Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0745110
Nº Convencional: JTRP00041086
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PROVAS
PROIBIÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RP200802270745110
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 301 - FLS 190.
Área Temática: .
Sumário: I - É nula, não podendo ser utilizada, a prova vertida em relatório clínico que descreve os resultados obtidos através de sessões de hipnose a que voluntariamente se submeteu a ofendida.
II - A utilização dessa prova inquina não só a decisão final como o próprio julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5110/07
…/02.3TAVCD – .º juízo criminal de Vila do Conde
Relatora: Olga Maurício
Juízes adjuntos: Jorge Jacob
Artur Oliveira


Acordam, em audiência, na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

1.
No tribunal de Vila do Conde o arguido B………. foi condenado na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelos art. 172º, nº 1, e 30º, nº 2, do Código Penal.

2.
Inconformado o arguido interpôs recurso da decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«1. O episódio alegadamente ocorrido em Setembro de 2001 em Cuba e o episódio alegadamente ocorrido em Março de 2002 não podem considerar-se continuação criminosa dos factos alegadamente ocorridos todas as semanas, desde 1996 a 1999.
2. Não só os factos não são os mesmos, nem são homogéneos, como não existe uma conexão espacial nem temporal entre os factos e muito menos existe um quadro duma mesma solicitação exterior, visto que a menor já não vivia em casa do arguido, pelo menos, segundo o acórdão, desde 1999 - v. art. 30º, nº 2 do CP.
3. Acresce que tais episódios nunca poderiam integrar o mesmo tipo legal de crime do art. 172º nº 1 do Código Penal porque lhes falta um elemento desse tipo: a queixosa já contava então muito mais de 14 anos de idade (15 ou 16 anos num e 16 anos e meio no outro).
4. Não preenchendo os factos imputados referentes a Setembro de 2001 e Março de 2002 nenhuma conduta criminosa, muito menos preenchem a conduta do tipo incriminatório imputado ao arguido.
5. Ora, tendo a queixosa feito queixa dos factos através do auto de notícia datado de 21 de Maio de 2002, há muito tempo se tinha já extinto o prazo de exercício de queixa consignado no art. 115º, nº 1 do Código Penal, no que concerne aos factos integradores do crime por que o arguido foi sentenciado.
6. Assim sendo, o Ministério Público carece de legitimidade para o exercício da acção penal - o que determina o arquivamento dos autos - art. 48º e 49º nº 1 do Código de Processo Penal.
7. O relatório médico de fls. 93 a 97 e o depoimento testemunhal do autor de tal relatório, Dr. C………., são insusceptíveis de servir como meio de prova, atento o preceituado nos art. 125º e 126º nº 1 e nº 2, al. a) do CPP, pois o autor de tal relatório sustentou-o em sessões de hipnose feitas à queixosa e o seu depoimento, necessariamente indirecto, porque reprodutor de declarações que ouviu à queixosa na sua qualidade de psicólogo, está imbuído do mesmo vício, visto que a ouviu, por vezes, sob estado hipnoidal.
8. Assim, ao fundar a sua decisão no relatório e no depoimento testemunhal em causa, o Tribunal apreciou provas nulas - nulidade que expressamente se invoca para todos os efeitos legais, designadamente por acarretar nulidade da própria sentença, nos termos das disposições conjugadas dos art. 125º e 126º nº 1 e nº 2, al. a), 340º nº 3 a contrario e 379º nº 1, c) do CPP e art. 32º nº 8 da Constituição da República Portuguesa.
9. No local onde alegadamente teriam ocorrido os actos imputados, ao contrário do que refere o Tribunal, não estavam duas pessoas mas sim três - assistente, arguido e mulher do arguido - visto que todos habitavam nessa casa e aí dormiam, sendo certo que o arguido dormia com a esposa.
10. Assim, ao validar o depoimento da assistente em detrimento do depoimento do arguido, o Tribunal ignorou que um terceiro depoimento, o da mulher do arguido - que também aí estava presente - confirma e corrobora o depoimento do arguido.
11. Ocorreu assim um primeiro erro notório na apreciação da prova, visto que o Tribunal não valorou, como devia, o depoimento da mulher do arguido, D………. .
12. Ao partir do pressuposto, errado, de que bastava valorar o testemunho da queixosa em detrimento do depoimento do arguido, para considerar provados os factos a este imputados, o Tribunal violou as regras da lógica, da experiência e do senso comum na ponderação das provas ao seu dispor.
Sem conceder...
13. Ao contrário do que afirma o tribunal, a assistente tem um retrato psicológico que não abona em nada a sua credibilidade, no qual abundam sinais claros de elevada susceptibilidade, possível ideação suicida, traços passivo-agressivos, carácter patológico, preocupações neuróticas, agressividade reprimida, imaturidade e reduzido controlo dos afectos, instabilidade afectiva e emocional, desorientação, insegurança - tudo conforme o relatório psicológico do Hospital ………. a fls. 394 a 400 dos autos (1 volume), que o Tribunal não valorou, como devia, de forma a desconsiderar o depoimento da assistente.
14. O depoimento da assistente em audiência é descaracterizado, artificial, fantasioso, irreal, pouco ou nada credível e, além disso, contraditório com o teor do auto de notícia e com o testemunho prestado em inquérito, pelo que, ao acolhê-lo como válido, o Tribunal violou as regras da lógica, do bom senso e da experiência comum, tendo laborado em erro.
15. Um testemunho assim tão inconsistente, feito por uma pessoa tão pouco credível, não pode prevalecer perante o depoimento negatório consistente feito pelo arguido, tanto mais que o arguido foi submetido a um relatório psicológico que o considerou uma pessoa perfeitamente normal e sem qualquer tendência criminosa ou pedófila.
16. Quanto ao valor probatório conferido pelo Tribunal à afonia psicogénica da assistente, esta não tem qualquer virtualidade probatória, sendo certo que não é comprovado pelos depoimentos testemunhais em audiência que essa afonia tenho sido provocada por um abuso sexual, muito menos por um abuso praticado pelo arguido, nem que tenha deixado de existir quando a assistente narrou o que alegadamente lhe teria sucedido.
17. Aliás, é muito estranho que, se a assistente - como afirma - tivesse sido vítima de abuso sexual dos 11 aos 14 anos, só tenha sido aos 16 anos e meio que a afonia se tenha manifestado, sendo muito mais crível que tenha ficado afónica porque nessa altura (aos 16 anos) foi rejeitada pela família que a acolhera, devido ao seu mau comportamento e por ter então sabido - como está documentalmente comprovado nos autos - que o casal do arguido e esposa tinha sido aceite para adopção e iria em breve acolher uma criança que, segundo ela, na sua mente, iria ocupar um lugar que cuidava ser seu.
18. Ao analisar o texto escrito nos mails de fls. 90 e 91, que estão absolutamente incompletos e descontextualizados, o Tribunal lança-se numa suposição perigosa, pois pretende medir a natureza dos sentimentos neles expressos - o que é, como se sabe, muito subjectivo e falacioso - sendo certo que nada nos mails permite sustentar a tese do abuso sexual, muito pelo contrário, ressalta deles uma ligação sentimental e não física, de afectividade e não de abuso.
19. Relativamente aos depoimentos indirectos, com os quais o tribunal propende a credibilizar o depoimento da assistente, prestados por pessoas que ouviram os factos da boca da própria assistente, mais ou menos concomitantemente com a data em que esta decidiu revelar tais factos, uma vez que as testemunhas ouviram os factos narrados por lhes terem sido contados pela assistente, o seu depoimento não tem, nem pode ter, nenhum valor probatório acrescido relativamente ao depoimento da própria assistente, nem nenhuma virtualidade de credibilização do depoimento da assistente.
20. Resulta assim que os argumentos que o Tribunal conjugou e ponderou para concluir pela verificação dos factos são manifestamente insuficientes, contraditórios entre si e deveriam ter levado à conclusão oposta, ou seja, de alta probabilidade de não verificação dos factos e da sua imputação ao arguido.
Por outro lado...
21. O Tribunal não apreciou a personalidade do arguido, retratada no exame psicológico a que se submeteu (fls. 394 e segs. dos autos, III volume), e outrossim não apreciou a convicção e coerência do seu depoimento, no qual o arguido refutou de forma clara os factos, sem hesitação, pausadamente, revelando grande serenidade e segurança, sem fugir a nenhuma questão e mantendo um discurso coerente e simples, com convicção.
22. Como o depoimento da testemunha D………. destrói por completo a versão da assistente, ou o Tribunal considerava que a testemunha D………. mentiu deliberadamente ao Tribunal, para proteger o seu marido e, por isso, não lhe merecia crédito, ou o Tribunal teria que considerar o depoimento da assistente inconsistente, face à coerência dos depoimentos do arguido e da esposa e à ausência total de outras provas.
23. Porém, o Tribunal não fez uma coisa nem outra, tendo pura e simplesmente ignorado a existência do depoimento desta testemunha, não o apreciando - nem a ele se referindo sequer em sede de análise crítica das provas - o que novamente traduz um erro grave na apreciação e valoração crítica das provas a que o Tribunal está adstrito.
24. Igual sorte teve o depoimento da testemunha E………. - um depoimento extenso, coerente, seguro, convicto, muito relevante, da única pessoa que tendo privado com todas as pessoas envolvidas neste processo não é familiar de nenhuma delas, falou com a assistente sobre os factos, ouviu os factos narrados pela arguida contados por outras pessoas, cuja identidade revelou, e ela própria tinha sido vítima duma violação por parte do pai - depoimento que o Tribunal pura e simplesmente ignorou na análise crítica da prova.
25. Esta testemunha confirmou que o relacionamento entre a assistente e o arguido era óptimo e assim se manteve até à apresentação da queixa, afirmou que a forma como a assistente contava os factos era impessoal, com inusitado à-vontade e nada consentânea com alguém que tivesse na verdade sido alvo de abuso sexual, tendo tudo isto sido omitido no acórdão em apreço.
26. Esta testemunha também depôs sobre a personalidade do arguido e sobre a forma como convive com ele perfeitamente no dia-a-dia, atestando que o mesmo é uma pessoa respeitadora, plena de valores humanos e com muita formação moral - o que releva sobremaneira por se tratar dum depoimento de pessoa que fora alvo de violação, tendo o Tribunal mais uma vez omitido tais circunstâncias no acórdão.
27. Acresce ainda que o Tribunal considerou os depoimentos das testemunhas F………., G………., H………., I………. e J………. como meramente abonatórios, quando tais testemunhas conheceram a assistente, privaram com ela em determinadas fases da sua vida e comprovaram a boa relação existente entre o arguido e a assistente, muito depois do momento temporal em que a assistente refere ter ido alvo de abusos continuados, assim como a forma como assistente e arguido conviviam nas aulas de pintura que ambos frequentavam no Porto, nas viagens para o Porto, no carro do ofendido e na casa do arguido, quando aí iam, ou no trabalho deste, os colegas de trabalho, porque a menor aí se deslocava amiúde.
28. Todos estes elementos testemunhais relevantíssimos para a boa decisão da causa foram desconsiderados e ignorados pelo Tribunal.
29. Afirmando-se no douto acórdão, quanto a todos os factos que o arguido alegou, que «Demonstrados, no essencial, os factos da pronúncia, impôs-se julgar inverificados os factos alegados pelo arguido.», daí decorre que o Tribunal se demitiu de apreciar e valorar criticamente, também, os factos alegados pelo arguido - o que traduz inobservância do preceituado no art. 365º nº 3 e no art. 368º nº 2, ambos do CPP.
Numa outra vertente de análise...
30. Se tudo aquilo que se alegou não fosse suficiente para comprovar a inocência do arguido, bem como a falta de provas de qualquer actividade criminosa, mesmo assim o arguido teria inelutavelmente de ter beneficiado do princípio da presunção de inocência que é, aliás, uma exigência de ordem constitucional, um dos direitos fundamentais de qualquer cidadão no nosso Estado de Direito.
31. O princípio da presunção de inocência obstava, de forma absoluta e incontornável, a que o Tribunal, no confronto entre as palavras da assistente e as palavras do arguido e da esposa deste, que a desmentem, tivesse optado por valorar o testemunho da assistente.
32. E impedia-o através da regra do princípio in dubio pro reo que obrigatoriamente deve nortear a apreciação e valoração da prova, e que resulta assim violado neste caso concreto.
33. De tudo o que foi expendido decorre ainda que o Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova, no sentido em que esse erro é patente ao observar a própria fundamentação e motivação do acórdão e, em especial, a análise crítica da prova produzida que foi feita pelo Tribunal recorrido.
Por mera cautela de patrocínio...
34. Em abstracto e se por absurdo o arguido viesse a ser condenado, atento o circunstancialismo narrado no acórdão, considerando a personalidade do arguido, as exigências de prevenção geral, a falta de exigências de prevenção especial, atento o relatório psicológico a que foi submetido, o tempo decorrido, a boa conduta, a inserção social, a ausência de antecedentes criminais, a idade, os hábitos de trabalho, a sua boa reputação, a pena aplicável nunca deveria ser superior a três anos, com suspensão de execução.
Cumprindo o art. 412º nº 2 do CPP...
35. O arguido considera que o Tribunal, ao condenar pelos factos descritos nas alíneas i) e j) da factualidade provada, violou o preceituado no art. 30º, nº 2 e no art. 172º nº1 do CP.
36. O arguido considera que o Tribunal, ao não determinar a extinção do procedimento criminal por falta de legitimidade do MP, atento o facto de o crime ser semi-público e o direito de queixa estar extinto à data do seu exercício, violou o disposto no art. 115º nº 1 do CP e nos art. 48º e 49º nº 1 do CPP.
37. O arguido considera que o Tribunal, ao valorar o relatório psicólogico de fls. 93 a 97 dos autos e outrossim o depoimento testemunhal do autor desse relatório, incorreu em violação do art. 125º e 126º nº 1 e nº 2 aº. a), 340º nº 3 a contrario e 379º nº 1, c), todos do CPP e ainda o art. 32º nº 8 da Constituição da República Portuguesa,
38. O arguido considera que o Tribunal, ao não apreciar criticamente os factos alegados pelo arguido, desrespeitou os comandos normativos dos art. 365º nº 3 e no art. 368º nº 2, ambos do CPP.
39. O arguido considera que o Tribunal, ao não aplicar o princípio in dubio pro reo na apreciação e valoração da prova, violou frontalmente o princípio da presunção de inocência do arguido consignado no art. 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
40. Finalmente, o arguido considera que o Tribunal incorreu reiteradamente em erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º nº 2, c) do CPP.
41. Na determinação da medida da pena, o arguido considera que o Tribunal não cumpriu os critérios enunciados nos art. 71º nº 1 e nº 2 e 50º nº 1 do CP.
Em cumprimento do preceituado no art. 412º nº 5 do CPP.
42. O recorrente consigna que mantém interesse na subida e apreciação dos dois recursos por si interpostos no decurso da audiência, o primeiro interposto e motivado na sessão de 4 de Outubro de 2006 a fls. 539 e o segundo relativo ao despacho proferido na sessão de 15 de Novembro de 2006, a fls. 584, interposto e motivado em separado, no primeiro dos quais impugna a decisão de relegar para final a questão da admissibilidade do relatório de fls. 94 e ss. e no segundo impugna a admissibilidade a depor da testemunha Dr. C………. .
Dando cumprimento ao determinado no art. 412º nº 3 do CPP, CONSIGNA-SE:
1. que o recorrente considera incorrecta mente julgada a matéria das alíneas a) a o), inclusive, constantes da facticidade provada do acórdão final, os quais deveriam ter sido considerados «não provados».
2. que o recorrente considera incorrectamente julgados, em contraposição, os factos alegados por si na contestação e elencados como factos não provados no ponto 2.2. acórdão em apreço, os quais deveriam ter sido considerados «provados)).
3. que as provas que impõem decisão diversa são:
. Declarações prestadas pelo arguido, B………., gravadas nas cassetes nº 1, Lado A, rotações nº 015 a nº 528 e cassete nº 2 Lado A, rotações nº 005 a nº 1789, cujo depoimento deve ser genericamente valorado como credível e consistente;
. Depoimento prestado pela testemunha D………., gravado na cassete nº 5, Lado A, rotações nº 0942 a nº 2338 e Lado B, rotações nº 0001 a nº 1258, cujo depoimento deve ser considerado muito relevante, no sentido de afastar a credibilidade do depoimento da assistente e confirmar a credibilidade do depoimento do arguido, assim como de tornar improvados todos os factos impugnados neste recurso;
. Declarações prestadas pela assistente, K………., gravadas na cassete nº 1, Lado A, rotações nº 530 a nº 2352 e Lado B, rotações nº 005 a nº 1926, cujo depoimento deve ser genericamente valorado como não credível e inconsistente, particularmente no confronto com o teor do auto de notícia de fls. 2 e ss. e com as declarações prestadas em inquérito a fls. 54 e ss.;
. Depoimento prestado pela testemunha E………., gravado nas cassetes nº 5, Lado B, rotações nº 1259 a nº 2318 e cassete nº 6, Lado, A rotações nº 0001 a 0346, que deve ser reputado de fundamental para a boa decisão da causa e totalmente comprovativo da falta de credibilidade do depoimento da assistente, nos termos constantes das conclusões 24, 25 e 26 deste recurso;
. Depoimento prestado pela testemunha L………., gravado na casséte nº 2, Lado A, rotações nº 1790 a nº 2355 e Lado B, rotações nº 005 a nº 1381, que deve ser desvalorizado, atento o carácter vago e esquecido do seu testemunho, só avivado pela leitura das declarações prestadas em inquérito;
. Depoimento prestado pela testemunha M………., gravado nas cassetes nº 2, Lado B, rotações nº 2072 a nº 2387e cassete nº 3, Lado A, rotações nº 005 a nº 1113, que deve ser considerado de valor probatório praticamente nulo, ao contrário do que considerou o Tribunal;
. Depoimento prestado pela testemunha N………., gravado na cassete n. 4, Lado A, rotações nº 0001 a nº 2335 e Lado B, rotações nº 001 a nº 0740, que ao invés do que considerou o tribunal deve ser considerado inverídico, contraditório, impreciso e nada consistente, principalmente no confronto com o depoimento prestado em inquérito a fls. 27 e ss., que lhe foi lido e cujas discrepâncias acentuou;
. Depoimento prestado pela testemunha F………., gravado na cassete nº 5, Lado A, rotações nº 0001 a nº 0941,
. Depoimento prestado pela testemunha G………., gravado na cassete nº 6, Lado A, rotações nº 0347 a nº 0920,
. Depoimento prestado pela testemunha H………., gravado na cassete n.° 6, Lado A, rotações nº 0921 a 1360 e
. Depoimento prestado pela testemunha I………., gravado na cassete 6, Lado A, rotações n- 1361 a 1899 - estas quatro últimas no sentido de que devem ser considerados os factos que pessoalmente conheciam e que declararam ao Tribunal, não as considerando assim testemunhas meramente abonatórias do arguido.
Relatório de Psicologia Forense de fls. 394 a 400 (1 volume) dos autos.
. Relatório de Psicologia Forense de fls. 394 a 398 (III volume - erro de numeração de páginas) dos autos.
. Documento emitido pelo Centro Regional de Segurança Social do Porto junto aos autos na sessão de audiência de julgamento de 4/10/2006 da parte de tarde.
Desta diferente apreciação e valoração da prova resultará, segundo o recorrente, a irrazoabilidade da decisão da matéria de facto que foi proferida pelo Tribunal a quo.
Por outro lado, se for acolhida a arguição de nulidade de provas produzidas em audiência, conforma acima defendemos nas conclusões 7) e 8), deve ser renovada toda a prova, por a convicção dos julgadores ser incindível da consideração dessas provas (testemunhal e por relatório psicológico), assim se impondo o reenvio do processo para novo julgamento».
O arguido termina dizendo que deve:
«A) considerar-se que, mesmo em abstracto, não pode ocorrer continuação criminosa entre os factos constantes das alíneas i) e j) dos factos considerados provados e os factos antecedentes;
B) considerar-se que os factos constantes das alíneas i) e j) dos factos provados não são sequer susceptíveis de se subsumir a nenhum tipo legal crime e muito menos ao do art. 172º do CP por lhes faltar o requisito de menos de 14 anos da queixosa;
C) determinar-se o arquivamento dos autos por falta de legitimidade do Mº Pº na sua prossecução, visto que se trata de crimes semi-públicos e à data em que foi exercido o direito de queixa o mesmo já estava extinto pelo decurso do prazo legal;
D) Se assim se não entender, reconhecer a nulidade dos meios de prova relatório de fls. 93 e 97 e do depoimento do Dr. C………. e, consequentemente, determinar a anulação do julgamento;
E) Reconhecer a existência de erro notório na apreciação da prova;
F) Se assim se não entender, reapreciar e reanalisar criticamente a prova produzida, nos termos alegados, de forma a considerar não provados todos os factos constantes das alíneas a) a o) da matéria de facto do acórdão e considerar provada a matéria de facto da contestação, assim consequentemente absolvendo o arguido.
G) Ou, se assim se não entender, em obediência ao princípio in dubio pro reo e à presunção de inocência constitucionalmente consagrada, determinar a absolvição do arguido
H) Subsidiariamente, por mera cautela de patrocínio e precavendo a hipótese, que se não concebe nem concede, de dever ser aplicada ao arguido uma pena de prisão, deverá a mesma ser diminuída e determinada a sua suspensão».
*

Anteriormente, em simultâneo com a contestação, o arguido alegou que o relatório médico de fls. 94 e segs. do processo, elaborado por C………., sustenta-se em sessões de hipnose realizadas à queixosa.
Ora, diz, a hipnose está incluída nas proibições de prova, cuja nulidade se encontra taxativamente prevista no art. 126º, nº 1 e nº 2, al. a) do C.P.P., e com consagração Constitucional no art. 32º, nº 8 da CRP.
Em conformidade requereu o desentranhamento de tal relatório.
Em despacho proferido na sessão do julgamento realizada em 4 de Outubro de 2006 foi decidido o seguinte:
«A decisão sobre a validade do meio de prova em causa - relatório de fls. 94 - será tomada aquando da ponderação de todos os meios de prova para o efeito motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Quanto ao impedimento da testemunha, o Tribunal ignora, neste momento, se a mesma prestará ou não depoimento sobre a matéria factual constante do aludido relatório, certo que a fazê-lo valerão as considerações anteriormente expostas».

O arguido recorreu desta decisão (este é o primeiro recurso do processo) e apresentou as seguintes conclusões:
«1. O arguido suscitou a nulidade, como meio de prova, do relatório de fls. 94 e ss., tendo o Tribunal, segundo entendemos, relegado para a decisão final sobre a matéria de facto a valoração ou não de tal depoimento.
2. O Ministério Público ofereceu esse meio de prova com a acusação, visto que indicou como prova toda a dos autos.
3. Toda a prova tem que ser produzida em audiência.
4. A prova em apreço é ilegal e inconstitucional, pelo que a sua produção acarreta nulidade insuprível.
5. O tribunal deveria ter decidido não admitir e mandar desentranhar tal meio de prova.
6. Não o tendo feito foram de veras desrespeitados os preceitos do art. 355º, 126º, nº 1 e 2, al. a), todos do Código de Processo Penal e o art. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa, entre outros».
*

Na sessão do julgamento que teve lugar em 15 de Novembro o arguido requereu que a testemunha C………. não fosse admitida a depor, por o seu depoimento resultar, em parte, de exames que fez à queixosa com recurso a hipnose. Sendo tal prova nula, não pode ser produzida.
Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho:
«O Tribunal pronunciou-se já sobre a questão nos termos constantes do despacho de 04/10/2006, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Assim, pelas razões constantes no aludido despacho, indefere-se ao requerido».

O arguido recorreu, também, desta decisão (segundo recurso) e rematou-o com as seguintes conclusões:
«I. O arguido suscitou a nulidade, como meio de prova, do depoimento da testemunha de acusação C………., requerendo que a mesma não fosse admitida a depor.
II. Do depoimento desta testemunha resultariam relatos dos exames que a própria testemunha terá feito à queixosa, nos quais se incluíam sessões de hipnose, sendo indissociável aquilo que a testemunha poderia ter ouvido à queixosa no estado de vigília, daquilo que esta poderia ter apreciado durante as sessões de hipnose.
III. Uma vez produzida a prova, esta condiciona de forma inegável toda a marcha do processo, independentemente de o tribunal a valorar ou não a final.
IV. As provas obtidas mediante hipnose ofendem a integridade física ou moral das pessoas, são nulas e não podem ser valoradas. Como tal, nem sequer devem ser produzidas.
V. A prova em causa é no entender da defesa ilegal por violação dos art. 125º e art. 340º, nº 3, nula nos termos do disposto no art. 126º, nº 1 e 2, al. a) e se produzida, inconstitucional nos termos do disposto no art. 32º, nº 8 da CRP».

3.
Os recursos foram admitidos.

A assistente respondeu ao primeiro recurso, pugnando pela manutenção do decidido.

Quanto a este recurso o Sr. Procurador da República junto do tribunal recorrido também respondeu dizendo, em síntese, que o relatório de fls.94 e seguintes é um dos elementos de prova do processo. O que está em causa, no relatório, não é o arguido mas sim a ofendida. Esta submeteu-se, por iniciativa própria e com a sua autorização, a um tratamento do foro psicológico, que incluiu hipnoterapia.
Assim, diz, não há a violação de qualquer norma legal porque o relatório não foi elaborado com o propósito de obter provas, mas antes com o intuito de ajudar a ofendida a recuperar do trauma a que foi sujeita.

Relativamente ao terceiro recurso o Ministério Público junto do tribunal recorrido também respondeu dizendo que os factos praticados pelo arguido em Setembro de 2001 e em Março de 2002 ocorreram dentro do mesmo quadro circunstancial em que decorreram os demais factos e a circunstância de a menor ter completado, durante esse lapso de tempo, 16 anos de idade não é um factor relevante e que possa levar à modificação da imputação.
Relativamente à prescrição defende que o prazo do art. 115º do Código Penal não pode ser contado matematicamente a partir do dia em que a ofendida completou os 16 anos. Nos casos em que as menores, depois de fazerem 16 anos, continuam sob a acção dos agressores sexuais, a contagem do prazo só se inicia quando ela se liberta daquela acção.
Quanto ao documento de fls. 93 e segs. entende que se trata do relatório de um tratamento psicológico a que a ofendida se submeteu por iniciativa própria. Não há qualquer violação da lei na sua junção porque não foi elaborado com o propósito de obter provas mas com o intuito de fazer a ofendida recuperar do trauma a que foi sujeita. Quanto ao depoimento do psicólogo que realizou aquele acompanhamento à assistente defende que a sua intervenção em audiência não está afectada de qualquer vício.
Alega, ainda, que mesmo defendendo-se que se trata de depoimento indirecto, na parte que respeita aos factos relatados pela ofendida, o mesmo é admissível porque veio corroborar o depoimento daquela, cumprindo os requisitos do art. 129º nº 1 do Código de Processo Penal.
Quanto ao mais diz que os depoimentos foram valorados devidamente, que o princípio in dubio pro reo nunca poderia ter funcionado porque o julgador não teve quaisquer dúvidas em relação aos factos, devendo ser negado provimento ao recurso.

O Exmº P.G.A. junto desta Relação pediu que seja negado provimento a todos os recursos interpostos.
Quer o relatório de fls. 94 e segs., quer a testemunha que o elaborou são provas válidas, não havendo qualquer fundamento legal para não as admitir.
Quanto ao facto de se tratar de depoimento indirecto, se se ouviu a ofendida, que confirmou as declarações que prestou à testemunha, e se esta confirmou as declarações que ouviu, estamos em face de um depoimento indirecto válido, nos termos do art. 129º do C.P.P., livremente valorável pelo tribunal.
Quanto à decisão sobre a matéria de facto, refere que existe perfeita coerência entre os factos provados e não provados e a respectiva fundamentação, baseada numa criteriosa e correcta análise crítica e valoração de toda a prova produzida e examinada em audiência. O que o recorrente exprime é uma diferente convicção que, de novo, recupera quando imputa à decisão o vício do erro notório na apreciação da prova.
Também não tem cabimento a alegação de violação do princípio “in dubio pro reo”, uma vez que o tribunal chegou a um juízo de certeza quanto aos factos e quanto à responsabilidade do recorrente.
Entende, finalmente, que ocorre continuação criminosa, que não ocorreu a extinção do direito de queixa e que a pena foi criteriosamente determinada. Não obstante a alteração legal ocorrida termina dizendo que a mesma não deverá ser suspensa ou, a sê-lo, a suspensão deve ser subordinada ao pagamento duma indemnização adequada à assistente.

4.
Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do C.P.P., o arguido respondeu, mantendo as conclusões apresentadas na motivação do seu recurso.

5.
O arguido apresentou alegações escritas referindo, quanto às questões controvertidas:
I – Legalidade da prova constituída pelo documento de fls. 94 e segs. e depoimento do respectivo subscritor
- mantém os argumentos já expendidos, realçando que o problema radica na hipnose e não na circunstância de se tratar de depoimento indirecto.
II – Existência de crime continuado
- entre 1996 e 1999 a queixosa tinha menos de 14 anos e os factos imputados caíam na alçada do art. 172º, nº 1, do Código Penal;
- em 2001 e 2002 a queixosa tinha mais de 14 anos e para que os factos imputados fossem abrangidos pelo art. 173º do Código Penal era necessário que existisse uma relação de dependência;
- pelo menos aquando dos episódios de 2001 e 2002 não havia qualquer relação de dependência;
- também não ocorre crime de coacção sexual porque sempre teria que existir violência, ameaça grave ou teria sido necessário que o arguido colocasse a vítima em estado inconsciente, o que não aconteceu;
- para que exista continuação criminosa é mister haver uma sucessão de crimes, coisa que não resulta dos factos.
III – Extinção do direito de queixa
- os factos provados desmentem o raciocínio feito pelo Ministério Público, que a queixa foi apresentada em prazo;
- o tribunal a quo considerou provado que em Setembro de 2001 a queixosa resistiu à tentativa do arguido e logrou repudiá-lo;
- mesmo entendendo-se, como defende o Ministério Público, que o prazo de seis meses de caducidade do direito de queixa só se iniciaria quando a ofendida se libertou da acção psicológica sobre si exercida pelo agressor, a verdade é que Em Setembro de 2001 ela já se teria libertado das investidas do arguido, pelo que o direito de queixa caducou em Março de 2002.
IV – Inexistência de factos criminalmente puníveis
- mantém das considerações já feitas.

6.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Teve lugar a audiência, cumprindo decidir.
*

*

FACTOS PROVADOS

7.
No acórdão proferido na 1.ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
«a) A partir de Abril/ Maio de 1996 e até 1999, nos períodos escolares, K………., nascida a 21.09.85, viveu em casa do arguido e sua mulher, D………., sita na Rua ………., ..º, .º Direito, Vila do Conde, passando os fins de semana com a mãe;
b) Aproveitando-se deste facto e da circunstância da ofendida ser uma menor – cuja exacta idade ele conhecia – sem capacidade de defender, o arguido elaborou o propósito de, utilizando o corpo daquela, satisfazer a sua lascívia;
c) Para concretização tal intento e durante o apontado período, à noite, na referida residência, a hora não concretamente apurada, quando a mulher se encontrava a dormir, o arguido esgueirava-se para o quarto da ofendida, levantava a roupa da cama, despi-a da cintura para baixo e deitava-se em cima dela;
d) Após baixava as suas próprias calças, esfregava o pénis no corpo da ofendida e repetidamente na zona vulvar;
e) Uma vezes, depois de o esfregar na zona vulvar, o arguido pressionava, ainda, o pénis erecto contra a vagina daquela e fazia o mesmo na zona do ânus;
f) Em muitas dessas vezes o arguido acabava por ejacular por sobre o corpo da assistente;
g) Sempre que estes factos aconteciam a ofendida, com vista a impedir os intentos do arguido, virava-se para ambos os lados da cama, adoptava uma posição fetal, cruzando os braços sobre o peito, mas, devido à devido à diferença de força física entre ambos, acabava por se constranger e a sofrer os actos supra descritos;
h) O arguido praticou estes factos por um número indeterminado de vezes dentro do mencionado âmbito temporal, à razão de, pelo menos, uma vez por semana;
i) No âmbito, ainda, desta conduta, em dia não determinado de Setembro de 2001, a K………. foi de férias com o arguido e a sua mulher para Cuba e, nessas férias, uma noite, no hotel, aproveitando-se do facto da mulher estar a dormir, o arguido abeirou-se da ofendia, que dormia na outra ponta da cama do casal, e colocou-se em cima dela, com o intuito de repetir os factos acima descritos, mas a assistente logrou repudiá-lo, impedindo, assim, que este continuasse na prossecução dos seus intentos;
j) Em noite não determinada de Março de 2002 a assistente dormiu em casa do arguido, na morada acima indicada, e, nessa noite, este esgueirou-se até ao quarto onde ela dormia, pôs-se em cima dela e tentou tirar-lhe a roupa, mas a assistente conseguiu repudiá-lo;
l) Devido aos acontecimentos supra descritos a arguida sofreu de afonia psicogénica;
m) O arguido sabia que não podia manter actos sexuais com a ofendida, contra a sua vontade, mas não obstante esse conhecimento, não se coibiu de usar a força física para consumar os seus desígnios criminosos e concretizar os seus intentos libidinosos, esfregando o seu pénis na zona vulvar, pressionando-o contra a vagina e na zona do ânus da vítima, sempre com a oposição da mesma, a qual oferecia resistência, sem êxito, porquanto o arguido conseguiu sobrepor a sua maior força à da vitima;
n) O arguido actuou numa proximidade temporal e de um modo uniforme sempre movido pela facilidade que lhe concedia a permanência e dormida da assistente em sua casa;
o) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
p) O arguido não tem antecedentes criminais;
q) O processo educativo do arguido decorreu dentro da normalidade; viveu até aos 16 anos em Angola, onde iniciou o seu percurso escolar e concluiu o equivalente ao 7º ano de escolaridade; após regressar a Portugal, em 1975, retomou os estudos, tendo concluído o 12º ano de escolaridade; começou a trabalhar aos 17 anos como aprendiz de electricista; após o cumprimento do serviço militar trabalhou numa empresa de construção civil, até que, em Maio de 1983, passou a trabalhar na O………., onde se encontra até hoje; casou aos 27 anos com D………., sendo que o único filho do casal veio a falecer com 3 meses de idade; os factos em apreço criaram alguma instabilidade no relacionamento do casal; no meio onde vive o arguido é considerado uma pessoa educada e respeitadora, merecendo igual consideração junto dos seus colegas de trabalho, que, também, o consideram um bom profissional».

8.
E foram julgados não provados os seguintes factos:
«Da pronúncia.

«- A ofendida e a sua família recebessem ajuda económica por parte do arguido;
- O arguido acariciasse o peito da ofendida;
- O arguido tivesse conseguido algumas vezes penetrar parcialmente o pénis erecto na vagina da ofendia;
- O arguido tentasse a penetração anal;
- As fissuras anais apresentadas pela ofendida tivessem sido causadas pelas tentativas de penetração anal por parte do arguido;
- Nas férias de Cuba o arguido tivesse baixado as calças do pijama da ofendida e tivesse esfregado o pénis na zona do ânus;
- Em Março de 2002, o arguido tivesse tirado o pijama da ofendida, obrigado a abrir as pernas e forçado o pénis na vagina daquela;
- O arguido se tivesse feito valer da influência económica que detinha perante a ofendida.
Da contestação.
Não se provaram os factos constantes da contestação, designadamente que:
- Com o passar do tempo da sua adolescência a assistente se foi tornando exigente, mimada e egoísta;
- O arguido tivesse procurado afastar-se da assistente por estar desgostoso com algumas más companhias e desagradado com a personalidade da mesma;
- A assistente se tivesse sentido despeitada;
- A assistente tivesse inventado os factos».

9.
O tribunal motivou a decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«Cumpre, antes do mais, uma vez que foi arguida a respectiva nulidade, apreciar da admissibilidade e validade do relatório clínico junto a fls. 93 a 97.
Ou seja, impõe-se saber se o referido relatório pode ser usado como meio de prova.
O arguido entende que não, argumentando que a elaboração desse relatório se encontra sustentada na realização de sessões de hipnose à queixosa, pelo que, encontrando-se o método de hipnose inserido nas proibições de prova, aquele é nulo.
Que dizer?
Para melhor percepção da questão começaremos por fazer a distinção entre prova, meios de prova e meios de obtenção de prova.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art. 341º do Código Civil).
Os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar a sua convicção acerca de um facto (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 452).
Os meios de obtenção de prova são os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova - Cfr Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal II, pág. 209.
Ainda a propósito da distinção entre meios de obtenção de prova e de meios de prova, escreve Germano Marques da Silva, in Obra citada, pág.210:
“É claro que através dos meios de obtenção de prova se podem obter meios de prova de diferentes espécies, v.g., documentos, coisas, indicação de testemunhas, mas o que releva de modo particular é que, nalguns casos, o próprio meio de obtenção da prova acaba por ser também um meio de prova. Assim, por exemplo, enquanto a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova, as gravações são já um meio de prova”.
Contudo, prossegue o mesmo autor: ”...pode suceder que a distinção resulte apenas da lei ter dado particular atenção ao modo de obtenção da prova, como nos parece acontecer, v.g., com as escutas telefónicas”.
Tecidas estas considerações voltemos ao caso em apreço.
Embora resulte do relatório clínico e tenha sido confirmado pelo autor do mesmo – a testemunha C………. – que foram realizadas sessões de hipnose, a indução do estado hipnoidal não se destinou a averiguar da veracidade dos factos relatados pela assistente.
Na verdade, lê-se no relatório, que a indução do estado hipnoidal se destinou a fins terapêuticos, nomeadamente à reestruturação da narrativa.
Isso mesmo foi confirmado pela testemunha C………., a qual precisou que a indução do estado hipnoidal visou averiguar se, não obstante o tratamento, o medo, a ansiedade e os pesadelos permaneciam e, permanecendo, afastá-los através da reestruturação da narrativa.
Resulta, ainda, do referido relatório que, apesar da recordação dos factos em estado hipnoidal provocar uma activação comportamental e visceral intensa, tal não é suficiente para confirmar a veracidade dos mesmos.
Em suma, a indução do estado hipnoidal não se traduziu num meio de obtenção da prova nem representa, por si, um meio de prova.
Efectivamente, porque o estado hipnoidal foi usado para fins terapêuticos e não para confirmação da veracidade dos factos relatados pela queixosa, não se traduziu num instrumento para recolher meios de prova nem tem virtualidade para servir como meio de prova.
Por sua vez, no relatório clínico, que constitui o meio de prova, não é formulado, com base nos factos recordados em estado hipnoidal, qualquer juízo quanto à veracidade de tais factos.
O que se afirmou é suficiente para se concluir pela legalidade do meio de prova em causa (relatório clínico).
Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente a arguida nulidade do aludido meio de prova, reafirmando-se, para efeito da fundamentação da presente decisão sobre a matéria de facto, a total legalidade do mesmo.
*
3.2. Motivação.
O tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo as declarações do arguido e da assistente, os depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas, os documentos juntos aos autos, bem como o exame de sexologia forense, o relatório clínico de fls. 93 a 97, o relatório do exame médico legal psiquiátrico de fls. 390, o relatório de avaliação de psicologia forense de fls. 394 e o relatório da perícia psicológica de fls. 494.
No que respeita às declarações do arguido e da assistente, bem como ao depoimento das testemunhas, dispensam-nos, aqui, de reproduzir tais declarações e depoimentos, uma vez que a audiência foi objecto de gravação.
Dir-se-á, apenas, em síntese que:
1. O arguido, que optou por prestar declarações depois da assistente, negou os factos que lhe são imputados, referindo: que era amigo dos pais da assistente e quando os mesmos se separaram a assistente e o irmão passaram, a pedido da mãe, a pernoitar na sua casa, à sexta e ao sábado, e, por vezes, nas alturas dos testes, a assistente também ficava a dormir em sua casa; só a partir de 1998 é que a assistente passou a ficar em sua casa de segunda a sexta, o que perdurou até 1999, altura em que a mesma foi viver com a avó; em 2000/2001 a assistente voltou a frequentar a sua casa; depois das férias em Cuba, no ano de 2001, a assistente pernoitou lá em casa uma vez, em Março de 2002; a assistente acompanhou-os na viagem a Cuba, juntaram duas camas e aí dormiam os três; depois da viagem a Cuba, ele foi-se afastando aos poucos porque não lhe agradava a forma como ela se comportava; também se foi afastando para não a melindrar porque se tinham candidatado à adopção e tinham ficado aptos; a assistente quando soube que iam adoptar uma criança não reagiu bem; acompanhou a assistente ao médico numa altura em que esta o informou que tinha sangue nas fezes; em Abril de 2002, a assistente, depois de uma viagem de estudo que fez a Lisboa, começou a ter alguma afonia, situação que não era permanente.
Confrontado com os mails de fls. 90 e 91 reconheceu que são da sua autoria, precisando que o aí escrito denota apenas que tinha alguma afectividade pela assistente, queria que ela soubesse que lhe tinha afeição, sendo que o quadro a que faz alusão no mail de fls. 91 foi por si pintado, tendo ficado destruído num incêndio que deflagrou na sua casa; nesse quadro estão representadas duas figuras, uma masculina e outra feminina, assemelhando-se esta última à assistente.
2. A assistente afirmou que: Os pais eram amigos do arguido e da mulher; Costumavam sair juntos ao fim de semana; A mãe trabalhava no cabeleireiro da mulher do arguido e a sua tia era sócia desta; Os pais separaram-se em Abril/Maio de 1996; a mãe, que tinha um outro filho, estava muito fraca; o arguido e a mulher ofereceram-se para ajudar e convidaram-na para ir lá para casa; ficava em casa do arguido durante a semana e ao fim de semana ia para casa da mãe; viveu lá cerca de 3 anos; depois ficava lá de vez em quando; depois dos 15 anos ficou lá a dormir duas ou três vezes; quando foi viver para casa do arguido estava muito carente; o arguido, à noite, depois da mulher se ter ido deitar, ia ao quarto dela; estava a dormir, sentia um peso em cima de si e não se conseguia mexer; o arguido deitava-se em cima dela; esfregava-se em cima dela, nomeadamente na zona da vagina, e tentava penetrá-la; dormia de barriga para baixo, quando sentia o arguido, encolhia as pernas, os braços e mexia-se de um lado para o outro para evitar o que “ele queria”; ao fim de algum tempo, quando já não tinha forças, o arguido conseguia separar as pernas e tentava penetrá-la; como se mexia muito ele nunca conseguiu introduzir todo o pénis; algumas vezes introduziu um “bocadinho”; quando não conseguia tentava a introdução anal; ela encolhia as nádegas para ficar dura e ele não conseguir; o arguido tinha o pénis erecto; por vezes ejaculava em cima dela; dependendo da sua resistência, o arguido procurava-a uma, duas ou três vezes por semana; em 2001 foi passar férias com o arguido e a mulher a Cuba; juntaram duas camas e aí dormiam os três, a mulher do arguido no meio, ele numa ponta e ela na outra; uma noite, o arguido deitou-se em cima dela e tentou, mas ela chegou-se para a mulher dele e ele “não teve hipótese”; depois de Cuba ficou lá a dormir uma vez; nessa ocasião o arguido tentou deitar-se em cima dela e tirar-lhe o pijama, mas ela falou-lhe “áspero”, disse-lhe “chega, chega, és um monstro”; dessa vez ele não conseguiu; a determinada altura passou a deitar sangue ao defecar; contou ao arguido e à mãe; foi com o arguido ao Dr. P………., mas entrou sozinha; o médico disse-lhe que tinha fissuras anais; há 4 anos atrás ficou afónica, correu vários médicos; a médica das cordas vocais disse-lhe que ela tinha um problema dentro dela, que tinha de o deitar para fora, pois podia ficar sem falar para sempre; nessa altura resolveu contar à mãe; nesse dia a mãe disse-lhe que ela ia ao psicólogo; nunca contou antes a ninguém porque a mãe ia ficar magoada e o arguido era bem visto por toda a gente.
3. A testemunha N………., mãe da assistente, afirmou que: Logo após se ter separado do marido, uma vez que se defrontava com dificuldades económicas, o arguido ofereceu-se a ajudá-la, tendo, então, a filha passado a residir em cada daquele; A filha ficava em casa do arguido durante a semana e ao fim-de-semana regressava a sua casa; Há cerca de 5 anos a filha perdeu a voz; Levou-a à terapeuta da fala, que a aconselhou a levar a filha a um psicólogo; A 13 de Maio, alguns dias antes da ida ao psicólogo, a filha contou-lhe que tinha sido violada pelo arguido; Disse-lhe que tal acontecia durante a noite, no quarto onde ela dormia; Antes da filha lhe ter contado o sucedido apercebeu-se que algo se passava, pois aquela tinha pesadelos, encolhia-se toda e falava; Além disso, apercebeu-se que a filha se dirigia ao arguido com agressividade e, quando lhe perguntava porque o fazia, aquela respondia que um dia se saberia o porquê daquilo.
4. A testemunha Q………., tia da assistente, declarou que soube dos factos por intermédio da assistente e da mãe desta.
5. A testemunha L………., terapeuta da fala, afirmou que: Há cerca de 4 anos a mãe da assistente pediu-lhe uma consulta à filha porque a mesma apresentava problemas vocais; Numa primeira abordagem, a assistente referiu-lhe que tinha consultado um especialista otorrino, o qual lhe teria dito que nada tinha nas cordas vocais; Em função disso abordou o assunto com o Dr. C………., com quem trabalhava, o qual lhe disse que a afonia se poderia dever a problemas psicológicos; Conversou com a mãe da assistente e disse-lhe que o melhor seria marcar uma consulta com o psicólogo, tendo, então, sido marcada uma consulta com o Dr. C……….; No dia dessa consulta, porque também trabalha no mesmo local, encontrava-se no consultório do Dr. C……….; A assistente pediu-lhe para a acompanhar ao psicólogo, o que fez; Foi nessa consulta que a assistente contou alguma coisa; Disse que o arguido, à noite, ia ter com ela ao quarto.
Confrontada com as declarações prestadas em sede de inquérito, a testemunha confirmou que o aí por si relatado corresponde ao que ouviu da assistente.
6. A testemunha C………., psicólogo, autor do relatório clínico de fls. 93 a 97, declarou que: A terapeuta da fala pediu-lhe para avaliar a assistente; Marcou uma primeira entrevista; Nessa primeira vez a assistente nada disse; Na segunda vez, a assistente já falava porque, conforme lhe contou, tinha conseguido revelar “um segredo” à mãe relacionado com uma suposta violação dos 11 aos 14 anos; fez 7 consultas com a assistente algumas com hipnose; usou a hipnose não para averiguar da veracidade dos factos relatados pela assistente mas como fim terapêutico - para afastar o medo, a ansiedade e os pesadelos; a espasticidade das cordas vocais não é simulável; os sintomas físicos que a assistente apresentava, como a afonia, não eram simulados; era uma reacção psicossomática; a avaliação psicológica revelou que a assistente apresentava ´”memórias de conteúdo traumático”, que podem ou não corresponder a factos efectivamente ocorridos.
7. A testemunha O………., médico de clínica geral, confirmou o teor da declaração médica de fls. 59, precisando que a mesma foi elaborada a pedido da assistente.
Confrontado com as declarações prestadas em sede instrução, acabou por admitir que: a assistente se terá queixado de prisão de ventre; que a lesão apresentada (fissura aguda na transição cutânea/micose do ânus) é consentânea com a queixa apresentada (prisão do ventre) e que as fissuras anais podem ser originadas por penetração ou tentativa de penetração do pénis erecto no ânus.
8. A testemunha M………., médica da especialidade de otorrinolaringologia, referiu que: a assistente recorreu, pelo menos, duas vezes à sua consulta; a assistente apresentava espasticidade de ambas as cordas vocais, o que provoca afonia; na primeira consulta, a assistente não falou; examinou-a e não encontrou qualquer causa física para o problema; concluiu que se tratava de uma afonia psicogénica, associada, normalmente, a uma traumatismo psicológico; explicou a assistente o diagnóstico; na segunda consulta a assistente disse-lhe que tinha sido “molestada sexualmente”; a espasticidade das cordas vocais não era simulada.
9. A testemunha D………., mulher do arguido, afirmou ser impossível que o marido tivesse molestado a assistente porque ela estava sempre presente e acompanhava-o para todo o lado, precisando que se aquele saísse da cama durante a noite apercebia-se, pois tem um sono leve e, apesar de no passado já ter tomado tranquilizantes, no período em causa não os tomava, e referiu, ainda, que a assistente foi para sua casa quando frequentava o 8º ano de escolaridade, ficando lá a dormir de segunda a quinta, e que os acompanhou na viagem a Cuba, negando, por fim, que o marido tivesse pintado qualquer quadro com uma figura feminina que se assemelhasse à assistente.
10. A testemunha E………., que, à data dos factos, trabalhava no cabeleireiro da mulher do arguido e da tia da assistente, limitou-se a referir que a assistente, quando abordava os factos denunciados, fazia-o com muito à vontade, pelo que está convencida que não são verdadeiros.
11. As testemunhas F………., G………., H………. e I………., colegas do arguido, depuseram, no essencial, sobre a personalidade deste último, atestando que sempre foi educado, bom profissional e bom colega.
12. A testemunha J………., cunhado do arguido, afirmou que o mesmo sempre teve um bom relacionamento com a irmã e respectiva família.
Cumpre, então, agora, proceder à análise da prova produzida, descrevendo os pilares que estão na base da construção da convicção do tribunal.
Os factos imputados ao arguido, envolvendo a assistente, não foram presenciados por outrem, a não ser pelos próprios.
Ora, o arguido negou os factos e, por sua vez, a assistente confirmou-os no essencial.
O tribunal, atento ao princípio da livre convicção na apreciação da prova, valorou as declarações da assistente em detrimento da negação do arguido. Vejamos porquê.
Durante a fase de instrução, a assistente foi submetida a exame médico legal psiquiátrico e a avaliação de psicologia forense:
No primeiro exame concluiu-se, além do mais, que: “Não apuramos que padeça de qualquer quadro psicopatológico significativo, nomeadamente ao nível da personalidade. Tal não invalida que constatemos manter sequelas da perturbação póst-traumática (abuso sexual) sofrida, nomeadamente em termos caracteriais (da personalidade). O seu testemunho transmite-nos uma perspectiva de credibilidade e veracidade sem que, todavia, possamos garantir se os factos são, ou não, total ou parcialmente verdadeiros. Salientamos porém que o facto de a personalidade da observanda não apresentar alterações significativas (mitomia, histrionimo, imaturidade, volubilidade) ou outras alterações psicopatológicas graves (nomeadamente de natureza delirante ou confabulatória) tornaram o seu testemunho, aparentemente, consistente e sólido”.
No segundo exame concluiu-se, além do mais, que: “ a examinanda apresenta sintomatologia depressiva clinicamente significativa, sofrimento psicológico e comprometimento da sua capacidade de adaptação, susceptível de se relacionar com um episódio de natureza traumática”.
Em julgamento, a assistente relatou, de forma clara, sem hesitação, pausadamente, aparentando grande segurança e serenidade, os factos de que foi vítima.
É certo que, face à gravidade dos factos, poder-se-ia estranhar a falta de emotividade no discurso da assistente.
Porém, não se pode ignorar que decorreram 10 sobre a data em que os factos se iniciaram, mais de 4 anos sobre a data da queixa e ao longo do processo a assistente foi instada por diversas vezes a narrar pormenorizadamente os factos.
Aliás, isso mesmo é salientado no relatório do exame da avaliação de psicologia forense, onde se lê que: ”sobre a descaracterização e falta de espontaneidade no seu relato sobre o abuso que terá sido vítima, é de admitir possa existir aqui um efeito relacionado com a circunstância de ter realizado inúmeros testemunhos anteriores”.
Conjugando, agora, o relato da assistente com os demais elementos de prova produzidos não nos restaram dúvidas quanto à veracidade do mesmo. Explicando.
1. Algum tempo antes da apresentação da queixa a assistente ficou afónica.
As testemunhas M……….e C………. atestaram que a espasticidade nas cordas vocais que a assistente apresentava não era simulada.
Com efeito, a testemunha O………. afirmou que se tratava de uma afonia de origem psicogénica, que, normalmente, se encontra associada a um traumatismo psicológico.
Por sua vez, no relatório clínico de fls. 93, confirmado em audiência pelo seu autor, a testemunha C………., lê-se que “não se trata de simulação (…) não se trata de perturbação factícia (…) pelo que se trata de uma perturbação somatoforme (…) tendo em conta que se trata de uma Perturbação de Conversão, que se traduz (teoricamente) por uma somatização de um conflito difícil de gerir, do tipo aversão-aversão, (…), sugere que se terá sido alvo de abuso ou violência grave”.
Do depoimento das testemunhas N………., L………., C………. e O………. resultou que a assistente recuperou a fala quando relatou à mãe os factos de que havia sido vítima.
2. O arguido enviou à assistente os dois mails juntos a fls. 90 e 91.
No primeiro desses mails, datado de 08.05.02, o arguido escreveu: “Espero que tenhas lido atentamente o meu e-mail anterior! Se está mal ou bem não sei é o que sinto e tinha necessidade de to dizer! Ainda falta muita coisa que está meia entalada mas que não pode ser dito aqui está expresso na tela do meu quarto intitulado “O SEGREDO” ai se manterá até à minha partida para o além…assim o espero…nessa altura o quadro será teu pois foi em ti inspirado…mais não digo… Desculpa estar a chatear-te mas prometo que não terás mais e-mail meus a não ser que o peças!... Beijos até sempre”.
No segundo mail, datado de 15.05.02, o arguido escreveu, além do mais: “Foi bom gostar de ti…Lamento que não consigas dizer-me o mesmo. Desculpa mas gostaria pelo menos de deixar dito o quão gosto de ti e lamento a tua aversão à minha pessoa. Espero que um dia me entendas. Talvez já seja tarde. “Beijos” se é que esta palavra dita por mim tem algum significado para ti”.
Pois bem, a linguagem usada pelo arguido nesses mails não se coaduna com a relação parental, afectuosa, que o mesmo alegou nutrir pela assistente.
Ao invés, essa linguagem é mais consentânea com um relacionamento amoroso.
3. A assistente contou à mãe - a testemunha N………. - que o arguido havia abusado dela.
O mesmo aconteceu no consultório da testemunha C………. quando aí se encontrava a testemunha L………. .
Em audiência, as testemunhas N………. e L………. relataram o lhes foi dito pela assistente.
É certo que estamos aqui perante um depoimento indirecto.
Todavia, tal depoimento é válido como meio de prova, uma vez que a pessoa a quem as testemunhas ouviram dizer – a assistente – foi inquirida e confirmou os factos que transmitiu àquelas – cfr. art. 129º, 1, do Código de Processo Penal.
Assim, tudo conjugado e ponderado, ao tribunal não restaram quaisquer dúvidas quanto à verificação dos factos que vieram a ser considerados assentes e à imputação subjectiva que quanto aos mesmos foi feita.
No tocante aos factos relativos às condições pessoais e modo de vida do arguido o tribunal contou com as declarações do próprio, com o depoimento das testemunhas F………., G………., H………., I………. e J………., bem como com o relatório social.
Quanto aos antecedentes criminais, foi analisado o Certificado de Registo Criminal.
Relativamente aos factos não provados convém referir que:
1. A assistente não confirmou que o arguido ajudasse financeiramente a família, tendo explicado que a ajuda do arguido se traduziu em a ter acolhido e que, por vezes, lhe dava presentes;
2. A assistente não confirmou que o arguido lhe acariciasse o peito, que nas férias de Cuba o arguido lhe tivesse baixado as calças do pijama e tivesse esfregado o pénis na zona do ânus e que no episódio ocorrido em Março de 2002 o arguido lhe tivesse tirado o pijama, a tivesse obrigado a abrir as pernas e forçado o pénis na vagina.
3. A assistente afirmou que o arguido tentava penetrá-la, às vezes penetrava “um bocadinho”, e, quando não conseguia, tentava a introdução anal.
Ora, quanto à penetração vaginal, no exame de sexologia forense, realizado em 22.05.02, a assistente não apresentava sinais de lesões traumáticas himeneais, não existindo indícios físicos que permitissem afirmar ou negar a ocorrência de penetração peniana.
É certo que esse exame não afasta a possibilidade de penetração peniana, tanto mais que, como aí se lê, a assistente é portadora de um hímen complacente, isto é, aquele que permite cópula sem que daí resultem lesões traumáticas.
Todavia, ficaram-nos sérias dúvidas quanto à ocorrência de penetração vaginal.
Não porque se duvide do relato da assistente.
Na verdade, é importante sublinhar, aqui, que, à data do início dos factos, a assistente tinha 11 anos.
Por isso, a sua idade condicionou necessariamente o significado que na altura atribuiu aos actos do arguido.
Acresce, ainda, que o relato da assistente é compatível com o chamado coito vulvar ou vestibular, isto é, aquele que consiste em pressionar o pénis na zona vulvar, que protege e tapa a vagina, e que, quando praticado com intensidade, forçando o pénis na zona vestibular ou de intróito vaginal, pode induzir, especialmente para quem seja sexualmente inexperiente, a sensação de penetração, aquilo que a assistente reputou como a introdução, em algumas ocasiões, de “um bocadinho” do pénis.
No que respeita à penetração anal, a assistente não logrou esclarecer se ela ocorria efectivamente, limitando-se a afirmar que o arguido tentava.
Acresce que a declaração médica emitida pela testemunha P………. não autoriza a concluir, sem mais, que a fissura anal apresentada pela assistente, foi originada por essas tentativas, certo que, em audiência, a referida testemunha não afastou a possibilidade dessa fissura ser provocada por prisão do ventre.
4. Demonstrados, no essencial, os factos da pronúncia, impôs-se julgar inverificados os factos alegados pelo arguido».
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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente – art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2 do mesmo Código.

Por via dessa delimitação definem-se como questões a decidir por este Tribunal da Relação do Porto as seguintes:

1º RECURSO
I – Toda a prova tem que ser produzida em audiência e, por isso, não devia ter sido admitida a junção do relatório de fls. 94 e segs.
II – O relatório de fls. 94 e segs. assenta em meio de prova proibido pela lei ordinária e pela Constituição da República Portuguesa

2º RECURSO
Possibilidade de audição de testemunha que acompanhou clinicamente a ofendida e lhe realizou sessões de hipnose

3º RECURSO
I – Inexistência de continuação criminosa entre os factos alegadamente ocorridos entre 1996 e 1999 e os alegadamente ocorridos em Setembro de 2001 e Março de 2002
II – Inexistência de crime quanto aos factos alegadamente ocorridos em Setembro de 2001 e Março de 2002
III – Extinção do direito de queixa quanto aos factos alegadamente ocorridos em Setembro de 2001 e Março de 2002
IV – Ilegitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal
V – Nulidade da prova consubstanciada no documento de fls. 94 e segs. e no depoimento do seu autor
VI – Erro notório na apreciação da prova
VII – Omissão do exame crítico da prova
VIII – Violação do princípio in dubio pro reo
IX – Impugnação da medida da pena
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1º RECURSO

Recordemos que o primeiro recurso incide sobre o despacho proferido na sessão do julgamento de 4 de Outubro de 2006, que versou sobre o pedido de desentranhamento do relatório de fls. 94 e segs. dos autos e que decidiu que aquele pedido seria apreciado aquando da decisão sobre a matéria de facto, no momento da ponderação dos meios de prova.
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I – Toda a prova tem que ser produzida em audiência e, por isso, não devia ter sido admitida a junção do relatório de fls. 94 e segs.

Dispõe a lei, no art. 355º, nº 1 e 2, do C.P.P., que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas … em audiência», ressalvando-se as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida.

A propósito da prova documental dispõe o mesmo diploma, no art. 164º, que é admissível a prova por documento, devendo a sua junção ser feita, sempre que possível, no decurso do inquérito ou da instrução (art. 165º, nº 1).
Se por um lado a lei determina que só a prova produzida em audiência vale para formar a convicção do tribunal, por outro permite a prova por documentos e prescreve, mesmo, que eles devem ser juntos, preferencialmente, antes daquela ter lugar.
Então é caso para perguntar: estarão estas normas em contradição mútua? Violará esta segunda os princípios da oralidade e imediação subjacentes à primeira?
O entendimento unânime é que não.
O nº 1 do art. 355º do C.P.P. é claro ao apontar as provas que são atendíveis para formar a convicção. São elas as provas produzidas em audiência e as provas examinadas em audiência.
A prova por documento, quando este não seja junto na audiência, claro que não é produzida em audiência. Mas nem por isso tal prova é desconsiderada porque, neste caso, ela será/tem que ser examinada em audiência.
E como saber se este exame foi efectuado?
Apesar de, por vezes, se defender que os documentos constantes do processo têm que ser lidos em audiência para se concluir que foram considerados, há muito que se assentou na desnecessidade de tal leitura: «não se verifica violação do disposto no artigo 355º Código Processo Penal pela circunstância de o tribunal examinar documentos juntos aos autos e neles fundamentar também a decisão, sem se ter procedido à sua leitura em audiência» - acórdão do S.T.J. de 20-4-1994, processo 046004 (muito recentemente esta Relação reafirmou este mesmo entendimento no acórdão de 11-4-2007, proferido no processo 0643277).
A conclusão da realização daquele exame resultará, a final, da leitura da decisão. Sendo a prova constante do processo relevante ela será, necessariamente, referida na decisão final e desta referência se concluirá que o exame da prova foi efectuado.

Sobre o modo como as provas devem ser indicadas na acusação e despacho de pronúncia, dispõe o nº 3, al. d), e) e f) do art. 283º do C.P.P. que a acusação deve conter o rol de testemunhas, a indicação dos peritos e consultores técnicos a ouvir em julgamento, bem como a indicação de outras provas a produzir ou a requerer. O despacho de pronúncia também tem que conter tais menções (art. 308º, nº 2, do C.P.P.).
Ora, as provas que constam do processo (documentos, por exemplo) não são provas nem a produzir nem a requerer: já estão adquiridas pelo processo, porque já fazem parte dele.
Assim, não têm que ser especificamente indicadas naquelas peças processuais.

Pelo exposto improcedem as conclusões 1ª 2ª e 4ª a 6ª.
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II – O relatório de fls. 94 e segs. assenta em meio de prova proibido pela lei ordinária e pela Constituição da República Portuguesa

O arguido alega que o relatório em questão tem por base sessões de hipnose que o seu subscritor realizou à assistente: a hipnose é meio proibido de prova, viola a lei e a Constituição da República Portuguesa, o que determina a nulidade do relatório que versou sobre tais sessões.
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Em 25 de Julho de 2002 foi junto aos autos um parecer, da autoria de C………., do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho.
É o seguinte o seu conteúdo:
«RELATÓRIO CLÍNICO
Nome: K……….
Data de Nascimento: 2 l/Set/1985
Residência: ………., nº .., ………., Vila do Conde.
Pedido de Consulta: “A K………. está afónica há dois meses” (Terapeuta da Fala, Drª L………. - 14/Maio/2002).
A presentação:
Biótipo atlético, bem vestida, com gestos coerentes com o discurso, postura defensiva e retraída, em afonia com tensão superficial na região anterior do pescoço. Não aparenta sinais de perturbação de personalidade. Não apresenta sinais nem sintomas psicóticos. Desenvolvimento cognitivo e psicomotor normais.
História Clínica:
Problema actual
Há dois meses em afonia. Medo intenso de sair de casa, perturbação do sono (insónia de manutenção e pesadelos repetidos e relacionados com episódios de “abuso sexual” por parte da pessoa que identifica como autor dos mesmos no passado), perturbação do apetite (aumento), tristeza, choro fáci1 e frequente, líbido nula e medo de pessoas do sexo masculino.
A K………. relata episódios de “abuso sexual” por parte da pessoa que a mesma identifica nos autos. Como tendo ocorrido desde os 11 anos de idade.
Refere que “ninguém vai acreditar em mim” (K………. 21/Maio/2002) e que “toda a gente dizia bem dele, o pai punha as mãos no lume por ele … [a K……….] e dependia dele financeiramente” (K………. 21/Maio/2002).
Metodologia de avaliação clínica
Entrevista (à K………. e à mãe) e indução de estado hipnoidal para teste de reacções à evocação de episódios relatados na entrevista e para reestruturação das narrativas (fim terapêutico).
Episódios Relatados e Avaliações Clínicas (por ordem cronológica)
Desde os 11 anos de idade, terá sido alvo de “abuso sexual” por parte da pessoa que a K………. identifica nos autos como autor. Era quase todas as noites. Deitava-se por cima dela (no quarto dela, depois da esposa do mesmo se encontrar a dormir), estando ela em decúbito ventral. Sentia um peso muito grande. Ele tentava penetrá-la (muitas vezes terá penetrado, sobretudo no ânus), forçava-a a beijá-lo e dizia que estava apaixonado por ela. Estes episódios ocorreram de forma quase diária até cerca dos 15 anos de idade.
Aos 13 anos andou vários dias a sangrar abundantemente quando defecava. Recorreu ao médico que terá diagnosticado “fissuras anais”.
Mais recentemente, cerca dos 16 anos de idade, voltou a ser alvo de tentativas infrutíferas, dado que a K………. já era capaz de se defender. Depois da última vez, há cerca de 2 meses a contar da data da primeira consulta (Maio), isto e, cerca de Março de 2002, a K………. sentiu um ódio intenso e uma necessidade de partilhar toda esta história com alguém - tendo ficado subitamente a fónica
Recorreu a uma médica foniatra (Drª M……….) que observou “espasticidade de ambas as cordas vocais impedindo a fonação” (sic), tendo diagnosticado AFONIA PSICOGÉNICA. Posteriormente, recorreu a um especialista de otorrinolaringologia, o Dr S………., que observou “paralisia das cordas vocais” de etiologia não orgânica.
Quando a K………. conseguiu contar à mãe toda esta história dos episódios de “abusos sexuais começou subitamente a falar.
As avaliações efectuadas por mim foram sete (ate à data):
14/Maio/2002:
Primeira consulta com a Drª L……….
2 1/Maio/2002:
Colheita da história clínica
28/Maio/2002:
Colheita da história clínica + sessão de hipnose clínica
04/Junho/2002.
Sessão de hipnose clínica terapêutica
11/Junho/2002:
Avaliação do progresso redução altamente significativa do medo. Recordação de um dos episódios de abuso sob estado hipnoidal — Pulsação antes da sessão = 80 p/m, Pulsação durante a sessão = 147 p/m, Pulsação no fim da sessão = 67 p/m. Reacções musculares, respiratórias e cardíacas coerentes (entre si e com os conteúdos do episodio evocado). No fim ficou com fortes dores lombares e hipersensibilidade (vértebras D11, D12 e L1)
25/Junho/2002
Avaliação - contou tudo em sede de Ministério Público e agravou todo o estado clínico. Nova sessão de hipnose terapêutica sem grande resultado
03/Julho/2002:
Reapareceu com afonia que foi eliminada com hipnose ao fim de 20 minutos.
Conclusões:
Os dados mencionados em epígrafe permitem-nos concluir que:
1. Não foi referido pela Justiça para observação, não revela discrepância marcada entre o sofrimento referido e os dados objectivos, colabora activamente na avaliação diagnóstica, adere aos tratamentos prescritos e não possui perturbação anti-social da personalidade, pelo que não se trata de simulação (Diagnóstico Z76.5, ICD-10).
2. Não há produção intencional ou forjada de sinais e sintomas físicos ou psicológicos, não há motivação para assumir o papel de doente, pelo que não se trata de perturbação factícia (Diagnostico 300.xx, ICD-l0).
3. Há um claro défice que afecta uma função motora voluntária e que sugere uma doença neurológica ou outro estado físico geral, com início e agravamento precedidos por conflitos ou outras situações de stress, não é intencionalmente produzido, não é explicado por patologia orgânica, causa diminuição do funcionamento social e ocupacional e não se limita a dor, pelo que se trata de uma perturbação somatoforme de conversão (Diagnóstico F44.x, ICD-10).
Parecer:
Tendo em conta que se trata de uma Perturbação de Conversão, que se traduz (teoricamente) por uma somatização de um conflito difícil de gerir, do tipo aversão-aversão (se conta a história ninguém acreditara e terá mais problemas, dadas as ameaças, e se não conta sofre acentuadamente e sozinha), sugere que terá sido alvo de abuso ou violência grave. Porém a avaliação clínica psicológica não permite testar a veracidade dos factos relatados, apenas prova que houve uma vivência traumática grave.
Entretanto, a recordação dos episódios, em estado hipnoidal, provoca activação comportamental e visceral intensa, coerente com os relatos, o que poderia confirmar a veracidade dos mesmos. Porém, do ponto de vista científico, sabe-se que a memória é um processo construtivo e não são os factos mas sim as significações que desencadeiam a activação psicofisiológica.
Contudo, somos de parecer de que a K………. e o Arguido sejam alvos de avaliação de personalidade (MMPI e outros instrumentos) por parte do Instituto de Medicina Legal (Psiquiatria Forense).
Braga, 22 de Julho de 2002
C……….
Professor Associado c/ Agregação da Universidade do Minho
Psicólogo Clínico
Director do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho …»

Como se retira da leitura do documento, este relatório foi subscrito por C………., psicólogo, e reporta-se ao acompanhamento que ele fez a K………., ofendida. C………. interveio por solicitação de L………., terapeuta da fala, que seguiu a K………., que estava afónica havia dois meses.
A história clínica refere a situação da K………. e também se refere factos que a K………. relatou.
O acompanhamento ocorreu em sete avaliações, algumas das quais com recurso a hipnose.
A final temos o parecer propriamente dito, onde se conclui que o problema será uma perturbação de conversão, que se traduz numa somatização de um conflito difícil de gerir.
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Em processo penal a regra é que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» - art.º 125.º do C.P.P.
«Apesar da formulação desta norma legal parecer tautológica, dela podemos retirar que, por um lado, são permitidos outros meios de prova que não apenas os configurados na lei, por outro, que aqueles que aí estão previstos só se tornarão proibidos se forem obtidos por meios expressamente excluídos, designadamente (mas não só), por tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas …» - acórdão do S.T.J. de 20-4-2006, processo 06P363.

Vejamos, então, as proibições de prova.
Liminarmente, a lei apelida de nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, mediante ofensa à integridade física ou moral das pessoas e proíbe a sua utilização – art. 126º, nº 1, do C.P.P.
O nº 2 enumera situações de provas obtidas com ofensa à integridade física ou moral das pessoas. E mesmo que estas provas tenham sido obtidas com consentimento das pessoas, nem por isso a lei altera a posição tomada no nº 1: aquelas provas mantêm-se nulas e a proibição da sua utilização persiste.
Assim são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas mediante:
«a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível» - art. 126º, nº 2.
Esta norma plasmou o princípio constitucional das proibições de prova, constante do nº 8 do art. 32º: «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».
A propósito Jorge Miranda referiu que o que esta norma tem de novo não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova mas sim a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas, nulidade que deve ser considerada em sentido forte, com proibição absoluta da sua utilização no processo: «seria intolerável que para realizar a Justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei» - Constituição Portuguesa anotada, tomo I, 2005, pág.361.

Entende-se, maioritariamente pelo menos, que os meios de prova referidos nos nº 1 e 2 do art. 126º do C.P.P. são meios absolutamente proibidos: não podem ser utilizados, em caso algum, mesmo com o consentimento dos visados, isto devido à natureza dos bens jurídicos violados.

Regressando ao nosso caso, o autor do relatório de fls. 94 e segs. acompanhou a ofendida e uma das técnicas que usou para a ajudar a superar os problemas que ela manifestava foi a hipnose. Portanto, uma das fontes do conhecimento dos factos relatados foi a hipnose, ou seja, um dos meios proibidos de obtenção de prova.
Quanto ao relevo deste documento na decisão condenatória, ele retira-se do conteúdo da fundamentação da matéria de facto, onde se pode ler que «o tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo as declarações do arguido e da assistente, os depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas, os documentos juntos aos autos, bem como o exame de sexologia forense, o relatório clínico de fls. 93 a 97, o relatório do exame médico legal psiquiátrico de fls. 390, o relatório de avaliação de psicologia forense de fls. 394 e o relatório da perícia psicológica de fls. 494 …».
Não há dúvida, pois, que aquele documento foi considerado.

Então e quid iuris? Pode este documento ser considerado ou, ao invés, dado que incorpora um meio proibido de prova, é uma prova nula e não pode ser utilizada?

Embora consideremos serem de relevo os argumentos esgrimidos no sentido de defender a legalidade do documento de fls. 94 e segs e, portanto, a possibilidade do seu uso, não nos parece que tal desiderato tenha sido alcançado, ou seja, que se tenha logrado demonstrar tal legalidade.
A lei refere, de forma clara, que são ofensivas da integridade das pessoas as provas obtidas mediante hipnose. E quando faz esta afirmação não limita a sua abrangência, não diz, por exemplo, que apenas em relação ao arguido é proibido o uso da hipnose com vista à obtenção de confissão.
Assim, não limitando a lei o seu campo de aplicação a conclusão a retirar é que a proibição do recurso à hipnose vale relativamente a todos os intervenientes no processo. A menos que da letra da lei se pudesse retirar apoio para uma outra interpretação, entendemos que qualquer prova obtida com recurso a hipnose é sempre nula e nunca pode, por isso mesmo, ser utilizada no processo. É nula se incide sobre o agente e é nula se incide sobre uma qualquer testemunha.
E não colhe o argumento de que a hipnose foi utilizada não para obter prova, mas com fins terapêuticos. A finalidade do uso da hipnose é irrelevante: o que releva é que foi utilizada e inquina a prova obtida com o seu contributo.

De tudo quanto se disse resulta inequivocamente para nós que o relatório de fls. 94 a 97 dos autos é prova proibida.
Sendo prova proibida não pode ser utilizada. Não podendo ser utilizada não deve constar dos autos, pelo que não deveria ter sido admitida.
Assim, tem que ser desentranhado.

Procedem, portanto, as conclusões 3ª e 6ª.
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Que consequências tem esta decisão para a evolução do processo?
«As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dela dependerem e aquelas puderem afectar» - art. 122º, nº 1, do C.P.P.
Imediatamente diremos que esta nulidade inquina a decisão final. Quanto a isso não existem dúvidas.
Mas a nulidade repercutir-se-á em mais algum acto?
Parece-nos que deveremos alargar os efeitos da nulidade do relatório, como meio de prova, ao próprio julgamento.
E porquê?
Quando consta do processo um documento especialmente relevante o natural/normal é que este seja mencionado aquando da inquirição dos vários intervenientes.
Foi o que sucedeu no nosso caso. Deste modo os seus efeitos perversos alastram inquinando cada um dos depoimentos prestados, em particular, e o acto onde eles foram prestados, em geral.
E nem sequer é necessário proceder à análise da matéria de facto para tirarmos esta conclusão, porque ela ressalta da decisão recorrida.
Recordemos, mais uma vez, o que se diz na decisão recorrida, ainda aquando da fundamentação da matéria de facto: «embora resulte do relatório clínico e tenha sido confirmado pelo autor do mesmo – a testemunha C………. – que foram realizadas sessões de hipnose, a indução do estado hipnoidal não se destinou a averiguar da veracidade dos factos relatados pela assistente. Na verdade, lê-se no relatório, que a indução do estado hipnoidal se destinou a fins terapêuticos, nomeadamente à reestruturação da narrativa. Isso mesmo foi confirmado pela testemunha C………., a qual precisou que a indução do estado hipnoidal visou averiguar se, não obstante o tratamento, o medo, a ansiedade e os pesadelos permaneciam e, permanecendo, afastá-los através da reestruturação da narrativa …».
Pelo menos quando o autor do relatório depôs houve referências expressas ao documento. Mesmo que elas não tenham ocorrido durante o depoimento das demais testemunhas, a verdade é que naquele momento o documento constava do processo, era uma prova a atender e esteve sempre presente.

Por isso mesmo a nulidade referida, consubstanciada na existência, no processo, de prova proibida, repercute-se em todo o julgamento, inquina todos os depoimentos, e determina a sua repetição.
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2º RECURSO

Com a decisão acima tomada fica prejudicado o conhecimento do recurso do acórdão condenatório. Outro tanto não acontece em relação ao segundo recurso: além de aquela decisão não prejudicar o conhecimento deste recurso, este conhecimento é sobremaneira útil. Uma vez que há que repetir o julgamento é fundamental saber se a testemunha C………. pode, ou não, depor no novo julgamento que se vai realizar.

A questão aqui em discussão reside em saber da possibilidade de audição da testemunha que acompanhou a ofendida e lhe realizou sessões de hipnose.
O arguido, defendendo a impossibilidade de esta testemunha depor, alega que do seu depoimento resultariam relatos do sucedido durante as sessões de acompanhamento, sendo indissociável aquilo que a testemunha ouviu à queixosa no estado de vigília, daquilo que conheceu quando ela estava em estado de hipnose.

Tal como já referimos, a regra relativa à prova é a da admissibilidade de todas as provas que não sejam proibidas por lei (art.º 125.º do C.P.P.).
Esta regra vale em relação a cada um dos meios de prova. Portanto vale, também, em relação à prova testemunhal. Por isso a não aceitação de alguém como testemunha apenas pode acontecer nos casos em que a lei assim o determinar: o juiz não deve rejeitar um meio de prova reputado de indispensável a menos que a pretensão seja ilegal ou manifestamente infundada, impertinente ou dilatória.
Ora, o arguido não indica qualquer norma da qual resulta a impossibilidade da testemunha depor em audiência. E não a indica porque ela não existe: naturalmente que não há qualquer obstáculo legal à admissão da testemunha.
O arguido afirma que esse obstáculo existe. Na medida em que a testemunha fez hipnose à ofendida, o conhecimento que tem dos factos resultam da hipnose, meio proibido de obtenção de prova e que inquinará o depoimento, e do acompanhamento feito. Ora, os conhecimentos provenientes destas duas vias misturar-se-ão e sendo impossível fazer a separação a conclusão é a impossibilidade de depor.

Não obstante os doutos argumentos não nos parece que este entendimento se imponha.
Primeiro, e como dissemos, não há nenhuma norma que tutele a pretensão do arguido.
Depois, aquele depoimento não se nos afigura como infundado, impertinente e/ou dilatório.
Esta testemunha, como todas as testemunhas aliás, ao deporem terão que sindicar a origem dos conhecimentos e falarem, apenas, dos factos de que têm conhecimento.
E é deste princípio que o julgador parte quando questiona uma testemunha (princípio segundo o qual as testemunhas são íntegras e dizem, apenas, aquilo que sabem e cujo conhecimento que lhes adveio de um modo honesto e sério).
Dirá o arguido que isso é impossível, isto é, que é impossível distinguir os factos dos quais a testemunha tem conhecimento pelo contacto que teve com a assistente, daqueles outros que advieram ao seu conhecimento devido à hipnose.
Possível ou impossível, a verdade é que é isto que sucede sempre aquando da produção da prova testemunhal. É suposto que as testemunhas sindiquem as próprias vias de conhecimento e falem do que têm conhecimento pessoal. O conhecimento que qualquer pessoa tem de uma qualquer situação assume uma multiplicidade de matizes. O mesmo sucede em relação às testemunhas: o que estas conhecem de cada uma das situações que relatam em audiência adveio-lhes, tantas e tantas vezes, de várias fontes, sendo que umas são legalmente relevantes e outras não.
Cabe ao juiz avaliar cada depoimento e considerá-lo ou desconsiderá-lo.
É para fazer a triagem e sopesar todas as provas que a lei atribuiu ao juiz o poder-dever de apreciar a prova livremente. Não havendo critérios pré-estabelecidos na valoração (salvo excepções muito contadas) o princípio da livre apreciação da prova permitirá, precisamente, valorar as provas que se afiguram credíveis, em todos os aspectos, nomeadamente quanto à forma como a realidade foi dada a conhecer ao depoente.
Sendo certo que a testemunha C………. pode depor, caberá ao julgador sindicar a prestação do depoimento para acautelar que ele não se apoie nos conhecimentos advindos da hipnose que, como já vimos, é um meio proibido de prova e que não pode, por isso, basear qualquer decisão.

Pelo exposto, improcedem todas as conclusões deste recurso.
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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos

I - Concede-se provimento ao primeiro recurso quanto à nulidade do relatório de fls. 94 a 97, como meio de prova, devendo este ser desentranhado do processo.

II – Dado que durante o julgamento aquele documento foi referido aquando do depoimento de, pelo menos, o seu subscritor, declara-se a nulidade do julgamento e determina-se a sua repetição, pelo mesmo tribunal.

III – Nega-se provimento ao segundo recurso e mantém-se, nesta parte, a decisão recorrida.

IV – Não se toma conhecimento do recurso interposto da decisão final, porquanto este conhecimento ficou prejudicado pelo acima decidido.

V – Fixa-se em 3 UCs. a taxa de justiça, devida pelo arguido.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária.

Porto, 2008-02-27
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto