Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2619/09.5TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DOAÇÃO
CLÁUSULA MODAL
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS DA DOAÇÃO
VALIDADE
SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA
MORTE DO FIDUCIÁRIO
OPONIBILIDADE DA PENHORA
OPONIBILIDADE DA VENDA
Nº do Documento: RP201401202619/09.5TBPRD.P1
Data do Acordão: 01/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 12º, 270º, 291º, 962º, 963º E 2293º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Uma cláusula inserida num contrato de doação celebrado em 1926, tendo por objecto um terreno, através da qual a doadora declarou que o terreno doado ao clube desportivo donatário era para este «…o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos» tem natureza modal – artigo 963.º do Código Civil –, não se tratando se uma condição resolutiva – artigo 270.º do Código Civil.
II - Quanto à validade das cláusulas constantes da doação aplicam-se, nos termos do artigo 12.º do Código Civil, as normas que vigoravam quando as mesmas foram exaradas na escritura, ou seja, o Código Civil de 1867, mas quanto à determinação do conteúdo das relações jurídicas que foram geradas por essas cláusulas e transitaram temporalmente do âmbito de vigência do antigo Código Civil para o novo Código Civil, aplica-se este último.
III - A cláusula «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais» configura uma substituição fideicomissária, prevista no artigo 962.º do Código Civil, a favor dos mencionados herdeiros.
IV - Nos termos dos n.º 1 e 2, do artigo 2293.º, Código Civil, aplicável ao contrato de doação – artigo 962.º do Código Civil –, a herança devolve-se ao fideicomissário no momento da morte do fiduciário, mas se o fideicomissário não sobreviver ao fiduciário fica sem efeito a substituição.
V - A penhora e a alienação posterior do prédio objecto de cláusula fideicomissária não são oponíveis ao beneficiário do fideicomisso, devido ao facto de ele ter sido alheio ao nascimento e posterior desenvolvimento de tais actos executivos, não ocupando a posição de terceiro, para efeitos do disposto no artigo 291.º do Código Civil, relativamente aos posteriores adquirentes do prédio.
VI - Sendo terceiros para efeitos de registo, nos termos do n.º 4, do artigo 5.º, do Código do Registo Predial, aqueles que tenham adquirido, de um autor comum, direitos incompatíveis entre si, o fideicomissário que adquiriu o seu direito da doadora não é terceiro, para efeitos do disposto no n.º 2, do art. 17.º, do Código do Registo Predial, relativamente aos posteriores adquirentes do mesmo prédio, os quais o adquiriram a partir da posição jurídica do donatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª Secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 2619/09.5TBPRD do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes – 3.º Juízo Cível.
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Juiz relator………….Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
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Sumário:
I. Uma cláusula inserida num contrato de doação celebrado em 1926, tendo por objecto um terreno, através da qual a doadora declarou que o terreno doado ao clube desportivo donatário era para este «…o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos» tem natureza modal – artigo 963.º do Código Civil –, não se tratando se uma condição resolutiva – artigo 270.º do Código Civil.
II. Quanto à validade das cláusulas constantes da doação aplicam-se, nos termos do artigo 12.º do Código Civil, as normas que vigoravam quando as mesmas foram exaradas na escritura, ou seja, o Código Civil de 1867, mas quanto à determinação do conteúdo das relações jurídicas que foram geradas por essas cláusulas e transitaram temporalmente do âmbito de vigência do antigo Código Civil para o novo Código Civil, aplica-se este último.
III. A cláusula «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais» configura uma substituição fideicomissária, prevista no artigo 962.º do Código Civil, a favor dos mencionados herdeiros.
IV. Nos termos dos n.º 1 e 2, do artigo 2293.º, Código Civil, aplicável ao contrato de doação – artigo 962.º do Código Civil –, a herança devolve-se ao fideicomissário no momento da morte do fiduciário, mas se o fideicomissário não sobreviver ao fiduciário fica sem efeito a substituição.
V. A penhora e a alienação posterior do prédio objecto de cláusula fideicomissária não são oponíveis ao beneficiário do fideicomisso, devido ao facto de ele ter sido alheio ao nascimento e posterior desenvolvimento de tais actos executivos, não ocupando a posição de terceiro, para efeitos do disposto no artigo 291.º do Código Civil, relativamente aos posteriores adquirentes do prédio.
VI. Sendo terceiros para efeitos de registo, nos termos do n.º 4, do artigo 5.º, do Código do Registo Predial, aqueles que tenham adquirido, de um autor comum, direitos incompatíveis entre si, o fideicomissário que adquiriu o seu direito da doadora não é terceiro, para efeitos do disposto no n.º 2, do art. 17.º, do Código do Registo Predial, relativamente aos posteriores adquirentes do mesmo prédio, os quais o adquiriram a partir da posição jurídica do donatário.
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RECORRENTES/AUTORES…….…B…, residente na …, Lousada;
…………………………………...........C…, residente na …, n.º …, …., Vila Nova de Gaia;
…………………………………………D…, residente na Rua …, n.º .., R/c Esq. Traseiras, Maia;
…………………………………………E…, residente na …, n.º .., ..º Dto. Traseiras, Vila Nova de Gaia;
…………………………………………F…, residente na …, …, Lousada;
…………………………………………G…, residente na Rua …, n.º …, hab. .., Vila Nova de Gaia;
…………………………………………H..., residente na Rua …, n.º …., ..º Esq., Porto;
…………………………………………I…, residente na …, …, …, Penafiel; E
………………………………………….J…, residente na Rua …, n.º …, hab. .., Porto.
RECORRIDOS/RÉUS…………….…K…, com sede no …, …, Paredes;
………………………………………….L..., com sede na Rua …, …, …, Matosinhos;
……………………………………….…Município …, com sede no …, …, Paredes;
………………………………………….Massa insolvente de «M…, S. A.», com sede na Rua …, n.º …, …, Oeiras; e
………………………………………….N…, S. A., com sede na …, n.º .., Porto.
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I. Relatório.
a) A presente acção tem origem na doação feita em 23 de Janeiro de 1926 por O… ao réu K… tendo por objecto o terreno abaixo identificado na matéria de facto.
Do texto da doação consta, entre outros dizeres, que o terreno doado era para o donatário «o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos», declarando ainda a donatária: «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais».
Esta doação, incluindo estas duas estipulações da doadora, foi inscrita no registo predial em 6 de Janeiro de 1927.
Na década de 1990, o réu K… foi executado no processo executivo n.º 708-B/94, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, e o prédio doado foi aí penhorado, e, mais tarde, em 23 de Abril de 1998, adjudicado à ré L…, a qual, por sua vez, por escritura pública de 12 de Outubro de 1999, o vendeu ao Município …, entidade esta que, em 18 de Setembro de 2008, o vendeu, por fim, à empresa M…, S. A., a qual, em 09 de Janeiro de 2009, constituiu sobre ele hipoteca voluntária a favor do N….
Os autores são os herdeiros da doadora e alegaram que tomaram conhecimento das transmissões acabadas de referir quando, no final do ano de 2008, foi veiculado pela comunicação social que o terreno correspondente ao imóvel doado, onde está implantado o P…, teria sido alienado pela Câmara Municipal à empresa M…, S. A., para aí construir uma grande superfície comercial.
Com a acção, os autores visam, em primeira linha, recuperar o imóvel doado e, para o efeito, pediram ao tribunal que condenasse a ré M…, S. A., a entregar-lhes o imóvel, livre de quaisquer ónus, designadamente da hipoteca registada a favor do N…, com cancelamento de todos os registos de aquisição e oneração do referido bem, posteriores à doação.
Em segundo lugar, pediram a declaração de nulidade da penhora e da adjudicação do prédio à ré L…, bem como da venda feita por esta à Câmara Municipal …, bem como a alienação efectuada por esta última à ré M…, S. A., e ainda a nulidade da hipoteca celebrada entre esta última empresa e o mencionado Banco.
Subsidiariamente, em relação ao primeiro pedido principal formulado, no caso de se entender que a obrigação de destinar o prédio a fins sportivos integra um encargo, pedem que se condene o réu K… a cumprir o encargo, logo que o referido prédio esteja na sua posse.
Fundamentam os pedidos nos argumentos que repetem nas alegações de recurso que, mais à frente, serão transcritas.
b) Todos os Réus contestaram pronunciando-se pela improcedência da acção com os argumentos também repetem nas conclusões das respectivas contra-alegações.
c) No final foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, fundamentalmente por se ter considerado que a doação implementou uma cláusula modal que ainda subsiste presentemente, mas não serve de fundamento aos pedidos formulados, e, por outro, que a segunda cláusula não assumia natureza fideicomissária, sendo uma cláusula de reversão, não impeditiva da penhora e alienação do terreno.
d) Os autores recorrem desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«A - Tendo em conta os factos dos autos relevantes para a apreciação do caso, são as seguintes as questões a resolver no âmbito deste recurso:
a) A qualificação jurídica da cláusula aposta à doação com o teor: “Que do respectivo terreno que faz parte dos seus bens próprios faz doação ao referido K… (…) para o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos”, como encargo ou cláusula modal ou como condição resolutiva.
b) A qualificação jurídica da segunda estipulação aposta na doação “Que porém se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais” como condição resolutiva ou como substituição fideicomissária.
Num segundo momento, e em face das respostas que venham a ser dadas às questões colocadas, conhecer:
c) A oponibilidade do direito dos AA. aos RR. adquirentes.
d) A inoponibilidade da nulidade a terceiros adquirentes.
Enquanto condição de total procedência dos pedidos formulados.
Assim, apreciando cada uma das questões que constituem o objecto do recurso:
A
B – Não se concorda com a sentença recorrida na parte em que qualificou a cláusula da doação como encargo. Na verdade, perante a matéria constante dos números 1 e 2 do Ponto II da douta sentença, tem de concluir-se que foi intenção da doadora garantir que o bem seria utilizado para fins desportivos ou recreativos pelo donatário, unicamente pelo 1.º Réu.
C - Esta vontade foi transposta para o plano formal através da instituição simultânea de duas cláusulas de sentido inequívoco, nomeadamente a inclusão de uma cláusula de reversão, esta com o intuito de impedir a alienação ou oneração do bem pelo donatário e a inclusão de uma cláusula que pretendeu condicionar a produção dos efeitos da doação à efectiva prossecução do fim imposto.
D - É revelador do desígnio da doadora o facto de esta ter acautelado os efeitos pretendidos com a liberalidade com a estipulação simultânea destas duas condições pela quais se impõe uma directa relação de interdependência entre as condições instituídas como forma de garantir o resultado final – que fosse cumprida a intenção declarada da autora da liberalidade.
E - Desta forma a doadora garantia, por um lado, que o bem se manteria na posse do donatário enquanto ele existisse, que estaria obrigado a conservar o bem e a transmiti-lo no caso da eventual extinção da pessoa colectiva e, por outro, a utilizar o bem para os fins desportivos e recreativos a que se dedicava, já que era de facto difícil conceber uma qualquer hipótese, voluntária ou involuntária, de subverter a vontade expressa do autor da liberalidade sem pôr em crise a própria doação, até porque a eficácia de ambas as cláusulas estava ainda reforçada perante terceiros pelo seu registo, registo esse que foi oportunamente lavrado como resulta do número 2 do Ponto II da douta sentença e que se mantém integralmente em vigor.
F - Assim, da redacção das cláusulas apostas à doação resulta a expressa intenção da doadora em impor um determinado fim para o bem doado, a ser prosseguido exclusivamente pelo beneficiário da liberalidade, estipulação que não é mais que a subordinação da doação a um acontecimento futuro e incerto – a utilização da coisa pelo donatário para fins desportivos ou recreativos – ou pela negativa - a proibição do seu uso para fim distinto por terceiros.
G - Ora, em sede de interpretação da vontade da doadora, e em face da essencialidade e interdependência destas cláusulas para a determinação em contratar, é manifesto que a doadora pretendeu instituir uma dupla condição, de natureza resolutiva, cuja verificação impediria a produção de efeitos da doação.
H - Pelo que se conclui que a doação dos autos foi feita sob condição resolutiva, nos termos do disposto nos artigos 672º, 680º e 1454º, nº 2, do Código Civil de 1867, a qual se reveste de natureza mista causal e potestativa, o que implica que os efeitos do preenchimento da condição se retroajam à data da celebração do negócio condicional.
I - Dos factos provados, resulta indesmentível que o prédio em causa deixou de ser utilizado para os fins para que foi doado, sendo que já não é usado pelo Clube para fins desportivos e recreativos e jamais será.
J - É esta a realidade extraída dos números 37 a 41 do ponto II da douta sentença e inequívoca a conclusão que deles se retira nas páginas 56 a 58 da decisão sub judice.
K - Estes factos têm como consequência a verificação da condição resolutiva e a destruição automática dos efeitos da doação, de forma retroactiva e ainda a ineficácia dos actos de disposição ou oneração do bem doado, que se tenham produzido na pendência da condição.
L - Tal implica a restituição de tudo o que foi prestado pelas partes já que o adquirente do direito de propriedade sob condição resolutiva não adquire mais do que esse direito de propriedade resolúvel (sob condição resolutiva).
M - A destruição de efeitos do negócio tem como consequência a destruição de efeitos dos direitos adquiridos na pendência da condição inscrita.
N - Em conformidade, tendo cessado a utilização pelo donatário do prédio doado para os fins determinados, deve o bem transmitido sob condição ser restituído aos aqui Autores, enquanto herdeiros da doadora.
O - Consequência que resulta da verificação da condição e do facto da cláusula condicional se encontrar registada, operando-se os efeitos ex nunc sem que haja qualquer protecção de terceiros adquirentes do bem.
B
P - Com o devido respeito, que é verdadeiramente muito, pela interpretação da redacção da cláusula, da vontade da doadora e do texto da Lei alcançada na douta sentença em crise, é manifesto que, in casu, estamos perante uma doação de natureza fideicomissária.
Q - Afigura-se à partida inequívoco que a doadora prescreveu a reversão do bem para ela própria, num primeiro momento, e para terceiros, os seus herdeiros, num segundo momento.
R - E assim sendo, dúvidas não restam que estamos perante um fideicomisso de natureza convencional.
S - Não têm assim sustentação legal e doutrinal as doutas interpretações feitas pelo Tribunal a quo.
T - Resulta isso sim que a doadora, de forma clara e perfeitamente válida e comummente aceite, pretendeu instituir em primeiro lugar a reversão do bem doado para si mesma e, verificando-se o seu decesso, a reversão do bem para terceiros, os seus herdeiros, nos termos legais.
U - Termos legais que não podem deixar de ser os art.º 1473 e 1867º do Código Civil, onde se estabelecia que a reversão a favor de terceiros revestia a natureza fideicomissária e se elencavam os graus de parentesco em que tal substituição era admitida.
V - E, com o devido respeito, não se percebe como se poderá sustentar que os herdeiros para quem se prevê expressamente a reversão do bem possam deixar de ter a qualidade de terceiros.
X - Não obstante o que se disse, e ainda que se admitisse como válido o raciocínio expendido na douta sentença, e consequentemente estivéssemos perante uma verdadeira doação com reversão em que não fosse criada uma qualquer ordem de sucessiva de beneficiários da liberalidade, tem sido sustentado por diversos Autores e pela Jurisprudência estarmos também aqui perante uma doação de natureza fideicomissária ou cujos efeitos se equivalem aos do fideicomisso.
Y - Sendo certo que também neste caso estaria vedada, de acordo com a lei aplicável à data da doação, a alienação do bem, já que o donatário se assumia como mero usufrutuário do bem.
Z - Pelo que, independentemente da interpretação da cláusula a que cheguemos abranger ou não a reversão do bem para terceiros, sempre alcançaríamos a mesma conclusão pela nulidade da transmissão.
AA - As doutas interpretações do Tribunal a quo sobre a natureza da cláusula incluída na doação são também postas em causa pela análise sistemática e histórica dos institutos da reversão e do fideicomisso.
AB - É manifesto que no caso em apreço não existe qualquer incerteza na dupla instituição e respectiva ordem sucessiva pois ambos adquirem o direito pela ordem da instituição, um após a dissolução do outro, sem que tal sucessão esteja dependente da verificação de qualquer condição positiva ou negativa.
AC - Qualificada a doação feita por D. O… ao 1º Réu como de natureza fideicomissária, a esta deve ser aplicado o regime prescrito pelo art.º 1867º e segs. ex vi do artigo 1473º do Código de Seabra.
AD - Assim, e em consequência do regime legal descrito, devem-se considerar absolutamente vedados ao fiduciário os direitos exclusivos do proprietário, nomeadamente os de alienar e onerar a coisa, como aliás decorre da obrigação a este imposta de guardar e conservar o bem doado.
AE - E, claro está, dado que o fiduciário não é titular do direito de propriedade, ou que, pelo menos, não têm o poder de disposição dos bens sujeitos ao fideicomisso, não pode ser promovida pelos seus credores penhora, arresto ou qualquer acto que afecte a propriedade da coisa.
AF - Isto posto, como resulta dos factos provados, apesar de claramente estarmos perante uma doação de natureza fideicomissária e de, em todo o caso, estar o donatário obrigado a conservar o bem doado e a transmiti-lo aos herdeiros da doadora, foram, não obstante, promovidas pelos credores pessoais do fiduciário (1º Réu) diversas penhoras sobre o bem e realizada a sua venda a favor da 2ª Ré, no âmbito de um dos processos executivos que deram origem às mencionadas penhoras.
AG - Ora tais penhoras e subsequentes vendas são, por esta via, legalmente inadmissíveis.
AH - Em primeiro lugar, por afectarem um direito que não se encontra na esfera jurídica do fiduciário, ou de que, pelo menos, este não tinha o poder de disposição, e em segundo, por violarem frontalmente a proibição ínsita no art.º 2292º do Código Civil vigente.
AI - Desta forma, é nula a venda do prédio doado à 2ª Ré no âmbito de um dos processos executivos na sequência dessa penhora, nulidade que decorre ainda do disposto no artigo 280º do Código Civil.
AJ - Trata-se de um bem inalienável, sobre o qual o fiduciário apenas dispõe do poder de gozo e a administração, não podendo ser o mesmo transmitido, ainda que coercivamente, pelo tribunal.
AK - E não pode, sob pena de invalidade, o fiduciário/executado ou o Estado em sua substituição, transmitir um direito que efectivamente o executado não detinha, ou do qual não podia dispor, nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet, (cfr. artigo 892º do C.Civil), assim, a venda do bem, ainda que promovida pelo Estado, é um acto praticado contra disposição injuntiva da lei, o que o torna nulo.
AL - Pelo que, por esta via, verificando-se a nulidade da transmissão operada a favor da 2ª Ré, forçoso será concluir pela nulidade de todos os subsequentes negócios jurídicos translativos da propriedade do bem, por se tratarem de vendas a non domino, art.º 892º CC.
AM - Negócios subsequentes que deverão ainda cada um deles ser declarados nulos por serem absolutamente incompatíveis com factos registados em data anterior – a cláusula de reversão aposta à doação -, pois prevalece sempre o direito inscrito em primeiro lugar sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes, art.º 6º Código Registo Predial.
AN - Pela mesma fundamentação legal, terá ainda de se concluir ainda pela nulidade, ou inoponibilidade, da hipoteca constituída pela 4ª Ré a favor da 5ª Ré e do seu subsequente registo.
C
AO - É consensual que a disciplina vertida no art.º 291º CC consiste numa excepção ao regime geral da nulidade e está directamente ligada aos princípios decorrentes do direito registral, nomeadamente da fé pública do registo contido no art.º 7º CRP, já que o direito do terceiro adquirente resulta da lei por efeito da sua fé numa titularidade aparente, fomentada ou justificada pelas presunções do registo.
AP - No caso em apreço a prévia e coexistente inscrição das condições da doação é em si um elemento discordante com os princípios enformadores da excepcional protecção de terceiros de boa fé que se visa com o referido normativo, porque neste caso teríamos uma concorrência de inscrições no registo e consequentemente, uma concorrência de presunções.
AQ - Não é assim manifestamente de aplicar o regime do art.º 291º CC na situação sub judice.
AR - Pela mesma ordem de razões, e ainda por os 4º e 5º Réus não terem a qualidade de terceiros para fins de registo e não estarmos perante uma invalidade formal do registo, é inaplicável também o art.º 17º, nº 2 CRP.
AS - Ao invés, como acima se disse, a questão tem de ser perspectivada sob a óptica da oponibilidade das condições apostas à doação e devidamente registadas onde deverão imperar as regras e princípios do direito registral.
AT - Desta forma, verificando-se que cessou a utilização do bem para o fim constante da vontade da doadora, necessariamente as consequências dessa circunstância têm de reflectir-se nos adquirentes do bem, que deveriam ter conhecimento dessa condição por força do seu registo, nomeadamente no que respeita ao efeitos da restituição que tem de operar-se, atentos os efeitos retroactivos da condição, com fundamento nesse facto.
AU - No que respeita à segunda manifestação de vontade da doadora, o seu registo tem como função dar a conhecer a terceiros (e por maioria de razão a eventuais adquirentes do bem) o facto de a doação ficar sujeita a reversão, ou como já vimos, assumir a natureza de uma verdadeira doação fideicomissária.
AV - E atento o regime previsto nos art.º 2286º do actual C.C., claro está que a inscrição no registo do fideicomisso terá então como função assegurar o cumprimento de características essenciais às substituições fideicomissárias, nomeadamente, a obrigação de conservar por sua vida os bens herdados (leia-se doados), e a obrigação de os transmitir por sua morte a um terceiro.
AX - Logo, o registo do fideicomisso inscrito tem como consequência o conhecimento da precariedade do direito de propriedade do fiduciário.
AY - Isto posto, o que importará apreciar é se as consequências jurídicas da verificação dos factos acima referidos (cessação de utilização e alienação do bem) são ou não oponíveis aos terceiros adquirentes.
AZ - E, a resposta a esta questão é forçosamente afirmativa atentos os fins próprios do registo.
D
BA - Em consequência do disposto no art.º 291º, nº 3, fica excluída a protecção conferida por este artigo à aquisição feita pelos 2º e 3º RR., porquanto estes RR., como se viu, agiram com manifesta má fé em toda a sucessão de actos em que intervieram.
BB - Por outro lado, como se viu, todos os RR. tinham por dever de diligência, a obrigação de conhecer as condições da doação por força da sua inscrição registral.
BC - Pelo que não se verifica um dos requisitos do artigo 291º, sendo certo que o seu nº 3 esclarece que apenas está de boa fé quem desconhecer, sem culpa, o vício do negócio que se pretende anular (a chamada concepção de boa fé subjectiva ética).
BD - Não se verifica também o requisito imposto pelo nº 2 do citado normativo, já que o prazo de 3 anos previsto no art.º 291º, nº 2 CC, só se inicia a contar da data da conclusão do negócio celebrado pelo terceiro subadquirente de boa-fé, pois é ele que se consolida.
BE - Ou seja, tal prazo apenas se iniciou em 2008, aquando da aquisição do bem pela 4ª Ré – cfr. números 27 e 28 do Ponto II da douta sentença.
BF - E é certo que os 2º e 3º RR. tinham a obrigação de conhecer as condições da doação por força da sua inscrição registral, a que tiveram acesso através da versão manuscrita da certidão.
BG - Pelo que, ainda que demonstrada a boa-fé das 4ª e 5ª Rés, não tendo decorrido o prazo de três anos após a conclusão do negócio celebrado pela subadquirente (4ª Ré) não podem, ainda por esta via, as mesmas escudar-se com a protecção conferida pelo citado art.º 291º, por não se encontrar verificado este pressuposto para a sua aplicação.
BH - Sempre se dirá ainda que os factos que consubstanciam os vícios de nulidade dos negócios postos em crise têm como consequência a invalidade de todos os actos de transmissão do bem que se lhe sucederam, por se tratarem de vendas a non domino, de bens alheios, nos termos do artigo 892º do C.C.
BI - Na verdade, sendo nula por ilegitimidade do alienante a venda executiva do bem, são ineficazes (e não nulos) todos os actos subsequentes de disposição do mesmo perante o 1º Réu e a mesma consequência terão estes actos perante os agora recorrentes caso se dê a reversão do bem para o seu património.
BJ - Assim, uma vez mais se constata que em face do registo e validade das condições da doação não faz sentido remeter a regulação deste caso para o disposto no art.º 291º CC.
BK - Em face do que se deixou alegado entendem os recorrentes que a douta decisão recorrida violou o disposto nos art.º 684º, 685º do Código de Seabra, 236º e 238º, 270º, 280º do Código Civil actual, e bem assim os artigos 1473º, 1867º, 1867º Código de Seabra, e 960, nº 2, 2286º, 2292º e 2295º do Código Civil actual.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. proficientemente suprirão, deverá ser concedido provimento ao recurso e por via disso revogada a douta sentença proferida e substituída por outra que condene os Apelados nos termos peticionados».
e) A Ré M…, S.A., contra-alegou pugnado pela improcedência do recurso.
Concluiu desta forma:
«1ª. As conclusões das alegações de recurso não integram qualquer individualização das questões ou resumo do corpo daquela peça processual, limitando-se a repetir “os pormenores argumentativos próprios da alegação” (v. Ac. STJ de 1996.07.10, Proc. 965069, in www.dgsi.pt), pelo que os ora recorrentes deverão ser convidados a sintetizá-las (v. art. 685º-A do CPC) – cfr. texto n.º s 1 a 3;
B- DO SENTIDO E ALCANCE DA DOAÇÃO, DE 1926.01.23
2ª. Conforme se decidiu na douta sentença recorrida, na falta de outros elementos complementares ou extrínsecos, os termos objectivos e literais da declaração da doadora, expressos no negócio jurídico formal celebrado em 1926.01.23 (v. arts.236º e 238º do C. Civil; cfr. Doc. de fls. 79 e segs. dos autos), que integra a causa de pedir da presente acção, afiguram-se inequívocos, assentando em afirmações distintas que, no respectivo contexto, constituem cada uma delas uma asserção individual e autónoma:
a) “Que do referido terreno … faz doação (ao K…) … para o aproveitar para os fins (de)sportivos ou recreativos”;
b) “Que, porém, se (o K…) se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora” – cfr. texto n.º s 4 e 5;
3ª. A interpretação das referidas declarações defendida pelos recorrentes “não tem o mínimo de correspondência no texto da escritura e não se provou que correspondesse à vontade real das partes (art. 238º do CC)” (v. Ac. STJ de 2007.07.05, Proc. 1285/07-6, da 6ª Secção) – cfr. texto n.º s 5 e 6;
BA – Da cláusula modal
4ª. Contrariamente ao invocado pelos recorrentes e como resulta do texto da escritura, de 1926.01.23, o prédio em causa foi doado para o donatário “o aproveitar” para fins desportivos ou recreativos, consagrando-se, como se decidiu na douta sentença recorrida, um encargo ou simples cláusula modal (v. arts. 963º e 966º do C. Civil), não tendo a doadora convencionado a resolução da doação, nem a reversão do bem doado, como consequência de não se verificar tal afectação (v. arts. 1472º e 1473º do C. Civil de Seabra; cfr. arts. 960º e segs. do C. Civil actual) – cfr. texto n.º s 7 e 8;
5ª. Os terrenos doados sempre foram e estão actualmente afectos a fins desportivos, respeitando-se integral e pontualmente a vontade da doadora (v. arts. 236º e segs. do C. Civil) – cfr. texto n.º s 9 e 10;
BB – Da condição resolutiva
6ª. Na escritura pública, outorgada em 1926.01.23, a doadora apenas estipulou que “reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais” no caso de o “donatário se dissolver ou for dissolvido” (v. Doc. de fls. 79 e segs. dos autos; cfr. n.º 1 dos FA e fls. 33 e segs. da douta sentença recorrida) – cfr. texto n.º s 14 e 15;
7ª. O donatário – K… - não se dissolveu, nem foi dissolvido, sendo parte na presente acção, pelo que, como se decidiu na douta sentença recorrida, além de não estarmos perante uma “doação de natureza fideicomissária” (v. Assento STJ de 1937.12.14, Proc. 049523, in www.dgsi.pt), nunca poderia ter-se como verificado o evento condicionante ou operante de qualquer condição resolutiva (v. art. 270º do C. Civil) - cfr. texto n.º s 15 a 17;
C – DA INOPONIBILIDADE DOS PRETENSOS DIREITOS DOS RECORRENTES
8ª. A FNC adquiriu o prédio em causa por venda judicial, em 1998.04.23, na sequência de decisões judiciais já transitadas em julgado (v. fls. 64 e 65 do Doc. 2, junto com a p. i.; cfr. n.º s 9 a 11 dos FA), tendo o respectivo direito de propriedade sido transmitido livre dos direitos de garantia que o onerava e demais direitos reais incompatíveis (v. art. 824º do Código Civil) e encontrando-se registada a aquisição, também desde 1998 (v. n.º s 12 e 14 dos FA) - cfr. texto n.º s 18 a 20;
9ª. Na data da aquisição pela M… do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes, sob o n.º 1518/20040301 – 2008.09.18 – não se encontrava registado qualquer ónus ou encargo (v. n.º s 42 a 45 dos FA; cfr. respostas aos quesitos 19º a 22º da BI) – cfr. texto n.º s 20 e 21;
10ª. Os pretensos direitos que os recorrentes pretendem fazer valer na presente acção são assim inoponíveis aos ora recorridos, enquanto terceiros de boa fé, ex vi dos arts. 291º, 435º, 439º e 1316º e segs. do C.C. e arts. 7º e 17º do CR Predial - cfr. texto n.º s 21 a 23.
NESTES TERMOS, Deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos ora recorrentes, mantendo-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
Só assim se decidindo será cumprido o direito e feita justiça».
f) O Réu Município … também contra-alegou
«1ª. O presente recurso vem interposto, pelos autores apelantes da douta sentença, proferida em 3 de Novembro de 2012, que julgou a acção supra identificada totalmente improcedente, por não provada, tendo, em consequência, absolvido o Município apelado e todos os demais Réus dos pedidos contra eles formulados pelos Autores.
2ª. A apelação não merece – com o devido respeito – o menor provimento, pois que nenhuma razão assiste aos Autores, nem sob o ponto de vista dos factos, nem também sob o ponto de vista do direito aplicável.
3ª. Com efeito, a douta sentença recorrida é absolutamente acertada e bem fundada, tendo a Mma. Juiz a quo apreciado e decidido todas as questões suscitadas nos autos, de forma em tudo perfeita e com elevado sentido de Justiça.
4ª. Havendo que salientar, desde logo, que o pretenso conluio entre os vários Réus e toda a "tese conspirativa", que se encontrava, abundantemente, construída nos articulados dos Autores, não se provaram minimamente, nem tinham, de resto, qualquer fundamento, ou a menor credibilidade.
5ª. Aliás, para que a tese dos Autores tivesse um mínimo de consistência, teriam que estar envolvidos e concertados um sem número de pessoas, desde os Directores das várias Direcções do Clube Réu, passando pelos credores que penhoraram o "P…", pelos proponentes e demais pessoas que intervieram na venda judicial, pelo Presidente e demais Membros da Direcção da L… Ré, pelos Técnicos e Chefias do Município, por dois Presidentes, Vereadores e Membros de diferentes Executivos Camarários, pelos Deputados das várias Assembleias Municipais (que tudo aprovaram e ratificaram), pelas Administrações dos demais Réus, etc., etc., etc. ...
6ª. E além da "conspiração" de todas aquelas pessoas, teria, ainda, que ter sido planeada e prosseguida, inflexivelmente, sem o menor desvio, uma estratégia de longo prazo, durante anos e anos a fio (mais de dez anos);
7ª. Não se provou, igualmente, que os Réus tivessem conhecimento da existência da doação mencionada na alínea A) dos factos assentes, ou de um qualquer ónus que, porventura, impendesse sobre o prédio conhecido como “P…”.
8ª. Aliás, constam dos autos certidões prediais (de teor da descrição e de todas as inscrições em vigor) que comprovam que, aquando da venda do “P…” pela Ré L… ao Município Réu e aquando da venda por este à quarta Ré M… daquele "P…", nem a sobredita doação, nem qualquer outro ónus, figuravam naquelas certidões prediais. E o que é certo é que o registo predial se prova por meio de certidões.
9ª. Verificando-se pelas ditas certidões que, no caso em apreço, não existe em vigor qualquer inscrição a favor dos Autores, ou da doadora, nem agora, nem à data da instauração da acção, nem aquando das sobreditas transmissões do "P…" pela L… Ré e, depois, pelo Réu Município.
10ª. E porque o registo predial se prova por meio de certidões (conforme artigo 110º, nº 1, do Código do Registo Predial), porque as certidões de registo devem conter a reprodução das descrições e dos actos de registo em vigor respeitantes aos prédios [conforme artigo 112º, nº 1, daquele Código] e porque, no caso em apreço, se verifica pelas certidões prediais juntas aos autos (de teor da descrição e de todas as inscrições em vigor) que não existe qualquer inscrição em vigor a favor dos Autores, ou da respectiva antecessora/ doadora, impunha-se e impõe-se, desde logo, concluir, na perspectiva do aqui signatário, e com o devido respeito, pela falta de legitimidade substantiva dos Autores para instaurarem a presente acção.
11ª. Pois que os Autores nem sequer comprovam, nem sequer legitimam, nem sequer fundam os direitos que se arrogam em qualquer inscrição em vigor constante do registo predial. E o alegado/pretenso direito invocado pelos Autores apelantes, ou qualquer ónus, para produzir efeitos contra terceiros teria que constar do registo predial.
12ª. E se é certo que o registo da doação mencionada na alínea A) dos factos assentes já constou do registo predial (em 1927) – conforme se vê pelas certidões prediais juntas aos autos contendo todo o histórico registral do prédio conhecido como “P…” –, a verdade é que aquela inscrição deixou, há muito, de existir e de estar em vigor (ou por caducidade, ou por cancelamento, conforme artigo 10º do Código do Registo Predial).
13ª. E ainda que existisse, a tal respeito, uma eventual omissão ou inexactidão no registo predial – o que sem conceder e apenas para mero efeito de raciocínio aqui se concede – então aquela eventual omissão ou inexactidão seriam causa de nulidade do registo [conforme artigo 16º, al. c), do Código do Registo Predial]. Ora, a nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial transitada em julgado (conforme artigo 17º, nº 1, do Código do Registo Predial).
14ª. Não prejudicando tal eventual declaração de nulidade os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade, como no caso acontece (e conforme decorre do disposto no artigo 17º, nº 2, do Código do Registo Predial).
15ª. Ou seja, em qualquer caso (na perspectiva do aqui signatário, e com o devido respeito) sempre a presente acção teria e terá, necessariamente, que improceder, pela sobredita falta de registo a favor dos Autores (a inexistência de uma inscrição predial em vigor a favor dos Autores, ou da respectiva doadora/antecessora, o que, assim, retira aos Autores toda a legitimidade substantiva para esta acção), ou então pela eventual nulidade do próprio registo [a carecer de ser, previamente, apreciada/declarada (numa outra acção) por decisão judicial transitada em julgado].
16ª. Não havendo, assim, a esta luz (na perspectiva do signatário, e com o devido respeito), sequer necessidade de entrar na apreciação crítica das demais questões de direito suscitadas nos presentes autos, especificamente, nas conclusões das alegações dos Autores.
Isto posto e sem prescindir:
17ª. Como bem se considerou e decidiu na douta sentença recorrida e conforme resulta da letra e da interpretação do teor da escritura de doação junta aos autos, o prédio em causa nos autos foi doado para o Clube donatário o aproveitar para fins desportivos ou recreativos.
18ª. Ao contrário do que concluem os Autores na escritura de doação apenas se estipulou a reversão do prédio doado no caso de o Clube donatário (e aqui 1º Réu) se dissolver ou de ser dissolvido, o que, como é ostensivo, não ocorreu.
19ª. Consagrou-se, na escritura de doação, uma cláusula modal (cfr. artigos 963º e 966º do C. Civil), não se tendo ali estabelecido a resolução da doação, nem a reversão do bem doado, como consequência da não verificação da afectação aos fins desportivos ou recreativos (cfr. artigos 1472º e 1473º do C. Civil de Seabra e artigos 960º e seguintes do C. Civil actual).
20ª. Sendo certo, por outro lado, que o “P…” (mesmo que – e sem conceder – se aceitasse a tese dos Autores de que a falta de aproveitamento do prédio para fins desportivos ou recreativos, também, era causa de reversão) estava – à data da instauração desta acção – continua a estar e irá continuar a estar (de acordo com o previsto e projectado) afecto a fins desportivos e recreativos.
21ª. O prédio doado foi afecto a fins desportivos e recreativos, desde 1926 até ao presente, pelo que, além de não estar em causa qualquer condição resolutiva, mas um simples encargo modal, é inequívoco reconhecer, que a vontade da doadora foi integralmente observada/respeitada.
22ª. Além disso, a previsão e o projecto a que se reportam os factos provados/assentes não passam disso mesmo, de uma mera previsão/intenção e de um projecto que não foi sequer, minimamente, executado e que não está sequer aprovado (está apenas aprovado o loteamento prévio).
23ª. O projecto referido nos factos provados/assentes não se sabe, ainda, se irá, ou não, ser aprovado e se irá, ou não, ser executado. Mas mesmo que o projecto venha a ser executado, de acordo com o projectado, o “P…” e a área envolvente continuará afecto a fins desportivos e recreativos. E isto porque, ainda de acordo com o projecto (junto aos autos), está ali prevista a construção de um "Pavilhão Multiusos" e de uma "Zona Desportiva Radical".
24ª. E ainda que assim não fosse – e sem prescindir –, há que salientar que, no caso dos autos, o "espírito da doação" foi respeitado. Pois que todo o valor obtido com a venda do prédio (conhecido como “P…”), à quarta Ré, foi afecto/aplicado, integralmente, pelo Município Réu na "Nova Cidade Desportiva" localizada em …, onde passaram a ser e são realizados os jogos da equipa principal do Clube Réu.
25ª. Como bem se considerou na douta sentença recorrida, não se pretendeu, no caso dos autos, "instituir qualquer fideicomisso, não criando uma qualquer ordem sucessiva de doações entre o 1º R. e os seus herdeiros, nem instituindo para aquele qualquer encargo de conservar o bem doado (encargo que não era sequer necessário impor, em se tratando antes de condição resolutiva, de verdadeira reversão, atento o disposto no art. 1475º do Código de Seabra, actualmente art. 961º do Código Civil), não resultando também que tivesse querido com a cláusula instituída submeter o donatário a qualquer limitação".
26ª. E ainda como bem se decidiu na douta sentença recorrida, "a cláusula em apreço constitui uma verdadeira e própria cláusula de reversão, traduzindo uma condição resolutiva, e não assume natureza de substituição fideicomissária".
27ª. Nenhuma limitação existia, pois, quanto à disponibilidade do bem doado, nomeadamente que impedisse a sua transmissão no processo de execução (ou as posteriores).
28ª. Ora, no caso em apreço, ao contrário do que sustentam os Autores apelantes, os direitos de terceiro não são prejudicados, nem pela pretensa nulidade da penhora, nem pela pretensa nulidade da venda, as quais não afectam os direitos do terceiro de boa fé (cfr. Artigo 291º do C. Civil).
29ª. Sendo, também, certo que a resolução não prejudica os direitos adquiridos por 3º que haja registado o seu direito (cfr. Artigo 435º do C. Civil). E terá de se presumir de boa-fé aquele que baseia os seus actos no registo predial. E é esse o caso, relativamente ao Município … e aos demais Réus, que basearam os seus actos no registo predial.
30ª. Pois que aqueles Réus, tendo baseado os seus actos no registo predial e não transparecendo desse mesmo registo a existência de qualquer doação, ónus, ou encargo sobre o prédio (conhecido como “P…”) não se aperceberam, nem se podiam ter apercebido, de qualquer dos alegados/pretensos vícios ora invocados pelos Autores nesta acção, pelo que se deve presumir terem agido de boa-fé.
31ª. E foi, precisamente, no sentido de tentarem elidir tal presunção (cfr. Artigo 350º do C. Civil) que os Autores construíram a suposta "tese conspirativa" entre os Réus, que se acha amplamente desenvolvida nos seus articulados e que se não provou minimamente.
32ª. A absoluta convicção do Réu Município (e dos demais Réus) da inexistência de qualquer impedimento à dita compra era tanto maior pelo facto de a aquisição imediatamente anterior ter sido feita em venda judicial, com todos os formalismos e verificações legais/processuais.
33ª. Com efeito, tendo o imóvel sido vendido em venda judicial esse facto (além da inexistência de qualquer inscrição em vigor que apontasse para a existência de ónus, encargos ou limitações), só por si justificaria que o Réu Município sempre teria que presumir que quaisquer titulares com inscrições em vigor no Registo Predial haviam tido oportunidade de se pronunciarem/reclamarem os seus direitos, pelo que, tendo o imóvel acabado por ser vendido no processo de execução (venda judicial mediante propostas em carta fechada), é porque nenhum entrave foi levantado e os eventuais ónus, encargos ou limitações ficaram salvaguardados.
34ª. Temos pois que, no caso em apreço, a eventual declaração de nulidade ou anulação que, porventura, pudesse ocorrer relativamente aos negócios que incidiram sobre o prédio em causa nos autos, não prejudicaria os direitos adquiridos pelo Réu Município e os demais Réus sobre o imóvel em causa (cfr. Artigo 291º do C. Civil).
35ª. Pois que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, salvo se esta acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
36ª. Em conclusão, os argumentos e as conclusões trazidas a este recurso de apelação pelos Autores não têm, pois, com o devido respeito, nem à luz dos factos, nem quanto às questões de direito por aqueles suscitadas, qualquer fundamento válido em que se estribem, improcedendo, assim, na sua totalidade;
37ª. Na douta sentença recorrida (ao contrário do que defendem os Autores apelantes), a Mma. Juiz a quo fez uma correcta apreensão da matéria de facto relevante e uma perfeita interpretação/aplicação do direito, sendo aquela douta sentença absolutamente acertada, justa e bem fundada, razão porque deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, tudo o ali decidido.
Nestes termos, e com o mui douto suprimento de vossas excelências, deverá ser negado provimento ao presente recurso, interposto pelos autores apelantes, confirmando-se e mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, com todas as demais consequências legais. Assim se fazendo inteira justiça».
g) O N… também contra-alegou pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Concluiu nestes termos:
«1. A estipulação acessória à doação de 1926 não constava da certidão do registo predial que o Banco Réu obteve e com base na qual tomou a decisão de contratar;
2. Da certidão do registo predial que o Banco Réu obteve nada constava a respeito de tal doação, por erro manifesto dos serviços do registo predial e que eliminaram a sua referência;
3. Nos termos do disposto no art. 110º do Código de Registo Predial o registo prova-se por certidões, donde resulta que o que não consta de certidão passada não consta do registo;
4. A solução a dar a um erro dos serviços registrais que conduza a uma completa omissão de uma inscrição em vigor não está legalmente consagrada, tratando-se de uma lacuna voluntária do legislador, que entendeu por bem nem sequer enunciar a hipótese para efeito de não abalar a segurança e certeza do comércio imobiliário;
5. Na ausência de regulamentação legal há que recorrer à analogia, aplicando-se ao caso o regime que se mostra consagrado para a hipótese de uma inscrição ser lavrada de modo diverso daquele que consta do título que lhe serve de base e ser por conseguinte inexacta, regime esse que corresponde àquele que se mostra instituído nos artigos 18º e 120º e seguintes do CRP;
6. Aplicado este regime logo se conclui que o Banco Réu não pode ser prejudica pelo erro dos serviços registrais, certo como é que contratou a título oneroso e está de boa fé, posto que ignorava a estipulação em causa;
7. Entendimento diverso abalará fortemente a segurança do comércio jurídico imobiliário, para lá de violar o princípio da certeza e segurança no comércio jurídico que emana do Artigo 2º da CRP, sendo, pois, inconstitucional.
TERMOS EM QUE, improcedendo como improcedem todas e cada uma das conclusões formuladas pela Recorrente, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências.
Na hipótese de se vir a entender que o recurso merece provimento, sempre por via da procedência das razões que fundam a ampliação do seu objecto, deve de igual modo ser-lhe negado provimento, absolvendo-se o Banco Réu dos pedidos com todas as legais consequências».
II. Objecto do recurso.
Como primeira questão, considerando que a doação foi realizada em 1926 e os factos controvertidos ocorreram entre 1998 e 2008, verificar-se-á, em sede de sucessão das leis no tempo, que normas jurídicas se aplicam ao caso dos autos.
Em segundo lugar, coloca-se a questão da interpretação das cláusulas constantes da doação, isto é, cumpre determinar aquilo que a doadora quis que acontecesse no futuro relativamente ao bem que estava a doar através da doação ao réu K… e a resposta jurídica dada na lei à sua vontade, o que passa por verificar as hipóteses colocadas na sentença e alegações, isto é, se o sentido do texto conduz à conclusão que o mesmo contém uma cláusula modal, uma condição resolutiva, uma substituição fideicomissária ou, inclusive, uma combinação de algumas destas figuras.
Em terceiro lugar, face à conclusão a que se chegar quanto aos efeitos jurídicos desencadeados pela declaração de vontade da doadora, cumpre verificar quais os efeitos de tal ou tais cláusulas sobre a penhora do bem doado e alienação do mesmo efectuada no processo executivo n.º 708-B/94 do Tribunal Judicial de Barcelos, a favor da ré L… e alienações subsequentes.
Nesta parte cumpre verificar, designadamente, salvo se uma das respostas prejudicar o conhecimento das questões subsequentes:
Se, existindo doação com substituição fideicomissária (artigo 962.º do Código Civil), tal cláusula impedia a disponibilidade do bem doado por parte do Clube réu e, por via disso, a sua penhorabilidade.
Se, neste caso, a venda/adjudicação no mencionado processo executivo enferma de nulidade por se ter vendido/adjudicado bem inalienável (artigo 280.º e 892.º ou artigo 294.º, todos do Código Civil);
Se, nesta hipótese, os réus Município, M… e N… gozam da protecção conferida aos subadquirentes pelo artigo 291.º do Código Civil; pelo artigo 17.º, n.º 2 (nulidade do registo) do Código do Registo Predial (com referência à al. c) do artigo 16.º deste código) e artigo 124.º, com referência ao art. 18.º, todos do Código do Registo Predial (inexactidão do registo e sua rectificação);
Se o facto de não constar a doação e respectivas cláusulas da certidão do registo predial, tem como consequência a respectiva inoponibilidade aos réus Município, M… e N….
Em quarto lugar, apreciar-se-á o pedido dos recorrentes face às conclusões a que se tiver chegado na análise das questões acabadas de enunciar.
III. Fundamentação.
a) Matéria de facto provada.
1) No dia 23 de Janeiro de 1926, por contrato celebrado por escritura pública denominada «doação com reversão», lavrada no Notário substituto da comarca de Paredes, Q…, no Livro de Notas n.º 76, O… declarou doar ao 1º R., que declarou aceitar, «um terreno que mede dez mil metros quadrados (…) da freguesia de …, que confronta do nascente, poente e sul com ela primeira outorgante e do norte com caminho público, em parte do qual terreno se encontra construído um campo de foot ball e respectivo balneário», ao qual foi atribuído «o valor de trezentos escudos», conforme cópia certificada junta de fls. 79 a 91 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, fazendo constar da mesma escritura: «Que do respectivo terreno que faz parte dos seus bens próprios faz doação ao referido K… que os segundos outorgantes aqui representam para o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos.
Que porém se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais» - A) dos factos assentes;
2) Pela inscrição com o n.º 8868, do Livro G – 10, a fls. 95, de 6 de Janeiro de 1927, com o número 1 de ordem de apresentação, ficou inscrita a favor do 1º Réu a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 25071, a fls. 142 do Livro B-64, bem como a estipulação da reversão e a de que o prédio é para ser aproveitado para fins desportivos ou recreativos, inscrição essa que se baseou na doação mencionada no ponto anterior - B) dos factos assentes e certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 181).
3) O terreno mencionado no ponto 1 encontra-se actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1518/20070301, da freguesia de Castelões de Cepeda, ficha esta que corresponde à informatização da descrição referida no ponto anterior - I) dos factos assentes, certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 101) e informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1655 e de fls. 1827 e 1828.
4) No dia 4 de Maio de 1971, no Cartório Notarial de Paços de Ferreira, foi outorgada a escritura de habilitação cuja cópia certificada se encontra junta de fls. 187 a 208 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual consta que «no dia cinco de Novembro de mil novecentos e trinta e oito (...) faleceu O… (…) no estado de casada em segundas núpcias com S…, no regime de separação absoluta de bens, sem deixar descendentes nem ascendentes vivos.
Que a falecida fez testamento cerrado aprovado no dia nove de Dezembro de mil novecentos e trinta e seis pelo notário Dr. T… (…) instituiu por seus únicos herdeiros em partes iguais, seus sobrinhos (…) U… (…), V… (…) e (…) J… (…)» - C) dos factos assentes e cópia certificada da escritura de habilitação e da certidão anexa da Repartição de Finanças com o teor do testamento junta de fls. 187 a 208.
5) No dia 12 de Abril de 1999, no Cartório Notarial de Penafiel, foi outorgada a escritura de habilitação cuja certidão se encontra junta de fls. 209 a 211 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual consta que «no dia vinte e sete de Janeiro de mil novecentos e noventa e nove (…) faleceu, sem testamento ou qualquer disposição de bens de sua última vontade, U… (…), no estado de viúvo. Que, como herdeiros lhe sucederam dois filhos (…) H… (…) e I…» - D) dos factos assentes.
6) No dia 8 de Novembro de 1989, no Cartório Notarial de Lousada, foi outorgada a escritura de habilitação cuja certidão se encontra junta de fls. 212 e 213 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual consta que «no doze de Julho de mil novecentos e oitenta e oito (…) faleceu V…, no estado de viúva. Que a autora da sucessão não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como herdeiros (…) os seguintes filhos W… (…), G… (…)» - E) dos factos assentes;
7) No dia 3 de Dezembro de 1999, no Cartório Notarial de Lousada, foi outorgada a escritura de habilitação cuja certidão se encontra junta de fls. 214 a 216 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual consta que «no dia doze de Julho de mil novecentos e noventa e nove (…) faleceu W…, no estado de casado (…) sob o regime da comunhão geral de bens com B… (…). Que o falecido não fez testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros (…) sua referida esposa (…) e seus quatro filhos, a saber: C…, D…, E… e F… (…)» - F) dos factos assentes;
8) No decurso dos anos de 1997 e 1998 sobre o terreno mencionado no ponto 1 foram inscritas na Conservatória do Registo Predial de Paredes, pelas apresentações 33 de 1997/04/09, 34 de 1997/04/09, 4 de 1997/04/11, 9 de 1998/04/24 e 31 de 1998/05/11, diversas penhoras, efectuadas no âmbito de vários processos executivos movidos por terceiros sobre o 1.º R. - J) dos factos assentes;
9 - Pelo Tribunal de Trabalho de Barcelos correu termos o processo de Execução de Sentença com o n.º 708-B/1994, em que era exequente X… e executado o K…, ora 1.º R., no âmbito do qual, em 24 de Fevereiro de 1997, foi penhorado o terreno mencionado no ponto 1, penhora esta que foi inscrita na Conservatória do Registo Predial, pela apresentação 34, de 09/04/1997, referida no ponto anterior - certidão judicial de fls. 1443 a 1454 e certidão predial de fls. 92 a 186;
10 - Nos autos de carta precatória com o n.º 14/98, que correram termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, extraídos do processo de Execução de Sentença com o n.º 708-B/1994 referido no ponto anterior, para venda por propostas em carta fechada (ou negociação particular, caso aquela se frustrasse) do imóvel aí penhorado, foi designado o dia 23 de Abril de 1998, pelas 10 horas, para a abertura de propostas - certidão judicial de fls. 1443 a 1454 e K) dos factos assentes;
11 - Na sequência da aceitação de proposta ocorrida nessa diligência, no processo de Execução de Sentença com o nº 708-B/1994 referido no ponto 9 foi proferido, em 5 de Maio de 1998, o despacho constante de fls. 1454 da certidão judicial de fls. 1443 a 1454, por intermédio do qual o prédio mencionado no ponto 1 foi adjudicado à 2.ª R., a qual pagou o preço de 15.100.000$00 - K) dos factos assentes e certidão judicial de fls. 1443 a 1454];
12 - No mesmo despacho de 5 de Maio de 1998, referido no ponto anterior, «nos termos do art. 888º do C.P. Civil», foi ordenado «o cancelamento dos registos de direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do art. 824º do Cód. Civil e, bem assim, das inscrições relativas a direitos de garantia» - certidão judicial de fls. 1443 a 1454;
13 - Os AA. não intervieram nos processos executivos aludidos nos pontos 8 e 9 - respostas aos pontos 14º e 17º da base instrutória;
14 - Pela Ap. 42/140798 foi inscrita na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 34774, a fls. 54-v. do Livro G-49, a aquisição da propriedade a favor da 2.ª R., por adjudicação em execução movida ao 1º R. - L) dos factos assentes e certidão predial de fls. 92 a 186 (fls.156);
15 - A 2ª R. foi instituída por escritura pública de 30 de Maio de 1997, «tendo como fim promover, apoiar ou executar projectos e programas de intercooperação e de interesse social, com especial incidência na área do Sector Cooperativo e da Economia Social, visando contribuir para o desenvolvimento cívico, cultural, desportivo, económico e social dos destinatários dos referidos projectos e programas» - cópia da escritura pública de fls. 228 a 261;
16 - A fls. 223 encontra-se junta a cópia de uma acta de assembleia ordinária da Câmara Municipal … datada de 13 de Maio de 1998 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual consta que «pelo Senhor Presidente da Câmara foi apresentada ao executivo uma proposta no sentido de a Câmara Municipal adquirir o P… à L… (…). Seguidamente (…) o Senhor Presidente colocou a votação a proposta (…), ficando mandatado o Senhor Presidente da Câmara para proceder à negociação, tendo em atenção a salvaguarda dos interesses do município, designadamente no que concerne ao desporto e cultura, tendo-se verificado que a mesma foi aprovada, por maioria (…)» - T) dos factos assentes;
17 - Em 27 de Maio de 1998 foi celebrado entre a 2.ª R. e a Câmara Municipal … o contrato denominado «Contrato-promessa de compra e venda» cuja cópia se encontra junta a fls. 225 e 226 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, por intermédio do qual aquela prometeu vender a esta «o P… e instalações anexas, agora utilizado pelo K… pelo preço que resultar de venda em hasta pública das fracções F, G e H do rés-do-chão, e B e D da Cave do edifício, situado no Bairro “…” (…)» - S) dos factos assentes;
18 - Em 14 de Junho de 1999, o Conselho de Administração da 2.ª R. deliberou «proceder à alienação do P… e instalações anexas, utilizado pelo K…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes, sob o número 25071, fls. 142- Livro B-64, omisso à matriz (…), à Câmara Municipal …, nas condições acordadas (…) através do “Contrato promessa de compra e venda” celebrado em vinte sete de Maio de mil novecentos noventa e oito.
Esta venda acontece no âmbito da colaboração da L… com a Câmara Municipal …, no sentido de preservação daquele espaço desportivo, tendo em atenção as conversações entre o Presidente da L… e o senhor Presidente da Câmara, tendente à recuperação económica e desportiva do K…» - cópia certificada da Acta nº 8 da reunião do Conselho de Administração da 2ª R. de fls. 414 a 416;
19 - No dia 12 de Outubro de 1999 foi outorgada a escritura de compra e venda cuja certidão se encontra junta de fls. 218 a 221 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual foram outorgantes a 2.ª R., representada por dois administradores, e o Presidente da Câmara Municipal …, por intermédio da qual os representantes da 2.ª R. declararam que «conforme contrato-promessa de compra e venda datado de vinte e sete de Maio de mil novecentos e noventa e oito (…), vendem ao Município …, representado pelo segundo outorgante, pela importância total de sessenta e dois milhões quatrocentos e cinquenta e oito mil escudos (…) o Estádio e Instalações anexas, ora designado por “P…” (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número vinte e cinco mil e setenta e um (…) a folhas cento e quarenta e dois do Livro B – sessenta e quatro, com inscrição a favor da L… pela inscrição G – quarenta e nove a folhas cinquenta e quatro verso número trinta e quatro mil setecentos e setenta e quatro» tendo o Presidente da Câmara Municipal … declarado aceitar para o 3.º R. a presente venda - Q) dos factos assentes;
20 - Pela Ap. 3 de 2007/03/01 foi inscrita na Conservatória do Registo Predial a aquisição da propriedade a favor do 3.º R., por compra à 2ª R. - R) dos factos assentes e certidão predial de fls. 92 a 186;
21 - O prédio mencionado no ponto 1 foi participado ao Serviço de Finanças, com vista à sua inscrição na matriz, já que aí se encontrava omisso, por intermédio de declaração apresentada pelo 3.º R. em 27/02/2007, onde se indica como tipo de prédio «…», tendo-lhe sido atribuído o artigo matricial provisório P2371 [cópia da declaração «modelo 1» enviada pelo Serviço de Finanças de Paredes de fls. 858 e 859;
22 - Em 4 de Julho de 2007 teve lugar reunião ordinária da Câmara Municipal …, com a finalidade de apreciar e votar o processo de «alienação em hasta pública dos prédios que integram a actual zona de equipamentos desportivos», na qual o Presidente da Câmara justificou «a venda dos terrenos na premissa de se construir uma Nova Cidade Desportiva», tendo o executivo deliberado, por maioria, «aprovar o processo de alienação em hasta pública dos prédios que integram a actual zona desportiva de equipamentos desportivos, nos termos dos documentos que ficam a fazer parte integrante da presente deliberação e remeter o assunto à discussão e votação, em sede de Assembleia Municipal» - fotocópia certificada da acta de fls. 1599 a 1611;
23 - A deliberação referida no ponto anterior teve os votos contra dos vereadores eleitos pelo Partido Socialista e do vereador eleito pelo Partido CDS-PP, tendo os primeiros apresentado declaração de voto na qual, entre outras objecções levantadas à aprovação da proposta, referem que se desconhece «se o actual executivo acautelou devidamente os encargos eventualmente decorrentes da cedência por terceiros, de parte dos terrenos que integram a actual Zona Desportiva, para esse fim, face à nova ocupação proposta», e o segundo apresentado declaração de voto na qual refere não estar «em condições de avaliar os impactos do futuro empreendimento e da existência de direitos de ex-expropriados ou de terceiros» - fotocópia certificada da acta de fls. 1599 a 1611;
24 - Nos documentos que ficaram «a fazer parte integrante da presente deliberação» referidos no ponto 22 inclui-se um intitulado de «Proposta», onde estão identificados os seis prédios urbanos «que integram a actual zona desportiva», o primeiro dos quais o mencionado no ponto 1, e se refere que os mesmos «integram o domínio privado», que «existe a intenção de implementação de infraestrutura comercial para o local» e que «o Município se encontra já a preparar o projecto para uma nova Zona de Equipamentos Desportivos a instalar num outro local», propondo o Presidente da Câmara Municipal … a alienação desses prédios, em hasta pública, mediante as condições gerais e especiais constantes do documento anexo, com o preço base de licitação indicado no relatório de avaliação também anexo, de €6.949.487,44, anexos estes também incluídos nos documentos referidos no ponto 21 - fotocópia certificada da acta de fls. 1599 a 1611;
25 - No documento anexo referido no ponto anterior, na parte respeitante às condições especiais de alienação, consta, nomeadamente, que «os referidos bens imóveis serão alienados em conjunto, com o propósito de neles ser implantado, pelo menos, um “Conjunto Comercial” (…), o qual terá, no mínimo, que conter uma área de construção de 25 000 m2», e na parte respeitante às condições gerais consta, entre outras, que «a alienação será formalizada por escritura pública de compra e venda, a outorgar (…), no máximo, até 12 (doze) meses após a data da realização da hasta pública», e que «o adjudicatário tomará posse dos imóveis logo após a outorga da escritura pública» - fotocópia certificada da acta de fls. 1599 a 1611;
26 - No relatório de avaliação anexo referido no ponto 24, explicita-se que os edifícios actualmente existentes no conjunto de prédios em causa «não são avaliados por se entender que num aproveitamento económico normal serão a demolir para que no terreno sejam materializadas novas construções» e refere-se que os terrenos estão classificados «nas cartas de zonamento do Plano de Urbanização da Cidade de Paredes (…) como “Zona de Equipamentos – Zona Desportiva”» - fotocópia certificada da acta de fls. 1599 a 1611;
27 - No dia 18 de Setembro de 2008 foi outorgada a escritura de compra e venda cuja cópia se encontra junta de fls. 269 a 273, integrada na certidão predial de fls. 262 a 274, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual foram outorgantes o 3.º R., representado pelo Presidente da Câmara Municipal …, e a sociedade de que a 4.ª R. é massa insolvente, representada por um administrador, por intermédio da qual o representante do 3.º R. declarou que «na sequência do procedimento de hasta pública que correu termos (…) no passado dia 2007/08/17, em que (…) se efectivou a respectiva adjudicação provisória tendo a adjudicação definitiva ocorrido em 2008/03/19, vende ao segundo outorgante» os seis imóveis aí identificados, adjudicados pelo montante de €8.500.000,00, sendo o primeiro desses imóveis «o prédio urbano, designado por “P…”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1518 de … e inscrito na matriz sob o artigo P-2371, com a inscrição G- AP. 3 de 2007/03/01 de aquisição a favor [do] Município …», pelo preço de €2.732.064,80, tendo o representante da sociedade de que a 4.ª R. é massa insolvente declarado aceitar a venda nos termos exarados e «que os prédios ora adquiridos se destinam, necessariamente, à implantação no local de, pelo menos, um conjunto comercial, que terá no mínimo, uma área de construção de vinte e cinco mil metros quadrados» - certidão predial de fls. 262 a 274 e O) dos factos assentes;
28 - Na escritura pública referida no ponto anterior, o Senhor Notário Privativo do Município, perante o qual a mesma foi outorgada, atestou ter verificado a suficiência dos poderes do Presidente da Câmara Municipal … para o acto «pela fotocópia da deliberação da Câmara Municipal de quatro de Julho de dois mil e sete e deliberação da Assembleia Municipal de dezasseis de Julho de dois mil e sete», que arquivou - certidão predial de fls. 262 a 274.
29 - A aquisição pela sociedade de que a 4.ª R. é massa insolvente do prédio mencionado no ponto 1 foi registada na Conservatória do Registo Predial de Paredes pela Ap. 33, de 2008/10/24, por compra ao 3.º R. - P) dos factos assentes e certidão predial de fls. 92 a 186.
30 - No dia 9 de Janeiro de 2009 foi celebrada, no Cartório Notarial de Lisboa, uma escritura de hipoteca cuja certidão se encontra junta de fls. 115 a 125 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, na qual foram outorgantes a sociedade de que a 4.ª R. é massa insolvente, representada por um administrador, e o 5.º R., representado por um procurador, por intermédio da qual aquele declarou que a sociedade sua representada constitui, a favor do 5.º R. «hipoteca voluntária» sobre os seis imóveis aludidos na escritura referida no ponto 27, para garantia do pagamento das responsabilidades resultantes de um financiamento no montante de oito milhões de euros e respectivos juros, tendo o procurador do 5.º R. declarado aceitar para este a hipoteca nos termos exarados - M) dos factos assentes.
31- A hipoteca mencionada no ponto anterior encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Paredes pela Ap. 4217 de 2009/01/13 - N) dos factos assentes.
32 - O terreno mencionado no ponto 1 é conhecido por Campo ou P… - G) dos factos assentes.
33 - O P… foi utilizado de forma ininterrupta pelo 1.º R. até meados de 2008 para a prática de actividades desportivas desenvolvidas por esse clube - H) dos factos assentes.
34 - O 1.º R., desde 1998 até 2008 usou o P… com a permissão da 2.ª e do 3.º RR. - resposta ao ponto 18º da base instrutória.
35 - Na transição da época futebolística de 2007-2008 para a de 2008-2009 foi comunicado ao 1.º R. que nesta nova época já não poderia realizar jogos no P… - resposta ao ponto 1.º da base instrutória.
36 - Pelo menos na época futebolística de 2008-2009 o 1.º R. teve de recorrer a outros campos de futebol, emprestados, para realizar os jogos oficiais em casa do seu clube, tais como os do «Y…» e do «Z…», nas freguesias de … e de …, respectivamente, até poder passar a realizá-los, como sucede actualmente, no campo de futebol da denominada «Cidade Desportiva» (ainda não concluída), na freguesia de … -resposta ao ponto 2.º da base instrutória.
37 - Nos prédios identificados na escritura mencionada no ponto 27, junto ao P…, o 3.º R. construiu dois campos de relvado sintético e um pavilhão gimnodesportivo, tendo ainda construído, fora desses prédios, mas próximo deles, piscinas municipais e campos de ténis - resposta ao ponto 11.º da base instrutória.
38 - Os equipamentos desportivos referidos no ponto anterior funcionaram até 2008, excepto as piscinas municipais e os campos de ténis que continuam a funcionar até ao presente - resposta ao ponto 12.º da base instrutória.
39 - O 3.º R. retirou as cadeiras em plástico que existiam nas bancadas do P…, que foram desmontados os balneários e as casas de banho e que a cobertura em chapa das bancadas desapareceu, em data posterior a Julho de 2008 - resposta ao ponto 3.º da base instrutória.
40 - Está prevista a demolição, entre outras construções existentes nos restantes prédios a que respeita a escritura aludida no ponto 27, do P…, para que aí possa ser construída a obra a que respeitam o Processo de Loteamento Urbano n.º 06/2008 e o Processo de Licença para Obras n.º …/2008 da Câmara Municipal, que se encontram anexos aos presentes autos, na qual se inclui uma superfície comercial - resposta ao ponto 4.º da base instrutória.
41 - Para o conjunto dos prédios a que respeita a escritura aludida no ponto 27, no qual se inclui o P…, está projectada a construção de um loteamento composto por quatro lotes, o primeiro, maior, com uma «grande superfície comercial», o segundo com habitação, o terceiro com habitação ou um estabelecimento hoteleiro e o quarto com uma estação de serviço e de abastecimento de combustíveis, situando-se os lotes 2 e 3 e uma parte do lote 1 (esta ocupando cerca de metade do terreno) no local onde se encontra hoje o Estádio - resposta ao ponto 5.º da base instrutória.
42 - Quando aceitou receber a hipoteca referida no ponto 30, o 5.º R. ignorava a existência da doação aludida no ponto 1 e o seu teor, não constando nenhuma referência à mesma da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Paredes que foi entregue ao 5.º R. no âmbito do processo de concessão do empréstimo que aquela hipoteca se destinou a garantir - resposta ao ponto 19.º da base instrutória.
43 - Quando a sociedade de que a 4.ª R. é massa insolvente ofereceu o imóvel de garantia ao 5.º R. nunca lhe comunicou aquela doação - resposta ao ponto 20.º da base instrutória.
44 - Quando foi celebrada a escritura identificada no ponto 27, da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Paredes que foi utilizada para o efeito não constava nenhuma referência à doação aludida no ponto 1 e ao seu teor - resposta ao ponto 21.º da base instrutória.
45 - Aquando da celebração da escritura identificada no ponto 27, não foi comunicado à sociedade, de que a 4.ª R. é massa insolvente, a existência daquela doação - resposta ao ponto 22.º da base instrutória.
46 - Por declaração de 9 de Fevereiro de 1985, publicada no Diário da República n.º 42, II Série, de 20 de Fevereiro de 1985, foi publicitado que, por despacho do Primeiro-Ministro de 5 de Fevereiro de 1985, foi declarada a utilidade pública, nos termos dos arts. 2.º e 3.º do D.L. 460/77, de 07/11, do K…, ora 1.º R. - teor da publicação oficial do Diário da República n.º 42, II Série, de 20 de Fevereiro de 1985, pág. 1651.
47 - A descrição predial com o n.º 25071, a fls. 142, do Livro B-64, da Conservatória do Registo Predial de Paredes, referida no ponto 2, foi aberta com o registo de aquisição a favor do 1.º R. aí também referido, requerido em 6 de Janeiro de 1927 - informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1827 e 1828.
48 - A Ap. 3, de 1 de Março de 2007, respeitante à inscrição da aquisição a favor do 3.º R. referida no ponto 20, deu origem à informatização da descrição do prédio mencionado no ponto 1 para a ficha aludida no ponto 3, com passagem directa do livro para a ficha informatizada - certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 101) e informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1655 e de fls. 1827 e 1828.
49 - Na descrição predial referida no ponto anterior, constante de fls. 142 do Livro B-64, na parte respeitante à «referência aos outros livros de registo», entre várias referências respeitantes ao Livro F-12 (penhoras), consta a referência ao Livro G-10, fls. 95, inscrição n.º 8868 (a aquisição referida no ponto 2) e ao Livro G-49, fls. 54-v., inscrição n.º 34774 (a aquisição referida no ponto 14), sem que qualquer das duas, designadamente a n.º 8868, se encontre traçada - certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 101).
50 - Pela Ap. 2425, de 2009/10/29, foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Paredes a pendência da presente acção, com registo provisório por natureza e por dúvidas, tendo as dúvidas sido removidas pela Ap. 81 de 2010/05/26 - certidões prediais de fls. 576 a 586 e de fls. 599 a 603.
51- Da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Paredes em 13/10/2011, com o teor da descrição referida no ponto 3 e dos registos em vigor sobre a mesma, constante de fls. 1461 a 1465, consta apenas a aquisição referida no ponto 29, a hipoteca referida no ponto 31 e a acção referida no ponto 50 (incluindo uma inscrição de recusa de inscrição a acção, por já se encontrar registada) [certidão predial de fls. 1461 a 1465.
52 - Da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Paredes em 18/11/2011, com o teor da descrição referida no ponto 3 e do seu histórico informatizado, constante de fls. 1573 a 1578 constam apenas as inscrições já aludidas no ponto anterior e as inscrições respeitantes às penhoras referidas no ponto 8, os averbamentos de cancelamento das penhoras inscritas pelas apresentações 9 de 1998/04/24 e 31 de 1998/05/11, efectuados em 19/07/2007, as anotações de que caducaram as restantes penhoras cujas inscrições estão referidas no ponto 8, também efectuadas em 19/07/2007, e a aquisição referida no ponto 20 - certidão predial de fls. 1573 a 1578.
53 - Não existiu averbamento de cancelamento da inscrição n.º 8868 referida no ponto 2 - certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 181) e informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1655 e 1656.
54 - Por se ter considerado que os efeitos da inscrição n.º 8868 tinham cessado por transferência para a inscrição n.º 34774, deixando aquela de estar em vigor, sem ter que ser objecto de qualquer averbamento de cancelamento, nos termos do art. 10.º do C.R.Pr., a inscrição n.º 8868 não foi extractada para a ficha informatizada - certidão predial de fls. 92 a 186 (fls. 101 e 181) e informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1827 e 1828.
55 - Por se ter considerado que os efeitos da inscrição n.º 34774 tinham cessado por transferência para a inscrição referida no ponto 20, deixando aquela de estar em vigor, nos termos do art. 10.º do C.R.Pr., a inscrição n.º 34774 não foi extractada para a ficha informatizada - informação da Conservatória do Registo Predial de fls. 1827 e 1828.
b) Apreciação das questões objecto do recurso.
1 – Verifica-se que as partes invocam nas suas alegações diversas normas do Código Civil de 1867 e do actual Código Civil de 1966, cumprindo, por isso, determinar que normas deverão ser aplicadas, ainda que não pareça existir entre as partes divergências essenciais neste aspecto.
As normas fundamentais nesta matéria constam do artigo 12.º do Código Civil, onde se dispõe o seguinte:
«1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor».
O grande princípio do qual tem de se partir é este: a lei só rege para o futuro.
O que sucede, porém, é que a lei quando entra em vigor não entra em vigor como se nada existisse anteriormente, como se se estivesse no começo do Mundo.
A lei entra em vigor num mundo repleto de situações jurídicas e vai aplicar-se ao que já existe nesse momento e ao que virá a existir.
Ora, neste ponto, há uma distinção a fazer consoante o comando da lei «de agora em diante» se refere:
a) A um facto, cujo efeito determina (1.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º).
Se a lei diz que doravante este facto produz ou extingue um direito, claro está que só se aplica aos factos ocorridos depois dela entrar em vigor.
As proposições jurídicas que determinam o efeito de um facto, do qual deriva o nascimento, modificação ou extinção de uma relação jurídica, referem-se apenas aos factos futuros daquela espécie.
Assim, se um facto é causa do nascimento de um direito, por exemplo, de uma servidão de passagem, e a nova lei extingue esse efeito, o facto e o efeito já nascidos e vigentes continuam a ser válidos, muito embora o mesmo facto, segundo a lei nova, já não produza mais esse efeito.
Por outro lado, as normas que segundo a lei nova retiram de um certo facto a extinção ou modificação de uma relação jurídica referem-se igualmente a todos os factos futuros desta espécie e quando esse facto vier a ocorrer produz-se segundo a lei nova a extinção ou modificação da relação jurídica, incluindo aquelas relações que já haviam nascido sob o império da lei antiga (pense-se, por exemplo, em factos que integram uma nova causa de divórcio).
b) Directamente a um direito subjectivo ao qual atribuiu determinado conteúdo, alcance, etc. (2.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º).
Se a lei diz que doravante este direito deve ter este ou aquele conteúdo, claro está que a nova lei se aplica a todos os direitos daquela espécie, já nascidos ou por nascer.
Nestes casos, a norma refere-se aos direitos em si mesmos e determina, sem enlace com os factos, o seu nascimento, o seu conteúdo ou o seu efeito, a sua existência ou inexistência.
Tal como nos casos em que a norma incide sobre factos e seus efeitos, também neste caso a norma tem esta vocação: «de agora em diante» este direito passa a ter este conteúdo, este e este efeitos.
Neste caso, a nova lei alcança os direitos já existentes. Os direitos existentes passam a ter «de agora em diante» este conteúdo, este efeito, são suprimidos, etc. [1].
Por conseguinte, quanto à validade das cláusulas aplica-se a lei que vigorava quando as mesmas foram exaradas na escritura, ou seja, o Código Civil de 1867.
Porém, quanto ao conteúdo dos direitos em si mesmos emergentes das cláusulas da doação, o actual Código Civil aplica-se às relações jurídicas que transitaram temporalmente do antigo para o novo Código Civil, o que significa que o alcance jurídico das cláusulas (conteúdo dos direitos) constantes da doação e o efeitos dos factos relevantes (penhora, adjudicação do imóvel e alienações posteriores) serão analisados à luz das normas do Código Civil de 1966 [2].
2 – Vejamos agora a questão da interpretação das cláusulas constantes da doação, isto é, aquilo que a doadora quis que acontecesse no futuro com o bem que estava a doar através da doação ao Clube ora réu.
Bem como a resposta jurídica dada na lei à vontade da doadora, o que passa por verificar se o sentido do texto da escritura conduz à conclusão de que foi instituída uma cláusula modal, uma condição resolutiva, uma substituição fideicomissária ou, inclusive, uma combinação de algumas destas figuras.
Recapitulando, o teor do texto é este:
(I) 1.ª cláusula: O terreno doado era para o donatário «o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos»;
(II) 2.ª cláusula: «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais».
Afigura-se que estes textos não padecem de qualquer ambiguidade, ou seja, não se retiram dois sentidos ou mais das palavras usadas, sendo compreensível, com clareza, aquilo que a doadora quis dizer.
Esta constatação não implica que seja claro ou pacífico o alcance das declarações da doadora ao nível jurídico, como o comprova a diversidade das interpretações referidas nos autos.
Apenas se diz que o texto é claro quanto ao destino que a doadora conferiu ao bem doado
Assim, quanto à 1.ª cláusula.
A doadora assinalou uma finalidade relativamente à utilização do terreno que doava e que era para «fins desportivos ou recreativos».
A doadora doou o terreno para estes fins e não para quaisquer outros fins; por sua vez, note-se bem, o Clube donatário aceitou a doação para tais fins, com vinculação a esses fins e não para outros fins.
Por conseguinte, a finalidade assinalada à utilização do terreno foi assumida por doadora e donatário como integrando o conteúdo do contrato de doação, portanto, como algo vinculativo.
Coloca-se, por conseguinte a pergunta: qual a consequência, para o clube donatário, resultante do facto deste, por hipótese, passar a utilizar o terreno, por exemplo, para parque de estacionamento?
Caso não se tratasse de uma doação, mas de uma compra e venda, o Clube estaria a faltar ao cumprimento do contrato e se porventura o incumprimento fosse considerado definitivo, nos termos do artigo 801.º do Código Civil, a donatária teria direito à resolução do contrato [3].
Porém, o Código Civil, na regulamentação do contrato de doação, contém norma específica para o caso dos autos, sendo a cláusula relativa à vinculação do uso da coisa doada a um certo fim, um caso de «cláusula modal», prevista no artigo 963.º do Código Civil.
Foi esta a via seguida na sentença e que se afigura ser a correcta.
Vejamos.
Como referiu Manuel de Andrade, «…o modo é a cláusula acessória típica por virtude da qual nas doações e nas liberalidades testamentárias (…) o autor da liberalidade impõe ao respectivo beneficiário a obrigação de adoptar um certo comportamento (dar ou não dar, fazer ou não fazer alguma coisa), no interesse próprio do disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio beneficiário.
Esta cláusula tem o nome de modo porque importa uma limitação (modus) à liberalidade (torna-a mais moderada). Ex.: A doa a B certos prédios com o encargo para B de pagar uma pensão mensal a 500$00 a C…» [4].
Os autores Pires de Lima/Antunes Varela, assinalaram que «Essencial ao conceito de modo (encargo) é que o dever imposto ao onerado não constitua o correspectivo da prestação recebida pelo donatário, mas apenas uma limitação ou restrição dela» [5].
Cabral de Moncada, referindo-se a esta cláusula, indicou que «Duma maneira mais simples, pode definir-se esta cláusula acessória, própria dos negócios a título gratuito, como uma limitação ou restrição imposta aos herdeiros, legatários ou donatários, e relativa, ou ao uso e destino que devem ter as coisas a eles deixadas ou doadas, ou a quaisquer prestações que em proveito de certas pessoas, inclusive o doador, devem ser satisfeitas por aquele que recebe a liberalidade» [6].
Por conseguinte, se é feita a doação de um prédio e ao mesmo tempo o doador vincula o donatário a usar a coisa para um certo fim, no caso dos autos para fins desportivos ou recreativos, verifica-se que o donatário não pode dispor do prédio de forma livre, para qualquer outro fim.
O doador ao exigir ao donatário uma certa conduta futura, no sentido de só usar o bem em certo tipo de actividade, está a restringir o uso a dar ao objecto doado, que de outra forma seria irrestrito, dentro dos limites da lei.
Exige-se, por conseguinte, uma prestação ao donatário, que consiste na adopção de um certo comportamento, num facere.
Ora, nada mais é necessário para que exista uma cláusula modal.
Com efeito, como sustentou Antunes Varela, «O nexo lógico-psicológico existente entre o modo e a doação pode, de facto, exprimir-se ainda numa simples restrição ou limitação da vantagem patrimonial proporcionada ao donatário, sem a prestação imposta haver de sair directa ou indirectamente do próprio objecto da doação, como mostram alguns dos exemplos anteriormente referidos» [7].
E esta limitação assume natureza patrimonial na medida em que o donatário não pode utilizar o prédio para outros fins que seriam bem mais lucrativos, como, por exemplo, a alienação da totalidade ou parte do prédio para construção de habitações.
Daí que se conclua que tem natureza modal a cláusula que dispõe no sentido do terreno doado ser para o donatário «o aproveitar para os fins sportivos ou recreativos».
Não se trata, pois, de uma condição resolutiva, isto é, nos termos mencionados no artigo 270.º do Código Civil, da previsão de um facto futuro e incerto cuja ocorrência determinaria a resolução dos efeitos da doação, embora salvaguardando os já produzidos (artigo 434.º, n.º 2, ex vi artigo 270.º, ambos do Código Civil).
Aliás, a donatária não declarou no texto da doação que a utilização do terreno para outro fim implicava a resolução da doação.
Ora, só uma tal declaração constituiria uma condição resolutiva, mas essa declaração, com esse conteúdo, não consta do texto da doação, que nada prevê a título de sanção para o incumprimento dos fins assinalados ao uso do terreno doado.
Se tal declaração não existir, como não existe, então também não existe no caso uma condição resolutiva.
Cai-se na regra prevista do artigo 966.º do Código Civil actual [8], onde se prescreve que «O doador, ou os seus herdeiros, também podem pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento de encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato».
Por conseguinte, se não existir uma estipulação no texto contratual, a declarar que o doador pode resolver a doação em caso de incumprimento (culposo) dos fins assinalados à doação, como ocorre no caso dos autos, a resolução não é possível: nem sob o argumento de se tratar de uma condição resolutiva, pois esta condição não consta do texto do contrato de doação; nem sob a alegação do direito de resolução da doação, que carecia também de previsão no texto contratual.
Resumindo: a cláusula em causa não configura uma condição resolutiva, mas sim uma cláusula modal, não sendo possível destruir os efeitos da doação, através da resolução (artigos 432.º e seguintes do Código Civil), mesmo que ocorra violação da finalidade imposta ao donatário pela doadora.
*
Quanto à 2.ª cláusula («porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais»).
Esta cláusula divide-se em dois segmentos autónomos:
Um - «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido», reverterá o prédio doado para ela doadora.
Trata-se, sem dúvida, em relação à doadora, de uma cláusula de reversão [9].
À data da escritura, o Código Civil de 1867 estipulava no seu artigo 1473.º, que
«O doador pode estipular a reversão da coisa doada, tanto a seu favor, e não de outras pessoas, salvo nos casos em que a substituição testamentária é permitida».
À data da doação, o artigo 1867.º do Código Civil dispunha acerca das substituições testamentárias da seguinte forma:
«A disposição testamentária, pela qual algum herdeiro ou legatário é encarregado, de conservar e transmitir por sua morte a um terceiro a herança ou o legado, diz-se substituição fideicomissária ou fideicomisso».
E o artigo 1867.º, à data da doação, dispunha:
«São proibidas para o futuro as substituições fideicomissárias, excepto:
1. Sendo feitas por pai ou mãi [10] nos bens disponíveis, em proveito dos netos, nascidos ou por nascer;
2. Sendo feitas em favor dos descendentes, em primeiro grau, de irmãos do testador».
Com a redacção introduzida no Código Civil pela Reforma de 1930, este artigo 1867.º do Código Civil passou a ter esta redacção:
«São proibidas as substituições fideicomissárias em mais de um grau».
Com a redacção introduzida no Código Civil pela mesma Reforma, o artigo 1473.º passou a ter a seguinte redacção:
«O doador pode estipular a reversão da coisa doada, contanto que seja a seu favor, como para outras pessoas, nos termos do artigo 1867.º e seguintes».
E no artigo 1474.º no mesmo Código Civil de 1867 dispunha-se, ainda, que «A reversão estipulada pelo doador a favor de terceiros, com quebra da disposição do artigo antecedente, é nula mas não produz a nulidade da doação».
Vejamos o que se retira do conjunto destas disposições legais.
À data da doação, a doadora podia, como fez, estipular uma cláusula de reversão em seu próprio benefício e podia também instituir uma cláusula de reversão a favor dos seus netos ou sobrinhos e só destes (ver artigo 1867.º).
Como se tem vindo a dizer, a doadora estipulou que o bem regressaria ao seu património ou iria para o património dos seus herdeiros no caso do Clube donatário se extinguir ou for extinto.
Mas a que herdeiros se referia a doadora?
Referia-se aos herdeiros que eram herdeiros à data da doação (dois irmão ou um irmão e filhos deste, se apenas um deles fosse vivo – ver pág. 52 da sentença) ou a quem fosse herdeiro à data da sua morte?
Na sentença, se bem se interpreta, sustentou-se que à data da doação a doadora não podia dispor genericamente a favor dos «seus herdeiros», pois o artigo 1867.º do Código Civil só permitia, nessa data, a reversão a favor daquelas pessoas que pudessem também beneficiar de substituição fideicomissária, e estas pessoas eram então apenas os netos (que a doadora não tinha) e os sobrinhos (que tinha), sendo certo que a doadora tinha nessa data irmãos como herdeiros, pelo menos um, mas não podia haver reversão a favor dos irmãos.
Sendo assim, diz-se na sentença, a cláusula colocada na doação a favor dos «seus herdeiros» só podia querer significar que «…a doadora instituiu uma condição resolutiva à doação que efectuou, no sentido de que a doação ficaria sem efeito, seria “destruída”, caso o donatário se dissolvesse ou fosse dissolvido, revertendo o bem doado novamente ao património da doadora, quer directamente para si, caso ainda estivesse viva, quer à sua herança, beneficiando os seus sucessores nos termos legais, caso já tivesse falecido» (pág. 53 da sentença).
Ora, afigura-se que esta interpretação da cláusula e que conduziu a esta conclusão acabada de transcrever da sentença, não é a adequada, pelas razões que vão ser expostas:
Em primeiro lugar, a doadora estando a dispor normativamente, como estava, a respeito do futuro («Que porém se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais»), ao referir-se a «herdeiros» só podia querer referir-se a quem na altura da eventual «dissolução» do Clube réu fosse seu herdeiro e não apenas e restritivamente aos herdeiros que o eram efectivamente em 23 de Janeiro de 1926 (se a doadora falecesse neste dia).
Aliás, se assim não fosse, a doadora teria identificado os herdeiros que estava a querer beneficiar, para que não surgissem no futuro quaisquer dúvidas, pois poderiam sobrevir outros, ou, se não os quisesse identificar pelos nomes, teria dito que os herdeiros eram apenas aqueles que eram seus herdeiros em 23 de Janeiro de 1926 e não outros, excluindo, desta forma os descendentes (sobrinhos) de algum dos seus herdeiros que fosse seu herdeiro 23 de Janeiro de 1926 e viesse a falecer antes dela doadora.
Em segundo lugar, quando alguém institui direitos a favor de herdeiros, sem identificar o seu nome, só pode referir-se a quem for herdeiro à data da sua morte, pois não há outra forma de identificar quem é herdeiro a não ser verificando quem o é devido ao facto de alguém ter falecido.
Em terceiro lugar, tal interpretação conduziria a uma estipulação bizarra, cujas finalidades não se alcançam em termos de senso comum e não logram obter nos factos provados quaisquer indícios, isto é: se essa interpretação valesse, a testadora estava a excluir sobrinhos que fossem filhos de algum dos seus irmãos vivo em 23 de Janeiro de 1926, mas que não lhe sobrevivesse.
Ou seja, como a substituição fideicomissária só podia ser feita a favor de netos (que a doadora não tinha) e/ou sobrinhos, os seus irmãos vivos há data da doação é que eram nessa altura os herdeiros e não os filhos destes.
Por isso, se os herdeiros fossem apenas aqueles que o eram à data da doação, então os sobrinhos filhos de um irmão vivo à data da doação não podiam ser os herdeiros referidos na cláusula da doação.
Mas já podiam ser herdeiros os filhos de um irmão falecida à data da doação.
Porém, por que razão estaria a doadora a excluir alguns sobrinhos e não outros?
Ora, tal cláusula, interpretada com tal conteúdo, não logra ter qualquer sentido face a realidade conhecida resultante dos factos provados e, por ser incompreensível, tem de ser afastada em termos interpretativos.
Afigura-se, pois, que a doadora ao referir-se no texto da doação aos seus herdeiro se referiu aos herdeiros que o fossem na data em que falecesse.
Daí que se dissinta da argumentação da sentença que concluiu «…que a cláusula em apreço constitui uma verdadeira e própria cláusula de reversão, traduzindo uma condição resolutiva, e não assume natureza de substituição fideicomissária, pelo que nenhuma limitação existia quanto à disponibilidade do bem, nomeadamente que impedisse a sua transmissão no processo de execução (ou as posteriores) (pág. 54 da sentença).
Cumpre, pois, verificar, face à interpretação dada à cláusula, se a cláusula em questão pode ou não valer como uma cláusula fideicomissária.
À data do falecimento da doadora, em 1936, o artigo 1473.º já dispunha que «O doador pode estipular a reversão da coisa doada, contanto que seja a seu favor, como para outras pessoas, nos termos do artigo 1867.º e seguintes».
Ou seja, quando a doadora faleceu o Código Civil de 1867, já permitia a reversão a favor do próprio doador e a favor de outras pessoas, mas, neste caso, nos termos do artigo 1867.º.
Porém, no domínio deste Código esta substituição de pessoas não recebia a designação de «substituição fideicomissária», termo usado no direito sucessório, como actualmente, mas de «reversão…, nos termos indicados no artigo 1867».
Mas trata-se de uma questão de terminologia jurídica que não altera, nem pode alterar, por se tratar de algo exógeno à vontade da doadora, a vontade que a doadora expressou no texto da doação, o efeito prático que aí estabeleceu [11].
Concluindo esta parte, dir-se-á: quando a doadora outorgou a doação instituiu uma cláusula de reversão caso o Clube fosse extinto ou se extinguisse. O terreno reverteria para si se fosse viva à data do evento reversivo; e reverteria para os seus herdeiros se fosse defunta à data do evento reversivo.
Continuando.
Coloca-se agora esta questão, já tratada na sentença:
À data da estipulação da cláusula, se esta se aplicasse nesse momento, a lei em vigor, como proibia a reversão em dois graus, salvo a favor de netos e sobrinhos, impediria a reversão a favor do irmão ou dos irmãos da doadora que fossem vivos e, claro está, dos seus sobrinhos, que não eram herdeiros, por ser herdeiro o respectivo progenitor.
Mas, em 1936, como as normas do Código Civil foram alteradas, já podiam vir a beneficiar da cláusula pessoas que dela não beneficiavam se ela fosse operante em 1926.
Afigura-se, porém, que esta questão não tem quaisquer reflexos no caso dos autos.
A cláusula em causa referia-se aquilo que podia vir a suceder no futuro e não na data em que foi escrita, como se disse já.
Por isso, se no momento em que foi instituída não beneficiava certas pessoas, as mesmas não podem ser excluídas do seu raio da aplicação se, mais tarde, a lei é alterada e elas passam a beneficiar do conteúdo dessa cláusula.
É que, tal como em matéria de aplicação nas leis no tempo, o conteúdo dos direitos afere-se pelas disposições em vigor à data em que os factos geradores das pretensões emergem no fundo factual.
Ou seja, o conteúdo dispositivo ou normativo de uma cláusula contratual conjuga-se com o conteúdo da lei existente à data em que surge o facto que determina a sua aplicação.
Neste caso, o conteúdo da cláusula conjuga-se com a lei em vigor à data dos factos que desencadearam a presente acção, ou seja, com a lei em vigor à data da penhora e adjudicação levada a cabo no mencionado processo n.º 708-B/94, do 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Barcelos e alienações subsequentes.
Com efeito, como se disse, a lei actual que regula o conteúdo dos direitos aplica-se às situações jurídicas que vêm do passado, ressalvando os efeitos já produzidos por estas (parte final do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil).
A situação jurídica em apreço desencadeou-se no domínio do actual Código Civil, pelo que a vontade da doadora expressa na cláusula emitida em 1926 é avaliada face ao conteúdo da lei actual, àquilo que a lei actual prevê para essa declaração de vontade.
Com o Código Civil de 1966, a possibilidade de estipulação de uma cláusula de reversão a favor dos herdeiros foi suprimida, pois apenas se admitiu a reversão a favor do próprio doador, mas não se proibiu que a passagem do bem pudesse vir a fazer-se, não para o doador, mas para os seus herdeiros.
Com efeito, a cláusula de reversão vem prevista no artigo 960.º (Cláusula de reversão) do actual Código Civil, cuja redacção é a seguinte:
«1. O doador pode estipular a reversão da coisa doada.
2. A reversão dá-se no caso de o doador sobreviver ao donatário, ou a este e a todos os seus descendentes; não havendo estipulação em contrário, entende-se que a reversão só se verifica neste último caso.
3. A cláusula de reversão que respeite a coisas imóveis, ou a coisas móveis sujeitas a registo, carece de ser registada».
Verifica-se, pois, que a cláusula de reversão, tal como se encontra admitida no artigo 960.º do Código Civil, tem um alcance limitado: só ocorre a reversão se o donatário e seus descendentes falecerem antes do doador.
Se o doador falecer antes do donatário, não há lugar a reversão.
Isto implica que se conclua em relação ao caso concreto dos autos, que a cláusula de reversão inserida na escritura de doação não produz efeitos, devido ao facto da doadora ter falecido e do Clube donatário ainda existir.
E se não pode haver reversão em relação à doadora, também não pode existir reversão a favor dos seus descendentes.
Sucede, porém, que a vontade da doadora, a sua vontade prática, isto é, a vontade de encaminhar o bem doado para os seus herdeiros, no caso do Clube réu se extinguir ou ser extinto, não ficou desamparada de tutela legal no Código Civil de 1966, pois este Código limitando, por um lado, a reversão a um grau (apenas a favor do doador), permitiu a substituição fideicomissária nas doações, como se vê pelo teor do artigo 962.º do Código Civil
Ou seja, face ao teor deste segmento de texto, relativo à 2.ª cláusula, a reversão deixou de ser possível em relação à doadora e também em relação aos descendentes da doadora, pois no actual Código Civil não há reversão em segundo grau, como se disse, mas há a substituição fideicomissária e este mecanismo jurídico tutela a vontade expressa da doadora na escritura de doação.
Insiste-se:
O que a doadora quis foi que o bem doado passasse para o seu património caso o Clube réu se extinguisse enquanto fosse viva ou, não podendo passar para si, por nessa altura ter já falecido, para os seus herdeiros.
Ou seja, a doadora previu apenas uma transmissão: ou para si ou para os seus herdeiros.
Ora, este efeito prático, claramente expresso pela doadora, era legalmente possível à data da doação, em 1926, através da reversão em dois graus, e é igualmente possível hoje, através da reversão e da substituição fideicomissária.
E se cada uma destas figuras pode ser estipulada isoladamente numa doação, também podem sê-lo em simultâneo, já que, em termos normativos, jurídicos, não há entre ambas qualquer relação de mútua exclusão ou incompatibilidade, pois na prática só uma delas se pode verificar: se há reversão não há substituição fideicomissária; se há substituição fideicomissária é porque a reversão se tornou inviável pela morte da doadora.
Daí que não se siga o entendimento expresso na sentença onde se sustenta que a cláusula não configura uma substituição fideicomissária.
Vejamos ainda mais de perto esta questão.
Nos termos previstos no artigo 962.º (Substituições fideicomissárias), «1. São admitidas substituições fideicomissárias nas doações.
2. A estas substituições são aplicáveis, com as necessárias correcções, os artigos 2286.º e seguintes».
Por sua vez, o artigo 2286.º do Código Civil determina o seguinte:
«Diz-se substituição fideicomissária, ou fideicomisso, a disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído o encargo de conservar a herança para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem; o herdeiro gravado com o encargo chama-se fiduciário, e fideicomissário o beneficiário da substituição».
A 2.ª cláusula, ao dizer «porém, se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido, reverterá o prédio doado para ela doadora, ou para seus herdeiros, nos termos legais», está a enunciar que em caso de falecimento da doadora e da extinção posterior («morte») do Clube donatário, o bem doado reverte para os herdeiros da doadora.
Afigura-se ser este, sem dúvida, como se disse, o sentido do texto.
Mas sendo este o conteúdo significativo e prático da cláusula, o mesmo corresponde, na verdade, a um caso de substituição fideicomissária.
Com e feito, nos termos do artigo 2286.º do Código Civil, como se viu, há substituição fideicomissária quando o testador declara que o herdeiro conservará, até morrer, a herança que o testador lhe atribui e à sua morte, a herança passa para a pessoa que o testador designou.
É este também o sentido da cláusula inserida na doação: no caso do Clube donatário se extinguir e nessa altura a donatária ser falecida, o bem doado reverterá para os herdeiros da doadora.
Poderá objectar-se que não constam da declaração da doadora, e de facto não constam, palavras através das quais esta tenha referido que estava a fazer a doação, mas que esta era limitada no tempo e que o donatário apenas seria proprietário do bem doado até falecer, devendo conservar o bem doado para que ele reverta, por sua morte, a favor de outrem.
Porém, esta objecção dirige-se às palavras, que são apenas invólucros possíveis da vontade, e não à vontade real da doadora.
A doadora quis, indubitavelmente, que, caso o Clube donatário se extinguisse e ela já tivesse falecido, o bem doado passasse a integrar o património dos seus herdeiros.
Cabe, pois verificar se a lei permite ou não permite que esta vontade da doadora prevaleça, independentemente dos nomes e das fórmulas que a lei utiliza para exprimir as suas prescrições.
Aliás, se a doadora diz, como diz, que no caso do Clube donatário se extinguir e ela já tiver falecido, o bem doado passará a integrar o património dos seus herdeiros, tem de se subentender nesta declaração da doadora que ela também está a declarar ao donatário que ele deve conservar o bem doado para que ele reverta para os seus herdeiros, quando o donatário se extinguir.
Poder-se-á ainda argumentar que o texto da cláusula prevê uma dada condição («se»), ou seja, «…se o referido donatário se dissolver ou for dissolvido», o que não ocorre na definição prevista no artigo 2286.º do Código Civil, onde não se contempla qualquer condição, pois o evento «morte» do herdeiro é um facto futuro, mas certo.
Porém, esta falta de coincidência de sentido é apenas aparente e a mesma resulta da circunstância das pessoas colectivas poderem ter uma duração de vida teoricamente ilimitada e daí que a respectiva extinção («morte») tenha de ser referida como algo condicional, dada a sua maior incerteza.
Afigura-se, pois, que reconhecendo a lei aos cidadãos o poder de, através da declaração da sua vontade, disporem dos seus bens, dentro dos limites e condições estabelecidos na lei (ver artigo 405.º do Código Civil), a forma de a lei respeitar, no caso dos autos, a vontade da doadora, é considerar qualificar a dita cláusula como «substituição fideicomissária», nos termos previstos no artigo 962.º do Código Civil.
Continuando a análise em sede de substituição fideicomissária, verifica-se que o presente caso está previsto na lei como um caso de fideicomisso irregular.
Com efeito, no artigo 2295.º (Fideicomissos irregulares) do Código Civil, prevê-se que «1. São havidos como fideicomissos irregulares: a) […); b) […]; c) As disposições pelas quais o testador chame alguém aos bens deixados por uma pessoa colectiva, para o caso de esta se extinguir», acrescentando o n.º 3 deste artigo que o fiduciário (no caso dos autos o Clube donatário) pode dispor dos bens por acto entre vivos se obtiver autorização judicial e independentemente de autorização judicial se obtiver o consentimento do fideicomissário.
Estas normas aplicam-se ao caso dos autos por força do disposto no artigo 962.º, n.º 2 do Código Civil, que manada aplicar às doações o regime do artigo 2286.º e seguintes.
Conclui-se, por conseguinte, que esta 2.ª cláusula instituiu um fideicomisso irregular, figura prevista na al. c), do n.º 1, do artigo 2295.º do Código Civil, a favor dos herdeiros da doadora.
De salientar que nestes casos, nos termos do artigo 2292.º do Código Civil, «Os credores pessoais do fiduciário (Clube) não têm o direito de se pagar pelos bens sujeitos ao fideicomisso, mas tão-somente pelos seus frutos».
Esta norma releva claramente que a penhora do bem realizada no âmbito do processo n.º 708-B/94 do Tribunal de Trabalho de Barcelos foi ilegal, por se tratar de um bem subtraído por lei à penhora.
O bem é impenhorável porque a cláusula fideicomissária impõe que o bem se conserve no património do donatário, pois se não se encontrar nesta esfera patrimonial torna-se impraticável o cumprimento da cláusula fideicomissária.
Resta referir, antes de passar às questões posteriores, que não se vislumbra qualquer conexão entre ambas as cláusulas (cláusula modal e cláusula fideicomissária) que gere algo de novo ou diverso em relação àquilo que resulta do conteúdo de cada uma delas isoladamente e que acabou de ser mencionado.
Por isso, resumindo a análise feita até ao momento:
O texto da doação contém uma cláusula modal, uma cláusula de reversão a favor da donatária e uma cláusula de substituição fideicomissária a favor dos herdeiros da donatária.
O bem doado, onerado com tal cláusula fideicomissária, não podia ter sido penhorado nem alienado na execução n.º 708-B/94 do Tribunal de Trabalho de Barcelos.
*
Face à conclusão de que na doação foi instituída uma cláusula de substituição fideicomissária (artigo 962.º do Código Civil), cumpre tomar posição sobre a questão já enunciada no despacho proferido em 4 de Novembro de 2013.
Verifica-se, face à matéria de facto, que havia três herdeiros contemplados com a cláusula fideicomissária (facto provado n.º 4).
Dois desses herdeiros já faleceram (Joaquim, em 27-1-1999 e V…, em 12-7-1988, ver factos provados n. 5 e 6), restando apenas a herdeira J….
Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 2293.º Código Civil (Devolução da herança ao fideicomissário), «A herança devolve-se ao fideicomissário no momento da morte do fiduciário», o que mostra que a cláusula se torna eficaz quando morre o fiduciário.
Isto pressupõe que o fideicomissário sobreviva ao fiduciário (Clube réu, no caso dos autos).
Caso contrário, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo do Código Civil, «Se o fideicomissário não puder ou não quiser aceitar a herança, fica sem efeito a substituição, e a titularidade dos bens hereditários considera-se adquirida definitivamente pelo fiduciário desde a morte do testador», fica sem efeito a substituição.
Como refere Carlos Pamplona Corte-Real, «Quanto ao fideicomissário ele será detentor de uma vocação subsequente, quer dizer concretizável apenas à data da morte do fiduciário, como se infere inequivocamente dos art. 2293.º, n.º 1, e 2294.º, mais precisamente, ele será detentor de uma vocação subsequente, mas suspensa, não retroagível, em suma de uma vocação condicional, uma vez que o fideicomissário só será chamado se e quando o fiduciário falecer, o que pressupõe que lhe sobreviva (cf. art. 2293.º, n.º 2, do Código Civil)» [12].
Por conseguinte, face a esta cláusula, qualificada como substituição fideicomissária, os autores habilitados à herança daqueles dois herdeiros não são titulares de quaisquer direitos sobre o terreno, pelo que a acção quanto a eles tem de ser julgada improcedente.
Subsiste, pois, apenas a posição jurídica da autora J… e doravante apenas será considerada a posição desta autora.
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3 – Face à conclusão a que se chegou, vejamos quais os eventuais efeitos das cláusulas modal e fideicomissária sobre a adjudicação efectuada no processo executivo n.º 708-B/94 do Tribunal de Trabalho de Barcelos, a favor da ré L… e alienações subsequentes.
Como se concluiu, a doação com substituição fideicomissária (artigo 962.º do Código Civil), impedia a alienação do terreno por parte do Clube réu e, por via disso, a sua penhorabilidade.
Com efeito, se o bem transitar para a esfera jurídica de terceiros, como estes últimos são pessoas jurídicas diversas do Clube donatário, então, como não estão obrigados pelo contrato de doação, não vigora em relação a eles a cláusula fideicomissária de substituição.
Assim, a saída do bem da esfera jurídica do Clube donatário, implicaria a impossibilidade do bem reverter para os herdeiros da doadora no caso do Clube se dissolver ou ser dissolvido.
Porém, a própria lei resolve estes problemas nos artigos 2291.º e 2292.º do Código Civil, ao disciplinar a alienação dos bens abrangidos pela cláusula fideicomissária e os direitos dos credores pessoais do fiduciário.
A lei proíbe a alienação ou oneração dos bens, salvo autorização do tribunal e determina que os credores pessoais do fiduciário não têm o direito de se pagar pelos bens sujeitos ao fideicomisso, mas tão-somente pelos seus frutos.
Face a estas normas, deve concluir-se que a penhora e alienação do bem doado no processo executivo n.º 708-B/94 do Tribunal de Trabalho de Barcelos constituíram actos jurídicos proibidos por aquelas disposições legais, pelo que os actos de penhora e alienação em sede executiva (actos jurídicos) enfermam de nulidade nos termos do artigo 294.º do Código Civil, aplicável ex vi artigo 295.º do mesmo Código, aos actos jurídicos que não são negócios jurídicos.
Vejamos melhor.
A cláusula exarada na escritura de doação [13] que instituiu a substituição fideicomissária é emanação do direito de propriedade [14] que a doadora detinha sobre o bem doado e através dela atribuiu aos mencionados herdeiros, através do mecanismo legal do fideicomisso, a expectativa de, no futuro, uma vez verificados os respectivos factos, poderem adquirir o direito de propriedade sobre o bem doado.
Tal cláusula foi inscrita no registo predial em 1927 e encontrava-se operante à data em que o bem foi penhorado no âmbito da mencionada execução no Tribunal de Trabalho de Barcelos, isto é, produzia efeitos erga omnes, por força do n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial (oponibilidade a terceiros), em vigor nessa data (a penhora foi registada em 9 de Abril de 1997 – ver facto n.º 9), tal como hoje, nos termos do qual «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo».
Ou seja, quer o Clube, quer o exequente, quer o comprador, bem como o tribunal, estavam em condições de saber, e deviam saber, que o bem não podia ser alienado, logo, não podia ser penhorado e alienado em execução por força do disposto nos mencionados artigos 2291.º e 2292.º do Código Civil.
Estas normas têm natureza imperativa [15], isto é, uma vez instituído validamente o fideicomisso, tais normas não podem ser derrogadas ou inobservadas por parte do donatário ou quaisquer terceiros, sob pena deste instituto jurídico se tornar imprestável à finalidade para a qual foi previsto na lei e que tem a ver com o estatuto da ordenação dos bens.
Esta ideia é ainda reforçada pelo disposto no n.º 3 do artigo 2290.º do Código Civil, onde se dispõe que «O caso julgado constituído em acção relativa aos bens sujeitos ao fideicomisso não é oponível ao fideicomissário se ele não interveio nela».
No caso, a penhora e alienação executivas, não sendo negócios jurídicos, são, porém, actos jurídicos [16] e, por isso, como se referiu supra, são atingidos pela nulidade prevista nos artigos 294.º do Código Civil, por força da extensão das regras dos negócios jurídicos aos actos jurídicos efectuada no 295.º do Código Civil.
Sendo os actos jurídicos da penhora e subsequente alienação feridos pela apontada nulidade, os efeitos da nulidade são os previstos no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, ou seja, «Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente».
Mas ocorre ainda, concomitantemente, outra situação jurídica.
Com efeito, se se prestar atenção ao caso dos autos, verifica-se que a autora fideicomissária J… não teve qualquer intervenção nos actos afectados de nulidade, isto é, nem os promoveu, nem por qualquer forma tomou participação nos mesmos, desconhecendo-os, pelo menos a ajuizar por aquilo que consta da matéria de facto provada.
Sendo assim, os actos em causa foram e são res inter alios acta em relação a si, ou seja, são actos que, por não terem participação sua, lhes são indiferentes, no sentido dos respectivos efeitos não a atingirem, serem ineficazes em relação a si, tal como ocorre nos casos em que um terceiro vende em bem do qual não é proprietário, negócio que é ineficaz em relação ao proprietário, pois este não emitiu qualquer declaração de vontade [17].
Quer-se com isto dizer que a penhora e a alienação do bem objecto da cláusula fideicomissária não é oponível à autora J…, devido ao facto de ela ter sido completamente alheia ao nascimento e posterior desenvolvimento de tais actos.
Ou seja, a penhora e a alienação do terreno não produziram efeitos em relação a si, permanecendo incólume o respectivo direito enquanto fideicomissária [18].
Poder-se-á questionar que no caso ou há nulidade da penhora e nulidade das subsequentes transmissões do bem ou há ineficácia, ou seja, ou uma coisa ou outra.
Ora, se é certo que na realidade factual os factos apenas têm uma face, por só existir uma realidade, já o mesmo não tem de ocorrer no mundo dos valores onde se situa o direito.
Um mesmo conjunto de factos, que apenas tem uma face (se ocorreram de uma forma não ocorreram de outra forma), pode desencadear diversas respostas legais, não existindo em tal situação qualquer incoerência ou impossibilidade jurídica.
É possível, por isso, verificar que ocorre uma situação de ineficácia dos actos da penhora e alienações subsequentes em relação à autora fideicomissária e, ao mesmo tempo, a nulidade desses actos [19].
Cumpre, agora, passar ao grupo de questões seguintes, para verificar que efeitos resultam da apontada nulidade e ineficácia.
4 – Vejamos se a adjudicação efectuada no processo executivo n.º 708-B/94 a favor da ré L… e alienações subsequentes poderão subsistir.
Começando pelo argumento retirado do disposto no artigo 291.º do Código Civil, cuja redacção é a seguinte:
«1. A declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro de três anos posteriores à conclusão do negócio.
3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável».
Os réus argumentam que são terceiros, que estão de boa fé e registaram a aquisição onerosa do terreno antes do registo da presente acção (este realizado em 29-10-2009 – facto provado 50) e, ainda, que decorreram mais de três anos entre a data da penhora e alienação executiva do bem, e a instauração da presente acção.
Não lhes assiste razão, pois não são terceiros.
Sendo tais actos, como se disse, ineficazes em relação à autora J…, por terem sido praticados à sua revelia, sem a sua intervenção, a aplicação do disposto no artigo 291.º do Código Civil, afigura-se inviável.
Com efeito, pressupõem-se nesta norma que o sujeito protegido por ela, o terceiro de boa fé subadquirente, é alguém que se encontra situado na mesma cadeia linear de actos que se inicia no acto nulo ou anulável; que o terceiro é alguém que faz valer o seu direito no confronto com outrem que participou no acto anterior afectado pela nulidade e destinado a transmitir o direito [20].
Ora, no caso dos autos, a Autora não teve qualquer participação nos actos nulos destinados a transmitir o imóvel doado. Nada transmitiu, pelo que os réus não são terceiros em relação à autora J…, para efeitos das situações jurídicas abrangidas pelo artigo 291.º do Código Civil.
Poderá colocar-se a questão de saber se o disposto no artigo 291.º do Código Civil não contemplará também situações de ineficácia, uma vez que a letra da lei não excluirá estes casos e, como sustenta Menezes Cordeiro, «As razões que levam à tutela dos terceiros – a boa fé, investimento de confiança e inacção das partes interessadas – podem proceder tanto nas invalidades como nas ineficácias. Além disso, tal tutela não tem nada de excepcional: a letra da lei, só por si, não permitiria a exclusão» [21]
Pelas razões que ficaram indicadas, a jurisprudência tem-se pronunciado em sentido negativo [22].
Afigura-se ser de manter este modelo de decisão no presente caso, na medida em que, embora seja certo que os réus actuaram de boa fé e confiaram na situação resultante do registo, de onde havia sido suprimida a mencionada cláusula fideicomissária, também é certo que a autora J… merece igual protecção, na medida em que nada fez ou contribuiu com o que quer que fosse para a situação, que, a manter-se, implicaria a destruição do seu direito através de anomalias jurídicas a que foi alheia, não se podendo dizer que tenham sido negligente na sua defesa.
Concluindo: os réus não beneficiam da protecção do artigo 291.º do Código Civil.
5 – Vejamos agora se réus Município, M… e N… gozam da protecção conferida aos subadquirentes pelo artigo 17.º, n.º 2 (nulidade do registo), com referência à al. c) do artigo 16.º deste código, e artigo 124.º, com referência ao art. 18.º, todos do Código do Registo Predial (inexactidão do registo e sua rectificação);
No artigo 17.º, n.º 2, do Código do Registo Predial, determina-se o seguinte:
«1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.
2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade».
Não se afigura aplicável esta norma ao caso dos autos, face ao referido antes a propósito da aplicação do artigo 291.º do Código Civil [23].
Sem necessidade de expor os diversos entendimentos dos autores relativamente ao âmbito da previsão desta norma, que se podem agrupar em dois pólos, sustentando uns que no n.º 2 do artigo 17.º do CRPred. apenas regula as nulidades ou desconformidades resultantes ou criadas pelo próprio sistema do registo predial e outros que esta norma se aplica quer a estes casos, quer também às nulidades ou desconformidades emergentes do direito substantivo [24], dir-se-á que a autora J… não é «terceiro» em termos de registo predial, uma vez que, nos termos do n.º 4 do artigo 5.º do CRPred., «Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Ora, a autora J… adquiriu o seu direito através da doação efectuada em 1926 pela doadora O… e os réus Município, M… e N… adquiriram o seu direito a partir da posição jurídica do réu K…, quando foi executado no processo executivo n.º 708-B/94, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, e o prédio doado foi aí penhorado, e, mais tarde, em 23 de Abril de 1998, adjudicado à ré L…, a qual, por sua vez, por escritura pública de 12 de Outubro de 1999, o vendeu ao Município …, entidade esta que, em 18 de Setembro de 2008, o vendeu, por fim, à empresa M…, S. A., a qual, em 09 de Janeiro de 2009, constituiu sobre ele hipoteca voluntária a favor do N….
Verifica-se, por conseguinte, que a Autora e os Réus não são terceiros para efeitos de registo predial e, por isso, como se disse, a indicada norma do n.º 2 do artigo 17.º do CRPred. não tem aplicação.
O mesmo raciocínio vale, sem necessidade de outras considerações para artigo 122.º (Efeitos da rectificação) do mesmo código, onde se dispõe que «A rectificação do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiros de boa-fé, se o registo dos factos correspondentes for anterior ao registo da rectificação ou da pendência do respectivo processo».
Por conseguinte, dado não existir aqui uma relação entre terceiros, o facto de a doação e respectivas cláusulas não constar da certidão do registo predial, não implica a consequência da inoponibilidade aos réus Município, M… e N….
6 – Vejamos se o facto de não constar a doação e respectivas cláusulas da certidão do registo predial, tem como consequência a respectiva inoponibilidade aos réus Município, M… e N….
A resposta é negativa.
Como se disse, a Autora e Réus não são terceiros entre si para efeitos de registo predial.
E, repetindo o antes dito, sendo certo que os Réus actuaram se boa fé e confiaram na situação resultante do registo, de onde havia sido suprimida a mencionada cláusula fideicomissária, também é certo que a autora J… merece igual protecção, na medida em que nada fez ou contribuiu com o que quer que seja para a situação, que, a manter-se, implicaria a destruição do seu direito através de anomalias jurídicas a que foi alheia.
7 Os Réus também invocaram a norma do artigo 435.º do Código Civil, mas verifica-se, pelo que se encontra referido, que no caso não ocorre uma situação de resolução, pelo que a mesma também não aproveita aos réus.
8 – Considerando que a acção foi julgada improcedente, vejamos agora o pedido da recorrente face às conclusões a que se chegou.
A Autora pede que o tribunal condene a ré M…, S. A., a entregar-lhe o imóvel, livre de quaisquer ónus, designadamente da hipoteca registada a favor do N…, com cancelamento de todos os registos de aquisição e oneração do referido bem, posteriores à doação.
Considerando tudo o que ficou dito, a autora é fideicomissária e não tem direito a esta entrega, pois o réu Clube ainda não se extinguiu, nem foi extinto, pelo que o bem apenas pode regressar ao património deste Clube, mas não ao da Autora.
A Autora pediu, em segundo lugar, a declaração de nulidade da penhora e da adjudicação do prédio à ré L…, bem como das venda feitas por esta à Câmara Municipal …, e ainda a efectuada por esta última à ré M…, S. A., bem como, por fim, a nulidade da hipoteca celebrada entre esta última empresa e o mencionado Banco.
Face ao que fica referido, esta pretensão procede.
Com efeito, já se viu que a penhora e alienação efectuadas no processo executivo padecem de nulidade.
E sendo estas nulas, nulas são as vendas e acto de oneração subsequentes.
Com efeito, não tendo a ré L… adquirido a propriedade do imóvel, não a transmitiu mais tarde à Câmara Municipal e esta não a transmitiu à M… e esta não constitui validamente a hipoteca do prédio, que não lhe pertencia, a favor do Banco réu.
Trata-se da regra nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet, da qual faz eco o disposto no artigo 892.º do Código Civil, que comina com nulidade a venda de bens alheios.
Por conseguinte, uma vez que a autora é interessada na declaração de nulidade da penhora e alienações posteriores, cumpre decretá-la, embora a autora nada tenha a restituir por força da declaração de nulidade, pois as alienações são quanto a ela são, em primeira linha, ineficazes, mas a sua posição jurídica carece do efeito da declaração de nulidade, como forma de obter o regresso do bem ao património do Clube réu, pois só nesse património se pode concretizar, eventualmente, a substituição fideicomissária de que beneficia e só nesse património, diga-se também, o bem pode continuar a cumprir a finalidade assinalada na doação.
Quanto ao pedido subsidiário.
Subsidiariamente, em relação ao primeiro pedido principal formulado, no caso de se entender que a obrigação de destinar o prédio a fins desportivos integra um encargo, a autora pediu que réu K… fosse condenado ao cumprimento do encargo, logo que o referido bem esteja na sua posse.
Sobre este pedido, verifica-se que o réu só deixou de cumprir o encargo, quando bem foi afastado da posse do prédio por força da penhora e posterior alienação.
Os factos provados não revelam que positivamente o Clube réu tenha deixado de cumprir o encargo enquanto foi possuidor do bem.
Considerando estas circunstâncias, afigura-se que não há fundamento para condenar o Clube réu a cumprir o encargo, devendo ser absolvido, por esta razão deste pedido.
Por fim, cumpre considerar que a anulação e restituição apenas se circunscreve ao bem «P…», descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1518/20070301, da freguesia de …, não a quaisquer outros bens que tenham sido transmitidos no mesmo contrato.
Cumpre, pois, julgar o recurso procedente no que respeita à parte em que se pede a anulação da penhora e alienações posteriores do bem doado, bem como a constituição da hipoteca, com regresso à esfera patrimonial do réu K….
Procede também o pedido de cancelamento dos registos inerentes à mencionada penhora e alienações posteriores abrangidas pela declaração de nulidade, pois trata-se de colocar em harmonia a realidade registal com a realidade substantiva.
Resta dizer que se tiveram presentes, embora não em concreto por se desconhecerem os respectivos factos, as eventuais implicações negativas que esta decisão poderá ter para os Réus que adquiriam o prédio a partir do processo executivo, mas essas implicações não determinam a inaplicabilidade das disposições legais que ficaram indicadas.
IV. Decisão.
Considerando o exposto:
1 - Julga-se improcedente o recurso interposto pelos autores B…, C…, D…, E…, F…, G…, H… e I…, confirmando-se a sentença, embora por outras razões, quanto a estes autores.
2 – Julga-se o recurso procedente relativamente à Autora J… declara-se a ineficácia e a nulidade da penhora e alienação do imóvel doado, identificado no n.º 1 dos factos provados, efectuadas no processo n.º 708-B/94, do 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Barcelos e alienações subsequentes mencionadas nos factos provados a favor dos Réus, bem como a hipoteca constituída a favor do réu N…, S. A.
3 – Determina-se a restituição do prédio em causa ao património do réu K… e o cancelamento dos registos inerentes à mencionada penhora e alienações posteriores abrangidas por esta declaração de nulidade.
*
Custas do recurso interposto pelos Autores mencionados no anterior ponto «1» por estes Autores.
Custas da acção e do recurso interposto pela Autora mencionada no anterior ponto «2» pelos recorridos em partes iguais
*
Porto, de 20 de Janeiro de 2014.
Alberto Ruço.
Correia Pinto.
Ana Paula Amorim.
________________
[1] Neste sentido ver Baptista Machado – Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil. Almedina, 1968, pág. 354 e Miguel Teixeira de Sousa – Sobre a Teoria do Processo Declarativo. Coimbra Editora, 1980 pág. 174/175.
[2] O Código Civil de 1867 tem aplicação apenas aos factos que ocorreram na sua vigência, como é o caso das normas relativas à validade jurídica da doação e respectivas cláusulas, mas não aos efeitos dos factos que ocorreram depois de revogado.
[3] Neste sentido, António Pinto Monteiro, quando sustenta: «…a mudança de fim pode representar uma situação de inadimplemento contratual. Mas isto só será assim se o comprador tiver assumido a obrigação de dar à coisa um certo destino», e, mais à frente, ainda na mesma página, o autor refere que «A finalidade declarada pelo comprador ao vendedor é deste modo incluída no negócio, passa a fazer parte do seu conteúdo (…), enquanto obrigação assumida pelo primeiro no âmbito do programa contratual traçado pelas partes. Assim, existindo, do lado do comprador, a obrigação de dar à coisa um certo destino, haverá incumprimento caso lhe venha a dar destino diverso.
Em face disto, goza o vendedor, designadamente, do direito de resolução (art. 801.º, n.º 2)» - Erro e Vinculação Negocial (2.ª reimpressão da edição de Novembro 2002). Almedina, 2010, pág. 31.
[4] Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 7.ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 1987, pág. 393.
[5] Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição. Coimbra Editora, 1986, pág. 292.
[6] Lições de Direito Civil, 4.ª edição. Coimbra: Almedina, 1995, pág. 698.
[7] Ensaio Sobre o Conceito de Modo. Coimbra: Atlântida, 1955, pág. 231.
Concluindo o mesmo autor que: «1.º - Há doação onerosa – e não negócio a título oneroso ou negócio misto com doação – sempre que a prestação imposta ao beneficiário da atribuição patrimonial (com os caracteres objectivos próprios da atribuição donativa) constitua uma simples limitação ou restrição dela.
2.º - Constituem meras limitações ou restrições da atribuição patrimonial recebida:
a) As prestações de conteúdo económico cujo objecto deva sair, segundo a intenção dos contraentes, das forças da própria atribuição;
b) As prestações de conteúdo económico (tanto de dare como de facere ou non facere) que representem – ou sejam queridas pelos interessados como – uma restrição de qualquer ordem à vantagem patrimonial proporcionada, em princípio, pela doação;
c) As prestações de conteúdo moral que sejam impostas como dever ou um ónus jurídico ao beneficiário da atribuição» - Ob. cit., pág. 232-233.
[8] É esta a lei aplicável ao caso, pois os eventuais factos violadores da finalidade da doação ocorreram no domínio de vigência do Código Civil de 1966 e o conteúdo dos direitos de natureza contratual definidos na lei e não no texto do contrato, é aquele que resultar da lei em vigor à data dos factos violadores da finalidade da doação, pois a nova lei aplica-se ao conteúdo dos direitos que acompanham as relações jurídicas que vêm do passado.
Por conseguinte, se os factos ocorrem num momento em que a lei já não permite a revogação da doação é esta a lei aplicável e não a que vigorava à data da doação.
[9] Sobre a razão de ser desta cláusula, os autores Pires de Lima/Antunes Varela, referiram o seguinte: «A reversão pode ter lugar em dois casos: no de o donatário falecer antes do doador, e no de falecerem, além do donatário, todos os descendentes deste. Embora seja diferente a amplitude da cláusula, a natureza da reversão é sempre a mesma. Pretende-se evitar, em qualquer caso, que os bens doados passem, em vida do doador, para estranhos, em consequência do predecesso do donatário e seus descendentes» - Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição. Coimbra Editora, 1986, pág. 286.
[10] Não se trata de erro de escrita, à data «mãe» escrevia-se «mãi».
[11] Com efeito, como sustentam os autores Pires de Lima/Antunes Varela, «…a reversão é um fenómeno exclusivamente admitido em benefício do doador, embora se tenha de reconhecer, dado o conceito de substituição fideicomissária expresso no artigo 2286, que esta figura constitui, afinal, uma verdadeira reversão, em benefício de terceiros, dos bens transmitidos» - Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição. Coimbra Editora, 1986, pág. 285.
[12] Ver Direito da Família e das Sucessões, Vol. II. Lisboa: Edições Jurídicas Lex, 1993, pág. 259.
[13] O contrato também pode ser uma fonte de direitos reais. Como referiu Antunes Varela, «Não sendo a única fonte das obrigações, o contrato é a mais importante entre elas. Mas o contrato não se limita a constituir, modificar ou extinguir relações de obrigação; dele nascem também relações de família (cfr. arts. 1576.º e 1577.º) e direitos sucessórios (arts. 1700.º e segs.). E dele podem nascer ainda direitos reais: “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada, diz o artigo 408.º, dá-se por mero efeito do contrato”» - Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, pág. 245.
No caso dos autos, através do contrato de doação e da cláusula fideicomissária a doadora criou condições jurídicas para, o futuro, a propriedade do bem poder passar para a esfera patrimonial dos fideicomissários.
[14] O artigo 1305.º do Código Civil tem a seguinte redacção: «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas».
[15] Sobre a identificação da natureza dispositiva ou imperativa das normas contratuais ver Enzo Roppo. O Contrato. Coimbra, Almedina, 1988, pág. 191/192.
[16] «Em princípio, pode dizer-se que nos negócios jurídicos os efeitos são queridos pelos declarantes. A declaração é feita com o objectivo de se obter um certo efeito. Nos simples actos jurídicos não existe essa relação. É a lei que atribui aos actos certa relevância jurídica, sem curar de saber da sua concordância ou discordância com a vontade do autor. É o que se passa, por ex., com a interpelação do credor ao devedor para que cumpra a obrigação (quase negócio jurídico) ou com a publicação de uma obra literária (simples operação jurídica)» - Pires de Lima/Antunes Varela. Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição. Coimbra Editora, 1982, pág. 268.
[17] Sobre a problemática da ineficácia afiguram-se esclarecedoras estas palavras de Antunes Varela: «Mas por que razão deixou a lei na sombra, ao regular a venda de bens alheios, a personagem central do drama de tal alienação, que é o dono dos bens vendidos?
Porque deliberadamente o quis para a vala comum de todos os terceiros interessados na destruição do acto, a quem o artigo 286.º do Código Civil abre indiscriminadamente as portas da declaração de nulidade?
É evidente que não.
A ideia que a lei quis vincar com a cortina de silêncio corrida sobre a posição do dono ou titular da coisa vendida, é a de que a venda de bens alheios constitui para o titular deles um acto ineficaz, porque não passa de res inter alios acta.
Que alcance prático tem, no entanto, essa ideia? Em que é que se distingue a ineficácia do acto (com que a lei resguarda a posição do dono dos bens ou do titular do direito que terceiro vendeu a outrem) da nulidade do contrato, com que a lei arma o braço de todos aqueles que têm justificado interesse na sua destruição jurídica?» - Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122 (Anotação ao ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 1984, B.M.J. n.º 342-361), pág. 252.
[18] Posição que é corroborada pela norma constante do já mencionado a n.º 3 do artigo 2290.º do Código Civil.
[19] Aliás, afigura-se que, n o caso dos autos, só o efeito próprio da nulidade possibilita o regresso dos bens à esfera patrimonial do Clube réu.
[20] Como referiu Luís M. Couto Gonçalves, «O fundamento de protecção do terceiro para efeitos do artigo 291.º é, exclusivamente, a estabilidade dos negócios jurídicos. O primeiro transmitente sofre as consequências se não ter actuado, em prazo razoável, em defesa do seu direito interpondo a competente acção judicial de nulidade. A protecção do art. 291.º representa uma excepção ao regime jurídico da declaração de invalidade dos negócios jurídicos» - A aplicação do artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil a terceiros para efeitos de registo – Ac. do S.T.J. de 19.2.2004, Proc. 4369/03 – Cadernos de Direito Privado, n.º 9 (Janeiro/Março 2005), pág. 52.
[21] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª Edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2009, pág. 877.
[22] Em sentido negativo ver acórdão do S.T.J. de 13 de Fevereiro de 1979, B.M.J. n.º 284, pág. 176; acórdão do TRE de 18 de Dezembro de 1990, C.J. tomo 5, pág. 269; acórdão do TRC de 20 de Junho de 1995, C. J. Tomo III, pág. 44 e acórdão do TRC de 22 de Abril de 2002, C.J. ano XXVII, tomo III, pág.14.
[23] Neste sentido ver acórdão do S.T.J. de 16 de Outubro de 2011, com referência ao processo n.º 42/2001 (em www.dgsi.pt): «Sendo o negócio ineficaz em relação ao proprietário, redunda irrelevante a invocação do disposto nos arts. 291.º do CC e 17.º, n.º 2, do CRgP» - sumário.
[24] Pode ver-se em Maria Clara Sottomayor. Invalidade e Registo - A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Livraria Almedina, 2010, pág. 716-743, uma exposição e análise crítica desta problemática.
A aplicação do n.º 2 do artigo 17.º do CRPred. às nulidade de natureza substantiva, com apoio na letra da al. a) do artigo 16.º do mesmo Código onde se prescreve que o registo é nulo « Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos», permitiria isto: o cidadão A vive numa casa que é sua e está registada em seu nome. O cidadão B forja um documento, com aparência de respeitar os requisitos legais de forma, de onde consta que A vendeu a sua casa a B e com este documento, que é falso, B conseguiu registar em seu nome a casa de B, que tudo ignora. De seguida B vende a casa a C, que está de boa fé.
Segundo tal interpretação do artigo 17.º, n.º 2, do CRPred., o cidadão do A deixava de ser proprietário da sua casa, que passava a pertencer a B!
Ora, não pode aceitar-se no estado legislativo actual uma interpretação desta norma que indirectamente legitima a criminalidade, pois a acção em causa apresenta as características de uma apropriação típica de um furto, que por certo o seria se a coisa fosse móvel («Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido…» - n.º 1 do artigo 203.º do Código Penal), havendo, no entanto, sem dúvida, um crime de falsificação de documentos previsto no artigo 256.º, n.º 1. al. a) do Código Penal.
Por conseguinte, como diz Maria Clara Sottomayor, «Julgamos que o registo prévio não é condição suficiente para fazer funcionar a protecção concedida pelo art. 17.º, n.º 2 do CRPred., pois, se o registo é falso ou foi obtido com título falso, sem que tenha tido por base um negócio jurídico celebrado pelo verdadeiro titular, tal representa uma expropriação, não justificada, do verdadeiro proprietário, e contrária à protecção constitucional do direito de propriedade» - Ob. cit., pág. 734.