Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP00041853 | ||
Relator: | FRANCISCO MARCOLINO | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO FALTA DE LICENÇA DE CONSTRUÇÃO FALTA DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP200811050815211 | ||
Data do Acordão: | 11/05/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REC. PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 554 - FLS. 194. | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | A contra-ordenação prevista para a construção sem licenciamento prévio e a contra-ordenação prevista para o uso (ocupação) da mesma construção, sem a necessária licença de habitabilidade ou de ocupação, estão entre si numa relação de acumulação material, uma vez que os bens jurídicos que protegem também são diferentes (qualidade ambiental e correcto ordenamento do território, na construção sem licenciamento e segurança dos cidadãos, na falta de licença de utilização). | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Recurso 5211/08 * Acordam no Tribunal da Relação do Porto Recurso de contra-ordenação n.º …../08, do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia Por decisão de 11 de Novembro de 2007, a Câmara Municipal de Gaia condenou a “B……………, S.A”., com sede na Rua ………, n.° …., no concelho do Porto, ao pagamento da coima de 40.000€, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 4o, n.° 3 alínea f), 62°, n.° 2 e 98º do Decreto Lei n.° 555/99, de 20 de Novembro, com a redacção dada pelo Decreto Lei n.° 177/01, de 4 de Junho, porquanto no dia 17 de Outubro de 2002, pelas 15h30, na Rua ………, a arguida procedeu à construção de 4 edifícios com as áreas aproximadas de 1760 m2, 3000 m2, 829 m2 e 143 m2, estando nessa data concluídos, e ocupados respectivamente como, escritórios e armazém; oficinas, armazém, oficina e escritórios; armazém; e laboratório de betões, sem que para o efeito possuísse a necessária autorização administrativa de ocupação. A arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa, invocando violação do princípio non bis in idem. Subsidiariamente, requer a sua condenação pelo mínimo de 498,80€. Por sentença de 3 de Junho de 2008 foi julgada parcialmente provida a impugnação e, em consequência, foi a recorrente condenada ao pagamento da coima de 25.000€ pela prática da dita contra-ordenação. Ainda irresignada, a arguida interpôs o presente recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões: 1. Os edifícios em questão nos presentes autos encontravam-se ocupados por trabalhadores da recorrente à data do levantamento dos dois anteriores processos de contra-ordenação, ou seja, em 21.03.2001; 2. Os Serviços Camarários e a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, aquando do levantamento dos autos de notícia dos outros processos, referidos nos pontos 5 a 8 da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, constataram a ocupação dos edifícios com trabalhadores da recorrente; 3. Todavia, limitaram-se a levantar autos de notícia pela inexistência de licença de construção, embora estando já em condições de, também, poderem levantar autos de notícia pela não existência da licença de ocupação; 4. Os factos constatados em 20.03.2001 foram já submetidos ao conhecimento e julgamento dos Tribunais, que se decidiram pela prescrição dos respectivos procedimentos contra-ordenacionais, não podendo esses mesmos factos ser objecto de nova perseguição e punição pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, agora “travestidos” em inexistência de licença de ocupação, nem conhecidos e julgados pelo Tribunal; 5. Tal consubstancia, claramente, uma reapreciação dos mesmos factos e a repetição da sua punição, antes como integradores da inexistência de licença de construção e agora consubstanciadores de inexistência de licença de ocupação; 6. O que representa uma clara violação do princípio “ne bis in idem”, acolhido no artigo 29°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa; 7. À data de 20.03.2001, aplicável era ao procedimento contra-ordenacional pela ocupação dos edifícios sem a respectiva licença, o Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14.09 - cf. artigo 3o do citado Decreto-Lei 433/82; 8. Então, de acordo com o disposto no artigo 27° do mencionado Decreto-Lei n.° 433/82, na redacção que lhe foi dada pelo referido Decreto-Lei n.° 244/95, o procedimento por contra-ordenação extinguia-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação tivessem decorrido dois anos ou um ano nos casos em que a coima aplicável não fosse superior ao montante máximo previsto no n.° 1 do artigo 17° daquele diploma legal; 9. Assim sendo, prescrito se acha o procedimento contra-ordenacional instaurado contra a recorrente, objecto do presente recurso, prescrição essa que expressamente se invoca; 10. A recorrente apresentou, em 1999, junto da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, um projecto de licenciamento relativo à construção dos edifícios em questão; 11. Em virtude da construção da obra do novo estádio do C…………, a recorrente acedeu a desmobilizar, com a urgência que impunha o início da construção daquela obra, em virtude do evento do Euro 2004, as suas oficinas de carpintaria em ……….., em Campanha, a unidade fabril D……………, avançando com a ocupação dos edifícios mencionados no ponto 1 da matéria de facto provada pela douta sentença recorrida; 12. Fê-lo, em função do interesse público inerente realização do Euro 2004 e em colaboração com as entidades públicas e privadas nele envolvidas; 13. Todavia, por haver compreendido e cedido àquele interesse público, não podia a recorrente ficar com os seus equipamentos, máquinas, utensílios e matérias-primas “nas mãos”; 14. Muito menos sem possibilidade de satisfazer os seus compromissos perante os clientes; 15. E, ainda menos, com os trabalhadores parados e sem local onde pudessem exercer a sua actividade profissional; 16. E, só por isso, se viu a recorrente na necessidade de ocupar os edifícios em causa; 17. Não sendo justo que tenha sido punida, como o foi, por se lhe ter imposto a necessidade de tomar medidas, em ordem a evitar prejuízos incalculáveis se o não fizesse, face à burocracia inerente ao processo de licenciamento da construção e ocupação dos edifícios pela Câmara Municipal de Gaia; 18. Processo esse que, de resto, e pese embora a recorrente lhe ter dado início em 1999, isto é, cinco anos precedendo a causa que determinou a mudança de instalações, o Euro 2004, se veio a mostrar concluído, apenas, em 04.07.2006, ou seja dois anos passados sobre a realização daquele evento e sete longuíssimos anos sobre a data do início do referido processo de licenciamento; 19. Não podia, de forma nenhuma, a recorrente, nem tal lhe poderia, razoavelmente, ser exigível, mais a mais por ter cedido a razões de interesse público, interromper a laboração da sua unidade fabril de carpintaria, manter inactivos os seus trabalhadores e incumprir com as obrigações assumidas junto dos seus clientes, durante sete longos anos; 20. Circunstâncias existiram, pois, designadamente, a protecção do interesse público, que determinaram que a recorrente ocupasse os edifícios antes de se encontrar, para o efeito, devidamente licenciada; 21. Pena essa que, de resto, sempre e em qualquer caso, deveria ser objecto de atenuação especial, atento o invocado nos pontos 19 a 29 supra. 22. Atentas as supra citadas razões que justificaram a prática do facto pela recorrente, a inexistência de consequências lesivas, fosse para quem fosse, desse mesmo facto, o não se ter provado a situação económica da recorrente e o facto do processo de licenciamento ter vindo, entretanto, a ser aprovado pela Câmara Municipal de Gaia, manifestamente desajustada, por excessiva, se mostra a medida da pena aplicada à recorrente; 23. A ser aplicada uma pena à recorrente, o que se não concebe nem concede, deverá ela ser, pois, determinada em função dos critérios legais aplicáveis, pelo que se deverá quedar por admoestação, ou, no máximo, pela aplicação de coima pelo seu valor mínimo, ou seja, € 498,80, sob pena de violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade. Respondeu o M.º P.º defendendo a manutenção do julgado. Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido do não provimento do recurso. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade: 1. No dia 17 de Outubro de 2002, pelas 15.30 horas, na Rua ……….., na freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Gaia, a recorrente procedia à ocupação de quatro edifícios com as áreas aproximadas de 1760 m2, 3000 m2, 829 m2 e 143 m2, que se encontravam já concluídos, neles se encontrando instalados, respectivamente, escritórios e armazém, oficinas, armazém, oficina e escritórios, armazém e laboratório de betões, sem que tivesse sido emitida a respectiva autorização administrativa de ocupação. 2. A recorrente, através dos seus representantes legais, tinha conhecimento que não podia construir e ocupar as referidas instalações enquanto não fosse emitido o respectivo alvará para construção e a necessária autorização de utilização para ocupação correspondente, e, não obstante não se coibiu de as ocupar. 3. A recorrente, por intermédio dos seus legais representantes, agiu livre, voluntária e conscientemente. 4. A arguida, em 1999, apresentou junto da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, um projecto de licenciamento relativo à construção dos mencionados edifícios, tendo aquela em 4-07-2006 emitido o respectivo alvará de licença de obras de construção sob o n.° 851/06, com o prazo de conclusão de obras para 4-07-2008, o qual foi rectificado, a requerimento da arguida, apresentado em 11-07-2006, devido a imprecisão, quanto às áreas de construção nele referidas, e emitido por aquela entidade em 20.08.2007, tendo os projectos merecido deferimento nos termos em que os edifícios se encontravam construídos. 5. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, no processo de contra-ordenação n.° 208/2001, por decisão de 9-01-2004, condenou a recorrente na coima de € 2.500.00, pela prática da contra-ordenação, p. e p. no art. 54°, n.° 1, al. a) do D.L. n.° 445/91, de 20.11., dando como provado que aquela, em 20-03-2001 procedeu à construção na Rua ………., em ………., de um edifício fabril com uma área de 3.000 m2, repartida por três naves, sem que para o efeito possuísse o necessário alvará. 6. Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial, vindo os autos a ser distribuídos ao 2o juízo criminal deste Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, com o n.° ……../04.1 TBVNG, no âmbito dos quais foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto do despacho que julgou parcialmente procedente a impugnação, vindo a ser declarado prescrito o procedimento contra-ordenacional instaurado. 7. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, no processo de contra-ordenação n.° 209/2001, por decisão de 9-01-2004, condenou a recorrente, na coima de € 2.500.00, pela prática da contra-ordenação, p. e p. no art. 54°, n.° 1, al. a) do D.L. n.° 445/91, de 20.11., dando como provado que aquela, em 20-03-2001 procedeu à construção na Rua ……….., em …….., de um edifício constituído por armazém e escritórios, com uma área de 1.600 m2, repartida por duas naves, sem que para o efeito possuísse o necessário alvará. 8. Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial, vindo os autos a ser distribuídos ao 1º juízo criminal deste Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, com o n.° …../04.0TBVNG, no âmbito dos quais foi proferido despacho em que se declarou prescrito o procedimento contra-ordenacional instaurado. 9. Em virtude da construção da obra do novo estádio do C…………, a arguida acedeu a desmobilizar, com a urgência que impunha o início da construção daquela obra em virtude do evento do Euro 2004, as suas oficinas de carpintaria em ………., em Campanha, a unidade fabril D……….., avançando com a ocupação dos edifícios mencionado no ponto 1 da matéria de facto provada. 10. À data do levantamento dos autos de notícia relativos aos processos identificados nos pontos, os edifícios já se encontravam ocupados com trabalhadores da recorrente. E considerou que: “Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos articulados na acusação, na contestação ou alegados em audiência de julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes, designadamente: a) À data do levantamento dos autos de notícia relativos aos processos identificados nos pontos 5 e 7 da matéria de facto provada, ou seja, em 20-03-2001, os edifícios já se encontravam ocupados com equipamentos de escritório e fabris da recorrente. b) Qual o volume de negócios da recorrente relativo ao ano de 2006. As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso. A Recorrente submete à apreciação deste tribunal três questões: I – Entende que se violou o princípio non bis in idem porquanto: a) Os edifícios em questão encontravam-se ocupados por trabalhadores da recorrente à data do levantamento dos dois anteriores processos de contra-ordenação, ou seja, em 21.03.2001 pelo que os Serviços Camarários e a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, aquando do levantamento dos autos de notícia dos outros processos, referidos nos pontos 5 a 8 da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, podiam ter levanto auto de notícia pela inexistência da licença de ocupação; b) Como os factos constatados em 20.03.2001 foram já submetidos ao conhecimento e julgamento dos Tribunais, que se decidiram pela prescrição dos respectivos procedimentos contra-ordenacionais, não podem esses mesmos factos ser objecto de nova perseguição e punição. II - O procedimento contra-ordenacional está prescrito atendendo a que à data de 20.03.2001 era aplicável o Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14.09. Porque assim, o prazo prescricional era de 2 anos, que há muito decorreu. III – Para o caso de assim se não entender, deve a Recorrente ser condenada no coima mínima de € 498,80 porquanto: a) Apesar de ter apresentado, em 1999, junto da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, um projecto de licenciamento relativo à construção dos edifícios em questão, o mesmo só veio a ser deferido em 04.07.2006; b) Todavia, em virtude do evento do Euro 2004, houve necessidade de construir o novo estádio do C…………, e, destarte, a recorrente acedeu a desmobilizar, com a urgência que impunha o início da construção daquela obra, as suas oficinas de carpintaria em ………., em Campanha, avançando com a ocupação dos edifícios mencionados no ponto 1 da matéria de facto provada pela douta sentença recorrida, o que fez em função do interesse público inerente realização do Euro 2004 e em colaboração com as entidades públicas e privadas nele envolvidas; c) Para não ficar com os equipamentos, máquinas, utensílios e matérias-primas “nas mãos”, com os trabalhadores parados e sem local onde pudessem exercer a sua actividade profissional, viu-se na necessidade de ocupar os edifícios em causa; d) Por tal razão, sempre a pena deveria ser especialmente atenuada. Vejamos: O artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, proíbe o julgamento mais que uma vez pela prática do mesmo crime. Por maioria de razão, ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática da mesma contra-ordenação. Segundo os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira[1], “O n.° 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Para a tarefa de «densificação semântica» do princípio é particularmente importante a clarificação do sentido da expressão «prática do mesmo crime», que tem de obter-se recorrendo aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais”. A dificuldade na aplicação do princípio está, como se vê, em concretizar os conceitos de mesmo crime ou de mesma contra-ordenação. Para a resolver, importa convocar os ensinamentos dos Mestres. O Prof. Germano Marques da Silva[2], depois de abordar a problemática do denominado caso julgado e, para o que interessa aos autos, do caso julgado material, distingue os efeitos - positivo e negativo - do mesmo. O efeito positivo consiste na relevância da decisão em qualquer outro processo. O efeito negativo “consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio conhecido pelo brocardo non bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art.º 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa”[3]. O julgamento da mesma questão implica o julgamento do “mesmo facto”. Prossegue o aludido Mestre[4]: “É a propósito da identidade do facto que se suscitam profundas divergências na doutrina. A doutrina tradicional dominante era no sentido de que bastava a identidade parcial dos factos, sendo também indiferente a qualificação jurídica que lhes fosse dada. Não nos parece correcta esta construção. O processo penal com estrutura acusatória limita o objecto do processo ao facto descrito na acusação. Entendemos que tal delimitação se há-de fazer necessariamente em função do bem jurídico protegido, pois que «só o facto, enquanto alegadamente delitivo (facto qualificado), interessa ao processo e tem virtualidade para que o processo se instaure e prossiga. O facto puro, o facto desqualificado, não existe para o direito, é uma enteléquia. A acusação só pode ser recebida enquanto os factos descritos na acusação correspondam a um tipo legal incriminador. O facto descrito na acusação há-de corresponder ao facto típico previsto nas normas, em razão das quais é punível e cuja aplicação é pedida ao tribunal. Por isso que também na acusação se tenha de indicar, sob pena de nulidade da acusação, as disposições legais aplicáveis [alínea c) do n.° 3 do art. 283.°]. Devemos deter-nos um pouco sobre a proibição do non bis in idem. Nos números anteriores considerámos que os limites objectivos do caso julgado são constituídos pelos factos da acusação e pelo pedido. Daí resultaria que nada impediria que o arguido voltasse a ser acusado e julgado pelos mesmos factos, naturalisticamente considerados, no todo ou em parte, quando o pedido fosse diverso, isto é, quando a qualificação jurídica dada aos factos fosse outra. Importa, porém, averiguar se tal interpretação, que a nosso ver é a que resulta da aplicação subsidiária dos princípios que disciplinam o caso julgado civil, não deve sofrer adaptações em razão do disposto no art. 29.°, n.° 5, da CRP, quando dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Somos agora reconduzidos à interpretação da expressão mesmo crime. Numa primeira aproximação, por mesmo crime deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspecto substancial, os elementos essenciais do tipo legal pelos quais o arguido foi julgado (Realce nosso). Por isso que, como já referimos, nos casos de concurso ideal, se o arguido foi já julgado por um dos crimes em concurso isso não impede que seja novamente julgado pelos outros; os crimes são diversos. Mas, pelo contrário, nos casos de mero concurso aparente de crimes - entre o julgado e o que se pretende julgar - aquando os dois ou mais crimes em concurso não podem ser cumulados, julgado um, impedido está o julgamento pelo outro. Em conclusão: o crime deve considerar-se como o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico. Do exposto resulta que nos parece que a proibição de non bis in idem imposta pelo art. 29.°, n.° 5, da Constituição é mais ampla do que a que resultaria dos efeitos do caso julgado e é essa, em nossa opinião, a principal divergência entre o efeito impeditivo do caso julgado civil e do caso julgado penal. A Constituição alarga os efeitos do caso julgado para além dos que resultariam simplesmente da aplicação subsidiária ao processo penal dos efeitos do caso julgado civil. Mas o considerar que a mais ampla abrangência do efeito impeditivo do caso julgado penal relativamente ao civil resulta não da disciplina do caso julgado em si, mas da garantia constitucional, pode ter efeitos teóricos e práticos importantes: não é mais necessário pretender alargar os poderes de cognição do juiz para além do objecto da acusação de modo a que o âmbito dos poderes de cognição do tribunal corresponda aos potenciais efeitos do non bis in idem da decisão”. Já o Prof. Cavaleiro de Ferreira[5], embora com ligeiras nuances, apontava na mesma direcção: “Desta breve resenha descritiva, resulta que a identidade do facto no caso julgado não coincide absolutamente com a identidade do facto, consoante tem de definir-se na correlação entre a pronúncia e sentença. É mais ampla (…). O conceito de identidade do facto não irá buscar-se assim ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real[6]. Se o facto concreto é totalmente o mesmo, não podem surgir dúvidas. A lei, porém, admite uma identidade parcial E então, a doutrina discorre longamente sobre se a identidade parcial implica a manutenção em ambos os factos, parcialmente idênticos, dum núcleo comum irremovível, o qual seria constituído para uns pela acção, para outros pelo evento natural, para outros pela acção enquanto dirigida a certo fim ou objecto, ou afinal pelo interesse jurídico lesado. Note-se que os autores que adoptam este último critério (v.g., Schwinge e Bettiol) não consideram a identidade do bem jurídico como sinónimo de identidade do facto, mas procuram definir os limites da identidade parcial do facto concreto através dum elemento normativo. Na sua substância o facto, de cuja identidade se trata, seria sempre naturalístico - e é esta a opinião dominante (vid. em contrário Prof. Doutor Eduardo Correia), mas o critério da determinação dos elementos reais comuns para alicerçar a identidade teria natureza normativa. Não parece que as dificuldades do problema sejam inteiramente resolvidas desta forma. Por isso que a extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente, o que importa é partir da própria lei positiva e esta oferece-nos base orientadora para uma solução. A identidade parcial pode verificar-se de modo que o facto, objecto de novo processo, seja mais restrito do que o facto apreciado por sentença transitada em processo anterior. Em tal caso, nenhuma dificuldade surge; todo o facto trazido de novo perante a jurisdição cabe no interior do facto já apreciado. É mesmo a hipótese inversa, aquela que consideram os art.ºs 149º e 150º do Código de Processo Penal; os factos trazidos ao novo processo vão além, porque só em parte coincidem com o facto já julgado. De comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade deve atender-se aos factos praticados, ou seja à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo penal, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa) (…). Os factos que constituem acumulação material de crimes são factos diferentes naturalisticamente e por isso quanto aos factos correspondentes ao concurso material não se põe o problema da extensão do caso julgado sobre um em relação aos outros (realce nosso). Inversamente o concurso ideal e aparente não correspondem a uma pluralidade de factos, mas a uma pluralidade efectiva ou aparente de qualificações jurídicas, necessariamente abrangidas pelo caso julgado”. O Sr. Juiz considerou não haver violação do aludido princípio bis in idem, na medida em que os factos em análise no presente processo são distintos das condutas pelas quais a sociedade recorrente foi condenada pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia no âmbito dos processos de contra-ordenação nºs 208/2001 e 209/2001, preenchendo, aliás, diferentes tipos contra-ordenacionais. Na verdade, argumenta, naqueles processos estava em causa a construção dos edifícios mencionados no ponto 1 e, nessa medida a contra-ordenação por construção sem licença municipal, p. e p. no art. 98°, n.° 1, al. a) do D.L. n.° 555/99, de 16.12. na redacção introduzida pelo D.L. n.° 177/01, de 4.06. Nos presentes autos, como vimos, a contra-ordenação cometida pela arguida respeita à ocupação daqueles mesmo edifícios, à data já construídos e ocupados, sem a necessária autorização administrativa prevista nos art.ºs 4o, n.° 3, al. f) e 62°, n.° 2 do D.L. n.° 555/99, de 20.11., na redacção dada pelo D.L. n.° 177/01, de 4 de Julho, de cuja inobservância resulta o cometimento do ilícito contra-ordenacional previsto na alínea d) do n.° 1 do art. 98° dos citados diplomas legais. Face ao exposto, não se encontrava consumido o direito de acusação relativamente aos factos em causa nos presentes autos, nem a presente decisão viola o princípio constitucional ne bis in idem. A razão está inteiramente do lado do Sr. Juiz. Por um lado, porque os factos que integram as duas contra-ordenações (factos típicos) são inteiramente distintos: enquanto que nos processos declarados prescritos estava em causa a construção de edifícios sem licença de construção, a falta de licença de construção, portanto, nos presentes autos está em causa a ocupação dos edifícios sem a necessária licença de habitabilidade ou de ocupação. Licenças essas que são diferentes, adquiridas em momentos temporais sucessivos - uma, a de construção, antes de esta se iniciar, e na sequência de projecto apresentado; a outra, depois de terminada a obra. Ambas são necessárias, indispensáveis, complementares e têm na sua base autónomos procedimentos administrativos, pelo menos no que aos requerimentos diz respeito. Por outro, porque as contra-ordenações são previstas e punidas por diferentes preceitos legais: além, a contra-ordenação p. e p. no art. 98°, n.° 1, al. a) do D.L. n.° 555/99, de 16.12; aqui a contra-ordenação prevista pelos art.ºs 4o, n.° 3, al. f) e 62°, n.° 2 do D.L. n.° 555/99, de 20.11., punida pelo art.º 98° do citado DL. Ou seja, trata-se de duas contra-ordenação que estão numa relação de acumulação material, o que, só por si, impede a aplicação do princípio non bis in idem. Finalmente, porque os bens jurídicos protegidos são diversos: ● Nas contra-ordenações declaradas prescritas o bem jurídico protegido é a qualidade ambiental: as autoridades administrativas aferem da conformidade do projecto com o PDM, ou com o Plano de Urbanização ou com o Plano de Pormenor, com vista a garantir-se um correcto ordenamento do território, imprescindível à aludida qualidade; ● Na contra-ordenação dos autos o bem jurídico protegido é, fundamentalmente, a segurança dos cidadãos: a licença de ocupação é concedida se e quando a construção está de acordo com o projectado e ainda se e quando a obra oferecer as necessárias condições de segurança. Ora, aplicando os ensinamentos dos Mestres, que transcrevemos, dúvidas não há que as contra-ordenações são diferentes, estão numa relação de concurso efectivo. Daí que a Recorrente possa e deva ser sancionada por cada uma delas. Donde, não se mostra violado o princípio non bis in idem. E não se argumente que os serviços camarários podiam ter levanto auto de notícia pela inexistência da licença de ocupação, quando levantaram os anteriores. Podiam, mas não o fizeram e, por isso, não foi a recorrente julgada por tais factos. Em todo o caso, levantaram o auto dentro do prazo que o podiam fazer, como melhor veremos, pelo que tal conduta, se alguma relevância poderá ter, será apenas no campo disciplinar. Defende a recorrente que o procedimento contra-ordenacional está prescrito atendendo a que à data de 20.03.2001 era aplicável o Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14.09. Porque assim, o prazo prescricional era de 2 anos, que há muito decorreu. A Recorrente labora em pressuposto errado, salvo o devido respeito. Nos presentes autos, foi condenada porque no dia 17 de Outubro de 2002, pelas 15.30 horas, na Rua ………., na freguesia de ……….., concelho de Vila Nova de Gaia, a recorrente procedia à ocupação de quatro edifícios com as áreas aproximadas de 1760 m2, 3000 m2, 829 m2 e 143 m2, que se encontravam já concluídos, neles se encontrando instalados, respectivamente, escritórios e armazém, oficinas, armazém, oficina e escritórios, armazém e laboratório de betões, sem que tivesse sido emitida a respectiva autorização administrativa de ocupação. Em 17 de Outubro de 1982 o DL 433/82, de 27 de Outubro, tinha a redacção resultante do DL 244/95, de 14 de Setembro, e da Lei 109/2001, de 24 de Dezembro. É, por isso, esta a lei aplicável. O artigo 27º do citado DL 433/82, sob a epígrafe “Prescrição do procedimento”, dispõe: O procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido os seguintes prazos: a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a (euro) 49.879,79; b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a (euro) 2.493,99 e inferior a (euro) 49.879,79; c) Um ano, nos restantes casos. A contra-ordenação por que a Recorrente foi condenada é punível com uma coima de € 498,80 a € 249.398,95, nos termos do artigo 98°, n.° 1, al. d) e 4 do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção do DL 177/01, de 04 de Junho. Consequentemente, o prazo prescricional é de 5 anos. Era suposto que a contra-ordenação tivesse prescrito a 17 de Outubro de 2007. Todavia, a prescrição interrompe-se quando ocorra algum dos factos previstos no art.º 28º do citado DL 433/82; e suspende-se nos casos previstos no art.º 27º-A desse diploma legal. À fixação do regime substantivo das contra ordenações aplica-se, subsidiariamente, o Código Penal – art.º 32º do DL 433/82. O STJ, por acórdão de 8/3/01, publicado in DR de 30/3/01, uniformizou jurisprudência divergente no que toca à aplicação do regime penal da interrupção da prescrição às contra ordenações desta forma: “A regra do n.º 3 do art.º 121º do Código Penal, que estatui a verificação do procedimento criminal quando, descontado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade, é aplicável, subsidiariamente, nos termos do art.º 32º do regime geral das contra ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro), ao regime prescricional do procedimento contra-ordenacional”. Por outro lado, e conquanto o art.º 27-A do citado DL 433/82 não elenque como causa de suspensão da prescrição a notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, o certo é que o STJ, por acórdão de uniformização de jurisprudência datado de 1/3/01, DR, I Série-A, de 15/3/01, entendeu que tal notificação suspende a prescrição do procedimento criminal. Reza o n.º 2 do citado art.º 27º-A que, neste caso, “a suspensão não pode ultrapassar seis meses”. Ora, o prazo prescricional, por força da notificação da decisão administrativa e do despacho que admitiu a impugnação judicial, devidamente notificados à Recorrente, interrompeu-se – n.º 2 do art.º 28º do DL 433/82. Por isso, “A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo da suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade” – n.º 3 do mesmo art.º 28º. Como o prazo prescricional é de cinco anos, mas o procedimento contra-ordenacional esteve interrompido, a prescrição só ocorre quando desde a prática da contra-ordenação tiverem decorrido sete anos e meio. A este prazo há que somar o prazo da suspensão que é, no máximo, de seis meses. Consequentemente, o prazo prescricional, no caso sub judice, é de 8 anos. Porque os factos ocorreram a 17 de Outubro de 2002, com facilidade se conclui que ainda não está prescrito o procedimento contra-ordenacional, o que só ocorrerá em 17 de Outubro de 2010. Defende, finalmente, a Recorrente, que a pena deve ser especialmente atenuada atendendo ao atraso da Câmara na emissão da licença de construção e ainda porque teve de abandonar as suas oficinas de carpintaria em ……….., em Campanha, por causa da realização do Euro 2004 e em colaboração com as entidades públicas e privadas nele envolvidas. Para não ficar com os equipamentos, máquinas, utensílios e matérias-primas “nas mãos”, com os trabalhadores parados e sem local onde pudessem exercer a sua actividade profissional, viu-se na necessidade de ocupar os edifícios em causa. A pena, diz o art.º 72º do C. Penal, será especialmente atenuada quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da infracção, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Se é de louvar o comportamento da Recorrente quanto ao abandono das oficinas e, por isso, se pode considerar de nobre a atitude, já é de censurar – e severamente – que, na sequência desse acto, ocupe edifícios sem licença de ocupação, pondo potencialmente em risco a segurança daqueles que aí se instalaram, sendo certo que não estamos em face de nenhuma situação de necessidade justificante ou até atenuante. O que vale por dizer que não só não há circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, antes as mesmas a agravam. Foi “bonita” a colaboração. É altamente censurável o comportamento posterior, consistente na ocupação. Não há, pois, que atenuar especialmente a coima aplicada. Coima essa que é justa e adequada atendendo a que a Recorrente agiu com dolo directo - através dos seus representantes legais, tinha conhecimento que não podia construir e ocupar as referidas instalações enquanto não fosse emitido o respectivo alvará para construção e a necessária autorização de utilização para ocupação correspondente, e, não obstante não se coibiu de as ocupar -, o que permite condenação em coima próxima do limite máximo, que a infracção é muito grave porquanto ocupou quatro (4!) edifícios com as áreas aproximadas de 1760 m2, 3000 m2, 829 m2 e 143 m2, e neles instalou escritórios e armazém, oficinas, armazém, oficina e escritórios, armazém e laboratório de betões, sem que tivesse sido emitida a respectiva autorização administrativa de ocupação. Acresce que a Recorrente é, como é notório, uma empresa de dimensão nacional que tem obrigação acrescida de respeitar as Leis e Regulamentos na área da construção. Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação. DECISÃO: Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma douta sentença recorrida. Fixa-se em 8 Ucs a tributação. Porto, 05 de Novembro de 2008 Francisco Marcolino de Jesus Élia Costa de Mendonça São Pedro _________ [1] Constituição da República Portuguesa, anotada, 4ª edição revista, vol. I, pg. 497 [2] Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, pg. 36 e segs. [3] Pg. 40 [4] Pg. 44 [5] Curso de Processo Penal, Reimpressão da Universidade católica, 1981, pg. 51 e segs. [6] Sobre os diversos conceitos de facto, embora no âmbito do instituto da alteração substancial dos factos, cfr. os Conselheiros José Sotto de Moura e Robalo Cordeiro in Jornadas de Direito Processual Penal, edição do CEJ, 1997, a pgs. 138 e segs., e 301 e segs, respectivamente |