença de que se recorre padece do vício de falta de fundamentação de facto e de direito ao abrigo do art. 615º, n. 1, al. b) CPC.
11) A procedência da exceção da caducidade importa a verificação e prova de determinados factos, como a data de entrega da viatura, a data do conhecimento efetivo que o veículo da Recorrente era portador do kit fraudulento, a análise da garantia contratual, o que não sucedeu nos autos.
12) A Recorrente adquiriu o veículo automóvel de marca F…, conforme documentos juntos com a petição inicial.
13) No âmbito do referido contrato foi celebrado contrato de extensão de garantia por 24 meses com inicio após término da garantia legal, que garantia defeitos de fabrico, conforme contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida como resulta dos documentos juntos pela Autora com a sua petição inicial.
14) Entendemos não estar verificada a exceção da caducidade, uma vez que assistia à Recorrente o direito de denunciar um defeito do veículo, a coberto da garantia contratual efetuada.
15) Legalmente, há que atender ao limite temporal do prazo da garantia, o qual pode ser de dois anos (mínimo nas vendas a consumidores) ou ser superior, por via contratual.
16) Este facto foi ignorado pelo que não poderia proceder a exceção da caducidade como referido na douta sentença, em violação do disposto nos arts. 1º-B, 2º,m 9º da Lei 67/2003, 328, ss CC.
17) Acresce que, o enquadramento relativo à lei de defesa do consumidor não seria o único enquadramento legal relevante.
18) No pedido efetuado a Recorrente solicitou a resolução do contrato de compra e venda celebrado, com as consequências legais inerentes.
19) Trata-se de um contrato de compra e venda, regulado nos arts. 874º e ss. do Código Civil.
20) Prescreve o art.º 921.º, n.º 1 do Código Civil – norma que, apesar de estar incluída na seção relativa à venda de coisa defeituosa, é de aplicação generalizada - que “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, garantir o bom funcionamento da coisa vendida, caber-lhe repará-la, ou substituí-la quando a sua substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.”
21) O veículo em causa não possui as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo, nem apresenta as qualidades e o desempenho habituais dos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
22) Tal deveu-se a um comportamento fraudulento, que nas relações contratuais com os compradores de viaturas afetadas, tem a natureza de dolo e de ‘ação enganosa’.
23) Assim, face a esta situação sempre seria o referido negócio anulável.
24) Pelo que andou mal o tribunal a quo ao decidir nos termos constantes da douta sentença, violando o disposto no art. 253º, 254º e 921º CC.
Sem prescindir,
25) Não pode a Recorrente concordar com a aplicação dos prazos de caducidade da lei de defesa dos consumidores ao direito de indemnização.
26) O exercício dos direitos previstos no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/Abril não impedem que o consumidor possa peticionar uma indemnização nos termos gerais do direito.
27) Tal decorre do art.º 8.º da Diretiva Comunitária (Diretiva n.º 1999/44/CE) que o referido Decreto-Lei transpôs: “O exercício dos direitos resultantes do presente Directiva não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual”.
28) Nos termos do art. 496º, n.º1 do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
29) Consagra-se, assim, a ressarcibilidade dos danos morais que pela sua gravidade sejam dignos de tutela jurídica.
30) Pelo que também no que a este aspeto se refere andou mal o tribunal a quo ao decidir pela caducidade dos referidos direitos, em violação do disposto no art. 483º e 496º CC.”

Respondendo, concluiu a recorrida:
“A. A Recorrente interpôs recurso da decisão do tribunal a quo, tecendo um conjunto de considerações quanto ao suposto desacerto da decisão recorrida, invocando, em particular, que a mesma padece, alegadamente, [i] de um vício de falta de fundamentação, [ii] de falta de prova quanto à matéria de facto que está na base da verificação da caducidade declarada, e, bem assim, [iii] de um incorrecto ou insuficiente enquadramento jurídico da situação sub judice.
B. Ao contrário do que pretende fazer crer a Recorrente, nas alegações por si apresentadas, a decisão recorrida é manifestamente fundada e justificada, em perfeito cumprimento dos artigos 615.º, n.º 1, alínea b) e 607.º do CPC, já que [i] discrimina, com clareza, os factos que entendeu por relevantes e provados para efeitos de procedência da excepção de caducidade e, bem assim, [ii] apresenta uma exaustiva fundamentação não só legal, mas também doutrinal e ainda jurisprudencial.
C. Refere mais especificamente a Recorrente, nos artigos 19.º e 20.º das Alegações por si apresentadas, que não foi realizada a verificação e prova de factos necessários à procedência da excepção de caducidade, designadamente os relacionados com “a data de entrega da viatura, a data do conhecimento efectivo [de] que o veículo da Recorrente era portador do kit fraudulento, a análise da garantia contratual, o que não sucedeu nos autos.”
D. Ora, tal alegação não corresponde manifestamente à verdade.
E. Quanto à data de entrega da viatura, partiu o Tribunal da própria petição inicial apresentada pela Recorrente, concretamente, [i] do seu artigo 2.º, que refere que “a Autora adquiriu à Ré, em 23.01.2013, o veículo automóvel” e [ii] do artigo 7.º, no âmbito do qual é dito que “finda a garantia de fábrica (28/01/2015)”, pelo que, tendo a mesma garantia a duração de 2 anos, o veículo sempre teria que ter sido entregue, pelo menos, a 28.01.2013.
F. Quanto à data de conhecimento das desconformidades pela Recorrente, decorre dos artigos 44.º a 47.º da contestação apresentada pela Recorrida C… que “as notícias dando conta da existência de desconformidades no que respeita às emissões de NOX de viaturas de marcas do grupo D… remontam a Setembro de 2015, altura em que foi dado grande destaque a esta questão por parte dos órgãos de comunicação social de todo o mundo (...)”.
G. Ora, não tendo esta alegação da Ré sido impugnada, em momento algum pela Recorrente – nem mesmo aquando da possibilidade de exercício do contraditório sobre as excepções invocadas a que foi convidada por douto despacho do Tribunal a quo –, é um facto assente entre as partes, admitido por acordo, que a Recorrente tomou conhecimento da desconformidade do veículo em Setembro de 2015.
H. Nesse mesmo sentido, veio, aliás, a própria Recorrente admitir expressamente, no artigo 12.º das alegações por si apresentadas, que “não contesta que o conhecimento público do escândalo date de Setembro de 2105”.
I. Tenta a Recorrente fazer crer – sem qualquer sucesso – que o conhecimento público – por si expressamente admitido – “não é suficiente para dar como provado o conhecimento pela Recorrente da anomalia do seu veículo em Setembro de 2015”; estão em causa, na parte de conhecimento público e disponibilização de ferramentas para consulta concreta de viaturas afectadas, de factos que para além de não contraditados nos autos, constituem factos notoriamente públicos.
J. Conforme alegado pela Ré na altura em que as notícias dando nota das desconformidades remontam a Setembro de 2015, “(…) altura em que foi dado grande destaque a esta questão por parte dos órgãos de comunicação social de todo o mundo”, “tendo sido disponibilizada pelas várias marcas afectadas, nomeadamente pela F…, informação quanto aos veículos afectados por esta situação” (cfr. artigos 44.º e 45.º da Contestação apresentada pela E…, ferramenta essa que suporta, precisamente, o print que constitui o Doc. n.º 7 junto com a petição inicial a que se alude no artigo 12.º da petição inicial).
K. E nem se diga – como procurou fazer a Recorrente no artigo 13.º das Alegações de recurso por si apresentadas – “que o reconhecimento do vício em causa apenas ocorreu a 16.02.2017, quando a Recorrente foi contactada para levar o veículo a uma intervenção”, criando a ideia de coincidência desse momento com a do seu conhecimento da desconformidade, já que falsidade desta pretensa coincidência decorre, desde logo, das cartas trocadas entre as partes e juntas pela própria Autora aos presentes autos, como Docs. n.os 8 a 13 da petição inicial, relativas à resolução do contrato sub judice e datadas de 11.04.2016, data bastante interior à do alegado contacto de 16.02.2017 para uma intervenção ao veículo.
L. Nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do CPC, “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só poderem ser provados por documento escrito.”
M. Não estando preenchida nenhuma das excepções previstas na parte final desta disposição legal, é manifesto que o conhecimento ocorrido em Setembro de 2015 é um facto aceite e assente, que justificadamente serve – e serviu – de base ao reconhecimento da caducidade do direito da Autora.
N. Quanto à garantia contratual, o Tribunal a quo pronuncia-se especificamente sobre esta matéria, referindo, acertadamente, que [i] a extensão da garantia diz respeito “a defeitos de fabrico, é dada pelo fabricante do veículo adquirido pela autora, a “F…”, e reporta-se apenas à reparação do bem”, e que [ii] “apenas a F…, enquanto fabricante, poderá ser responsabilizada”, sendo a Ré, “vendedora do veículo, alheia a essa garantia, não pode[ndo] a autora, com base na mesma, proceder à resolução do contrato de compra e venda do veículo.” [sublinhado nosso]
O. Mais se acrescenta, por ser demais relevante, que nos termos da própria extensão da garantia, “(7) o Cliente deverá comunicar o defeito ao Concessionário (...) no prazo máximo de dois meses a contar da data em que tenha detetado o referido defeito (...), presencialmente ou por carta registada com aviso de recepção” (cfr. Doc. n.º 4 da petição inicial).
P. Por esse motivo, ainda que se admitisse que a extensão da garantia vincularia não apenas a F… mas também as Rés – no que não se concede – sempre se aplicaria à mesma extensão a excepção de caducidade invocada, estando a Autora impedida de exercer os direitos dela decorrentes, por se encontrar já integralmente decorrido o prazo de dois meses contados do conhecimento da desconformidade.
Q. Quanto ao enquadramento legal, refere a Recorrente – pela primeira vez nos presentes autos, note-se – que a resolução do contrato de compra e venda celebrado pode encontrar fundamento, não apenas na Lei de Defesa do Consumidor, mas também no Código Civil (CC), concretamente nos seus artigos 874.º e seguintes.
R. Ora, o artigo 921.º, n.º 2 do CC estabelece um prazo supletivo de garantia de apenas 6 meses e um prazo para denúncia de defeitos de apenas 30 dias após o respectivo conhecimento, pelo que não se vislumbra, em que medida poderia este novo enquadramento jurídico ser favorável à pretensão da Recorrente, na medida em que qualquer um dos prazos aí previstos [i] é, na verdade, bastante inferior ao prazo considerados pelo Tribunal a quo e previstos no DL 63/2007 – de 2 anos e 2 meses – e [ii] não seria suficiente para evitar a caducidade dos direitos da Autora.
S. Vem a Recorrente invocar, também pela primeira vez nos presentes autos, a aplicação do artigo 496.º, n.º 1 do CC, como fundamento jurídico para a fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais, muito embora não tenha apresentado qualquer prova ou alegação quanto à verificação dos pressupostos deste tipo de responsabilidade, por exemplo, no que diz respeito à gravidade do dano sofrido.
T. Entendemos, com o Tribunal a quo, que a indemnização, a ser aplicável – quer à luz do próprio artigo 12.º, n.º 1, da Lei 24/96, de 31 de Julho, quer nos termos gerais do CC – não estaria, em todo o caso, excluída da caducidade, já que “a indemnização constitui um corolário dos restantes direitos previstos de reacção às desconformidades e de reconstituição da situação vigente caso as mesmas não se tivessem verificado. Não pode assim dissociar-se dos restantes instrumentos colocados à disposição do consumidor. Ficando precludido o direito por caducidade, fica-o em toda a sua dimensão e não apenas naquelas que se relacionam de modo directo com os defeitos visando a sua remoção (reparação), a obtenção de coisa não defeituosa (substituição) ou a anulação da quebra patrimonial (redução do preço ou resolução)”.
U. Assim sendo, qualquer alegado direito a uma indemnização – patrimonial ou moral – para compensação dos defeitos verificados se encontra submetido aos mesmos prazos de caducidade que as restantes soluções legalmente previstas para estas situações, sob pena de se criar uma incoerência e irracionalidade no sistema legal.
V. Prevê o artigo 4.º, n.º 1, do DL 67/2003, de 8 de Abril, que “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.
W. O artigo 5.º determina o prazo para o exercício dos direitos estabelecidos no artigo 4.º, sendo que “o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, (...) a contar da data em que a tenha detetado”.
X. Este prazo de caducidade é igualmente aplicável a qualquer outro meio de reacção, designadamente ao direito a indemnização previsto quer nos termos gerais, quer no artigo 12.º do mesmo DL 67/2003.
Y. Como referiu o acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, proferido no âmbito do processo 2212/06.4TBMAI.P1.21, a 12.01.2010, – também citado pelo douto tribunal a quo – “(...) a aplicabilidade os prazos de denúncia e de propositura de acção previstos literalmente apenas para os meios de impugnação da venda de coisa defeituosa referidos no artigo 4.º do Decreto-Lei 67/2003 e no artigo 3.º da Directiva, se deve estender ao outro meio de reacção, previsto legalmente em termos gerais, de indemnização sob pena de incoerência do sistema legal, ao abrigo dos elementos racional e sistemático de interpretação da lei, previstos no art. 9.º, n.os 1 e 3”. [sublinhado nosso].
Z. Do exposto decorre que, tendo a denúncia da desconformidade sido apresentada pela Recorrente decorridos já mais de dois meses do conhecimento do defeito, também por aí, é correcta a decisão de ter por já caducados os alegados direitos e meios de reacção da Recorrente.
AA. O douto tribunal a quo decidiu assim acertadamente pela procedência da excepção de caducidade do direito da ali Autora e, consequentemente, absolvido a ali Ré do pedido contra ela formulado, nos termos do artigo 576.º, n.os 1 e 3 do CPC.”
II. Delimitação do objeto recursivo
Face às conclusões da alegação da recorrente, que balizam a temática do recurso (artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil, designado “CPC”), importa apreciar:
1. Nulidade da sentença;
2. Caducidade do direito da autora.
III. Fundamentação
1. Nulidade da sentença
Aduz a recorrente que o saneador/sentença padece do vício de falta de fundamentação de facto e de direito, o que consequência a nulidade a que alude o artigo 615º/1, al. b), do CPC.
Os vícios geradores da nulidade da sentença correspondem a irregularidades que a afetam formalmente, ou provocando dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou quando não especifique a respetiva fundamentação, de facto e de direito, ou quando as razões aduzidas conduzem a um resultado oposto ou padeça de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível ou conheça questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia) ou condene em quantidade superior ao pedido (artigo 615º/1 do CPC).
As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei, como resulta do artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa. Dando cobertura ao preceito constitucional, o ordenamento jusprocessual civil exige que a sentença discrimine os fundamentos, exarando os factos que considera provados e indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (artigo 607º/3). Daí que a inobservância deste comando transporte a nulidade da sentença em razão da falta de fundamentação de facto e de direito. Compreensivelmente, porque é na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e as convencer da sua decisão. Porém, só se verifica a nulidade da sentença por falta de fundamentação “quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”, mas não a constitui a “mera deficiência de fundamentação”[1]. Concordamos que devem ser claras as razões da decisão, por forma a que as partes não tenham quaisquer dúvidas sobre as razões de facto e de direito que levaram o tribunal a sentenciar naquele sentido, mas o saneador impugnado não padece de falta de fundamentação, designadamente de facto. Não obstante não discriminar isoladamente a fundamentação de facto, a mesma resulta especificada e interpenetrada ao longo do excurso decisório que aprecia a exceção de caducidade.
Aceitamos que a estrutura usada não é perfeita do ponto de vista adjetivo, mas os contornos da apreciação da matéria excetiva são delimitados pela alegação da ré a tal respeito, uma vez que a autora nada disse quanto à factualidade integrante da exceção. Donde a simplicidade dos factos imprescindíveis à análise da caducidade do direito da autora, os quais se encontram, como dissemos, descritos no excurso apreciativo, como patentemente redunda do seguinte trecho da decisão sindicada: “Aqui chegados e revertendo para a concreta situação dos autos, temos que a autora alega que o veículo foi por si adquirido em 23.01.2013 e que a garantia de fábrica terminou no dia 28.01.2015, o que significa que, de acordo com a sua própria alegação, podemos concluir que o bem em causa lhe foi entregue, o mais tardar, no dia 28.01.2013. Por seu lado, a ré alega que a existência da desconformidade em causa relativamente a veículos de marcas do grupo “D…” é do conhecimento público desde Setembro de 2015, altura em que também foi disponibilizada, nomeadamente pela “F…”, informação relativa aos veículos afectados por essa situação, alegação que a ré efectua no sentido de afirmar que a autora teve conhecimento da desconformidade em causa nessa altura, ou seja, em Setembro de 2015. Tal alegação, na qual a ré baseia a excepção de caducidade por si invocada, não foi impugnada pela autora, o que significa que se encontra assente entre as partes. Ora, neste enquadramento, facilmente se conclui que a autora teve conhecimento da desconformidade com base na qual pretende obter a resolução do contrato de compra e venda em Setembro de 2015, ou seja, já depois de decorridos mais de dois anos sobre a data em que o veículo lhe foi entregue (28.01.2013). Quanto à denúncia do defeito e à consequente comunicação de resolução do contrato com base no mesmo, a mesma é efectuada pela autora ainda em momento posterior, através de carta datada de 11.04.2016, junta a fls. 30.”.
Perante o expendido, entendemos que a decisão não padece da arguida nulidade.
2. Caducidade do direito da autora
Impugna a recorrente a declarada caducidade do seu direito, exceção que foi arguida pela ré, opondo que o exercício dos direitos previstos no artigo 4º do DL 67/2003 tem de ser efetuado nos prazos previstos nos seus artigos 5º/1 e 5º-A/1 e 2 do mesmo normativo, ou seja, no prazo máximo de dois anos a contar da entrega do bem e mediante denúncia da falta de conformidade no prazo de dois meses a contar da data em que a mesma foi detetada. Mais defendeu que a extensão contratual do prazo de garantia por mais dois anos e o seu acionamento sempre dependeria da denúncia da falta de conformidade do bem no prazo de 2 meses a contar da sua deteção. Como as notícias da desconformidade em causa remontam a setembro de 2015, quando a autora dirigiu à ré a carta de 11-04-2016 já tinha caducado o seu direito. Esta alegação não foi contrariada pela autora que, apesar de notificada para se pronunciar, se remeteu ao silêncio.
A primeira questão de que cumpre conhecer é se a autora beneficia, enquanto adquirente de coisa defeituosa, da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (LDC)[2]. A decisão recorrida assim o relevou, mas a recorrida contrapõe em recurso, à semelhança do que havia afirmado na contestação, ignorar se a compradora tem a qualidade de consumidora.
Compulsada a petição inicial, verificamos que a demandante se autointitula consumidora e, no enquadramento jurídico, apela às normas da LDC (artigos 31º a 42º). Na sua contestação, a ré articulou que a autora não alegou quaisquer factos donde resulte que comprou a viatura para uso não profissional (artigo 41º), mas a autora nada disse. Contudo, a ré, na qualidade de vendedora da viatura, limitou-se a afirmar que ignorava a finalidade da aquisição; não sendo facto pessoal ou de que a ré deva ter conhecimento, essa posição equivale a impugnação (artigo 574º/3 do CPC).
O artigo 2º/1 da LDC define como consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”. O decreto-lei n.º 67/2003, de 08 de abril, procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português da Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, tendo em vista a aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, a qual define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. Quer esta definição quer a atualmente consagrada no nosso regime jurídico vigente usam o conceito de consumidor em sentido estrito, no âmbito do qual só beneficia da proteção da LDC a pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional. Estando em causa um elemento factual constitutivo do direito a que se arroga a autora, sobre ela recai o ónus da prova da sua qualidade de consumidora, desde logo, porque é ela a parte beneficiada com a aplicação do regime da venda de bens de consumo (artigo 342º/1 do Código Civil).
Destas normas é patente que a qualidade de consumidor é imanente ao uso não profissional dos bens adquiridos ou dos serviços prestados. A amplitude do conceito de consumidor na jurisprudência do STJ tem variado consoante as cambiantes factuais do caso a partir da finalidade do uso do bem, como elemento teleológico do conceito[3]. Dum ou doutro modo, sendo certo que a autora, efetivamente, não articulou quaisquer factos suscetíveis de se reconduzirem a esse conceito jurídico de consumidor, ela assumiu, no entanto, essa qualidade de consumidora e integrou normativamente os factos no regime próprio da defesa do consumidor, o que nos parece bastar para aceitar a sua invocada qualidade. Em verdade, a ré não negou a sua qualidade de consumidora, antes se limitou a referir que ela a não aduziu em conformidade com o conceito normativo, o que, de algum modo, corresponde à aceitação dessa qualidade. Aliás, estamos em crer que, como vendedora, a ré soube ou teria possibilidade de saber se a viatura que lhe foi comprada pela autora se destinava a uso profissional, o que teria alegado de forma expressa. O modo evasivo como contrapôs aquela alegação traduz a sua aceitação da qualidade de consumidora da autora.
O regime de venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, nos termos dos artigos 4º e 5º do decreto-lei 67/2003, de 8 de abril, na sua redação originária[4], estatuem que o comprador/consumidor pode exercer o direito de reposição da falta de conformidade do bem com o contrato quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respetivamente, de coisa móvel ou imóvel, devendo denunciar ao vendedor tal defeito no prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que o tenha detetado, caducando os direitos conferidos ao consumidor findo qualquer destes prazos sem que o mesmo tenha feito a denúncia ou decorridos seis meses sobre esta.
Como antecipámos, no recurso a estes dispositivos legais, veio a ré excecionar a caducidade dos direitos da autora porque não os não exerceu no prazo de dois anos a contar da entrega do bem e os não denunciou no prazo de dois meses a contar da data em que a falta de conformidade foi detetada. Por isso, articula a excecionante que as notícias da desconformidade daquela tipologia de automóveis, em que se integra o da autora, datam de setembro de 2015 e a denúncia apenas foi feita pela autora em 11-04-2016, efetivada pela primeira carta que lhe dirigiu.
Admitimos, como alega a autora em sede recursiva, que estes direitos só podem ser exercitados quando o consumidor tem real conhecimento da desconformidade do bem que adquiriu, porque apesar da regra ser a de que o prazo limite de garantia tem o seu início com a entrega da coisa, existem situações em que isso pode suceder num momento posterior à entrega em função da natureza dos circunstancialismos que a rodeiam[5]. Na situação, estando em causa a manipulação das emissões dos gases poluentes, é razoável aceitar que a autora possa não ter tido conhecimento das notícias então publicadas sobre a matéria. Só que a autora, notificada da dedução da exceção e daquele arrazoado da ré, remeteu-se ao silêncio, apesar de sobre ela recair o ónus de impugnação quanto aos factos essenciais integrantes da exceção, como o é a data do seu efetivo conhecimento da desconformidade do bem comprado (artigos 574º e 587º do CPC). Essa a razão pela qual se considera admitido por acordo o conhecimento dessa desconformidade através das notícias vindas a público em setembro de 2015 e, quando a autora denunciou o defeito em 11-04-2016, há muito tinha decorrido o prazo de dois meses conferido ao consumidor para tal efeito.
Poderemos questionar-nos se da citada Diretiva comunitária resulta a aplicação direta do seu normativizado na ordem jurídica interna, mesmo entre particulares, na decorrência do apelidado efeito horizontal.
A diretiva comunitária constitui um processo de legislação indireta, que não é diretamente invocável pelos particulares, porque ela se dirige aos Estados membros, esses sim seus destinatários e que as transpõem para as ordens jurídicas nacionais (artigo 189º do TCEE), mas para assegurar o seu efeito útil reconhece-se aos particulares o direito de delas se prevalecerem em Juízo. Logo, o seu efeito direto resulta da necessidade de proteger os cidadãos contra a inércia do Estado, mas distingue-se o efeito direto vertical e o efeito direto horizontal. O primeiro, traduzido na possibilidade de o particular invocar num tribunal nacional uma norma comunitária contra qualquer autoridade pública; o segundo, consistente em poder o particular invocar em Tribunal uma norma comunitária contra outro particular. Todavia, a jurisprudência comunitária tem recusado o efeito horizontal, impedindo que uma diretiva seja invocada contra um particular, pessoa singular ou coletiva.
Assim, uma diretiva comunitária, desde que ainda não haja sido transposta para a ordem jurídica portuguesa, pode ser invocada contra qualquer entidade pública (efeito direto vertical), mas não pode ser invocada contra um particular, pessoa singular ou coletiva (efeito direto horizontal)[6].

A mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que se as Diretivas contiverem normas claras e precisas, incondicionais e que dependam da adoção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros, são diretamente aplicáveis mesmo no seu efeito horizontal, ou seja, mesmo entre os particulares se não tiverem sido transpostas pelo Estado Português[7]. E se a diretiva for objeto de transposição para a ordem jurídica nacional e se o diploma de transposição violar aquela, a interpretação deste tem de ser efetuada de forma a harmonizá-lo com a doutrina comunitária[8]. De facto, a doutrina considera que a transposição das diretivas da União Europeia “tem de ser interpretada pelos órgãos nacionais de interpretação e aplicação do Direito, em sentido conforme com a directiva que se pretende transpor”, o que “significa que o particular tem o direito de exigir, perante os órgãos estaduais competentes, a aplicação da directiva, não no sentido que a esta for dado pelo acto de transposição, mas no sentido que, de facto, resulte da letra e do espírito da directiva”[9].
A Diretiva em causa prevê que, em caso de falta de conformidade do bem comprado, o consumidor tem direito à sua reparação, redução adequada do preço ou resolução do contrato e o vendedor é responsável quando a falta de conformidade se manifestar no prazo de dois anos a contar da entrega do bem. Mais especifica que se a legislação da algum Estado Membro previr que o exercício desses direitos seja sujeito a prazo de caducidade, esse prazo não poderá ser inferior a dois anos a contar da data da entrega (artigos 3º e 5º). Além disso, acrescenta que o exercício dos direitos dela resultantes não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativamente à responsabilidade contratual ou extracontratual (artigo 8º/1). E admite que os Estados Membros podem adotar ou manter disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objetivo de garantir um nível mais elevado de proteção do consumidor (artigo 8º/2). Vale por dizer que o consumidor pode exercitar os seus direitos no prazo de dois anos a contar da entrega do bem, não podendo tal prazo ser inferior a este se, por força de legislação nacional, tal direito estiver sujeito a prazo de caducidade.
Destarte, podemos aceitar que o referido decreto-lei nº 67/2003, aqui convocado, carece de uma interpretação corretiva, considerando-se aplicável o normativizado na Diretiva predita. Mais, podemos até afirmar que é inútil fazer essa interpretação porque o decreto-lei nº 84/08, de 21 de maio, ao alterar aqueloutro diploma, lhe conferiu a redação ínsita à Diretiva e como tem o cariz de norma interpretativa aplica-se ao caso concreto, ao dispor que o consumidor pode exercer os seus direitos legalmente previstos quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respetivamente, de coisa móvel ou imóvel (artigo 5º/1). Portanto, admitindo o conhecimento da desconformidade do bem em setembro de 2015, ao instaurar a ação em 01-06-2016 a autora fê-lo a tempestivamente, isto é, dentro do ano a contar da deteção da falta de conformidade do automóvel.
Só que o prazo para a denúncia manteve-se em dois meses, inscrevendo o diploma que, para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado. E caso o consumidor tenha efetuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data (artigo 5º-A/2 e 3). Neste medida, considerando que a denúncia foi realizada pela compradora através da carta datada de 11-04-2016, já depois de decorridos dois meses sobre a deteção da desconformidade, então assiste razão à ré na invocação da caducidade dos direitos da autora.
A par com os mecanismos de tutela do consumidor, cremos ser legítimo o recurso ao modelo clássico do cumprimento defeituoso, não obstante ter vindo a perder aplicação no âmbito das relações de consumo.
A celebração do contrato de compra e venda, em regra, gera a obrigação da entrega da coisa correspondente às características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador, ou seja, sem vícios ou defeitos (artigo 913º do Código Civil). Numa noção ampla, defeito corresponde a um desvio à qualidade devida, desde que a divergência seja relevante; no fundo é um desvio à qualidade normal das coisas do tipo da vendida[10]. Qualificação que não diverge substancialmente do regime protetivo do consumidor, que impõe ao vendedor o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, presumindo que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos que o consumidor não tiver conhecimento ou não puder razoavelmente ignorar:
“a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações dadas aos bens do mesmo tipo
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem (artigo 2º do citado decreto-lei n.º 67/2003)”.
Este específico regime de proteção do consumidor não diverge do regime geral quanto ao conceito de defeito, mas é mais amplo quanto ao prazo da denúncia, porque o regime geral impõe que a denúncia no prazo de 30 dias após o conhecimento do defeito (artigo 916º/2 do Código Civil). No cotejo dos dois regimes é patente a favorabilidade da proteção do consumidor e, por isso, não teria aqui a autora qualquer benefício na aplicação do regime geral.
Como vimos, a autora nada alegou quanto à concreta data em que teve conhecimento do vício do veículo automóvel por si comprado à ré, mas esta opôs, com a sua aquiescência, que a autora soube da desconformidade setembro de 2015. Só em sede de alegação recursiva alega a autora que soube do vício quando foi contactada para levar o veículo a uma intervenção que ocorreu em 24-02-2017, mas trata-se de facto novo que não foi trazido aos autos pelos articulados e que já não pode ser relevado no âmbito do recurso. Aliás, por falta de impugnação, está assente que a mesma conheceu o vício do automóvel em setembro de 2015.
Nestas circunstâncias, é evidente que, aquando da sua comunicação à ré, há muito estava esgotado o prazo da denúncia, o que determina a procedência da invocada exceção de caducidade. Na verdade, por paralelismo com o regime civilístico do cumprimento defeituoso na compra e venda, a denúncia tem de ser feita no ano posterior à entrega da coisa mas, depois de descoberto o defeito, o adquirente tem dois meses para o comunicar ao vendedor. Se o defeito for detetado ao fim de 14 meses após a entrega já nada poderá ser feito, mas se for descoberto um ano e um mês e meio depois da entrega, ao comprador cabe fazer a denúncia nos restantes quinze dias[11].
A demandante apela também à garantia do construtor, que cessou em 28-01-2015, e à subsequente extensão convencional que teve início em 29-02-2015 pelo período de 24 meses ou até o veículo perfazer 80.000 Km, quilometragem não atingida à data da entrada da ação. A propósito, prescreve o artigo 921º do Código Civil: “1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador. 2. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior. 3. O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido. 4. A ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”. Portanto, pela garantia o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem. Nessa situação, bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da garantia, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, para ter direito à reparação ou substituição [12]. Para se subtrair a tal responsabilidade impende sobre o vendedor a prova de que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa, assim afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento, ou que é imputável a ato do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito[13].
Não obstante o documento relativo à extensão da garantia do fabricante contra defeito de fabrico estar subscrito pela vendedora, a garantia conferida é apenas do construtor e deve ser acionada pela comunicação ao concessionário subscritor ou a qualquer concessionário da marca. Não deixa, ainda assim, de ter a natureza de uma garantia do fabricante e, não estando aqui demandado, não pode responsabilizar-se a demandada, como vendedora[14]. De todo o modo, a garantia de bom funcionamento daria apenas lugar à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa e não à pedida, em via principal, resolução do contrato. Já poderia ser acionada quanto à substituição da viatura, pedido subsidiariamente formulado, se a garantia fosse do vendedor demandado, mas é do construtor pelos defeitos de fabrico. De todo o modo, a extensão de garantia insere cláusula que fixa em dois meses, a contar da data em que o defeito tenha sido detetado, o prazo para acionar os mecanismos legais de proteção (cl. 7.ª). Como acentuámos, a denúncia operada pela autora foi feita quando o seu direito há muito tinha caducado.
Não foi invocado pela autora e os autos também o não evidenciam, qualquer ato da Ré que impeça a caducidade, designadamente o reconhecimento do direita da Autora (artigo 331º do Código Civil). Contudo, como sinaliza a decisão recorrida, a própria ré reconhece ter sabido da existência do defeito em setembro de 2015 (artigo 11º da contestação), mas não reconhece o direito da Autora à resolução contratual ou à substituição da viatura, declinando até a sua responsabilidade e atribuindo-a ao fabricante. Mesmo o simples reconhecimento do direito, antes do termo da caducidade, por aquele contra quem deve ser exercido, não tem relevância se, através desse reconhecimento, se não produzir o mesmo resultado que se alcançaria com a prática tempestiva do ato a que a lei ou a convenção atribuam efeito impeditivo, a significar que o reconhecimento tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a situação, o que manifestamente não sucedeu na situação em apreço, como bem explicita a decisão recorrida[15].
De todo o modo, se nos ativermos ao pedido principal de resolução do contrato, deveria a autora ter alegado e demonstrado que a ré estava em mora na reparação da viatura (eliminação dos defeitos) e que, por força desta, desaparecera o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que a convertera em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória (artigos 801º e 808º do Código Civil)[16].
A anulabilidade do negócio por dolo vem apenas abordada em sede recursiva e, iteramos, os recursos não facultam a apreciação de questões novas.
Resta o pedido indemnizatório de danos não patrimoniais, relativamente ao qual a autora se limita a articular que o artigo 12º da LDC lhe confere o direito a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações (artigo 50º da petição inicial), mas não concretiza os danos advenientes do vício da coisa que lhe foi vendida. Ora, dentre os pressupostos da obrigação de indemnizar contam-se os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, derivam do facto ilícito. Sendo factos constitutivos do direito da autora, sobre ela impendia o ónus da sua alegação e prova, o que vota tal pedido à improcedência (artigo 342º/1 do Código Civil).
Todavia, como decanta a decisão recorrida, a indemnização não corresponde a um mecanismo isolado de compensação dos danos advenientes do defeito da coisa comprada pelo consumidor; antes constitui um corolário dos restantes direitos previstos como meios de reação às desconformidades dos bens comprados pelo consumidor e, por isso, não pode dissociar-se dos restantes instrumentos, devendo ser exercitado nos prazos legalmente conferidos para o efeito. Como vimos, deixou a autora decorrer o prazo da denúncia da desconformidade da viatura adquirida à ré, pelo que caducou esse seu direito a indemnização.
Todos os tecidos considerandos fundam a confirmação da decisão apelada.
Regime de custas: As custas são suportadas pela apelante (artigo 527º/1 do CPC).
IV. Dispositivo
Ante o expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Porto, 14 de dezembro de 2017.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 2.º Volume, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 703.
[2] Aprovada pela Lei 24/96, de 31 de julho, com as alterações decorrentes da lei n.º 85/1998, de 16 de dezembro, do decreto-lei n.º 67/2003, de 08 de abril e das leis n.os 10/2013, de 28 de janeiro e 47/2014, de 28 de julho.
[3] In www.dgsi.pt: 31-10-2017, processo 353/14.3T8AMT-E.P1.S1; 14/02/2017, processo 427.12.5TBFAF-E.G1.S1; 13-07-2017, processo 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2.
[4] Porque o contrato de compra e venda data de 28-01-2013 e os efeitos do contrato são regulados pela lei vigente no momento da sua conclusão, são inaplicáveis as aerações decorrentes lei n.º 10/2013, de 28 de janeiro, e da lei n.º 47/2014, de 28 de julho.
[5] Pedro Romano Martinez, “Cumprimento defeituoso, Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Coleção Teses, Almedina, 1994, págs. 424 a 426.
[6] In www.dgsi.pt: Ac. STJ de 01-10-1996, processo 96A204.
[7] Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 2007, 1º vol., págs. 263/264; in www.dgsi.pt: de 27-11-2007, processo 07A3954; 28-10-2008, processo 3095/2008.
[8] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 12-01-2010, processo 2212/06.4TBMAI.P1.S1.
[9] Fausto Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, págs. 489/490; João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 95/96.
[10] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, Em Especial na Compra e Venda, Coleção Teses, Almedina, 1994, pág. 181.
[11] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, 2ª ed., pág. 143; em sentido similar, Calvão da Silva, “Responsabilidade Civil do Produtor”, Almedina, 1990, pág. 209, nota 2.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 3.ª ed. revista e atualizada, pág. 221; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 06-09-2011, processo 4757/05.4TVLSB.L1.S.
[13] Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág. 65.
[14] In www.dgsi.pt: Ac. STJ de 04-10-2016, processo 2679/13.4TBVCD.P1.S1.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista e atualizada, págs. 295/296.
[16] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 04-10-2016, processo 2679/13.4TBVCD.P1.S.