Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL DOMINGOS FERNANDES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO SEGURO DE DANOS VALOR SEGURO VALOR EM RISCO SOBRESSEGURO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20160912138/14.7T8GDM.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/12/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 631, FLS.165-173), | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. II - A questão do sobresseguro e a consagração do princípio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no artigo 435.º do CComercial, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, nos seus artigos 128.º e seguintes. III - São coisas distintas o valor seguro do valor em risco, o primeiro corresponde ao valor do capital seguro contratado entre as partes e, como tal, o limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e o segundo ao valor do objecto seguro à data do sinistro e, como tal, o valor que a seguradora se obriga, em concreto, a pagar ao seu segurado (descontado de eventuais franquias e, eventualmente, valor do salvado) em caso de verificação do risco, que está, aliás em consonância com o princípio indemnizatório consagrado nos artigos 128.º e 130.º do RJCS. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 138/14.7T8GDM.P1-Apelação Origem: Comarca do Porto-Gondomar-Inst. Local- Secção Cível-J3 Relator: Manuel Fernandes 1º Adjunto Des. Miguel Baldaia 2º Adjunto Des. Jorge Seabra Sumário: I- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. II- A questão do sobresseguro e a consagração do princípio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no artigo 435.º do CComercial, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, nos seus artigos 128.º e seguintes. III- São coisas distintas o valor seguro do valor em risco, o primeiro corresponde ao valor do capital seguro contratado entre as partes e, como tal, o limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e o segundo ao valor do objecto seguro à data do sinistro e, como tal, o valor que a seguradora se obriga, em concreto, a pagar ao seu segurado (descontado de eventuais franquias e, eventualmente, valor do salvado) em caso de verificação do risco, que está, aliás em consonância com o princípio indemnizatório consagrado nos artigos 128.º e 130.º do RJCS. * I-RELATÓRIOAcordam no Tribunal da Relação do Porto: B…, residente na Rua …, nº …, … Gondomar, intentou a presente acção comum contra C… Companhia de Seguros, SA., com sede Largo …, nº .. pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 15.975,00, acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento. Para tanto alegou, em síntese, que celebrou um contrato de seguro com a ré relativamente ao seu veículo; sofreu um despiste, devendo ser paga à autora a quantia e € 10.975,00. * O réu contestou, pugnando pela improcedência da acção, invocando, além do mais e em síntese, que a autora em conluio com os seus pais ou pai alterou o n.º de quilómetros da viatura, o que constitui falsas declarações, o que determina a nulidade do contrato de seguro.* A autora respondeu negando ter existido falsas declarações.* Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.* A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente, por provada, a acção e consequentemente condenou a Ré a pagar ao autor, quantia de € 3.128,00, acrescidos dos juros moratórios a contar da citação, à taxa que em cada momento vigorar por força da Portaria prevista no artigo 559.º do Código Civil, até efetivo pagamento.* Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:1ª)-A Autora celebrou com a Ré C…-Companhia de Seguros, S.A. um contrato de seguro facultativo, para cobertura dos danos próprios do veículo de matrícula ...-GV-..., em caso de choque, colisão ou capotamento, entre outros, tudo conforme melhor resulta do contrato de seguro titulado pela apólice n° ……….. 2ª)-Tal contrato foi celebrado em 26 de Dezembro de 2013 e o valor seguro fixado para o veículo foi de € 16.000.00. 3ª)-A Ré cobrou o prémio de seguro, em função do referido valor (valor seguro), prémio esse que a Autora também sempre pagou à Ré. 4ª)-O valor seguro de € 16.000,00 foi livremente fixado pela correctora de seguros, que mediou o contrato em causa para a aqui Ré. 5ª)-Isto é, o valor fixado de € 16.000,00 não foi definido pela Autora, mas sim pela Ré, tendo em conta as características do veículo e as tabelas por ela utilizadas para o efeito. 6ª)-Para tanto, a correctora de seguros fez uma vistoria ao veículo e a Autora entregou-lhe todos os documentos exigidos e referentes ao veículo. 7ª)-O veículo da autora sofreu um despiste em 21 de Fevereiro de 2014. 8ª)-A Ré peritou os danos e concluiu pela perda total do veículo, enviando à Autora a carta com os valores da perda total e tendo em consideração o valor seguro de € 16.000,00 (cfr. Doc. n° 3 junto com a P.I.). 9ª)-Porém, a Ré, mais tarde, vem invocar a alteração dos Kms, para reduzir o valor comercial do veículo, e consequentemente o valor a pagar. 10ª)-Ora, a questão dos Kms era do inteiro conhecimento da Ré, na medida em que, ela conhecia o histórico do veículo: - Quer certificando-se dos Kms que o veículo tinha à data do contrato, na medida em que a correctora de seguros vistoriou o veículo. - Quer porque, o veículo tinha sido objecto de um sinistro em 24 de Maio de 2013, também regularizado pela Ré, e nessa altura a Ré pode certificar-se que o veículo tinha 414.149 Kms (cfr. Doe. 20 e 21 juntos com a contestação). 11ª)-Assim, e repete-se, conhecendo a Ré o histórico do veículo, e tendo a mesma vistoriado o veículo na data em que o contrato de seguro foi celebrado, ou seja, em 26/12/2013, porque é que a Ré não esclareceu na altura a questão da diferença dos Kms com a Autora, já que o poderia e deveria ter feito, e só vem levantar esta questão depois do sinistro, e quando sempre cobrou o prémio em função do valor seguro, ou seja€ 16.000,00. 12ª)-Esta questão da diferença dos Kms não faz pois o menor sentido, quando é sabido que o funcionário da correctora de seguros que vistoriou o veículo e celebrou o contrato em causa, no depoimento que prestou em Tribunal, reproduzido na motivação à matéria de facto, refere: "No sistema apenas se introduz: o ano, data da matrícula, etc. Não introduz os Kms ". 13ª)-Assim, a Ré deve pagar à Autora o valor seguro fixado para o veículo, de € 16.000,00, retirando-se, porém, a este valor o que a Autora recebeu dos salvados, € 4.775,00 e a respectiva franquia contratual de € 250,00. Isto é, a Ré deve ser condenada a pagar à Autora a quantia de € 10.975,00. 14ª)-O Tribunal "a quo" fez pois, uma incorrecta interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente, do Dec. Lei n° 77/2008, de 16 de Abril (RJCS) * A Ré contra-alegou concluindo pelo não provimento do recurso, interpondo ela também recurso subordinado que concluiu nos seguintes termos:1ª.-A Ré discorda da decisão do Tribunal recorrido no que concerne aos factos alegados nos arts. 8º, 9º e 13° da contestação, 2ª.-Que o Tribunal recorrido deu como não provados. 3ª.-Tendo em os seguintes meios de prova: condições gerais da apólice juntas com a petição inicial e com a contestação, proposta de seguro junta com a contestação, documento de fls. 190 e seguintes dos autos depoimento da testemunha I… outra deveria ser a decisão quanto à matéria fáctica alegada nos referidos arts. 8º, 9º e 13° da contestação. 4ª.-Perante tais elementos de prova, a Ré entende que deve ser dado como provados os seguintes factos: - Art. 8º da contestação "A Autora indicou o valor de 16.000,00 € como sendo o valor do seu veículo e pelo qual o pretendia segurar." Art. 9º da contestação " Atenta a quilometragem que a Autora indicava e que era de 169.463 Kms, para mais confirmada pelo valor constante do certificado de inspecção periódica, a Ré aceitou segurar o ..-GV-.. pelo valor de 16.000,00 €." Art. 13° da contestação " A Autora propôs pagar o prémio de seguro mensalmente, o que foi aceite pela Ré." 5ª.-É o que se requer nos termos do art. 662° do CPC. 6ª.-A proceder o que consta das anteriores quatro conclusões, entende a Ré que, com os factos que assim devem ser dados como provados e ainda com os factos que foram dados como provados nas alíneas J), R), S), T) e U) da matéria fáctica, a acção deve improceder. 7ª.-É que assim fica demonstrado que o contrato de seguro foi celebrado com base em falsas e dolosas declarações da Autora quanto à real quilometragem do ..-GV-.. na data da celebração do contrato. 8ª.-Assim, a não improcedência da acção constitui violação do disposto no art. art. 25° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n° 72/2008), pelo que 9ª.-Deve ser revogada a douta sentença recorrida e deve a Ré ser absolvida do pedido. * Notificada a Autora não apresentou contra-alegações.* Foram dispensados os vistos.* II- FUNDAMENTOSO objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil. * No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:Recurso principal a)- saber qual o montante indemnizatório a atribuir à Autora ante a perda total do veículo seguro. Recurso subordinado a)-saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto. b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual. * A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTOÉ a seguinte a matéria de facto que vem dada como provada pelo tribunal recorrido: A) A autora celebrou com a ré um acordo para o veículo de matrícula ..-GV-.., abrangendo a «responsabilidade civil obrigatória»; «Danos próprios» e «veículo de substituição nível 2», «Valor veículo 16.000,00» «Capitais (…) choque (…) 16.000,00» (v. artigos 1.º a 4.º da petição inicial e doc. de fls. 10 e 11 junto com a petição inicial, que aqui dou por brevidade por integralmente reproduzido–não impugnado). B) No dia 21 de Fevereiro de 2014, o veículo ..-GV-.. sofreu um despiste. (artigo 5.º da petição inicial–não impugnado) C) O despiste resultou para o veículo danos na frente e lateral esquerda (artigo 6.º da petição inicial–não impugnado). D) A autora participou o despiste, no sentido de ser ressarcida dos danos (artigo 7.º da petição inicial–não impugnado). E) O réu peritou o veículo como perda total (artigo 8.º, 1.º parte, da petição inicial– não impugnado). F) Foi atribuído aos salvados a quantia de € 4.775,00 (artigo 9.º, 1.ª parte da petição inicial–e 23.º da contestação). G) Por carta datada de 27-02-2014 dirigida à autora, o réu disse “a melhor proposta para aquisição do salvado válida até 26-04-2014 foi de 4775 (…) podendo V. Exa transaccionar o salvado directamente a esta entidade”» (v. doc. de fls. 14–não impugnado). H) A autora já recebeu da D…, Ld.ª, o valor dos salvados (artigo 12.º da petição inicial–aceite). I) A autora entregou à ré cópia dos seguintes documentos: título de registo de automóvel; certificado de inspecção técnica periódica do ..-GV-.. (v. artigo 4.º da contestação). J) Na data da inspecção periódica (10-11-2013) o conta-quilómetros do ..-GV-.. apresentava a seguinte quilometragem: 165.141 Kms (v. artigo 5.º da contestação e doc. n.º 6). L) O contrato de seguro teve o seu início em 26-12-2013 (artigo 10.º da contestação). M) Nos termos da participação do acidente, o acidente ocorreu no dia 21-02-2014, pelas 00h30, no Lugar de …, São Pedro do Sul, em que interveio o dito veículo ..-GV-.. (artigo 14.º da contestação e doc. 7). N) Era conduzido por E… (companheiro da autora) e ocorreu «quando circulava em direcção às termas, em direcção à sua habitação, quando cortava à esquerda fui embater de frente na barreira de terra» (artigo 15.º da contestação – doc. 7). O) Mais constava que não foi levantado auto pelas autoridades policiais e que o veículo se encontrava na oficina F…, Ld.ª, sita em …, Viseu (artigo 16.º da contestação e doc. 7). P) A ré marcou uma peritagem para o dia 25-02-2014 (artigo 17.º da contestação). Q) Foi efectuada uma estimativa do custo da reparação, sem desmontar, que ascendia a € 12.872,38; o veículo foi avaliado em € 15.500,00, tendo em atenção o ano de fabrico e a quilometragem que o conta-quilómetros exibia (artigos 19.º a 22.º da contestação e docs. 10-12). R) O ..-GV-.. serviu de táxi e deixou se o fazer quando foi transferida a propriedade para a autora (artigo 30.º da contestação). S) A 30-05-2013 o veículo apresentava no seu conta-quilómetros 414.149 Kms como percorridos (artigo 30.º da contestação e docs. 13-16). T) O veículo antes de pertencer à autora pertenceu à sociedade G…, Ld.ª, com sede na Rua …, n.º …, …, Gondomar (artigo 32.º da contestação e doc. 17). U) Os sócios da referida sociedade são os pais da autora e viveram com a mesma (artigos 34.º 36.º da contestação e docs. 17, 18, 19) V) O veículo com a idade do .. -GV- .. e com 414.149 Km percorridos, não valia mais do que € 8.153,00 na data do despiste (artigo 51.º da contestação). * III. O DIREITO1. Recurso principal Como acima se referiu a única questão que no recurso principal importa apreciar e decidir consiste em: a)- saber qual o montante indemnizatório a atribuir à Autora ante a perda total do veículo seguro. Na sentença recorrida entendeu-se que o valor indemnizatório seria idêntico ao valor seguro do veículo à data do sinistro. Deste entendimento dissente a Autora recorrente alegando que aquele valor seria o que resultasse nos termos clausulados. Quid iuris? Ora, seguimos aqui o entendimento expresso no acórdão por nós relatado em 27/04/2015 no processo 249/14.9TJPRT.P1. O contrato de seguro em causa foi celebrado em 26/12/2013 (doc. 1 junto à petição inicial) e, portanto, já depois da entrada em vigor do D. Lei n.º 72/2008, de 16.04, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS). Atento o princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do CCivil), expressamente reafirmado no artigo 11.º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respectiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS aprovado pelo citado Decreto Lei e subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil (artigo 4.º do RJCS). Importa, todavia, recordar que o artigo 4.º do DL n.º72/2008, revogou os artigos 425.º a 462.º do Código Comercial, ou seja, o título XV, que regulamentava os contratos de seguro nesse Código. O presente contrato de seguros integra o tipo denominado “seguro de danos”- título II, do RJCS-artigos 123.º a 174.º. Como se sabe, além do seguro de responsabilidade civil automóvel, que é obrigatório[1], pode, ainda, ser contratado o chamado seguro de danos próprios (usual e incorrectamente também chamado de “seguro contra todos os riscos”), que abrange os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, ainda que o seu condutor seja responsável pelo evento. Tal seguro, pode incluir várias coberturas, entre elas a colisão, de acordo com opções disponibilizadas pelas seguradoras e destina-se a eliminar prejuízos (contratados) que determinado evento cause no património do segurado, sendo que, em regra, em tal tipo de seguro se estabelece uma quantia máxima para a cobertura do dano nele previsto, pagando-se o montante de tal dano até esse valor. O artigo 123.º-Sobre o objecto deste tipo de seguro estipula: “O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.” As disposições ao caso atinentes constam da secção III-intitulada “Princípio Indemnizatório” e que estatuem como se segue: Artigo 128.º “A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”. Artigo 130.º 1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. 2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado. 3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem. Por outro lado, o artigo 131.º (Regime Convencional) consigna: 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no n.º1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado. O citado artigo 128.º consagra o chamado “princípio indemnizatório” que visa evitar um enriquecimento do segurado com o sinistro nos seguros de danos em coisas.[2]/[3] O anterior regime continha uma disposição que também consagrava o mesmo princípio–o artigo 435.º do Código Comercial que estipulava: “ Excedendo o valor do objecto segurado, só é válido até à ocorrência desse valor.” Contudo, o n.º 1 do citado artigo 130.º do RJCS expressamente prevê a admissão genérica de derrogação desse princípio indemnizatório, consagrando a prevalência, sobre este, do princípio da liberdade contratual. De resto, foi precisamente para resolver estas situações criadas pela discrepância entre o valor seguro e o “valor real” do veículo por ocasião do sinistro, que o Decreto Lei nº 214/97, de 16 de Agosto[4], veio estabelecer um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, derrogador da aplicação, nesta matéria, do disposto no artigo 435.º do C. Comercial. Diga-se, aliás, ter sido meritório o propósito do legislador acabar ou minorar com os frequentes litígios surgidos entre o tomador do seguro e as seguradoras a propósito da discrepância entre o valor seguro e o valor indemnizatório apurado por ocasião do sinistro, não tendo aquele sido actualizado ao longo do tempo pelo tomador, sendo que, à data do sinistro, atendendo à progressiva (e às vezes brutal) desvalorização do veículo, o seu valor é manifestamente inferior ao antes declarado, recebendo, entretanto, as seguradoras, na vigência do contrato, os respectivos prémios vencidos, calculados nos termos iniciais, as mais das vezes completamente desajustados ao valor do veículo ao cabo de algum tempo. E, neste conspecto, o citado diploma estatui o seguinte: Artigo 2.º: “O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respectivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro”;Artigo 3.º: “A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei”;Artigo 5.º: “O disposto nos artigos 2.º e 3.º não impede as partes contratantes de estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável”.A este propósito importa dizer que a figura do sobresseguro está actualmente consagrada, de forma expressa, pelo dito DL 72/08, no seu artigo 132.º, que tem a seguinte redacção: 1. Se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato. 2. Estando o tomador do seguro ou o segurado de boa fé, o segurador deve proceder à restituição dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido de redução do contrato, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente. É este, portanto, em termos esquemáticos, o regime legal a ter em consideração, para apreciar a questão colocada no recurso. Como decorre dos autos, Autora e Ré celebraram o contrato de seguro titulado pela apólice nº ………. referente ao veículo com a matrícula ..-GV-... À data da celebração do referido contrato ao referido veículo atribuído o valor de € 16.00,00, todavia, à data do sinistro o referido veículo não valia mais do que € 8.153,00 [al. V) da fundamentação factual]. Ora, perante o quadro factual que nos autos foi considerado provado, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida no que tange ao recurso interposto pela Autora. Com efeito, face ao estatuído no artigo 128.º já citado do RJCS e não havendo acordo em contrário, o segurador atento o referido princípio indemnizatório apenas é obrigado a pagar o valor da coisa no momento do sinistro. É que importa sopesar que são coisas totalmente distintas o do valor seguro, que corresponde ao valor do capital seguro contratado entre as partes e, como tal, ao limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e o do valor em risco, que corresponde ao valor do objecto seguro à data do sinistro e, como tal, ao valor que a seguradora se obriga, em concreto, a pagar ao seu segurado (descontado de eventuais franquias e, eventualmente, valor do salvado) em caso de verificação do risco. Justamente, por a atribuição do valor seguro (capital seguro), na data da celebração do contrato, não significar que esse valor seja, de facto, o valor do objecto seguro (valor em risco) é que existe o princípio indemnizatório consagrado nos artigos 128.º e ss. do RJCS a que supra se aludiu e, concretamente, o estatuído no artigo 130.º, nº 1 que estipula, como já se transcreveu, que no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. No caso vertente apenas se apurou o que consta das condições particulares da apólice: o valor do veículo consta como € 16.0000,00 e o capital seguro (para o caso que aqui interessa) também consta como € 16.000,00. Como assim, o valor que a Ré terá que pagar à Autora, se o recurso subordinado por ela interposto for julgado improcedente, é apenas a quantia de € 3.128,00, ou seja, o valor do veículo à data do sinistro, descontado do valor dos salvados e da franquia contratada. * Improcedem, assim, sem necessidade de outros considerandos, todas as conclusões formuladas pela Autora recorrente e, com elas, o respectivo recurso.* 2. Recurso subordinadoA primeira questão colocada no recurso principal prende-se com: a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto. Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a Ré recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil, pois que, faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e ainda as passagens da gravação em que se funda o recurso e que transcreveu [nº 2 al. a) do citado normativo]. Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a Ré apelante não concorda com a decisão dos pontos 8º, 9º e 13º dos factos não provados. Quid iuris? O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[5] Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. “O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[6] De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil). Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[7] Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[8] Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Rés apelantes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos. Os pontos factuais em causa e que o tribunal recorrido deu como não provados tinham a seguinte redacção: Facto n° 8 – “a Autora indicou o valor de 16.000,00 € como sendo o valor do seu veículo e pelo qual o pretendia segurar”; - Facto n° 9 – “E, atenta a quilometragem que a Autora indicava (para mais confirmada pelo valor constante do certificado de inspecção periódica) a Ré aceitou segurar o ..-GV-.. pelo valor de 16.000,00 €”; - Facto n° 13 – “A Autora propôs pagar o prémio de seguro mensalmente-o que foi aceite pela Ré”. Na motivação da decisão da matéria de facto e sobre pontos em causa o tribunal recorrido discorreu do seguinte modo: “Da prova assim produzida resultou que apenas a autora se dirigiu ao corrector de seguros no sentido de celebrar o contrato. Ora, do depoimento de H…, não resultou especificadamente que tenha sido a autora a indicar expressamente determinadas informações, ou se foi o mesmo que ao vistoriar a viatura e/ou ao analisar os documentos ou outras fontes de informação (da própria companhia ou sites) retirou tais informações. Designadamente informação quanto aos quilómetros percorridos pelo veículo e ao valor do veículo. Daí ter-se considerado não provados os artigos 6.º, 8.º, 9.º, 12.º e 13.º da contestação. De resto, apesar da autora ser filha dos dois sócios da sociedade anterior proprietária do veículo, o certo é que daí não resulta (por si só ou em conjugação com a demais prova produzida) que a mesma soubesse a real quilometragem do veículo. É que, apesar do seu pai ter esclarecido em julgamento que na sequência de um acidente e reparação que não foi feita nas perfeitas condições, ter tido que aplicar novo quadrante e contaquilómetros, o certo é que não se apurou que o mesmo tenha comunicado tal facto à filha. Nem é possível deduzir com segurança das demais circunstâncias apuradas que a autora tivesse conhecimento do facto e que tivesse intencionalmente induzido em erro a seguradora. Daí ter-se considerado como não provados os artigos 37.º, 42.º e 46.º (na parte referente a falsas declarações)”. Subscrevemos na íntegra a referida motivação, sendo que, a Ré não convocou qualquer meio probatório constante dos autos que permita alterá-la no sentido por ela propugnado. Com efeito, pelo facto de a Autora ter assinado a proposta de seguro daí não se retira que tenha sido ela a indicar expressamente determinadas informações, ou se foi o H… que ao vistoriar a viatura e/ou ao analisar os documentos ou outras fontes de informação (da própria companhia ou sites) retirou tais informações, designadamente informação quanto aos quilómetros percorridos pelo veículo e ao valor do veículo. Da mesma forma que do documento que se encontra junto aos autos a fols. 190 nada se retira no sentido pretendido. Com efeito, tal como se infere da resposta ao solicitado pelo tribunal recorrido constante os Km aí indicados, à data de 26-12-2013 (169463), foram gravados pelo mediador no dia em que emitiu apólice, mas daí não retira que tivesse sido a Autora a indicar tal quilometragem. No que concerne ao depoimento da testemunha I…, sobre este aspecto, revela-se perfeitamente inócuo, pois que se limita a tecer considerações de ordem genérica sobre a relação entre os km e o valor seguro e, portanto sem qualquer relevo para o caso concreto. Mas ainda que assim não se entendesse, nunca a prova dos referidos factos podia levar à improcedência da acção como pretende a Ré recorrente. Na verdade, para que se declarasse que a Autora recorrida havia prestado declarações inexactas ou falsas e, por essa via se considerasse nulo o contrato de seguro celebrado, era necessário que isso resultasse do acervo factual constante dos autos, coisa que, manifestamente não consta, ou seja, era necessário que tivesse ficado provado o quadro factual alegado pela Ré nos artigos 37º a 46º da contestação, mais concretamente os artigo 37º e 42º, sendo que, tal matéria também dada como não provada pelo tribunal recorrido não foi objecto de impugnação pela recorrente. * Permanecendo inalterada a matéria factual não existe fundamento para alterar o decidido pelo tribunal recorrido.* Destarte improcedem todas as conclusões formuladas pela Ré recorrente e, com elas, o respectivo recurso subordinado.* IV-DECISÃOPelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar quer o recurso principal quer o recurso subordinado improcedentes por não provados e consequentemente confirmar a decisão recorrida. * Custas de cada uma das apelações pelos respectivos apelantes (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).* Porto, 12 de Setembro de 2016.Manuel Domingos Fernandes Miguel Baldaia de Morais Jorge Seabra ______ [1] Art. 4.º do DL 291/07, de 21 de Agosto. [2] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, p. 256 e seg. [3] Tal princípio, regra matricial do regime dos seguros de danos, traduz um princípio de ordenação social: ao atalhar ao enriquecimento do segurado com o sinistro está afinal a precaver a ocorrência destes, a fraude e, portanto, a desordenação social. Tendo o Regime Jurídico do Contrato de Seguro aderido à doutrina que, na actualidade, relega este conceito–o do princípio indemnizatório–para o seu significado finalista, de declaração de princípios prevenidora de abusos, de enriquecimento excessivo e, no limite, de fraudes–Pedro Romano Martinez e outros autores, Lei do Contrato de Seguro, Anotada, p. 439 e 440. [4] Que permaneceu intocado mesmo após o DL nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o regime Jurídico do Contrato de Seguro. [5] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273). [6] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348. [7] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [8] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt. |