Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10/11.2TAVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
NULIDADE INSANÁVEL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Nº do Documento: RP2012020810/11.2TAVRL.P1
Data do Acordão: 02/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Consubstancia nulidade insanável a adesão do MºPº à acusação deduzida pelo assistente relativamente a crimes de natureza pública ou semi-pública.
II - O direito de liberdade de expressão sofre as restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, numa avaliação a efectuar segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante e com respeito pelo princípio da proporcionalidade.
III - Para aferir se determinada conduta é suscetível de ofender a honra e consideração do visado, é ao conceito que das afirmações produzidas se tem na sociedade e meio local respetivo, que há que recorrer para fazer o pertinente juízo de valor.
IV - Não incorre em excesso de liberdade de expressão o presidente da direcção de um clube que, após um jogo em que sentiu que a sua equipa foi injustiçada, referindo-se ao árbitro, numa entrevista via rádio, formulou um juízo de indignação alicerçado em dados concretos que valorou, em face dos elementos de que dispunha e daquilo que vira da atuação daquele, em campo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 10/11.2TAVRL.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 10/11.2TAVRL, que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, decidiu o Sr. Juiz “a quo” não pronunciar o arguido, B…, que por acusação particular, (fls. 85 a 101) acompanhada pelo Ministério Público (fls. 104) foi acusado da prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo artº 180º e 183º nº 2 do cód. penal, nos termos constantes do despacho de fls. 164 a 174, em que se concluiu:
- “Face ao exposto e ao abrigo do art° 308°, n° 1, do cód. procº penal decide-se, NÃO PRONUNCIAR o arguido B… pela prática, em autoria material e na forma consumada, pelos factos e enquadramento jurídico constantes da acusação particular de fls. 85 a 93 e, em consequência, determina-se o oportuno arquivamento dos autos».
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Inconformado com tal decisão, o assistente C… interpôs o recurso de fls. 213 a 247, pugnando pela respectiva revogação e pronúncia do arguido, concluindo nos seguintes termos:
1. Nos autos resulta fortemente indiciado que o arguido, entre outras, proferiu contra o assistente numa entrevista à D… que: “perdemos ingloriamente por culpa de um árbitro que, infelizmente, já nos habituou noutros jogos a ter esse comportamento”; “tivemos conhecimento agora aqui que este senhor árbitro costuma ir a jantares com directores do E…, portanto, já estávamos precavidos para o que podia acontecer” ou ainda “agora vi os festejos e o tipo de relação que tiveram no final do jogo ainda dentro do campo”.
2. As declarações do arguido foram difundidas por toda a região Norte do país, tanto em directo, como posteriormente em diferido, estando também disponíveis para todo o mundo na Internet, pelo que tiveram repercussão social e foram ouvidas, analisadas e comentadas por um largo e numeroso grupo de pessoas.
3. As declarações do arguido são caluniosas, desonrosas ë inconsideradas, o que o participado bem sabe.
4. Todos esses factos e juízos são ofensivos da honra e consideração do recorrente, que os tomou como sérios.
5. Da prova produzida em inquérito resultam fortes indícios da prática pelo arguido dos crimes por que foi acusado.
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O Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao recurso nos termos de fls. 257 a 260, e sem articular conclusões, defende a improcedência do recurso, retirando-se da resposta:
- «Em discussão está apenas a respectiva apreciação jurídica.
A este respeito pensamos que, embora possa haver algumas dúvidas na fundamentação – mais por força da natureza da matéria do que propriamente por falha do julgador -, a Mmª Juiz efectuou uma adequada avaliação do caso, ajuizando que o sucedido não constitui crime de difamação.
Termos em que, salvo melhor entendimento, levando em atenção as considerações supra, se fará a costumada Justiça».
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O arguido, B… respondeu igualmente ao recorrente, de forma sintética, nos termos de fls. 262/263, limitando-se a pedir a improcedência do recurso e a manutenção do despacho recorrido.
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Neste Tribunal “ad quem”, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, conforme douto parecer de fls. 275.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub judice", se circunscreve à apreciação do despacho de “não pronúncia“ e rejeição da acusação deduzida pelo Assistente e acompanhada pelo Ministério Público.
Para além disto, uma questão prévia de conhecimento oficioso e relativa à nulidade da acusação importa conhecer.
TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DO DESPACHO RECORRIDO
«I. Declaro encerrada a instrução.
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II. A instância mantém-se valida e regular.
Não existem nulidades ou excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do objecto da instrução.
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III. DECISÃO INSTRUTÓRIA:
III.I. Relatório:
Os presentes autos tiveram o seu início na queixa apresentada por C…, árbitro de futebol, onde está conta que o arguido B… terá proferido afirmações, que indica, que são falsas e que põe em causa o seu bom nome, reputação e profissionalismo, no decurso de uma entrevista a uma rádio da região e no final do jogo de futebol ….

Findo o inquérito, o assistente C… deduziu acusação contra B…, acusação acompanhada pelo MP, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180.º e 183.º, n.º2, do Código Penal.

Inconformado, veio o arguido B… requerer a abertura de instrução, com o objectivo de não ser pronunciado pelo crime de difamação com publicidade que lhe é imputado, alegando, em síntese, não ter agido com intenção de ofender a honra e consideração do árbitro, aquando da prolação das afirmações que fez na entrevista à rádio, pois foi no rescaldo de um jogo controverso.
Foi admitida a instrução e a realização das diligências de prova requeridas pelo arguido.
O arguido foi interrogado.
Não foram requeridas provas suplementares.
Realizou-se debate instrutório, com observância de todo o formalismo legal.
Concluída a discussão, o Ministério Público pugnou pela aplicação de Justiça, o arguido F… e restantes arguidos, também, pela aplicação de Justiça e a assistente também.
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III.II. Discussão e apreciação:
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De todas as diligências realizadas, que factos podem indiciariamente resultar?
No caso concreto, resulta indiciado, em síntese, que:
- No dia 12.12.2010, pelas 15H00, realizou-se no campo de futebol do G…, o jogo de futebol do Campeonato Distrital de Futebol de 11 Masculino da H…, entre as equipas do G… e do E….
- Este jogo foi arbitrado pelo assistente.
- O jogo terminou com a vitória do E… por dois golos a um.
- No final do jogo, o arguido deu uma entrevista à D…, onde declarou o seguinte (e para além do mais): «(…) Conseguiu [o assistente] inquinar o jogo a meio campo, conseguiu anular-nos, não marcar um penalty que foi a nosso favor e que podia ter resolvido o jogo e perdemos ingloriamente por culpa de um árbitro que, infelizmente, já nos habituou noutros jogos a ter esse comportamento. Temos sido severamente castigados ao longo deste campeonato – tal como fomos o ano passado – e nós não podemos tolerar atitudes de arbitragens destas. Tive o cuidado de lhe dizer no final do jogo, que ele conseguiu inquinar o jogo e tive o cuidado também de enviar uma mensagem ao Sr. Presidente da H… a dizer-lhe o que este senhor conseguiu fazer. (…) Não é a primeira vez que isto acontece e perdemos a vontade de estar à frente de equipas de futebol, dos clubes, se toda a gente sabe os sacrifícios que passamos. Há dias tive conhecimento que bateram a este senhor árbitro em …. Nós não queremos seguir esse caminho, somos pessoas de bem (…). Agora se calhar em relação à atitude que porventura venham a ter, se calhar, terão toda a razão porque ficou confirmado hoje, mais uma vez, que fomos prejudicados. Tivemos conhecimento agora, aqui, que este senhor árbitro costuma ir a jantares com directores do E…, portanto, já estávamos precavidos para o que podia acontecer. // (…) // O que eu quero dizer é que tivemos aqui conhecimento que esse senhor tem excelente relacionamento com alguns directores mas isso não quer dizer nada. (…) Quem sou eu para estar aqui a alegar ou acusar alguma coisa?! Agora vi os festejos e o tipo de relação que tiveram no final do jogo, ainda dentro do campo. Quer dizer, aquilo parecia irmãos! Vária gente fica um bocado preocupada com estas coisas. Quem sou eu para acusar? E não entenda estas palavras como eu que esteja a dizer que o árbitro terá sido aliciado ou terá feito um frete. Sei que, pelo menos, infeliz foi. Isso aí posso garantir que foi infeliz e nos prejudicou. // (…) // O árbitro é uma pessoa experiente e sabe perfeitamente que se tiver que festejar alguma coisa não seria ali. O que vi foi a reacção de quando o foram cumprimentar, a forma muito familiar que existia ali, de amizade, e que não me agradou. E o próprio árbitro devia ter posto algum respeito e cumprimentar sim senhor as pessoas, que fica bem às duas partes, mas devia ter imposto algum respeito e dizer aos dirigentes do E… que seguissem o caminho deles, porque não é ali dentro das quatro linhas ainda que se tem atitudes daquelas. É muito desgosto porque a nossa assistência manifestou-se muito contra isso, eu estava do outro lado e vi assim um bocadinho de longe, mas não quer dizer com isto – repito: que tenha havido qualquer aliciamento ou algum favor (…) fomos severamente castigados».
- I…, presidente e treinador do E…, comentou na rádio as palavras proferidas pelo arguido, para além do mais, dizendo: «Até nos rimos! (…) // (…) porque eles se podem queixar-se de alguma coisa é apenas e só da equipa do E… que não deixou jogar o G1…, foi-lhe superior durante o jogo. (…) e posso abrir um precedente porque até fui eu que no fim do jogo fui cumprimentar a equipa de arbitragem e na brincadeira disse-lhe “Senhor Árbitro, você anda a abusar do árbitro!”, por causa daquele problema que ele teve cardíaco. Ele até se riu e disse “não quero saber nada disso”.
Assim, haverá que verificar se resultou ou não provado que as afirmações e juízos proferidos pelo arguido são ofensivos da honra e consideração do assistente, enquanto profissional de futebol e por causa delas.
Vejamos.
Resulta dos factos indiciados que o jogo foi claramente polémico no que ao trabalho do árbitro diz respeito, evidência patente, desde logo, pela manifesta divergência de leitura do mesmo por parte dos dirigentes e pessoal técnico de cada uma das equipas reflectida nestes autos.
Por outro lado e neste mesmo sentido, não foi infirmada, antes confirmada pela prova produzida em instrução, a afirmação do arguido prestada na rádio de que a massa associativa do G1… estava muito desagradada com o trabalho do árbitro, imputando-lhe falta de isenção e atitudes prejudiciais à equipa do G1….
Por outro lado, ainda, resulta indiciado que o arguido falou sempre no plural, enquanto dirigente do G… e em representação dessa mesma massa associativa que muito revoltada com a actividade do árbitro tinha ficado.
Ora, pela leitura e audição da entrevista, somos em concluir que a afirmação proferida pelo arguido se reporta às funções do assistente enquanto árbitro e por causa delas, ainda que referentes a um facto da sua vida pessoal, e não enquanto um simples ou comum cidadão.
Assim, a haver indiciada a ofensa da honra e consideração do assistente, esta foi dirigida não à sua concreta pessoa, na qualidade de comum cidadão, mas enquanto árbitro.
Mas é isto suficiente, de per se, para dizer que o arguido ofendeu desmedida e desnecessariamente o assistente querendo menosprezá-lo e rebaixá-lo na sua consideração?
Como e disse, temos de ter bem presente que não basta que o visado pela afirmação formulada se considere ofendido, para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo de crime em causa [note-se até que em prejuízo do alegado grau elevado da honra e consideração do assistente vão sim as afirmações de I…, dirigente do E…, quando explicou, na rádio, as razões do riso do assistente no final do jogo]. Há também que ponderar, perante as circunstâncias do caso e o contexto sócio-económico-cultural envolvente, a existência ou não da ofensa. Neste tipo de situações, o que releva é, pois, a análise objectiva dos juízos formulados, que, no entendimento de uma pessoa média colocada na posição de um destinatário normal e razoável, sempre interpretaria as palavras do arguido como um ataque à honra (consideração) do assistente, que passa a ser visto como um homem incompetente e facilmente aliciado. Deve considerar-se difamação tudo aquilo que, segundo a são opinião da generalidade das pessoas de bem, deva considerar-se ofensivo dos valores supra mencionados, utilizando-se, assim, um critério baseado na impressão que um bom pai de família tem, no meio sócio-económico e cultural em questão do destinatário, do visado (cfr. entre outros, Ac. Relação do Porto, de 30/11/1988, in CJ, 1988, Tomo V, pág. 121; Ac. Relação do Porto, de 05.12.2007, Proc. JTRP00040840, disponível em www.dgsi.pt).
Acresce salientar que «o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidade do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social que é a sua função.» (cfr. Ac. Relação do Porto, de 19.01.2005, Proc. n.º 0416203, disponível em www.dgsi.pt).
Posto isto, cabe dizer o seguinte. É consabido e aceite por toda a comunidade que um árbitro, pela exposição a que se coloca pelas funções que exerce, na maior parte das vezes, não agradando à equipa perdedora, não pode ser um individuo com uma sensibilidade idêntica ao cidadão médio e comum, antes tem de estar mais “aberto”, receptivo e imune, a críticas ferozes e comentários, por vezes, infelizes.
Por outro lado, são conhecidas as paixões e controvérsias que as questões relativas ao futebol frequentemente geram.
Ora, pela leitura e audição da entrevista dada pelo arguido à D…, alguns minutos depois do jogo entre o G1… e o E… ter terminado, e pela análise da restante prova produzida quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, somos em concluir que a única afirmação que poderia, de algum modo suscitar duvidas, quanto à sua licitude seria a «Tivemos conhecimento agora, aqui, que este senhor árbitro costuma ir a jantares com directores do E…, portanto, já estávamos precavidos para o que podia acontecer.»
Mas, como resulta dos elementos recolhidos quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, tal afirmação do arguido contém uma expressão genérica e nem sequer se sabe se é ou não a afirmação de factos verdadeiros.
Depois, resulta fortemente indiciado que a expressão em causa, bem como toda a entrevista, foi proferida a quente, no “calor ainda do jogo”, verbaliza exaltação e críticas indelicadas e até ferozes, mas não passa disso mesmo, de crítica e de manifestação de desagrado e animosidade, que de maneira nenhuma atenta contra a honra e consideração pessoal do assistente.
A entrevista dada pelo arguido reflecte todo um conjunto de críticas exaltadas a actos do árbitro, actos que, no âmbito de uma sociedade democrática, estão sujeitos a um controlo das pessoas que compõem a respectiva comunidade desportiva, no qual aquele desempenha as funções de arbitragem.
O assistente exerce o cargo de avaliar e julgar o desempenho dos outros, tal circunstância claramente que o expõe em demasia e o coloca sujeito à insatisfação dos avaliados, pelo que está, naturalmente, sujeito a críticas, nomeadamente de toda a massa associativa e dirigentes das equipas insatisfeitas com o seu trabalho. Para além disso, tais críticas têm de ser encaradas no âmbito do mundo desportivo (e, quando mais violentas, tratadas nas instâncias aí existentes, como ao que parece, até o foram, mas com o desfecho de arquivamento).
Assim sendo, temos para nós que a(s) expressão(ões) nos termos e circunstâncias em que foi(ram) proferida(s) não consente(m) a ilação de o arguido ofendeu desmedida e desnecessariamente o assistente, querendo menosprezá-lo e rebaixá-lo na sua consideração.
Por conseguinte, ter-se-á de concluir não acarretar as afirmações imputadas ao arguido e dadas como indiciadas qualquer atentado à honra e consideração do assistente e, consequentemente concluir, quanto a tais factos pela não pronúncia do arguido.
Ainda que assim não se entendesse, sempre diríamos, também, que não estão apurados factos que permitam ter como indicado o elemento subjectivo, isto é, que o arguido tinha a consciência da genérica perigosidade da sua conduta ou do meio de acção previstas nas normas incriminatórias respectivas, pois da própria entrevista se pode ler «o que eu quero dizer é que tivemos aqui conhecimento que esse senhor tem excelente relacionamento com alguns directores mas isso não quer dizer nada. (…) Quem sou eu para estar aqui a alegar ou acusar alguma coisa?!
Agora vi os festejos e o tipo de relação que tiveram no final do jogo, ainda dentro do campo.
Quer dizer, aquilo parecia irmãos! Vária gente fica um bocado preocupada com estas coisas.
Quem sou eu para acusar? E não entenda estas palavras como eu que esteja a dizer que o árbitro terá sido aliciado ou terá feito um frete. Sei que, pelo menos, infeliz foi. Isso aí posso garantir que foi infeliz e nos prejudicou.»
Não nos parece, portanto, que as afirmações sejam genericamente perigosas, à luz de critérios de experiência, bem como que o arguido tenha agido com consciência dessa perigosidade.
Logo, também por aqui chegamos a igual conclusão de não pronunciar o arguido.
Em síntese, a ponderação de todos os elementos precedentemente discriminados aponta para que o juízo de probabilidade de condenação do arguido B… seja muito ténue, sendo altamente improvável a sua futura condenação, ou melhor, sendo a sua absolvição muito mais provável do que a sua condenação.
Por todo o exposto e tudo ponderado, deverá decidir-se pela não pronúncia do arguido.
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III. Decisão:
Face ao exposto e ao abrigo do art.º 308º, n.º1, do Código de Processo Penal, decide-se:
- NÃO PRONUNCIAR o arguido B… pela prática, em autoria material e na forma consumada, pelos factos e enquadramento jurídico constantes da acusação particular de fls. 85 a 93 e, em consequência, determina-se o oportuno arquivamento dos autos.
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Medida de coacção: Nos termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 214.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, extingue-se de imediato a medida de coacção prestada pelo arguido.
Custas: Nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 515.º, n.º1, al. a), e 518.º do Código de Processo Penal, as custas devidas são da responsabilidade do assistente.
Notifique».
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DO DIREITO
Em causa, no recurso interposto, está o despacho de “não pronúncia” referente a uma acusação deduzida pelo assistente C…, que o Ministério Público acompanhou, depois de formulada, contra B… a quem foi imputado o crime de difamação agravada, p. e p. pelo artº 180º e 183º nº 2 do cód. penal.
Embora não suscitada por nenhum dos sujeitos processuais, impõe-se antes de mais analisar uma questão prévia de ordem formal, independentemente da questão de fundo suscitada, (que também analisaremos) que se prende com a formulação da acusação pelo assistente e a que o Ministério Público se limitou posteriormente a aderir, (fls. 104), facto que gera a nulidade insanável prevista no artº 119º al. b) do cód. procº penal.
Com efeito, considerando que a vítima nos presentes autos é árbitro desportivo, sob jurisdição das federações, o crime imputado ao arguido, tem hoje natureza semipública, face ao disposto no artº 184º, conjugado com o artº 132º nº 2 al. l), ambos do cód. penal, devendo por isso a acusação ser deduzida pelo Ministério Público, não se bastando a mera adesão posterior à formulada pelo assistente.
Sobre esta matéria se pronunciou o Assento nº 1/2000, publicado no D. R. nº 4, Série I-A de 2000-01-06, que decidiu seguinte:
- “Integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semipública e fora do caso previsto no artigo 284º, nº 1, do mesmo diploma legal”.
Consequentemente, a acusação deduzida nos termos constantes dos autos, enferma de nulidade insanável prevista no artº 119º al. b) do cód. procº penal.
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Todavia, apesar desta questão incontornável, não deixaremos de analisar a questão de fundo do recurso.
Na origem da queixa apresentada, está uma entrevista dada pelo arguido, na qualidade de Presidente da Direcção do “G…”, à D…, em que se referiu ao arguido, na qualidade de árbitro de um jogo de futebol disputado pelo Clube a que aquele preside, tendo na mesma proferido as seguintes palavras:
- “Perdemos ingloriamente por culpa de um árbitro que, infelizmente, já nos habituou noutros jogos a ter esse comportamento”; “tivemos conhecimento agora aqui que este senhor árbitro costuma ir a jantares com directores do E…, portanto, já estávamos precavidos para o que podia acontecer” ou ainda “agora vi os festejos e o tipo de relação que tiveram no final do jogo ainda dentro do campo”.
Antes de fazer qualquer juízo de valor prévio quanto ao trecho em si mesmo, analisado objectivamente e daquilo que dele se pode retirar, é de primordial importância realçar o contexto em que foi dito e as demais explicações que na entrevista à D… o arguido proferiu, conforme bem se explicitou no despacho recorrido que decidiu “não pronunciar” B… e realça os demais trechos e explicações da entrevista, fazendo-os pesar na decisão proferida.
A questão que se coloca é de natureza puramente jurídica, dado que os factos estão todos eles contidos na entrevista concedida e cuja gravação consta de um CD anexo ao processo, que por uma questão de rigor decidimos ouvir integralmente.
Com efeito, o trecho mais controvertido é na verdade o que acima transcrevemos, se bem que, lido isoladamente se mostre descontextualizado, sendo certo que para aferir da sua essencialidade, em termos relevância criminal ou não, é necessário atender à totalidade da entrevista, ao momento e contexto em que foi proferida.
E no tocante a este aspecto, além do trecho em si, é importante salientar as palavras do arguido na aludida entrevista, ocorrida no final do jogo em que a equipa de que é Presidente perdeu por 2-1. Para o efeito aqui realçamos:
- «(…) Conseguiu [o assistente] inquinar o jogo a meio campo, conseguiu anular-nos, não marcar um penalty que foi a nosso favor e que podia ter resolvido o jogo e perdemos ingloriamente por culpa de um árbitro que, infelizmente, já nos habituou noutros jogos a ter esse comportamento. Temos sido severamente castigados ao longo deste campeonato – tal como fomos o ano passado – e nós não podemos tolerar atitudes de arbitragens destas. Tive o cuidado de lhe dizer no final do jogo, que ele conseguiu inquinar o jogo e tive o cuidado também de enviar uma mensagem ao Sr. Presidente da H… a dizer-lhe o que este senhor conseguiu fazer. (…)[2]. Não é a primeira vez que isto acontece e perdemos a vontade de estar à frente de equipas de futebol, dos clubes, se toda a gente sabe os sacrifícios que passamos. Há dias tive conhecimento que bateram a este senhor árbitro em …. Nós não queremos seguir esse caminho, somos pessoas de bem (…). Agora se calhar em relação à atitude que porventura venham a ter, se calhar, terão toda a razão porque ficou confirmado hoje, mais uma vez, que fomos prejudicados. Tivemos conhecimento agora, aqui, que este senhor árbitro costuma ir a jantares com directores do E…, portanto, já estávamos precavidos para o que podia acontecer. // (…) // O que eu quero dizer é que tivemos aqui conhecimento que esse senhor tem excelente relacionamento com alguns directores mas isso não quer dizer nada. (…) Quem sou eu para estar aqui a alegar ou acusar alguma coisa?! Agora vi os festejos e o tipo de relação que tiveram no final do jogo, ainda dentro do campo. Quer dizer, aquilo parecia irmãos! Vária gente fica um bocado preocupada com estas coisas. Quem sou eu para acusar? E não entenda estas palavras como eu que esteja a dizer que o árbitro terá sido aliciado ou terá feito um frete. Sei que, pelo menos, infeliz foi. Isso aí posso garantir que foi infeliz e nos prejudicou. // (…) // O árbitro é uma pessoa experiente e sabe perfeitamente que se tiver que festejar alguma coisa não seria ali. O que vi foi a reacção de quando o foram cumprimentar, a forma muito familiar que existia ali, de amizade, e que não me agradou. E o próprio árbitro devia ter posto algum respeito e cumprimentar sim senhor as pessoas, que fica bem às duas partes, mas devia ter imposto algum respeito e dizer aos dirigentes do E… que seguissem o caminho deles, porque não é ali dentro das quatro linhas ainda que se tem atitudes daquelas. É muito desgosto porque a nossa assistência manifestou-se muito contra isso, eu estava do outro lado e vi assim um bocadinho de longe, mas não quer dizer com isto – repito: que tenha havido qualquer aliciamento ou algum favor (…) fomos severamente castigados».
Analisado o contexto e o cuidado explicativo que o arguido teve nas suas próprias palavras[3] é manifesto que a decisão recorrida não pode merecer censura alguma, dada a justeza da análise feita, em que se demonstra o conhecimento objectivo da realidade em causa, nomeadamente, o facto de tais palavras terem sido proferidas a seguir a um jogo em que o clube a que o arguido preside perdeu, sentindo-se injustiçado, por decisões objectivamente discutíveis tomadas pelo árbitro.
Acresce realçar, que várias testemunhas referem a existência de “jantares” entre o árbitro e elementos da equipa contrária, o que é fortemente censurável num árbitro que vai ajuizar uma partida de futebol e a quem se exige total isenção, não só no campo como nos actos e conduta fora dele. É caso para citar aqui o velho ditado popular de que, “à mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer”. A arbitragem é precisamente um dos casos, em que um árbitro tem de manter com os dirigentes do mundo do futebol, respectivos jogadores e empresários, um distanciamento tal, que não possa inculcar nos demais, que com ele não mantêm um relacionamento directo, qualquer sombra de dúvida acerca da sua isenção. No caso concreto, há nos autos fortes indícios de que o mesmo terá participado em jantares com pessoas ligadas à equipa do E…, adversária do G1… (de que o arguido é dirigente). Mais ainda, terá demonstrado após a vitória, um júbilo efusivo para com os vencedores, susceptível de lançar a dúvida razoável, (ou pelo menos aceitável) junto da equipa do G1… que perdeu.
Daí, ser perfeitamente compreensível, a reacção do arguido B…, na qualidade de Presidente do G…, cujas palavras proferidas e acima assinaladas devem ser entendidas como uma forma exasperada de expressar a indignação pelo que vira, ouvira e sentira.
Sob o ponto de vista jurídico, [lei, legislação e jurisprudência].
Importa ter em conta que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, não obstante o artº 37º nº 2 da CRP[4] proibir toda a forma de censura, é lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão, desde que atinjam a honra e a dignidade de outrem.
A liberdade de expressão e opinião está igualmente consagrada no artº 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948[5], no artigo 19º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York em 7 de Outubro de 1977 (aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) e no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro (em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 09 de Novembro de 1978, data do depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, p. 571 e ss., vg. 572), “o direito de expressão (nº 1, 1ª parte: ‘direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento’ é, desde logo, e em primeiro lugar, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideias e opiniões”.
Todavia, o “direito de liberdade de expressão” não pode ser encarado como um direito absoluto, que prevalece em qualquer circunstância, podendo por vezes sofrer restrições que se justificam pela necessidade de se conjugar ou compatibilizar com outros direitos ou bens com expressão no texto constitucional.
“Há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a infracção criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal. Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação (cfr. art. 26º); a injúria e a difamação ou o incitamento e a instigação ao crime (…) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação”, (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira anotação ao artº 37º da CRP, p. 575).
Segundo os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 81/84 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1985, p. 1025) e nº 384/03 (in www.tribunalconstitucional.pt), “a liberdade de expressão (...) não é um direito absoluto nem ilimitado” e, não obstante o artigo 37º, nº 2, da Constituição proibir toda a forma de censura, “é lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão”.
As limitações à liberdade de expressão não podem, contudo, ir além do que for necessário à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal ou sujeitos a sanções de outra natureza.
É neste sentido que aponta o artigo 37º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, o mesmo sucedendo com o nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelece as restrições à liberdade de expressão.
O âmbito da liberdade de expressão não prejudica, pois, a sua consideração e ponderação no contexto da globalidade e unidade do sistema jurídico, face aos bens e valores em presença, podendo sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, numa avaliação a efectuar segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante e com respeito pelo princípio da proporcionalidade (cfr. o artigo 18º, nº 2 da Constituição da República).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dispõe no seu artigo 12º que “ninguém sofrerá (…) ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”, sendo aqui de lembrar que o art. 16º, nº 2 da CRP impõe deverem os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais ser interpretados e integrados de harmonia com esta D.U.D.H.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem também pressupõe a tutela do direito à honra no nº 2 do seu artigo 10º (preceito dedicado à liberdade de expressão) ao estabelecer justamente os limites da liberdade de expressão e informação. Estabelece esta norma que:
- "O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e da prevenção do crime, a protecção da saúde e da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e imparcialidade do Poder Judicial".
Tratando-se ambos os direitos em causa – direito ao bom nome e reputação, por um lado, e liberdade de expressão e informação, por outro – de direitos fundamentais, o seu balanceamento ou ponderação quando entram em colisão nos casos concretos, deve ser feito no contexto constitucional português “afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstracta e tendo em consideração o princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso)” – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ob. cit, pp. 466 e 392.
Citando Costa Andrade in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra, 1996, p. 153-169 e Gomes Canotilho in “Direito Constitucional”, 2ª edição, Coimbra, 1980, pp. 262-263:
- «Sempre que existam contradições normativas, concorrência ou colisão de direitos fundamentais, não deve o intérprete proceder a uma abstracta ponderação e confronto dos direitos constitucionalmente garantidos (...) sacrificando uns aos outros, mas sim estabelecer limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre esses direitos (...) a sua máxima optimização, (…)”. Trata-se do princípio da concordância prática como critério de solução dos conflitos, «apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida possível», executando-se tal princípio «mediante o recurso simultâneo a um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito, sob pena de se afectar de forma inaceitável o conteúdo essencial de um dos direitos em conflito».
Na palavra de Vieira de Andrade in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Coimbra, 1983, p. 223, o princípio da concordância prática executa-se “através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos em conflito. Por um lado, exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros. Se o não for, não se trata sequer de um verdadeiro conflito. Por outro lado, e aqui estamos perante a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, impõe-se que a escolha entre as diversas maneiras de resolver a questão concreta se faça em termos de comprimir o menos possível cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação, segundo a intensidade e a extensão com que a sua compressão no caso afecta a protecção que lhes é constitucionalmente concedida”.
No tocante ao crime de difamação, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo previsto no artigo 180º, nº 1 do cód. penal:
a) a imputação de um facto ou,
b) a formulação de um juízo.
Ora, no caso concreto da factualidade em análise, não podemos concluir por indícios fortes da imputação de um facto que objectiva e subjectivamente atente contra a honra e dignidade do assistente, em face dos elementos concretos decorrentes dos autos, mesmo quando analisados à luz das regras de experiência comum.
Por outro lado, a formulação do juízo feito pelo arguido em relação ao árbitro, (assistente/recorrente) na entrevista dada à D…, após um jogo em que sentiu que a sua equipa foi injustiçada, mais não é do que o eco de uma indignação alicerçada em dado concretos que o mesmo analisou segundo o seu juízo de valor, em face dos elementos de que dispunha e daquilo que vira da actuação daquele em campo.
O artigo 180º, nº 1 do cód. penal traduz uma medida restritiva da liberdade de expressão, conferindo tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e ao seu bom nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça 2009.10.21, processo nº 1/08.0TRLSB.S1, in www.stj.pt). O dolo específico não integra o tipo subjectivo, enquanto parte do tipo de ilícito.
Quanto ao elemento objectivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o comportamento do agente pode traduzir-se na imputação de um facto ou na formulação de um juízo.
Segundo o critério perfilhado por Faria Costa in “Comentário Conimbricense do Código Penal” – Parte Especial – Tomo I, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra, 1999, pp. 609 e segs, temos que:
- A noção de facto se traduz «naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência», assumindo-se, «por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência», ou seja, como «um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos»,
- Um juízo «deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor».
Para aferir se determinada conduta é susceptível de ofender a honra e consideração do visado, é ao conceito que das afirmações proferidas se tem na sociedade e meio local respectivo, que há que recorrer para fazer o pertinente juízo de valor.
Importa ainda fazer uma breve referência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que geralmente reitera nas decisões em que se debruça sobre esta temática, ser a liberdade de expressão “um dos fundamentos essenciais de toda a sociedade democrática, uma das condições primordiais do progresso e do desabrochar de cada cidadão” (cfr. Ac. de Almeida Azevedo c. Portugal, de 23 de Janeiro de 2007, disponível in www.echr.coe.int/echr).
No que diz respeito às excepções admitidas ao exercício da liberdade de expressão no artigo 10º, nº 2 da CEDH, o TEDH tem sublinhado que estas devem ser interpretadas de forma restritiva. Como dá notícia Lopes da Rocha no seu artigo intitulado “A Liberdade de Expressão como Direito do Homem”, in Revista Sub-Judicie, nº 15/16, p. 77 e ss., este tribunal censura as limitações excessivas da liberdade de expressão em nome da protecção de outros direitos individuais ou da garantia de autoridade do poder judicial, considerando que as restrições admitidas são excepções que carecem de uma interpretação restritiva, devem ser proporcionais ao objectivo legítimo prosseguido e não podem atingir a liberdade de expressão na sua substância (cfr. Francisco Teixeira da Mota, in “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão – Os casos portugueses”, Coimbra, 2009, p. 29 e 67).
A propósito dos casos em que se faz crítica a alguém, o TEDH tem reconhecido serem legítimas as críticas bem sustentadas factualmente, ainda que se trate de artigos de opinião insusceptíveis de prova da sua veracidade; podem eventualmente ser excessivos, quando não suficientemente fundamentados, (cfr. os acs. De Haes e Gisels c. Bélgica, 1997 e Skalka c. Polónia, 2003, ambos citados por Teixeira da Mota, in ob. cit., pp. 32-33).
Expressar um direito à indignação, perante um facto alicerçado em dados objectivos, indiciadores de uma injustiça, não deve relevar no caso concreto em termos criminais, tendo em conta que as expressões proferidas pelo arguido não revelam nem apontam mais do que precisamente isso ou seja, uma indignação circunstancial no momento do acto.
Não é de aceitar, que no contexto circunstancial descrito, perante as dúvidas pertinentes sobre a falta de isenção do árbitro e o cuidado explicativo que teve na entrevista em justificar o que afirmava, se possa dar relevância criminal às palavras proferidas pelo recorrido B….
Para além de estarmos perante uma acusação que enferma de nulidade insanável, nos termos acima fundamentados, a questão de fundo referente à factualidade imputada e à decisão de “não pronúncia”, em que se fundamentava o recurso, sempre seria de improceder.
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em declarar a nulidade da acusação e julgar improcedente o recurso interposto.
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Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cinco unidades de conta).
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Porto 8 de Fevereiro de 2012[2]
Américo Augusto Lourenço
Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio
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[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] - Realce nosso.
[3] - Mormente quando refere: “E não entenda estas palavras como eu que esteja a dizer que o árbitro terá sido aliciado ou terá feito um frete. Sei que, pelo menos, infeliz foi. Isso aí posso garantir que foi infeliz e nos prejudicou “ (…). “O que vi foi a reacção de quando o foram cumprimentar, a forma muito familiar que existia ali, de amizade, e que não me agradou. E o próprio árbitro devia ter posto algum respeito (…)”.
[4] - Que nos diz expressamente (artº 37º da CRP):
«1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.
4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos».
[5] - Publicada no DR, I série, de 9 de Março de 1978.
[6] - Acórdão elaborado e revisto pelo relator, (cfr. artº 94º nº 2 do cód. procº penal).