Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
363/04.9TBAMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: NULIDADES
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20120920363/04.9TBAMT.P2
Data do Acordão: 09/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Inexiste nulidade de sentença, por omissão ou excesso de pronúncia, sempre que ela aprecia e se contém dentro do limites do alegado e peticionado.
II - A nulidade decorrente da deficiente gravação, por ser secundária, não é de conhecimento oficioso e deve ser arguida no tribunal onde foi cometida, no prazo de dez dias, a contar da data da entrega à parte da cópia da gravação, a menos que dos autos resulte que poderia ter detectado antes as deficiências, caso tivesse agido com o mínimo de diligência.
III - O ex-cônjuge do arrendatário para quem foi transferido o direito ao arrendamento, na sequência de acordo celebrado e homologado no âmbito de acção de divórcio, tem direito de preferência na venda do imóvel arrendado para habitação, operada na vigência da Lei n.º 63/77, de 25/8.
IV - Abusa de direito quem exerce o seu direito de preferência pretendendo adquirir um bem por preço muito inferior ao seu valor real, por, em face da manifesta desproporcionalidade, exceder manifestamente o limite imposto pelos bons costumes e traduzir um injusto enriquecimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 363/04.9TBAMT.P2
Relator – Leonel Serôdio (253)
Adjuntos – José Ferraz
- Amaral Ferreira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B… intentou, em 13.02.2004, a presente ação declarativa com processo ordinário contra MASSA FALIDA DA SOCIEDADE COMERCIAL C…, LIMITADA, representada pelo liquidatário judicial D…, E… e F…, S.A., pedindo:
a) Que seja reconhecido e declarado que a A é arrendatária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) Que seja reconhecido à A o direito de preferência na venda do referido prédio celebrada entre as Rés C…, Limitada e E…, por escritura de 3 de Junho de 1981, no Cartório Notarial de Amarante; c) Que sejam as Rés condenadas a reconhecerem o direito da A haver para si o dito prédio, na sua totalidade, operando-se a substituição daquela Ré pela preferente, ora A, no direito de propriedade do prédio;
d) Que seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos prediais efectuados sobre o prédio em causa e posteriores a 3 de Junho de 1981, ou seja, efectuados na data ou posteriormente à data da escritura de compra e venda;
e) Que seja declarado simulado o negócio celebrado por escritura de compra e venda outorgada no Segundo Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, no dia 10 de Outubro de 1994;
f) Em consequência da simulação absoluta, que seja declarado o negócio celebrado nulo e de nenhum efeito, ordenando-se, concludentemente, o cancelamento do respectivo registo.
Subsidiariamente, pede:
- Que se declare simulado o preço do negócio celebrado por escritura de compra
e venda outorgada no Segundo Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, no dia 14 de Outubro de 1994, por excessivo relativamente ao valor real do preço;
-Que seja relegada a fixação do preço real do prédio em questão para liquidação em execução de sentença.

Alega, em síntese, que por acordo verbal celebrado em 1 de Abril de 1973, a sociedade C…, L.da através do seu sócio-gerente, deu de arrendamento ao ex-marido da A o prédio urbano com a área coberta de 60 m2, de que faz parte o prédio rústico denominado “…”, melhor identificado no artigo 1º da petição inicial, para nele fixar a casa de morada de família. A renda mensal acordada de 400$00 mensais e actualmente de € 2,50, foi paga durante dezoito anos, nos escritórios da senhoria, conforme o combinado. A partir do segundo semestre do ano de 1991, a sociedade senhoria encerrou as suas instalações fabris e os escritórios tendo, por isso, o então arrendatário passado a pagar as rendas através de depósito bancário.
A A e G… divorciaram-se em 24 de Março de 1994, tendo no âmbito de tal ação de divórcio ficado acordado que o arrendamento em causa ficava a pertencer à A.
No dia 5 de Junho de 2003, recebeu uma carta endereçada ao seu ex- marido, através da qual “H…, S.A.”, comunicou que tinha adquirido o imóvel em questão, além de outros, por escritura outorgada em 11.03.02, à massa falida da C…, Lda. Por carta registada de 22 de Julho de 2003, informou a referida sociedade, além do mais, que era arrendatária do imóvel e esta respondeu-lhe comunicando que afinal a proprietária do imóvel em causa era a 3ª Ré F….
Entretanto, no início do mês de Setembro de 2003, a 2ª Ré deslocou-se à residência da A arrogando-se igualmente dona do prédio, por isso, efectuou diligências para apurar quem era a proprietária e tomou conhecimento que, por escritura de compra e venda outorgada no dia 3 de Junho de 1981, a C…, Limitada, vendeu à 2ª Ré e esta comprou o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, pelo preço de € 1496, 39, sem que de tal venda tivesse sido dado conhecimento à A. Com tal conduta, impediram a A de exercer o direito de preferência concedido ao arrendatário, que pretende exercer.
Por outro lado, o negócio celebrado entre a 2ª e a 3ª Rés, por meio de escritura de compra e venda outorgada no dia 10 de Outubro de 1994, foi simulado, tendo sido realizado com o intuito de prejudicar a Autora e outros, pois que nem a 2ª Ré quis vender à 3ª Ré nem esta quis comprar o prédio em causa.
Alega por fim que o preço da 2ª transmissão foi simulado, pois que é muito superior ao valor real do prédio.

Devidamente citadas, apenas a 2ª e a 3ª Rés contestaram.

A Ré E… apresentou a sua contestação, a fls. 140 a 151, arguiu a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial entre os pedidos e a caducidade do direito invocado pela A, alegando que teve conhecimento desde 22 de Junho de 2003, quer do contrato de compra e venda celebrado entre a C…, Lda e a ora Ré, quer da venda entre esta e a 3ª Ré. Invocou ainda a caducidade do prazo para depósito do preço, alegando que a A. não o depositou, nos 15 dias seguintes à propositura da ação. Impugnou ainda parte dos factos alegados pela A na petição inicial.
Concluiu pela absolvição das Rés da instância ou do pedido e pede ainda a condenação da A como litigante de má fé, em indemnização a liquidar em execução de sentença.

A Ré F…, S.A., cuja contestação consta de fls. 155 a 166, começa por defender a recusa da petição inicial, por não se mostrar paga pela A a taxa de justiça inicial. Arguiu a excepção da ilegitimidade da A. para preferir na compra e venda em causa, por não lhe ter sido comunicada a alegada transmissão do arrendamento do prédio por efeito do divórcio decretado entre a A e o seu ex-marido.
Alegou ainda a excepção da caducidade do prazo de propositura da ação de preferência, por entender que a A sabia, há mais de seis meses, das condições essenciais do negócio que lhe foram transmitidas pela 2ª Ré.
Por outro lado, impugnou parte dos factos alegados pela A na petição inicial, alegando que nunca houve qualquer contrato de arrendamento, mas tão só mera tolerância na ocupação pelo ex-cônjuge da A e pela própria A enquanto foi proprietária do imóvel, a agora massa falida C…, Lda.
Concluiu pela absolvição das Rés da instância ou do pedido e pede ainda a condenação da A. como litigante de má fé, em indemnização a liquidar em execução de sentença.

A A apresentou réplica a fls. 193 a 209, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pelas Rés e pede ainda a condenação delas como litigantes de má-fé, em indemnização, não inferior a € 2.500,00, cada uma.

No saneador foram julgadas improcedentes as arguidas nulidades e excepções dilatórias e relegado para final o conhecimento da excepção peremptória da caducidade.

O processo prosseguiu e a final foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, declarou a A. legítima arrendatária do primeiro prédio (casa para caseiros) identificado no ponto 1) dos factos provados e absolveu as Rés de todos os demais pedidos contra elas formulados.

Interposto recurso desta sentença, por acórdão desta Relação foi decidida a anulação parcial do julgamento e a ampliação da base instrutória.
Em obediência ao acórdão procedeu-se à ordenada ampliação da matéria de facto e realizou-se nova audiência de julgamento.
Oportunamente, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e:
a) Declarou que a A. é legítima arrendatária do prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540;
b) Reconheceu o direito de preferência da A, na venda à 2ª Ré E…, por escritura de 3 de Junho de 1981, no Cartório Notarial de Amarante daquele imóvel referido em a);
c) Condenou as RR a reconhecerem o direito da A. haver para si o dito prédio, prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, operando-se a substituição daquela Ré E… pela preferente, ora A, no direito de propriedade do mesmo, mediante o pagamento do montante que venha a ser fixado em acção de arbitramento (ou por acordo das partes), com vista à determinação pericial do preço proporcional da coisa, mantendo-se até àquela o depósito do preço nestes autos realizado, acrescendo as despesas da escritura e do pagamento de obrigações fiscais;
d) Ordenou o cancelamento de quaisquer registos prediais efectuados sobre o prédio em causa e posteriores a 3 de Junho de 1981, ou seja, efectuados na data ou posteriormente à data da escritura de compra e venda.
Absolveu-se as Rés dos demais pedidos.
Absolveu a A., a Ré E… e a Ré F… do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

A A apelou e terminou a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.- Deve ser reapreciada toda a prova que incidiu sobre matéria vertida no artigo 1º da base instrutória,
2.- Porque a argumentação desenvolvida para a resposta dada a esta matéria não pode colher.
3.-A decisão que incidiu sobre esta matéria de fato violou o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que não tomou em consideração a amplitude da prova que foi feita -artigo 655º do CPC.
4. -O prédio em causa, além de compreender a casa e o quintal, passou, com a nova inscrição a compreender o quintal e casa, conforme documentos juntos aos autos, sendo, concludentemente, sempre, real e materialmente, o mesmo prédio. 5. – Devendo, por conseguinte, ser alterada a resposta a esta matéria, passando a constar unicamente “Provado”.
6. – Em sequência, o pedido formulado em A -deverá ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser reconhecido e declarado que a autora é legítima arrendatária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, na sua totalidade, isto é, do prédio referido em A) e B) dos factos assentes e, por via disso, reconhecer-se à autora o direito de preferência na compra e venda outorgada pela escritura pública a que se alude no artigo 21º da petição inicial (doc 12).
7. -Não integram a base instrutória os factos que não tenham sido contraditados – artigo 511º, nº 2, do CPC.
8. – O Tribunal não pode conhecer de questões que conheceu – artigo 668º, nº 1, al. d), do CPC.
9. – A sentença encontra-se ferida de nulidade na parte que aqui importa.
10. – Foi violado o princípio do dispositivo -artigo 264º do CPC.
11. -O prédio objeto de preferência, à data da celebração do contrato de arrendamento urbano para habitação, como a autora teve o cuidado de dizer, era constituído por dois artigos matriciais: o artigo 2.540º urbano e o artigo 2.501º rústico, da freguesia ….
12. – Foi este prédio, no seu todo, que foi objeto de arrendamento urbano e foi este prédio que foi objeto do contrato de compra e venda outorgada no dia 3 de Junho de 1981, no Cartório Notarial de Amarante.
13. -Ambos os artigos matriciais, imóveis, foram alienados como uma única unidade jurídica.
14. – Tanto assim que o preço não foi particularizado, por isso, a recorrente não pode ser afetada por tal fato.
15. -Impunha-se apreciar se a preferência deveria ou não abranger a totalidade do prédio.
16. -O RAU, manteve em vigor o estabelecido no artigo 1º da Lei nº 63/77, de 25 de Agosto, ao referir que o arrendatário habitacional goza de direito de preferência e que este direito se estende a todo o prédio onde se integra a casa que habita – artigo 47º, nº 2, RAU.
17. -Por se ter pronunciado sobre fatos sobre as quais se não devia pronunciar e por não se ter pronunciar sobre outros que deveria, salvo o devido respeito por melhor opinião, a sentença recorrida está aferida de nulidade artigos 668º, nº 1, alínea d), do CPC.
Termos em que (…), deve a decisão da primeira instância, na parte que aqui importa, ser revogada, procedendo-se, para o efeito, à alteração da resposta à matéria de fato vertida em 1º da base instrutória, ou reconhecer-se e declara-se o direito de preferência à totalidade do prédio, reconhecendo-se, assim, à autora o direito de preferência na compra e venda outorgada pela escritura pública a que se alude no artigo 21º da petição inicial.

As RR contestantes apelaram e terminaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª – Salvo o devido respeito, que é obviamente muito, vem o mui douto aresto recorrido inquinado de duas nulidades – uma principal e uma secundária que compromete, contudo, a solução do dissídio – de erros de julgamento que infirmam a solução preconizada quanto a três pontos da matéria de facto e, por fim, de uma subsunção normativa de todo desconforme à ratio legis subjacente à estatuição do regime aplicável.
Vejamos,
a) das nulidades: excesso de pronúncia
2.ª – O dissídio em apreço havia sido já objecto de douta sentença, pela qual o Tribunal a quo havia decidido nos seguintes termos: “…julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, declaro que a Autora é legítima arrendatária do primeiro prédio (casa para caseiros) identificado no ponto 1) dos factos provados, absolvendo as Rés de todos os demais pedidos que contra elas foram formulados.”
3.ª – De tal douto decisório foi interposto recurso de apelação, tendo este Venerando Tribunal decidido anular oficiosamente a decisão proferida sobre dois dos pontos de facto controvertidos e, bem assim, ordenado a ampliação da base instrutória, a fim de melhor se aferir da eventual caducidade e exercício abusivo do direito de preferência.
4.ª – Em consonância com a norma contida no n.º 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, teve o douto acórdão deste Venerando Tribunal o cuidado de deixar expressamente consignado que “A repetição do julgamento não abrange a parte não viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.”
5.ª – O que cumpria ao Insigne Tribunal Recorrido era, tão-só, a ampliação da matéria de facto, para os estritos efeitos de aferir se havia já ocorrido a caducidade do direito de que a Recorrida se arroga titular e, bem assim, se o seu exercício configura abuso de direito.
6.ª – Quanto ao mais, já o Tribunal Recorrido se havia pronunciado e o seu poder jurisdicional se havia esgotado.
Donde, veda a lei ao Tribunal da Primeira Instância a nova pronúncia sobre matéria já decidida, ademais em sentido diametralmente oposto à anterior decisão.
7.ª – Daí que a douta decisão recorrida padeça da ilegalidade que resulta da violação das normas contidas no n.º 4 do artigo 712.º e no n.º 1 do artigo 666.º, ambas do Código de Processo Civil; e, bem assim, configure a prática de um acto que a lei não permite e, como tal, implique a nulidade prevista na parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que aqui vai expressamente invocada, nos termos e para todos os legais efeitos.
b) Das nulidades: a deficiente gravação da prova
8.ª – O registo em suporte informático dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento é francamente mau, e suficientemente mau para não ser possível o cabal entendimento do sentido das declarações proferidas. Isto porque, durante a maior parte do tempo, não é possível ouvir as questões que são colocadas às testemunhas, não permitindo divisar – com suficiente segurança – o objecto das suas respostas.
9.ª – Dispõe o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
10.ª -A deficiente gravação da prova consubstancia uma nulidade processual, susceptível de condicionar a boa decisão da causa, e particularmente, a sua reapreciação nesta sede, pelo que, subsidiariamente, aqui vai expressamente invocada, nos termos e para todos os legais efeitos.
c) Da impugnação da matéria de facto
11.ª – As respostas, negativas, conferidas aos pontos 16.º, 18.º e 33.º da matéria de facto enfermam de um erro de julgamento na apreciação da prova que, sobre os mesmos, foi produzida, impondo-se seja a decisão alterada para sentido diametralmente oposto.
12.ª – Sem prejuízo de reiterar que o registo dos depoimentos prestados não permite o cabal entendimento do sentido das declarações das testemunhas, o certo é que depoimentos houve que, apreciados à luz das mais elementares regras da experiência e enquadrados na realidade económico-social do concelho de Amarante nos últimos vinte anos, não poderiam deixar de impor diversa resposta aos pontos em apreço.
13.ª – Resulta com clareza do depoimento das testemunhas I… e J… (muito particularmente deste último, isento, credível e com uma descrição dos factos detalhada e circunstanciada) que a Recorrida sabia, há muitos anos, que a casa que habitava havia sido transmitida para a Recorrente E… e desta para a Recorrente F….
14.ª – Releva ainda considerar a veemência com que a testemunha K… referiu que toda a comunidade de Amarante tinha conhecimento da falência e da liquidação da L… (quanto mais a Recorrida, que foi trabalhadora da empresa), facto que não pode deixar de asseverar o conhecimento, por parte da Recorrida, de que o imóvel que habitava não era da falida.
15.ª – Salvo o devido respeito, considerando o teor dos depoimentos supra as respostas negativas conferidas aos quesitos em apreço não podem deixar de configurar um manifesto erro de julgamento, impondo-se sejam devidamente alteradas para sentido oposto.
d) Da matéria de direito
15.ª-A – No que a Direito concerne, temos que, antes de mais, a alteração das respostas conferidas aos pontos de facto questionados imporá a procedência da excepção da caducidade do direito de que se arroga titular a Recorrida. Além do mais, e sem prescindir,
16.ª -São diversas as motivações de direito que infirmam o sentido preconizado pela douta decisão recorrida (para além da nulidade decorrente da “nova” pronúncia sobre questões já decididas) e, a contrario, asseveram a anterior decisão do Insigne Tribunal Recorrido.
17.ª – Considerando que o negócio jurídico arreigado ocorreu já no longínquo ano de 1981, haverá que remeter para o enquadramento legal aplicável, em razão do tempo, e que veio consagrado no Decreto-Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto. No termos do preceituado no n.º 1 de tal diploma, “O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo.”
18.ª – Havia já a primitiva sentença decidido, e bem, que “o direito legal de preferência não nasce com a constituição da relação jurídica de onde emana a preferência, mas sim quando se verificam os concretos pressupostos enunciados na norma que o confere.”
19.ª – À data do negócio chamado à colação pela Recorrente, 3 de Junho de 1981, o titular do putativo direito de preferência era o arrendatário, o ex-marido da Recorrente, e só este. Sendo da maior clareza a expressa incomunicabilidade entre cônjuges, do arrendamento, independentemente do regime matrimonial, conforme o consignava o n.º 1 do artigo 1.110.º Código Civil, na redacção aplicável, em razão do tempo, ao dissídio que nos ocupa.
20.ª – Decidiu, e bem, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, que “O destinatário da comunicação a que se refere o artigo 416º do Código Civil será tão somente o arrendatário, dado ser a ele que a lei confere o direito de preferência em resultado não só da incomunicabilidade do arrendamento -a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge... -artigo 83º do RAU, a reproduzir o nº. 1 do artigo 1110º do Código Civil -, mas também por ser inaplicável ao direito de preferência o disposto no nº. 2 do artigo 1682º-A do Código Civil -que estatui "carecer de consentimento de ambos os cônjuges ... a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos reais de gozo sobre a casa de morada de família" -quer o disposto na alínea a) do artigo 1682º B do mesmo diploma legal -que diz: "a resolução ou denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário, relativamente à casa de morada de família, carecem de consentimento de ambos os cônjuges".
21.ª – A norma contida no n.º 1 do artigo 416.º do Código Civil, encontra aplicação ao caso sub judice por efeito da remissão operada pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto. Legal incidência que em muito reforça a pertinência da interpretação perfilhada no decisório a que se alude na conclusão que antecede. Com toda a clareza se divisa no texto e na interpretação desta norma que a Recorrida, não era, à data da venda do imóvel, arrendatária do mesmo.
22.ª – É clara divisão que a lei perfilha na titularidade do direito de preferência e incomunicabilidade da posição de arrendatário. Se a posição contratual de arrendatário não é comunicável, também não o poderá ser o direito de preferência com fundamento em tal relação contratual. O facto de a Recorrida não ser arrendatária do imóvel na data da venda a que se reporta, 1981, impede a génese de qualquer direito de preferência na alienação operada.
23.ª – Ora, “A titularidade do direito de preferência legalmente outorgado ao arrendatário de prédio onde se situa o local arrendado pressupõe que o preferente tenha a posição jurídica de arrendatário, quer na data em que se consumou o acto de alienação lesivo da preferência, quer no momento temporal em que, por se tornarem cognoscíveis os elementos essenciais do negócio, fica colocado em condições de exercer o direito real de aquisição de que é titular.”
24.ª – A transmissão do direito ao arrendamento por efeito do divórcio não produz efeitos retroactivos, logo não tem a virtualidade de fazer nascer, na esfera jurídica da cessionária, um direito de preferência retroagido a um evento anterior, em bem mais de dez anos, à cessão da posição contratual.
25.ª – Posição perfilhada, e bem, no primeiro aresto nestes autos proferido, onde ficou consignado, em sustento da não produção de efeitos retroactivos pela cessão da posição contratual de arrendatário, que “Compreende-se que assim seja, pois sendo a atribuição do direito ao arrendamento a favor do ex-cônjuge um efeito do divórcio, tendo tal direito uma índole patrimonial, embora sendo eminentemente pessoal, estando-se fora do estrito âmbito das relações patrimoniais dos cônjuges, envolvido que está um terceiro – o senhorio –, afastada fica a aplicação da retroactividade prevista no n.º 1, do artigo 1.789.º, do Código Civil.”
Por outro lado,
26.ª – Entre a data da invocada venda, a venda onde, por via da acção no âmbito da qual vem o presente recurso interposto, pretende a A. preferir na aquisição do direito de propriedade sobre imóvel, e a data da interposição da acção com tal fito, mediaram vinte e três anos.
27.ª – É manifestamente ilegítimo o exercício do putativo – rectius, inexistente – direito de preferência mais de vinte anos depois da transmissão da propriedade em apreço.
28.ª – Até porque “Praticado à revelia do preferente o acto de alienação, passa este a ter um ónus de acompanhamento diligente da situação do prédio que é objecto mediato do seu direito de preferência, de modo a evitar que venha a ser exercitado com uma dilação indevida, frustrando as legítimas expectativas do adquirente na consolidação do negócio e a própria confiança e segurança do comércio jurídico – sendo violadora do princípio da boa fé e envolvendo exercício abusivo do direito de preferência, nos termos do art. 334º do CC, a proposição da respectiva acção apenas cerca de 30 anos após consumação do acto de alienação, num caso em que o preferente dispunha de elementos que seguramente indiciavam ter sido infringido o seu direito.”
29.ª – Prosseguindo diz o mesmo douto acórdão “…mesmo que se adoptasse o entendimento segundo o qual os pressupostos da preferência se aferem exclusivamente no momento temporal originário, em que se consuma a alienação violadora do direito do preferente, irrelevando uma superveniente extinção da relação locatícia, desprovida de efeitos retroactivos, nem por isso a presente acção deixaria de se considerar precludida – não podendo obviamente olvidar-se -e deixar de valorar-se devidamente -a abissal demora entre a realização do acto de venda, lesivo da preferência legal., e o exercício judicial do direito pelo preferente: cerca de 30 anos!”
30.ª – E destaca ainda que “Tal demora anormal não pode de deixar de suscitar logo fundada perplexidade ao intérprete, não sendo fácil compreender como se pode legitimamente transmutar um prazo curto -de 6 meses – para o exercício do direito num prazo que subsistiria incólume ao longo dos anos e das décadas, excedendo mesmo em muito os limites que a lei institui para a irremediável consolidação das situações jurídicas, quer em sede de prescrição extintiva, quer no campo da usucapião…”
31.ª – Ainda, sempre com a mesma acuidade, “É certo que o prazo para o exercício em juízo do direito real de aquisição em que se consubstancia a posição do preferente se conta da (16 Acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 4.20.2010, in www.dgsi.pt) ocorrência de um facto subjectivo: o conhecimento pelo preferente dos elementos essenciais do acto de alienação; tal não significa, porém, que seja possível diferir ilimitadamente no tempo o exercício de tal direito, de modo a considerá-lo possível após se consumarem anos ou décadas sobre a verificação do referido facto objectivo, pondo-se obviamente em causa – não apenas os direitos e expectativas do obrigado à preferência – mas direitos de terceiros, totalmente estranhos a tal obrigação (e a quem se não pode naturalmente imputar a respectiva violação) e, em última análise, a própria segurança e confiança do tráfico jurídico.”
32.ª – Em boa verdade, o asseverar de uma tese em sentido contrário, que entenda legítimo tão serôdio exercício do direito de preferência, configuraria um atentado a uma diversidade de valores jurídicos que urge salvaguardar, designadamente a certeza e a segurança. E, mais, no caso em apreço, as legítimas expectativas das Recorrentes, designadamente aquela que, há mais de dezasseis anos, adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel sub judice.
33.ª – Mais uma vez, é da maior curialidade o aresto de 2010, do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, que se tem vindo a seguir:
…a tese (…) segundo a qual, uma vez adquirido o direito de preferência, o mesmo subsistirá indefinidamente, até ao momento em que sejam subjectivamente conhecidos pelo titular do direito real de aquisição os elementos essenciais do negócio de alienação, acaba por criar sobre o imóvel alienado um verdadeiro ónus real, oculto (na medida em que obviamente não figura no registo) e tendencialmente perpétuo, já que (…) poderia ser exercitado com uma dilação de décadas -com o mero argumento
de que só nesse momento o seu titular teria finalmente apreendido os elementos essenciais do negócio de alienação, violador da preferência.”
34.ª – Prosseguindo, consigna o mesmo douto decisório: “Como é notório, tal solução normativa revelar-se-ia dificilmente compatível com os princípios da confiança e da segurança jurídica no campo da alienação de bens imobiliários, -que constitui emanação do próprio princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, proclamado pelo art. 2º da Lei Fundamental -ao possibilitar que quem os adquiriu – e registou em seu nome -desconhecendo, porventura, sem culpa que o transmitente violou um direito de preferência – ficaria indefinidamente sujeito a ver a eficácia da aquisição destruída, ao longo de períodos temporais longuíssimos -podendo, em muitos casos, o exercício tardio do direito de preferência, afectar os múltiplos e sucessivos actos de transmissão, eventualmente verificados ao longo dos anos (veja-se, por ex., a tutela conferida pelo art.291º do CC aos subadquirentes de boa fé, perante os efeitos tendencialmente retroactivos da nulidade ou anulação do negócio jurídico).”
35.ª – Ficou consignado no ponto 2 da matéria de facto assente que “Por escritura celebrada no dia 10 de Outubro de 1994, no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, e exarada de folhas cento e uma até cento e duas do livro de notas número cento e setenta e quatro-D, E… declarou vender a “F…, S.A.”, que declarou comprar, pelo preço de vinte mil contos, o prédio referido em 1), actualmente inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2819º e descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o número 00253.
36.ª – Dispõe o n.º 1 do artigo 290.º do Código Civil que “A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.”
37.ª – Não resulta do acervo de factos provados, que a Recorrente F… tivesse conhecimento, à data da aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel, da existência de um qualquer direito de preferência ou, sequer, de um contrato de arrendamento que tivesse por objecto o mesmo. O que não pode deixar de relevar por efeito do que dispõe o n.º 3 do citado artigo 290.º do Código Civil.
38.ª – Daí que, não só pelo que antes expôs, mas também na senda da salvaguarda de terceiros de boa-fé, como é o caso, neste litígio, da Recorrente F…, o douto aresto que se tem vindo a seguir tenha deixado consignado que “É justamente o art. 1410º, nº1, do CC que impede o exercício do direito de preferir a todo o tempo, pois fixa um prazo de 6 meses, a contar da data em que o sujeito passivo teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, para a propositura da acção de preferência; no limite, o direito de preferência terá de ser exercido dentro daquele prazo.
Esta solução é, de resto, plenamente justificada por razões substantivas.”
39.ª – Opção que o Supremo Tribunal justifica por “Em primeiro lugar, a alienação do bem sujeito à preferência a favor de um terceiro torna impossível a realização de uma denuntiatio regular, pois esta reporta-se obrigatoriamente a um projecto de venda e a um projecto de contrato. Uma vez consumada a venda a terceiro, já não há projecto de contrato a comunicar; quando muito, o sujeito passivo poderá comunicar ao preferente a venda a terceiro, indicando o respectivo conteúdo, para fixar o momento a partir do qual se iniciará a contagem do prazo de 6 meses acima aludido, mas esta comunicação não cumpre o dever previsto no art. 416º, nº1, do CC, obviamente. Esta impossibilidade de realizar a denuntiatio, porque o sujeito passivo celebrou o contrato projectado com terceiro, frustra o exercício regular do direito de preferência; o desenvolvimento da relação de preferência, de acordo com o programa previsto pelo legislador, sofreu uma vicissitude que inviabilizou definitivamente o exercício regular do direito, e, por isso, não faz sentido continuar a submetê-lo às regras que pressupõem a possibilidade de realização desse programa.”
40.ª – E, no mesmo seguimento, “Em segundo lugar, e esta será uma razão ainda mais determinante para a limitação temporal do exercício do direito de preferir, a alienação a terceiro faz com que a discussão à volta do exercício ou não exercício do direito de preferir extravase da relação entre preferente e sujeito passivo e passe a afectar também a situação de terceiro e, eventualmente, a própria segurança do tráfico jurídico, pois não está só em causa a aquisição de terceiro como todos os actos que por este sejam praticados relativamente ao objecto sujeito à preferência, designadamente a sua alienação ou oneração.”
41.ª – Ou seja, não pode a ordem jurídica conformar-se com o postulado ad eternum do direito a preferir, com o diferir do termo inicial da contagem do prazo legal de seis meses para um acontecimento futuro, incerto e potencialmente ilimitado no tempo. 42.ª – Em concretização da douta solução legal que vem a perfilhar, o douto aresto em apreço vem a concluir, nos mesmos precisos termos que, para o dissídio sub judice, são clara solução, que “As cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé revelam-se o instrumento adequado para, operando um correcto balanceamento ou ponderação dos interesses contrapostos, alcançar a justa composição do litígio.”
43.ª – Ficou assente nos autos que “Em Setembro de 1991 a aludida sociedade encerrou as suas instalações fabris e escritórios, tendo G… passado a proceder ao pagamento da apontada contrapartida através de depósito bancário.”
44.ª – Ora, o mero encerramento das instalações fabris e escritórios da sociedade tida como senhoria, já em 1991, não poderia deixar de levantar – num bonus pater famílias – um indício de que viria a ser celebrado um acto de transmissão da titularidade do imóvel. Aliás, o “fim” da L… (o nome pelo qual era conhecida a C…), e a repercussão do seu encerramento na comunidade do concelho de Amarante foi de tal modo significativa que configura, praticamente, um facto notório.
45.ª – Facto que, sob a égide do preceituado pelo n.º 1 do artigo 514.º do Código de Processo Civil, poderá, e deverá, relevar para a solução do dissídio, por complementar o substrato da acção em abuso de direito em que labora a Recorrida. Ou seja, em 1991, o senhorio era uma empresa encerrada e a Recorrida sabia-o.
46.ª – Salienta, já em remate final, o acórdão que se tem vindo a seguir, duas pertinentes questões, em muito relevantes, pela similitude com o caso sub judice, para a questão em apreço. Por um lado, assaca ao preferente um mínimo dever de diligência no acompanhamento do bem, e, por outro lado, considerando o muito significativo lapso de tempo decorrido entre a alienação chamada à colação e a reclamação do exercício do putativo direito de preferência, diz, e muito bem, o mesmo acórdão: “E, como é evidente o arrastamento temporalmente desproporcionado desta situação de pendência e de dúvida acerca da interesse no exercício da preferência acabou, por via reflexa, por determinar – face às flutuações do valor da moeda e do próprio valor objectivo e de mercado dos bens imóveis – uma manifesta desproporção entre as prestações em causa, ao facultar a aquisição de um bem vendido quase 30 anos antes, sem que haja garantia adequada que a realização de mera operação de correcção monetária assegure plenamente o equilíbrio e a justiça nas prestações e contra -prestações, em que assentava a sinalagmaticidade do negócio.”
47.ª – Tal qual no objecto daquele acórdão, temos que no caso em apreço a Recorrente pretende adquirir o direito de propriedade sobre uma casa por cerca de Eur 1.500,00, mais de vinte anos depois da venda que invoca. Daí que as mesmas considerações naquele douto aresto vertidas aqui se revistam da mesma, inegável, pertinência.
48.ª – Impõe a Justiça seja sustada a pretensão da Recorrida, pela motivação de Direito exposta, não só por não ser aquela titular do direito que se arroga, mas também por a solução que perfilha configurar um flagrante atentado aos Princípios da Segurança e da Certeza Jurídica, infirmando as legítimas expectativas do terceiro de boa-fé que sucedeu à 1.ª Recorrente na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel.

A A contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso das RR.

Fundamentação

Factos dados como provados na 1ª instância:

1- Por escritura celebrada no dia 3 de Junho de 1981, no Cartório Notarial de Amarante e exarada de fls. vinte e seis verso a folhas vinte e oito do livro de notas de escrituras diversas número dois-C, M…, sócio-gerente da sociedade comercial por quotas “C…, Limitada” declarou vender a E…, que declarou comprar, pelo preço de trezentos mil escudos, os seguintes bens imóveis sitos no …, da freguesia …: -Prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540; -Nove décimos do prédio rústico denominado “…”, composto de …, e de quatro leiras de terra lavradia, denominadas …, terra lavradia com árvores de vinho e oliveiras, atravessada pela estrada, inscrito na matriz sob o art. 2501; Ambos descritos na Conservatória de Registo Predial de Amarante como parte do número trinta e três mil cento e noventa e quatro.
2 - Por escritura celebrada no dia 10 de Outubro de 1994, no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, e exarada de folhas cento e uma até cento e duas do livro de notas número cento e setenta e quatro-D, E… declarou vender a “F…, S.A.”, que declarou comprar, pelo preço de vinte mil contos, o prédio referido em 1), actualmente inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2819º e descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o número 00253.
3- O prédio referido em 1) e 2) encontra-se registado a favor da Ré F… pela cota G-3, apresentação nº16, de 27 de Dezembro de 1994, por compra.
4- E esteve registado a favor da Ré E… pela cota G-2, apresentação nº12, de 18 de Junho de 1986, por compra.
5- E a favor de “C…, Lda”, pela cota G-1, apresentação nº 11, de 18 de Junho de 1986, por compra.
6- Por escritura celebrada no dia 28 de Fevereiro de 1973, no Cartório Notarial de Amarante, N…, na qualidade de procurador de O…, declarou vender a M…, na qualidade de sócio-gerente da firma “C…, Lda”, que declarou comprar, pelo preço de trezentos mil escudos, os prédios aqui referidos em 1) e 2).
7- Por sentença proferida no dia 24 de Março de 1994, nos autos de divórcio por mútuo consentimento que correu termos no Tribunal Judicial de Amarante sob o nº 26/94, foi decretado o divórcio entre a Autora e G….
8 - No âmbito do acordo junto aos autos de divórcio referidos em 7) a aqui Autora e o então marido declararam que a casa de morada de família sita no …, …, Amarante, é propriedade de C…, Limitada, e que a posição de arrendatário ficava a pertencer à Autora.
9 - Por acordo verbal realizado em dia e mês que não foi possível apurar em concreto, do ano de 1973, a firma falida “C…, Limitada”, através do seu sócio-gerente, declarou dar de arrendamento ao ex-cônjuge da Autora, G…, o prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, prédio este que corresponde ao primeiro dos imóveis referidos em 1).
10 - E G… declarou tomar de arrendamento o mesmo imóvel para aí fixar a sua morada.
11- O que sucedeu.
12 - Mediante a contrapartida mensal de 400$00.
13- A quantia referida em 12) foi paga pelo aludido G… desde a data referida em 9) até Agosto de 1991, nos escritórios da sociedade C…, sitos no …, ….
14- Em Setembro de 1991 a aludida sociedade encerrou as suas instalações fabris e escritórios, tendo G… passado a proceder ao pagamento da apontada contrapartida através de depósito bancário.
15- A referida quantia é hoje de €2,50.
16- E é ainda paga através de depósito bancário.
17- E desde Outubro de 2003 a favor da Ré F…, na P….
18- Em Junho de 2003 a Autora recebeu uma carta, endereçada ao seu ex marido, com o qual nunca deixou de residir no local em apreço nos autos, cujo remetente, teor e dizeres são os constantes do documento junto a fls. 28 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual a H…, SA comunicava que havia adquirido, livre de ónus e encargos, toda a massa falida da C…, Lda., da qual faziam parte o quintal e habitação ocupados pela Autora e ex marido, mais declarando considerar que a ocupação em causa o era não titulada e de que toleraria a ocupação enquanto não fosse definido destino para o prédio.
19 - Por carta registada com aviso de recepção, a A informou, em 22.07.2008, a remetente da carta referida em 18), "H…, SA" que era arrendatária do imóvel, conforme documento junto aos autos a fls. 30 e 31.
20- Datada de 10 de Outubro de 2003 a H… remeteu, sendo que pela Autora foi recebida, uma carta, na qual comunicava que a proprietária do imóvel era a 3ª Ré F… SA, mais sugerindo dever ser aquela a contactada e bem assim à ordem de quem deveria ser feito o depósito das rendas.
21 - Em Outubro de 2003 a Autora dirigiu-se aos escritórios da 3ª Ré, na cidade do Porto, com o propósito/intenção de ali proceder ao pagamento da renda.
22 - Após a data da outorga do contrato celebrado, conforme assente em 9) a 12), o primitivo contraente e a Autora passaram a ocupar e fruir do prédio, pagando a contrapartida ali referida.
23 - A "C…, Lda." mesmo depois de ter vendido o imóvel à 2.ª ré continuou a receber da A e a emitir os recibos respectivos, sendo-o até Agosto de 1991.
*
Questões suscitadas

Recurso da A

Se deve ser alterada a resposta ao art. 1º da base instrutória, que obteve resposta restritiva pugnando pela resposta totalmente afirmativa.
Se houve violação do princípio do dispositivo e a sentença recorrida padece de nulidade por omissão ou excesso de pronúncia.
Objecto do direito de preferência, se deve ser declarado que abrange os dois prédios objecto do contrato de compra e venda e não apenas o prédio urbano.

Recurso das RR

Se houve excesso de pronúncia
Se há deficiente gravação da prova e se essa irregularidade foi ou não tempestivamente arguida.
Se devem ser alteradas as respostas negativas aos artigos 16º, 18º e 33º para respostas afirmativas.
Se deve ser julgada procedente a excepção da caducidade do direito de preferência que a A se arroga
Se o titular do direito de preferência é apenas o ex-cônjuge da A que era o arrendatário quando em 03.06.1981, ocorreu o contrato de compra e venda entre a 1ªRé (primitiva senhoria) e a 2ª Ré.
Se a A está a agir em manifesto abuso.
*
Por condicionarem ou mesmo impedirem o conhecimento do recurso da matéria de direito, vai conhecer-se previamente os recursos de ambas as partes da decisão da matéria de facto e as nulidades arguidas nas duas apelações.

Recurso da A.

Resposta ao art. 1º da base instrutória

Importa precisar que a impugnada resposta ao art. 1º da base instrutória foi proferida em 02.04.2009, no encerramento da primeira audiência de discussão e julgamento e que consta de fls. 839 a 843.
A A. no recurso interposto na primeira sentença proferida em 16.06. 2009, para além do mais, impugnava a resposta a este artigo e o acórdão proferido em 28.06, 2010, não a conheceu.
É, pois, indiscutível que a questão continua sem ser objecto de apreciação pela Relação e, por isso, tendo a A retomado a questão no presente recurso tem a mesma de ser conhecida.

Nesse artigo perguntava-se:
Por acordo verbal realizado no dia 1 de Abril de 1973, a falida firma “C…, Limitada”, através do seu sócio-gerente, declarou dar de arrendamento ao ex-cônjuge da Autora, G…, o prédio referido em A) e B)?

Obteve a seguinte resposta (acima transcrita sob o n.º 9):

Provado apenas que por acordo verbal realizado em dia e mês que não foi possível apurar em concreto, do ano de 1973, a firma falida “C…, Limitada”, através do seu sócio-gerente, declarou dar de arrendamento ao ex-cônjuge da Autora, G…, o prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, prédio este que corresponde ao primeiro dos imóveis referidos em A).

A A pugna por resposta simplesmente afirmativa.

Antes do mais importa referir que os factos que constam do art. 1º são indiscutivelmente controvertidos, ao contrário do que a A parece pretender nas suas conclusões 7º e 8º, dado que a Ré F… no art. 16º da sua contestação impugna o alegado pela A, entre outros, nos artigos 1º a 4º da petição e no art. 17º alega mesmo não ter havido qualquer arrendamento com o ex-cônjuge da A.
Por outro lado, também a Ré E… no art. 30º da sua contestação impugna especificadamente o alegado nos artigos 1º a 3º da petição, em que a A alega o questionado contrato de arrendamento.

Importa pois decidir se houve erro de julgamento na resposta a esse artigo.

Como é sabido, os fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória são particularmente relevantes para a Relação controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convição do Juiz do Tribunal de 1ª instância.

Na motivação para a resposta ao artigo em causa consta:
“Note-se que, face ao depoimento das identificadas testemunhas (Q…, S…, T…, U…, V…, K…, W…), conjugado com o teor dos recibos e comprovativos de depósito das rendas juntas aos autos, o Tribunal ficou, de facto, convencido, que teria havido a celebração de um contrato de arrendamento verbal, entre o sócio-gerente da referida sociedade C…, Limitada e o ex-marido da Autora, G…, tendo por objecto a casa onde ainda hoje habita, juntamente com a Autora. No entanto, já no que respeita ao quintal, face ao que consta dos referidos recibos e comprovativos de depósito - em que se refere sempre “casa” ou “habitação” e aos depoimentos das testemunhas supra identificadas, que se limitaram a dizer que o G… fabricava aquele terreno, não conseguiu o Tribunal formar uma convicção segura quanto ao facto de esse quintal ter feito parte do arrendamento, tendo antes ficado num estado de incerteza inultrapassável quanto a tal facto. É que, se é certo que resultou claro que era do interesse da C… ter alguns funcionários, designadamente encarregados (como era o caso do ex-marido da Autora) a residirem junto da empresa, para assegurarem a laboração daquela de forma mais rápida e expedita, já quanto ao quintal esse interesse não ficou demonstrado, antes pelo contrário, a ideia que o Tribunal ficou foi que todos os terrenos que a C… tinha se destinavam a expansão da actividade da empresa, embora por vezes pudessem não ser utilizados de imediato, e dai a resposta restritiva dada ao quesito 1º.”

A A na sua alegação sustenta que ficou provado que o terreno em causa sempre foi utilizado como quintal e complemento da casa de habitação e que o Tribunal recorrido interpretou erradamente os depoimentos das testemunhas e que estas não se “limitaram a dizer que o Arnaldo fabricava aquele terreno”.

Assim, dos depoimentos salienta:
«-A testemunha S… afirmou que “… há um quintal, um grande quintal (olhe eles fabricavam-no sempre?) sim senhora”.

-A testemunha X…, afirmou que “…sei que havia rendas de 300, 400 escudos …, a D. B1… pagava mais (o prédio tem só casa?) terreno há muito … aquilo dava três pipas de vinho...têm também o quintal, tem um terreno bem bom … o terreno era cultivado por nós e agora por eles, batatas, … o arrendamento era a casa e o terreno …
-A testemunha T… afirmou que “…vivia na casa ao lado … a casa da D. B1… tinha mais um bocadinho, tinha casa e tinha terreno … é do quintal, cultivou sempre … logo que entrou para lá começou logo a pagar renda … pagava de renda 300$00, a D. B1… e G… pagava mais… 400 paus, … pagava mais por causa do quintal …”.
-A testemunha Z… que afirmou “… normalmente a empresa não dava … o falecido AB… nunca fez contratos de arrendamento com ninguém … a casa estava inserida naquele terreno … sei que o terreno era limpas … as videiras … faziam-se algumas podas … a casa tinha adega … não vou lá há anos…”.»

Sustenta também que na data da celebração do contrato o prédio era constituído por dois artigos matriciais, um urbano e um rústico, mas que o prédio objeto de arrendamento foi e continua a ser sempre o mesmo e que ao longo de mais de 30 anos nada alterou a sua configuração, salvo a sua inscrição matricial.
Refere ainda que o prédio em causa, passou, com a nova inscrição a compreender o quintal e casa, conforme documentos juntos aos autos.

O transcrito art. 1º da base instrutória remete para o que consta da alíneas A) e B) dos factos assentes que reproduzem em síntese o que consta das escrituras de compra e venda.
A primeira escritura de 03.06.1981, referida em A) e que consta de fls. 44 a 46 dos autos, identifica o prédio urbano, como formado por casa para caseiros inscrito na matriz sob o art. 2540.
Relativamente ao terreno que alegadamente integrava o contrato de arrendamento, consta: Nove décimos do prédio rústico denominado “…”, composto de …, e de quatro leiras de terra lavradia, denominadas …, terra lavradia com árvores de vinho e oliveiras, atravessada pela estrada, inscrito na matriz sob o art. 2501.
Na escritura referida na al. A) consta ainda que ambos estão descritos na Conservatória de Registo Predial de Amarante como parte do número trinta e três mil cento e noventa e quatro e confrontam no seu todo do nascente, poente e sul com firma vendedora e do norte com AC….

A escritura celebrada no dia 10 de Outubro de 1994, referida na al. B), consta de fls. 54 e 56, na qual a Ré E… declarou vender a Ré F…, S.A., que declarou comprar, pelo preço de vinte mil contos, o prédio objecto da compra está identificado da seguinte forma:
“prédio rústico denominado “…” composto de Campo da Porta, quatro leiras de terra lavradia, com árvores de vinho e oliveiras, casa beiral e eira, com a área coberta de seis mil seiscentos metros quadrados ( …),, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2819 ( …) e descrito no registo predial sob o numero zero zero duzentos e cinquenta e três.”

No art. 1º da petição a A descrevia o arrendado como integrando um prédio urbano destinado à habitação com área coberta de 60 m2, de que faz parte o prédio rústico denominado “…” , com a área de 2 500 m2.

Ora, a questão da área do terreno que alegadamente integra o contrato de arrendamento para quem não assistiu aos depoimentos, nem inspeccionou o local, é muito relevante.
Vejamos:
Na apreciação dos depoimentos das testemunhas indicadas pela A S…, X… e T… parece resultar que a casa de habitação dada de arrendamento ao ex-marido da A G…, como decorre das transcrições efectuadas, tinha um quintal que era cultivado pela A, Dona B1….
Essa realidade também se pode deduzir das próprias fotografias juntas pela 3ª Ré F… e que constam de fls. 801, 802 e 803.
Por outro lado, do auto de inspecção ao local, a fls. 807 ficou exarado o seguinte:
“1 – O tribunal constatou a existência da casa visível na fotografia constante dos autos a fls. 801 a 803.
2 – Contíguo à referida casa verifica-se a existência de um terreno onde existe um tanque e onde se encontram plantadas couves, sendo visíveis alguns esteios e restos do que teria sido uma ramada, bem como uma nogueira e uma laranjeira.
3 – Mais se consigna que no decurso da inspecção foram tiradas fotografias ao local, pelo Sr. AD…, filho da Ré E….”

Ora, a A pretende que o tribunal julgue provado que o contrato de arrendamento incluía também um terreno com a área de 2 500 m 2, o que manifestamente não é um vulgar “quintal”.
Note-se que o que ficou a constar do auto de inspeção, acaba por não corroborar a pretensão da A dado que se o terreno circundante tivesse a área alegada por ela, essa realidade devia ter ficado nele plasmada e a A é que tinha o ónus de o provar devia ter requerido a sua medição.
Por outro lado, as fotografias referidas no ponto 3 do auto, são certamente a que depois foram juntas a fls. 811 a 829 também não são esclarecedoras. Delas não resulta claramente que a casa e o terreno formem de facto um unidade predial, perfeitamente delimitada dos prédios contíguos, que conforme resulta da escritura referida em A), do nascente, norte e sul também eram propriedade da locadora C…, Lda.

Também na transcrição que a A efectuou se constata que as testemunhas nada adiantaram de concreto sobre a área do quintal. O que reproduz sobre o afirmado pelo S… que há “um quintal, um grande quintal” é demasiado vago e da audição do depoimento confirma-se que não acrescenta nada de relevante sobre a questão do contrato também abranger tal área de terreno.
Por outro lado, X… quanto à área avançou com o dobro ou o triplo da sala de audiência e a T… também nada conseguiu precisar, referindo ser mais largo que a sala de audiências e o comprimento é mais ou menos o da sala.
Quanto ao referido pela testemunha X…, que “aquilo dava três pipas de vinho” fica sem se saber de quem eram as videiras que davam esse vinho, dado que do depoimento da outra testemunha Z… resulta que as uvas dessas videiras eram apanhadas pelos trabalhadores da sociedade C…, Lda. e que o vinho era para consumo dos donos da empresa e não para a A e ex-marido, como parece resultar da transcrição parcial efectuada por esta.
É, pois, de concluir que a prova testemunhal que a Apelante indica é muito pouco consistente quanto à sua pretensão do arrendamento abranger um quintal com a área de 2 500 m2.
Note-se que não está em causa que a A cultivasse o parte do terreno contíguo à casa onde habita, mas a questão está em saber que terreno era englobado no contrato de arrendamento.
De referir que não se pode escamotear que o arrendamento do prédio foi celebrado apenas pelo facto do ex-marido da A trabalhar para a C…, como refere a motivação, confirmada pelos depoimentos das testemunhas acima referidas, principalmente pelo S…, por ser do interesse da empresa ter alguns funcionários, designadamente encarregados (como era o caso do ex-marido da A) a residirem junto dela para assegurarem a laboração da empresa de forma mais rápida e expedita. Assim não há qualquer razão plausível para a C… ter também incluído no arrendamento por 400 escudos para além da casa de habitação, uma área de terreno com 2500 m2, que a ser verdade deixava por tempo indeterminado de dispor apenas para um seu encarregado a utilizar no cultivo.
De salientar também que a C… tinha um terreno contíguo ou, pelo menos, próximo onde depositava a madeira que utilizava na sua produção e também por isso era totalmente ilógico estar a arrendar todo esse terreno a um dos seus empregados, privando-se, assim, de o utilizar em seu proveito.
Assim sendo e atenta a área de terreno envolvida e estar o terreno integrado num prédio com um artigo matricial distinto da casa, é perfeitamente justificado o reparo constante da motivação quanto aos recibos da renda nenhuma referência fazerem ao terreno.
Importa ter presente que, em 1973, quando foi celebrado o contrato de arrendamento verbal entre a C… e o ex-marido da A. vigorava quanto à forma, o a versão original do Código Civil e apesar da regra ser a consensualidade, como impunha o artigo 1088º, o arrendatário só podia provar o contrato pela exibição do recibo de renda.
Por isso, e ao contrário do que defende a Apelante é particularmente significativo o que consta do recibo de renda.

Não há pois elementos de prova que permitam a esta Relação que não teve contacto direto com as testemunhas e com o local, alterar a convição formada pelo tribunal da 1ª instância, que tem suporte lógico e razoável na prova produzida na audiência e alterar a resposta ao art. 1º e dar como provado que o contrato de arrendamento que teve por finalidade assegurar a habitação de um funcionário de uma empresa, abrangia também um terreno com cerca de 2 500 m 2.
*
Excesso e omissão de pronuncia e violação do dispositivo

A A refere nas conclusões 8ª a 10ª que foi violado o princípio do dispositivo e que foi cometida a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art. 668ºdo CPC, por excesso e omissão de pronúncia.
Contudo estas afirmações não estão minimamente sustentadas. Como é indiscutível o tribunal pode sempre responder restritivamente aos artigos da base instrutória, como ocorreu na resposta ao art.1º.
Por outro lado, nessa resposta o tribunal não recorreu a qualquer facto que não tenha sido alegado pelas partes, nem a A refere qual foi a factualidade não alegada que foi considerada.
Como parece resultar da alegação, a A parte do pressuposto que tendo o tribunal recorrido dado como provado que foi celebrado o contrato de arrendamento entre a C…, entretanto falida e o marido dela, tinha necessariamente de se julgar provado que esse contrato abrangia os dois artigos matriciais que refere na conclusão 13ª foram alienados numa única unidade jurídica.
No entanto, nada impõe que haja uma identificação entre o objecto do contrato de arrendamento e o contrato de compra e venda.
Por outro lado, como se referiu no contrato de compra e venda celebrado por escritura de 3.06.1981 relativamente ao qual a A pretende exercer o direito de preferência, os dois prédios estão autonomizados e, para além disso, apenas foi vendido nove décimos do prédio rústico.
Assim, se o determinante fosse o que consta da escritura, a discussão em torno do terreno que alegadamente estaria abrangido no contrato de arrendamento nem sequer se tinha colocado, pois este só pode incidir validamente sobre uma parte indivisa de um prédio quando houver autorização expressa de todos os comproprietários e não foi sequer alegado quem era o outro comproprietário (cf. art. 1024º do CC, na redação em vigor, em 1973).
Ainda quanto à arguida nulidade, a sentença, atenta a resposta restritiva ao art. 1º, limitou-se a reconhecer o direito de preferência da A relativamente ao prédio inscrito na matriz predial urbana que se provou ter sido arrendado ao seu ex-marido.
Por isso, a sentença não decidiu questão que não podia conhecer, nem deixou de conhecer qualquer questão, nem condenou em objecto diverso do pedido, limitando-se a julgar o pedido formulado pela A parcialmente procedente, não se verificando, pois, as apontadas nulidades.
*
Saber se a A tem ou não direito de preferência, se este caducou ou está a ser exercido abusivamente será ainda objecto de apreciação com o recurso da matéria de direito interposto pelas RR.

Recurso da Ré

Excesso de pronúncia

O acórdão proferido em 28.06.2010, anulou oficiosamente a decisão proferida sobre os artigos 16º, cuja redação corrigiu, e 17º (conexionado com o anterior) e ordenou a ampliação da base instrutória, com inclusão dos factos alegados nos arts. 7º a 18º, 20, 21º e 26º da petição, nos art.s. 40º e 54º da contestação da 3ª Ré e art.s 30º, 32º e 44º da réplica.
As RR nas suas conclusões 2ª a 7ª sustentam que este acórdão impedia que o tribunal recorrido conhecesse de outras questões para além da caducidade do direito da A e exercício abusivo do direito de preferência.
Apesar do referido acórdão ter usado a fórmula “a repetição do julgamento não abrange a parte decisão não viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar os outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão” da sua fundamentação resulta de forma inquestionável que nenhuma das questões suscitadas pela Apelante foi objecto de apreciação e decisão.
Com a interposição do recurso e a anulação parcial da audiência de julgamento, foi implícita mas necessariamente anulada também a sentença, na parte objecto de recurso, designadamente sobre o âmbito do contrato de arrendamento e se a A tinha ou não direito de preferência
É, pois, indiscutível que a primeira sentença apenas transitou em julgado, na parte não recorrida pela A e pelas RR, ou seja, na parte que declarou a A arrendatária do prédio urbano - (cf. art.684º n.º 4 do CPC).
Consequentemente todas as questões suscitadas pela A nesse recurso e outras que podiam ser objecto de conhecimento oficioso e as excepções suscitadas pelas RR, tinham de ser objecto de conhecimento pela nova sentença a proferir, depois de decidida a matéria de facto constante dos artigos 16º e 17º e dos novos artigos aditados podendo ser alterada outra factualidade apenas para evitar contradições.
Não se verifica, pois, a arguida nulidade de excesso de pronúncia, nem a sentença recorrida violou os artigos 666º n.º1 e 712º n.º4 do CPC, como infundadamente sustentam as RR/Apelantes.
*
Deficiente gravação da prova

As Apelantes /RR impugnam as respostas aos artigos 16º, 18ºe 33º e invoca três depoimentos, sendo que efectivamente, em dois deles, são imperceptíveis as perguntas que lhes foram colocadas, segundo se percebe pela Sr.ª Juíza.

Não está em causa que a existência de deficiências na gravação de depoimentos oralmente produzidos, desde que interfira na reapreciação da decisão da matéria de facto, é uma nulidade, nos termos do art. 201º n.º 1 do CPC.
No entanto, não é uma nulidade principal de conhecimento oficioso e, por isso, tem de ser arguida, no prazo de 10 dias (art. 205º n.º 1 do CPC) e no tribunal onde foi cometida.

Como é sabido, das nulidades reclama-se, das decisões recorre-se. Por isso, as Apelantes deviam ter reclamado no tribunal recorrido da referida irregularidade e depois da decisão sobre ela proferida, se lhes fosse desfavorável, recorriam.
Quanto ao prazo de 10 dias, a questão que se coloca é quando este se inicia e nesta matéria estabelece o citado artigo 205º n.º 1 do CPC que “se conta do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.”
A corrente que pensamos ser maioritária da jurisprudência defende que esse prazo se conta da data em que a cópia da gravação foi entregue à parte, já que essa entrega se destina precisamente a que a mesma possa verificar o seu conteúdo a fim de preparar as alegações de recurso (cf. Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil. Novo Regime, pág. 145 e acórdãos nele citados).
No entanto, aceitando que esse entendimento é, em regra, o aplicável, está excluído pelo citado art. 205º quando dos autos resulte que se a parte tivesse agido com o mínimo de diligência, podia ter detetado essas deficiências muito antes desse prazo de 10 dias a contar da data que lhe foi entregue cópia da gravação.
Ora, no presente processo, em que se aplica o regime de recursos anterior ao DL n.º303/2007, a decisão da matéria de facto foi proferida em 24.10.2011 (cf. fls. 1223 e 1224) e dela resulta que os artigos 16º,18ºe 33º, ora impugnados pelas RR, obtiveram respostas negativas, estes tiveram plena consciência que, em principio, tinham de recorrer da decisão da matéria de facto.
Em 15.11.2011 foi proferida a sentença recorrida e as RR dela interpuseram recurso em 28.11.2011, referindo expressamente no requerimento de interposição a fls.1280 que não se conformam “seja quanto à apreciação da matéria de facto, seja quanto à solução de direito perfilhada …”
Os recursos das RR e A foram admitidos por despacho datado de 07.03.2012.
Apesar disso, como consta da cota de fls. 1301 apenas em 26.04.2012, o Sr. Advogado das RR solicitou cópia da gravação dos depoimentos, tendo apresentado as alegações em 02.05.2012.
É, pois, evidente que as RR caso tivessem agido com a diligência exigível a qualquer parte que pretende interpor recurso da decisão da matéria de facto, tinham requerido a cópia da gravação, na interpretação menos exigente, quando interpuseram o recurso, ou seja, em 28.11.2011.
Note-se que o que era normal era que o despacho a admitir os recursos fosse proferido nos dias imediatos, até por ser manifesta a sua admissibilidade.
Por isso, é de concluir que quando vieram nas alegações de recurso arguir a irregularidade da deficiente gravação, mais de cinco meses depois de terem interposto recurso e 40 dias depois de terem sido notificadas da admissão do recurso, já há muito tinha decorrido o prazo de 10 dias para terem conhecimento das deficiências da gravação, se tivessem agido com a devida diligência.

Assim, mesmo que se admita que essa irregularidade pode ser arguida no recurso, no caso, estava sanada por ter já decorrido o prazo fixado no art. 205º n.º1 do CPC.
*
Recurso das respostas aos artigos 16º, 18º e 33º

Nestes artigos pergunta-se:
16ª
A ré E… transmitiu à A seis meses antes (da data da entrada em juízo da p.i.) todas as condições respeitantes ás compras e vendas referidas em A) e B)?
18º
A A teve conhecimento, há mais de seis meses, reportados à data da propositura da ação, das vendas a que se referem os pontos A) e B) dos factos assentes?
33º
As duas vendas feitas no referido imóvel foram comunicadas à A?
O tribunal recorrido respondeu negativamente aos três e as Apelantes pugnam por respostas afirmativas.

Invocam os depoimentos das testemunhas Z…, K… e J…, em particular deste último.

Apesar da gravação apresentar deficiências, não se compreendendo as perguntadas formuladas às duas primeiras, pelas respostas constata-se que nada sabiam de concreto sobre a eventual comunicação à A por parte da Ré E… das condições das compras.

Do depoimento de Z… que é sobrinho da Ré E… apenas resulta que os familiares desta Ré, sendo os irmãos, os sócios da C…, Lda, sabiam da venda, o que é natural, dando a entender que a referida venda da sociedade para a Ré E… seria uma forma dos irmãos a compensarem por ela ter cuidado da mãe, mas sobre a comunicação desta venda e da seguinte à A nada disse.
K…, que trabalhou para a C…, Lda. durante 26 anos, sobre a factualidade em causa em concreto nada sabe. Referindo vagamente que ouviu falar na empresa da venda do prédio à D. E…, mas não soube precisar se esse conhecimento era generalizado a todos os funcionários.
De resto o que as Apelantes salientam do seu depoimento é ter referido que o processo de falência da C…, Lda conhecida por “L…” era do conhecimento comum.

Quanto ao depoimento de J… as deficiências da gravação já não se verificam e as Apelantes realçam o seguinte:
«A instâncias da Mm.ª Juiz a quo, conta esta testemunha que se deslocou a casa da Recorrida, aquando da venda do imóvel à Recorrente F…, logo, em 1994, nos seguintes termos:
“- Eu estive lá com a D. E… e o filho, o Sr. AF…. Eu vim cá a Amarante por causa de tratar de obter, portanto, o registo predial… as finanças, portanto, aqueles documentos que são necessários. E fomos lá ao local, para eu ver o imóvel e fazer a minha avaliação.”
“-E o senhor falou com alguém, nessa altura?”
“-Eu falei pouco. Quem falou mais foi a D. E….”
“-E falou com quem?”
“-Com a D. B1….”
“-O senhor ouviu a conversa? Sabe o quê que foi dito?”
“-Ouvi uma parte dela, uma grande parte dela.”
“-E qual foi o teor dessa conversa?”
“-Ora bem, basicamente, a D. E… disse que… portanto… que ia vender aquele imóvel… portanto à empresa… portanto à F… … à nossa empresa. Que estava com algumas dificuldade económicas e que ia ter que vender… portanto foi basicamente isso… (…) eu reparei que as pessoas eram conhecidas. Entendiam-se.”
“-E a D. B1… disse: “olhe eu nem sabia que isto era seu, nem que deixava de ser… É seu, não é seu..?”
“-A D. E… esteve lá… esteve a mostrar, portanto, os terrenos e a casa, e disse, portanto, que ia vender aquilo, portanto, a uma empresa. Houve aquela troca de palavras… “E depois como é que vai ser?” E ela disse-lhe que havia um acordo particular, e que ficavam lá na mesma e que o acordo mantinha-se, pelo menos, enquanto o marido fosse vivo.”

E sobre a parte final deste depoimento, salienta ainda:
“-…Quando é que foi a primeira vez que o senhor foi a casa da D. B1…?
(...)”
“-Foi antes da compra, que a compra julgo que foi em Outubro ou Novembro, e nós fomos lá cerca de dois meses antes (…)”
“ – Foi seguramente antes de Outubro de 94 que o senhor lá foi?”
“ – Foi antes de termos feito a escritura.”
“-Com a D. E…?”
“-Sim.”
“-Diga-me uma coisa, nesse dia, ficou bem esclarecido, perante a D. B1… e o marido, que aquele imóvel que eles ocupavam era da D. E…?”
“-Ficou esclarecido com a D. B1….”
“-Foi dito à D. B1…? Claramente?”
“-A D. E… apresentou-se como a dona do imóvel e pela conversa parece que isso era facto assente… e a conversa foi no sentido de que “eu vou vender” (…) e no entanto a questão era em que situação é que ficaria depois. E ela disse que o acordo que tinham, que se mantinha.”
“-Portanto, a D. B1… estava preocupada era com a questão de… se tinha, ou não, de devolver a casa?”
“-Exactamente.”
“-Alguma vez a D. B1… disse, nesse próprio dia, “Alto, que isto não é bem assim! Que esta casa é da empresa, não é da senhora!”?
“-Não. Pelo menos enquanto eu estive lá presente, não.”
(…)
“-Depois da escritura esteve com a senhora? Esteve com a D. B1…?”
“-Falei com ela, sim.”
“-E disse à D. B1…: “Atenção que a sua casa já é da F…. Já fizemos a escritura.”?”
“-Não… eu só confirmei de que o negócio estava feito, que tinha sido feita escritura e que era nosso. E, portanto, a preocupação era sempre… em que moldes fica e eu disse que tinha sido feito um acordo e que nós assumíamos o compromisso e vai-se manter. Enquanto o seu marido for vivo, a casa…”
“-Depois de ter feito a escritura, o senhor esteve com a D. B1…, e ela ficou com alguma dúvida sobre se o imóvel era ou não era da F…?”
“-Não. Para mim, não.”
***
Importa recordar que a escritura de compra e venda celebrada entre a Ré E… e a Ré F… ocorreu em 14 de Outubro de 1994 (cf. al.B) dos factos assentes).
A dar-se credibilidade ao depoimento da testemunha J…, o que se podia dar como provado com base nele, era que a Ré E… tinha dado conhecimento à A, antes de Outubro de 1994 que ia vender o prédio à 3ª Ré F… e ainda que depois desta realizada em finais de 1994 foi comunicado à A que essa venda se realizara.
Contudo é indiscutível que quanto às condições dessa venda, concretamente o preço porque se ia realizar e o pelo preço pela qual se concretizou a primeira venda, nada de concreto foi referido, a testemunha não soube precisar sequer se ouviu falar de preços.
Para além disso, mesmo relativamente à conversa ter ocorrido nos termos relatados pela testemunha se suscitam sérias dúvidas, atento o comportamento assumido pela A ao longo dos anos, em parte, comprovado documentalmente, como é explicado, na motivação da decisão da matéria de facto.
Assim dela consta, tendo em conta apenas o que está conexionado com as respostas impugnadas:
«“A convicção do tribunal no que interessa às respostas que antecedem fundou-se:
No teor dos documentos juntos a fls. 28, 30 e 31 e documento junto por cópia em sede de audiência, nos termos que da respectiva acta melhor resultam, integrando uma missiva da H…, SA, no que importa às respostas que mereceram os artigos 19º a 21º da base instrutória, corroborada aquela prova documental pelo depoimento do administrador daquela sociedade, Dr. AG…, o qual, desde logo, confirmou o teor daquelas comunicações escritas…
De todo o modo, deste depoimento resultou bem assim um contacto pessoal que credibiliza a versão da Autora de que desconhecia a venda pela C… à 2ª Ré (e bem assim a desta à 3ª), sendo que os dados objectivos emergentes dos recibos de renda emitidos pela C… já após a venda, juntos aos autos e até Agosto de 1991, conforme resposta dada ao artigo 36º (de resto já resultando da que havia merecido o artigo 5º da base instrutória originária), com aquela melhor se conjugam também. De igual modo o comportamento pela Autora, conforme resulta dos documentos comprovativos do depósito das rendas, após Agosto de 2001 (à ordem da massa falida), em Agosto e Setembro de 2003, conforme fls. 381 e 382 (à ordem da H.., SA, na sequência da comunicação junta a fls. 28, já aludida) e já em Outubro de 2003 (à ordem da 3ª Ré, F…, como o atesta o documento também junto em sede de audiência de julgamento). Estes elementos documentais “abonam” (do ponto de vista meramente indiciário, obviamente) aquele desconhecimento, sendo que prova alguma em sentido contrário, não obstante a insuficiência da prova produzida pela Autora, também, para concluir conforme se perguntava sob os artigos 22º a 27º, 29º a 32º e 37º.
(…)

Não obstante, o depoimento das testemunhas AH… e AI…, que trabalharam na C…, como de resto, nessa parte de forma surpreendentemente coincidente, o das testemunhas arroladas pelas RR, Z…, familiar dos sócios-gerentes da C… e que naquela empresa foi trabalhador, W…, que naquela empresa foi, durante largos anos, responsável pelo contencioso e relações públicas e AJ…, empregado de escritório naquela mesma firma, serviu para descaracterizar o conhecimento generalizado da venda pela 1ª à 2ª Ré no contexto dos funcionários da 1ª Ré (entre os quais se incluía o então marido da Autora), assim tornando mais credível o alegado desconhecimento da venda pela Autora.
(…)

Prova absolutamente nenhuma da matéria sob o artigo 16º.
Os depoimentos pelos funcionários da 3ª Ré, AK… e AL… foram imprestáveis a demonstrar, finalmente, a matéria sob os artigos 18º e 33º. Nem tanto por questões que se prendem com a sua isenção ou imparcialidade, atenta a relação laboral com a 3ª Ré. Decisivamente em função dos factos mesmos atestados, quer pela contradição dos depoimentos entre si, quer pelos termos da informação alegadamente transmitida à Autora quanto à aquisição do imóvel pela 3ª Ré, conforme o atestado, em termos que sempre não permitiriam à Autora conhecer a venda à 2ª Ré.»

Ora, as Apelantes não adiantam argumentos minimamente válidos que ponham em causa a consistência desta motivação, que é lógica, racional e perfeitamente esclarecedora, conjugando outros depoimentos e os documentos que refere, sendo manifesto que não era com base no depoimento do J…, dado que os outros indicados de Z… e K… nada sabem sobre os factos em causa, que a Relação podia formar nova convição e dar resposta afirmativa aos quesitos impugnados, sendo certo que o que consta dos artigos 16º e 18º pressupunha que tivesse sido produzida prova consistente que tinham sido comunicadas à A as condições de venda das duas escrituras e quanto à 1ª, referida na al. A), outorgada em 03.06.1981, nem da alegada conversa cujos contornos a testemunha não soube sequer precisar ocorrida entre a Ré E… e a A. se podia tirar alguma ilação.

Não há pois qualquer fundamento para se julgar ter havido erro de julgamento nas respostas negativas aos artigos 16º, 18º e 33º.

Improcedem, pois, os recursos da matéria de facto de ambas as partes, bem com as arguidas nulidades.
***
Recurso da matéria de direito

- Saber se a A é ou não titular do direito de preferência e o seu objecto;
Na hipótese afirmativa:
- Se esse direito caducou;
- Se a A está a agir em abuso de direito.
*
A questão da titularidade do direito de preferência.

Dado que o contrato de compra e venda relativamente ao qual a A pretende exercer o direito de preferência foi celebrado em 03.06.1981, o seu conteúdo é regulado pela lei em vigor na data em que referido contrato foi outorgado.
Na altura estava em vigor, a Lei 63/77, de 25 de Agosto, que no art.1º n.º 1 estipulava: “O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo”, acrescentando o artigo 3º do referido diploma que “Ao direito de preferência previsto nesta lei é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, do Código Civil”.

Nos termos do disposto no artº 416º do Código Civil, querendo vender a coisa sujeita à preferência, o respectivo obrigado deve comunicar ao preferente o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato (nº 1).
Como refere a sentença recorrida, essa comunicação implica que ao preferente lhe sejam dados a conhecer os elementos essenciais do contrato de compra e venda cuja celebração se perspectivava, ou seja, a identificação do objecto e respectivo preço (cf. art. 874º e 879º do C.C.). Constituem-se elementos essenciais todos aqueles factores capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir ou não.
Por outro lado, do art.º 1410º do Código Civil decorre que o preferente a quem não se dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito a haver para si a coisa alienada, conquanto o requeira dentro do prazo de 6 meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção (nº 1 do art.º 1410º).

Sobre o objecto e a natureza do direito de preferência, importa aproveitar os ensinamentos do acórdão do STJ de 09.10.2003, referido na sentença recorrida, proferido no processo identificado no sítio do ITIJ com o n.º 98B057, relatado pelo Cons. Salvador da Costa, onde se escreve:
Quanto ao objecto do referido direito de preferência legal, a maioria dos autores, sobretudo com base no disposto no artigo 1410º, nº. 1, do Código Civil, têm entendido que ele se consubstancia no prédio ou na fracção predial arrendados e alguns que ele incide imediatamente sobre o contrato de compra e venda e só mediatamente sobre a coisa vendida.
Quanto à sua natureza, é qualificado por uns como direito real de aquisição, por outros como direito meramente inerente, por alguns como direito potestativo constitutivo e real de aquisição e, por outros, de direito potestativo de por via judicial se sub-rogar ao adquirente da coisa no contrato por este celebrado com o obrigado à preferência (…)
Relativamente ao momento de aferição dos pressupostos do direito de preferência, tem sido entendido situar-se na altura do respectivo contrato de compra e venda, ou que também devem ocorrer aquando da decisão judicial definitiva de reconhecimento da preferência.
Paralelamente, tem sido entendido pela doutrina pela jurisprudência que a sentença que reconheça o direito de preferência tem efeitos ex tunc reportados ao momento da celebração do contrato de compra e venda a terceiro do prédio ou da fracção predial objecto mediato do contrato de arrendamento.”
(…)
A referida posição assenta em que o princípio de que o direito de preferência surge no momento da celebração do contrato de compra e venda da coisa locada apenas significa que os actos de modificação ou distrate da alienação, a que se reporta o nº. 2 do artigo 1410º do Código Civil, irrelevam em termos de afectação do direito do preferente, e que, enquanto não transitar em julgado a sentença que ao arrendatário reconheça o direito de preferência este lhe não está assegurado (José Gualberto de Sá Carneiro "Revista dos Tribunais", Ano 92º, 1974, pág. 378).
A igual resultado conduz a doutrina no sentido de que o êxito da acção de preferência depende de o preferente assumir a qualidade jurídica de arrendatário não só no momento da celebração do contrato de compra e venda como também no momento da sentença definitiva que lhe reconheça o direito de preferência na respectiva aquisição, sob a argumentação de que perdida a referida qualidade perdido fica o direito de preferência, reforçada, no que concerne ao locatário habitacional, por o direito de preferência só fazer sentido quando o locatário habite efectivamente no prédio ou na fracção predial respectiva, por a lei lho atribuir com vista a facilitar-lhe o acesso à propriedade do local onde mora permanentemente, e não proporcionar-lhe lucrativas operações imobiliárias (…)

No caso, o que está em causa não é o que acontece na situação analisada no citado acórdão, ou seja, o arrendatário que pretende exercer o direito de preferência ter deixado de o ser em momento posterior, por procedência de ação de despejo, mas antes não ser, numa primeira análise, a A titular do contrato de arrendamento à data do contrato de compra e venda (3.06.1981).

A controvérsia numa primeira linha reside, pois, na circunstância do contrato de arrendamento ter sido celebrado pela sociedade vendedora em data indeterminada do ano de 1973, com o ex-marido da A e a posição de arrendatária ter-lhe sido transmitida por sentença proferida em processo de divórcio em 24.03.1994.

O artigo 1110º n. 1º do Código Civil, na redação em vigor, em 03.06.1981, que é a aplicável (mas que se manteve na vigência do RAU, art. 83, 1ª parte), estabelece inequivocamente a regra da incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação seja qual for o regime matrimonial.
No entanto, o n.º 2 do citado art.1110º permitia que havendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, tal posição podia transferir-se para o cônjuge não originariamente arrendatário.
A primeira sentença proferida anulada pelo acórdão de 28.06. 2010, decidiu que não resultava do n.º 2 do artigo 1110º, do Código, nem do equivalente art. 84º do RAU, em vigor à data do decretamento do divórcio entre a A e G…, que os efeitos decorrentes de tal transmissão se retroagiam a qualquer momento anterior, consignando-se tão só que a transferência deve ser notificada oficiosamente ao senhorio.
Afastou também a retroactividade prevista no nº 1, do artigo 1789º, do Código Civil, que se limita à data da propositura da ação de divórcio e que para o caso era irrelevante.
Este entendimento, retirado duma diferente situação de facto, é preconizado pelo acórdão da RL de 12.02.2008, relatado pela Des. Ana Resende, no processo n.º 9903/2007.7, no sítio do ITIJ, com o seguinte sumário: “Celebrado o contrato de arrendamento na constância do casamento, o cônjuge ali indicado como inquilino é o titular do direito de preferência, devendo-lhe ser efectuada a comunicação nos termos e para os efeitos do art.º 416, do CC.
II – Em caso de divórcio, a transferência do arrendamento para o ex-cônjuge opera-se pelo trânsito em julgado da decisão do tribunal que assim o determina, nos termos do art.º 84 do RAU, não retroagindo os efeitos de tal transmissão a qualquer momento anterior.
Assim e considerando que a A/preferente não tinha a posição jurídica de arrendatário, na data em que se consumou o acto de alienação lesivo da preferência, sendo este um pressuposto principal do direito invocado e que lhe competia provar, julgou a ação improcedente quanto à sua pretensão de exercer a preferência.

Como atrás se referiu o acórdão de 28.06.2010, não tomou posição expressa sobre esta questão, admitindo que não estava excluída a possibilidade de se ter transmitido sem qualquer limitação o direito ao arrendamento, para a A, por efeito da sentença homologatória proferida no processo de divórcio, por isso, entendeu necessário anular parcialmente a decisão da matéria de facto e ordenar a sua ampliação.

As RR nas suas conclusões 15º-A a 25º realçam e reforçam a argumentação acolhida nessa primeira sentença e defendem que o facto da A “não ser arrendatária do imóvel na data da venda a que se reporta, impede a génese de qualquer direito de preferência.”

A sentença recorrida afastou esta interpretação aplicando à transmissão do direito ao arrendamento operada em sede de divórcio o regime da cessão da posição contratual.
Com a seguinte fundamentação: “É que se nos afigura que, tecnicamente, a mesma se reconduz a uma verdadeira cessão da posição contratual (com a característica – excepcional – da desnecessidade de consentimento ou autorização da contraparte).
A cessão da posição contratual prevista nos Art.ºs 424 e seg. do Código Civil traduz-se no negócio jurídico por via do qual um dos contratantes de um contrato bilateral ou sinalagmático, transmite a terceiro, (normalmente) com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato.
Há, portanto, a distinguir sempre dois contratos que a doutrina denomina de contrato-base e contrato-instrumento, sendo o primeiro o negócio gerador dos efeitos cuja transmissão se pretende e o segundo o negócio por via do qual esses efeitos são transmitidos ao terceiro.
Assim, denomina-se cedente o contratante que transmite a posição adquirida no contrato-base, cessionário, o contratante que adquire a posição contratual transmitida, isto é, aquele que fica investido no complexo de direitos e obrigações que eram do cedente, e cedido, o contratante que, sendo a contra-parte do cedente no contrato-base, continua a ser a contra-parte do cessionário.
Notar-se-á ainda que com o complexo de direitos e obrigações transmitido se transmitem também, todos os deveres e direitos laterais, secundários ou acessórios.
Significa tudo o que acaba de dizer-se que na cessão da posição contratual, tal como a figura é desenhada na lei, o que se verifica é uma modificação subjectiva operada num dos pólos da relação contratual básica que não prejudica a identidade da relação.
Na verdade “a relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário: successio non producit novum ius sed vetus transfer” (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ª ed., p. 371 e seg.).
Por isso que não há qualquer eficácia retroactiva a atender… A relação de arrendamento permanece a mesma e apenas se modifica o titular. E, assim, à data da venda quanto à qual vem exercido o direito de preferência, cabe concluir que existia a relação de arrendamento, que, na ocasião da propositura desta acção se mantinha, tendo como titular a Autora…
Não se nos afigura, pois, atenta a natureza do direito de preferência, as razões subjacentes à consagração do direito legal de preferência em favor do arrendatário habitacional e bem assim a natureza e estrutura da transmissão do direito ao arrendamento em processo de divórcio, nos termos que vêem de desenhar-se sumariamente, que deva recusar-se à Autora o exercício do direito de preferência…
Assim é que à data da venda com relação à qual a Autora se apresenta a preferir o cedente detinha a qualidade de arrendatário habitacional, a qual se mantém na Autora, como cessionária daquele direito por via do acordo em sede de processo de divórcio… Não tendo havido, (o que não foi sequer alegado), comunicação para exercício do direito de preferência com relação ao arrendatário na ocasião da venda (o ex marido da Autora), nem também nada se aduzindo quanto à renúncia por ele de um tal direito, julga-se legítimo o exercício do direito de preferência pela titular do arrendamento na ocasião em que vem a conhecer os elementos essenciais da venda quanto à qual se apresenta a preferir”.

Como escreve Januário Gomes, em Constituição da Relação de Arrendamento Urbano” pág. 31, “do artigo 1110º, não resulta rigorosamente a eventualidade duma relação contratual imposta, na medida em que a relação de arrendamento é a mesma. O sujeito é que muda; na linguagem da lei há uma transferência do direito ao arrendamento para o ex-cônjuge, devendo essa transferência ser notificada oficiosamente ao senhorio (n.º4). Se há uma imposição, é uma imposição de sujeito, o que não deixa por seu lado de projectar-se na relação. Estamos situados face a uma cessão da posição contratual singular ou duplamente forçada.
No caso singularmente forçada dado que a transferência se deu por acordo entre os cônjuges, a posição contratual transmitiu-se independentemente do consentimento do senhorio, afastando nessa medida o disposto no art. 424º n.º 1, 2ª parte do CC.

É indiscutível que em caso de cessão da posição contratual, o cessionário substitui-se ao cedente, subingressando no complexo dos direitos e obrigações advenientes do contrato-base (cf. Mota Pinto, em Cessão da Posição Contratual, pág. 71 e ss.)
O cessionário sucede, enfim, inter vivos, na posição contratual do cedente, que lha transmite ou para ele a transfere, e fica investido nessa posição contratual, com todas as virtualidades nela contidas aquando da cessão, como é o caso da preferência em venda (ou dação em pagamento).
"O contrato de cessão da posição contratual tem como principal efeito a substituição do cedente pelo cessionário como a contraparte do cedido na relação contratual básica, tal como esta existia à data da cessão" (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil, Anotado, I, 3ª ed., pág. 377)
Assim e passando a A a ocupar a posição do ex-marido no contrato de arrendamento (contrato-base), é irrelevante a data da sentença homologatória do divórcio, o que releva é que o contrato de compra e venda ocorreu na vigência do arrendamento e que a A tinha essa qualidade quando se apresenta a exercer o direito.
Não há pois fundamento para não considerar que a A era titular de preferência.

Caducidade do direito de preferência

Como é entendimento pacifico compete às RR provar os factos impeditivos ou extintivos do direito de preferência nos termos do art. 342º, nº 2, Código Civil, designadamente a realização da comunicação para preferir e o não exercício tempestivo da respectiva pretensão de preferência, o deverão ser pelos Réus.

Assim e atendendo à improcedência do recurso por elas interposto quanto às respostas negativas aos artigos 16º, 18º e 33º a excepção da caducidade tem necessariamente que improceder.

Objecto do direito de preferência

A sentença recorrida decidiu que atenta a factualidade provada constante do nº 9) dos factos assentes, apenas com referência ao prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, se provou o arrendamento que é atributivo, nos termos expostos do direito de preferência, à A. não assiste o direito a preferir na venda de nove décimos do prédio rústico denominado “…”, composto de …, e de quatro leiras de terra lavradia, denominadas …, terra lavradia com árvores de vinho e oliveiras, atravessada pela estrada, inscrito na matriz sob o art. 2501.

Ora, como se decidiu, foi julgada improcedente a pretendida alteração à resposta ao art. 1º da base instrutória e, por isso, a sua pretensão do direito de preferência incluir também os nove décimos do prédio rústico está irremediavelmente condenado à improcedência, sendo pacifico que apenas tem direito de preferência sobre o local arrendado.
De referir ainda que a argumentação da A/Apelante omite que os dois prédios apenas surgem inscritos no mesmo artigo matricial e curiosamente rústico, na segunda escritura de venda da 2ª a 3ª R, outorgada em 10 de Outubro de 2004, mas não é relativamente a esse contrato que pretende exercer o direito de preferência.
Também é irrelevante a referência ao art.47º do RAU que não é aplicável, por não estar ainda em vigor, quando foi celebrado o contrato de compra e venda, de 03.06.1981, em que a A, pretende ocupar a posição da compradora, mas dele também apenas resulta que o direito de preferência apenas incide sobre o prédio arrendado e não sobre qualquer outro parte do imóvel onde ele se situe e muito menos a outro contíguo.
Saliente-se que o citado art. 1º n.º1 da Lei n.º 63/77 apenas confere o direito de preferência ao locatário habitacional de prédio urbano e, desde logo, está por demonstrar que o terreno em causa com a área de 2 500 m 2 integrasse o prédio urbano, sendo certo que tinha um diferente artigo matricial e da escritura de 10.10.2004 como se referiu surge como artigo rústico o que indicia que o terreno tem valor superior à casa.
Carece, pois, de qualquer fundamento a pretensão da A de ter direito de preferência sobre o prédio rústico, em rigor nove décimos dele.
*
Saber se a A está a agir em abuso de direito

Segundo o art. 334º do Código Civil há abuso de direito quando o titular deste exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, pág. 564, refere que “para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.”
Vaz Serra, autor do anteprojecto do articulado sobre abuso de direito no actual Código Civil, citado por Coutinho de Abreu, “ Do Abuso de Direito”, pág. 20, entendia que “ há abuso do direito quando o direito legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.”
Manuel de Andrade, citado por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.I, pág. 565, refere que para haver abuso de direito é necessário que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
De salientar ainda, como refere Antunes Varela, obra e local citados, que a concepção adoptada pelo art. 334º é objectiva, não sendo necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pelo citado artigo. (cf. no mesmo sentido acórdãos do STJ de 24.09.09 e de 29.11.05 proferidos nos processos n.º 09B0659 e 05B3179, do sítio do ITIJ).
Está-se perante abuso de direito, quando o modo concreto do seu exercício objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário, à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito em causa.
Como é sabido, o abuso de direito abrange várias modalidades. Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil” pag. 711 e segs. e mais sinteticamente no Tratado de Direito Civil, Parte Geral, tomo I, p. 198 e segs, faz o elenco das situações que integram o instituto, a saber: a «exceptio doli»; o «venire contra factum proprium»; a inalegabilidade de nulidades formais; a «suppressio»; o «tu quoque» contratual e o desequilíbrio no exercício jurídico.
No caso, a circunstancia do direito de preferência ter sido exercido mais de 22 anos depois do contrato de compra e venda do prédio arrendado, sendo certo que a escritura foi outorgada em 03.06.1981 e ação foi intentada em 13.02. 2004, numa primeira apreciação seria passível de integrar a «suppressio» que é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé (cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil” pág. 798)
A «suppressio» é reconduzida pela doutrina a uma sub-hipótese do «venire contra factum proprium», no fundo só se distingue do «venire» por o factum proprium ser uma simples inactividade ou abstenção (cf. Menezes Cordeiro Tratado de Direito Civil, Parte Geral, tomo I, p. 208 ).Efectivamente tal como no “venire” a “suppressio” pode ser reconduzida à tutela da confiança e da boa fé.
As Apelantes invocam a favor da sua posição o acórdão do STJ de 04.02. 2010 proferido no processo n.º 3370/05.0TBVPZ.P1.S1 (no sitio do ITIJ) que decidiu:
Tal demora anormal não pode deixar de suscitar logo fundada perplexidade ao intérprete, não sendo fácil compreender como se pode legitimamente transmutar um prazo curto - de 6 meses – para o exercício do direito num prazo que subsistiria incólume ao longo dos anos e das décadas, excedendo mesmo em muito os limites que a lei institui para a irremediável consolidação das situações jurídicas, quer em sede de prescrição extintiva, quer no campo da usucapião…
É certo que o prazo para o exercício em juízo do direito real de aquisição em que se consubstancia a posição do preferente se conta da ocorrência de um facto subjectivo: o conhecimento pelo preferente dos elementos essenciais do acto de alienação; tal não significa, porém, que seja possível diferir ilimitadamente no tempo o exercício de tal direito, de modo a considerá-lo possível após se consumarem anos ou décadas sobre a verificação do referido facto objectivo, pondo-se obviamente em causa – não apenas os direitos e expectativas do obrigado à preferência – mas direitos de terceiros, totalmente estranhos a tal obrigação (e a quem se não pode naturalmente imputar a respectiva violação) e, em última análise, a própria segurança e confiança do tráfico jurídico.
Na verdade, a tese subjacente às decisões das instâncias, segundo a qual, uma vez adquirido o direito de preferência, o mesmo subsistirá indefinidamente, até ao momento em que sejam subjectivamente conhecidos pelo titular do direito real de aquisição os elementos essenciais do negócio de alienação, acaba por criar sobre o imóvel alienado um verdadeiro ónus real, oculto (na medida em que obviamente não figura no registo) e tendencialmente perpétuo, já que – à imagem do caso dos autos – poderia ser exercitado com uma dilação de décadas – com o mero argumento de que só nesse momento o seu titular teria finalmente apreendido os elementos essenciais do negócio de alienação, violador da preferência.
Como é notório, tal solução normativa revelar-se-ia dificilmente compatível com os princípios da confiança e da segurança jurídica no campo da alienação de bens imobiliários, – que constitui emanação do próprio princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, proclamado pelo art. 2º da Lei Fundamental – ao possibilitar que quem os adquiriu – e registou em seu nome – desconhecendo, porventura, sem culpa que o transmitente violou um direito de preferência – ficaria indefinidamente sujeito a ver a eficácia da aquisição destruída, ao longo de períodos temporais longuíssimos – podendo, em muitos casos, o exercício tardio do direito de preferência, afectar os múltiplos e sucessivos actos de transmissão, eventualmente verificados ao longo dos anos (veja-se, por ex., a tutela conferida pelo art.291º do CC aos subadquirentes de boa fé, perante os efeitos tendencialmente retroactivos da nulidade ou anulação do negócio jurídico).
(…)
As cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé revelam-se o instrumento adequado para, operando um correcto balanceamento ou ponderação dos interesses contrapostos, alcançar a justa composição do litígio.
Na verdade, consumada a alienação do imóvel com violação do direito do preferente – e passando a estar co-envolvidos no litígio, como se viu, não apenas os interessados originários, mas também direitos e expectativas de terceiros e, em última análise, a própria segurança do comércio jurídico, deixa de ser lícito ao preferente aguardar passivamente que lhe seja trazido o conteúdo e as cláusulas da venda realizada, incidindo sobre ele um ónus de acompanhamento e indagação acerca da situação do bem que é objecto mediato do seu direito real de aquisição, devendo valorar adequadamente os indícios que possam revelar a celebração de um acto de venda, de modo a desencadear, sem dilações desproporcionadas, o exercício do seu direito, se nisso tiver interesse. Se o não fizer, ao longo de períodos temporais desproporcionadamente amplos, é evidente que estará a contribuir para consolidar nos restantes interessados a expectativa de que não irá actuar o direito potestativo de que originariamente era titular, rompendo injustificadamente tais expectativas um exercício anormalmente tardio do direito – traduzindo um injustificado «venire contra factum proprium» e uma inadmissível lesão do princípio da confiança.”

No caso, a aplicação deste entendimento, apresenta algumas dificuldades, pois o facto invocado na conclusão 43º, ter a sociedade primitiva arrendatária encerrado as suas instalações fabris em 1991, tendo o ex-marido da A passado a pagar a renda por deposito bancário, mesmo atendendo ainda que o ex-marido da A era trabalhador da locadora, não é em principio suficiente para se censurar a passividade do arrendatário.
Aceitando que a A sabia da situação de falência da primitiva senhoria, denominada “L…”, como facto conhecido da generalidade das pessoas do concelho de Amarante, como se referiu a prova produzida indica que estava convencida que o imóvel ainda era propriedade da sociedade e, por isso, não se impunha à A que andasse a indagar quando ia ser vendido o prédio, até porque, legalmente o administrador da massa falida devia ter apurado quem eram os arrendatários dos prédios apreendidos propriedade da sociedade falida e posteriormente tinha o dever de informar disso o processo, para os mesmos serem notificados antes da realização da venda judicial.
Assim, a simples constatação que a acção de preferência foi intentada mais de 22 anos depois do acto de alienação que violou o direito, não é suficiente para fundamentar uma decisão na base do abuso do direito (modalidade de suppressio).

Contudo o que pode se constatar é estar-se perante uma manifesta situação de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
Como refere Menezes Cordeiro, em Tratado, Parte Geral, I, tomo I, páginas 211 e 212, a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifico imposto pelo exercício a outrem, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé.
A seguir acrescenta: “Trata-se de uma fórmula antiga e intuitiva de abuso de direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício.”
Ora, no caso a A pretende exercer o direito de preferência visando adquirir um prédio urbano e ainda nove décimos de um prédio rústico pelo preço declarado em 03.06.1981, de 300.000$00,ou seja, € 1.496,94, que, vieram cerca de 13 anos, em 10.10. 94, a ser vendidos pelo preço declarado 20.000.000$00 (cf. escritura junta a fls. 54 a 56 dos autos pela A), ou seja, € 99.759,58.
Note-se que apesar da A ter alegado que esse preço era superior ao real, não adiantou qualquer valor e essa alegação é manifestamente contrária às mais elementares regras da experiencia sendo certo que se trata da venda de uma moradia e ainda um terreno com a área de 2500 m 2.
Mesmo estando o direito de preferência limitado ao prédio urbano cujo valor seria fixado em ação de arbitramento, atento o valor declarado de € 1.496,94, a A iria adquirir por menos de € 1000 uma casa que tem um valor de mercado seguramente 30 vezes superior.
Ora, permitir que a A aufira um lucro fabuloso, com prejuízo para uma sociedade que é terceiro e sobre quem não recaia qualquer obrigação de comunicação e já tinha adquirido e registado o prédio a seu favor há mais de 9 anos (cf. factos provados sob os nºs 2 e 3), quando foi intentada a ação, era dar cobertura a um exercício do direito de preferência, em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante.
Neste sentido decidiu o acórdão do STJ de 04.03. 1997, publicado no CJ (STJ), tomo I, pág. 122 -125, com o seguinte sumário: “Abusa do direito quem pretenda aproveitar-se do seu direito de preferência para obter para si, um bem muito superior em valor ao que quer atribuir, em detrimento do alienante e do adquirente, já que está excedido manifestamente o limite imposto pelos bons costumes, e traduzir um injusto enriquecimento.”
Concretamente no caso do citado acórdão o preferente pretendia adquirir por 1700 contos o que valia 7000, o que significa que no caso presente a desproporção ainda é maior.
Entendemos, pois, que é ilegítimo o exercício por parte da A do direito de preferência, ainda que limitado à casa, por ser manifestamente desproporcional a vantagem por ela obtida e o sacrifício imposto à 3ª Ré, ou, na formulação do acórdão do STJ de 04.03.1997, por exceder manifestamente o limite imposto pelos bons costumes e traduzir-se num injusto enriquecimento para a preferente.

Decisão

Julga-se a apelação da A improcede e procedente a apelação das RR e consequentemente revoga-se a sentença recorrida mantendo-se apenas a declaração que a A. legítima arrendatária do prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, absolvendo-se as RR dos demais pedidos.

Custas nesta instância pela A e na 1ª instância pela A e RR, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente.

Porto, 20-09-2012
Leonel Gentil Marado Serôdio
José Manuel Carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira