Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ALBERTO RUÇO | ||
Descritores: | SUB-ROGAÇÃO CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE | ||
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Nº do Documento: | RP201312186534/12.7TBVNG-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/18/2013 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Legislação Nacional: | ARTº 405º, 409º, 589º, 590º, 591º, 592º, 593º, 594º DO CÓDIGO CIVIL DL 133/2009, DE 02/06 | ||
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Sumário: | I - O princípio da liberdade contratual, estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, permite aos cidadãos, dentro dos limites da lei, auto-compor os seus diversos interesses. II - É juridicamente viável, através da figura jurídica da sub-rogação – artigos 589.º a 594.º do Código Civil – inserir num contrato de crédito ao consumo – Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho –, subscrito por todos os interessados, uma cláusula de reserva de propriedade – artigo 409.º do Código Civil – a favor da entidade que mutuou ao comprador e pagou ao vendedor o preço devido no âmbito de um contrato de compra e venda de um automóvel. III - Se se considerar impeditiva da sub-rogação a circunstância da «reserva de propriedade» não caber no conceito de «garantias e acessórios» constante do artigo 582.º, n.º 1, do Código Civil, o que não se concede, pois a sub-rogação transfere a posição jurídica global, sempre se pode considerar que a propriedade do veículo foi transferida tout court por força da vontade contratual exarada no contrato e comum ao vendedor, comprador e financiador. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Tribunal da Relação do Porto – 5.ª Secção. Recurso de Apelação. Processo n.º 6534/12.7TBVNG-A do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia – 6.º Juízo Cível. * Juiz relator………….Alberto Augusto Vicente Ruço.1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto. 2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim. * Sumário:I. O princípio da liberdade contratual, estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, permite aos cidadãos, dentro dos limites da lei, auto-compor os seus diversos interesses. II. É juridicamente viável, através da figura jurídica da sub-rogação – artigos 589.º a 594.º do Código Civil – inserir num contrato de crédito ao consumo – Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho –, subscrito por todos os interessados, uma cláusula de reserva de propriedade – artigo 409.º do Código Civil – a favor da entidade que mutuou ao comprador e pagou ao vendedor o preço devido no âmbito de um contrato de compra e venda de um automóvel. III. Se se considerar impeditiva da sub-rogação a circunstância da «reserva de propriedade» não caber no conceito de «garantias e acessórios» constante do artigo 582.º, n.º 1, do Código Civil, o que não se concede, pois a sub-rogação transfere a posição jurídica global, sempre se pode considerar que a propriedade do veículo foi transferida tout court por força da vontade contratual exarada no contrato e comum ao vendedor, comprador e financiador. * Recorrente…………………….B…, S. A., com sede em Rua …, …/… - .º, ….-… Porto.Recorrido……………………..C… e D…, casados um com o outro, residentes em Rua …, N.º …, ….-… Vila Nova de Gaia * I. Relatório.a) O presente recurso prende-se com a decisão que julgou nula uma cláusula de reserva de propriedade relativa a um veículo automóvel apreendido nos autos aos insolventes e que se encontra registada a favor do recorrente B…, S. A., por ter sido a entidade que forneceu aos insolventes o dinheiro que lhes permitiu adquirir o veículo, tendo-se considerado, em resumo, que o Recorrente, como entidade financiadora da compra do veículo pelos insolventes, não teve intervenção no respectivo contrato, nem foi sub-rogada nos direitos do vendedor do automóvel, pelo que não era viável, por impossibilidade da prestação, nos termos do artigo 280.º do Código Civil, convencionar a reserva de propriedade a favor de quem não era proprietário, nem interveio no contrato de compra e venda. b) O interessado recorre sustentando a legalidade da atribuição da reserva de propriedade a seu favor. As conclusões do recurso são estas: «I. O ora aqui Recorrente detém reserva de propriedade sobre o veículo de matrícula ..-ET-.., cujo preço liquidou a favor do respectivo fornecedor em nome e a pedido dos ora aqui Insolventes que consigo celebraram o contrato de crédito junto aos autos e que fundamenta a reclamação de créditos apresentada. II. Do referido contrato de crédito consta expressamente prevista a cláusula de reserva de propriedade constituída, tendo o mesmo sido celebrado de forma livre e consciente pelos Insolventes e intermediado pelo vendedor do veículo, que igualmente subscreveu o contrato de crédito, assim manifestando o seu acordo com o mesmo e respectivas cláusulas. III. O contrato de compra e venda do veículo e o contrato de mútuo que permitiu o pagamento do seu preço estão intrinsecamente ligados entre si, funcionalmente conectados, pelo que pode o mutuante reservar para si a propriedade do bem que liquidou, como o poderia fazer o vendedor a prestações, sob pena de violação dos princípios da igualdade e da liberdade contratual. IV. “Havendo conexão entre a compra e venda de um veículo automóvel e o mútuo a prestações, a reserva de propriedade pode ser convencionada a favor do mutuante” - Acórdão da Relação de Lisboa de 18.03.2004, disponível em www.dgsi.pt. V. O financiador mutuante constitui-se na prática como verdadeiro vendedor do bem adquirido pois tal aquisição apenas foi possível por força do contrato de crédito celebrado através do qual o aqui Recorrente assumiu a obrigação do pagamento do preço a favor do fornecedor do veículo, conforme pedido pelos ora aqui Insolventes e como resulta do acordo tripartido que para tal se estabeleceu. VI. “Afigura-se admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade «a verificação de qualquer outro evento”, que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (cfr. parte final do artigo 409º, 1 do Código Civil” - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.02.2009, votado por unanimidade, disponível em www.dgsi.pt. VII. É “(…) perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo, cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante (…)”- Acórdão da Relação de Lisboa de 12.02.2009 já supra referido. VIII. O pagamento do preço do bem adquirido foi assegurado pela aqui Recorrente pelo que declarar a nulidade da reserva e o cancelamento do registo da mesma seria ver reconhecido a favor dos Insolventes (ou, agora, da respectiva massa insolvente) um verdadeiro enriquecimento sem causa, já que se veriam na posse e propriedade plena de um bem que não pagaram. Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de vossas excelências, mui venerandos desembargadores, roga-se seja revogada a douta sentença de fls. ( ), na parte em que a mesma decretou a nulidade da cláusula de reserva de propriedade e o respectivo cancelamento registral, assim se fazendo boa e sã justiça». c) Não foram apresentadas contra-alegações. II. Objecto do recurso. A questão a decidir consiste em saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade inserida num contrato de mútuo, a favor da entidade financiadora, cuja quantia se destinou ao pagamento do preço de aquisição, devido no âmbito de um contrato de compra e venda de um automóvel. III. Fundamentação. a) Matéria de facto. 1. B…, S. A., reclamou nos autos um crédito sobre os insolventes resultante do contrato de mútuo n.º ……, celebrado em 12 de Dezembro de 2010, através do qual os insolventes obtiveram o dinheiro necessário para pagar a aquisição do automóvel com a matrícula ..-ET-... 2. A cláusula 12.ª deste contrato tem o seguinte teor: «A venda da viatura identificada no ponto 1.1. poderá ser feita com reserva de propriedade a favor da 1C e manter-se-á até integral pagamento de toda e qualquer obrigação ou responsabilidade do CLT emergente do presente Contrato». 3. Este contrato está assinado também por «E…», na qualidade de fornecedor do bem e «mediador do crédito» (ver fls. 27 a 30). 4. Foi inscrita no registo automóvel, a favor de B…, S. A., uma cláusula de reserva de propriedade relativamente ao veículo matrícula ..-ET-... b) Apreciação da questão objecto do recurso. 1. Vejamos como se constitui, em regra, a situação negocial real, no âmbito da qual surge habitualmente a mencionada cláusula. O comprador A pretende adquirir um veículo automóvel, mas não possui a quantia necessária para pagar o seu preço ou, se a tem, não pretende utilizá-la para esse fim. Por sua vez, o vendedor B tem interesse em vender o veículo, mas não tem interesse em vendê-lo a A, em prestações. Por fim, a entidade financeira C tem interesse em conceder crédito a A, a troco de remuneração (juros), mas, para o efeito, também lhe interessa precaver-se contra o eventual incumprimento do contrato de mútuo por parte do mutuário A, o que conseguirá se lhe forem prestadas garantias pelo mutuário. Conjugados estes interesses e reunidas as vontades dos três sujeitos interessados, no sentido de os satisfazerem mutuamente, estes procedem da seguinte forma: A vende o veículo a B e recebe de C o pagamento integral do preço. Este pagamento do preço feito a A resulta do facto de B, como mutuário, ter celebrado com C um contrato de mútuo, no qual se exarou que B autorizava C a pagar o preço directamente ao vendedor A e que, a favor de C, era constituída reserva de propriedade sobre o veículo, funcionando esta reserva como uma garantia a favor de C, contra o eventual incumprimento do contrato de mútuo por parte de B. Verifica-se que existe aqui um contrato de compra e venda entre A e B e um contrato de mútuo entre B e C, mas ambos os contratos se encontram unidos pela mesma comunidade de fins que ficam assinalados. Ou seja, o contrato de mútuo só existe porque existe o contrato de compra e venda e este último só foi celebrado porque através do contrato de mútuo o comprador assegurou meios financeiros para pagar o preço. Há, pois, entre ambos os contratos uma interdependência genética. A própria lei prevê a existência destes contratos coligados no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, diploma que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores. Na al. o), do n.º 1, do artigo 4.º deste diploma, considera-se «contrato de crédito coligado», o contrato de compra e venda, em que «i) O crédito concedido servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos; e ii) Ambos os contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor for financiado pelo fornecedor ou pelo prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorrer ao fornecedor ou ao prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou o serviço específico estiverem expressamente previstos no contrato de crédito». 2. Recapitulando, a questão a decidir consiste em saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade a favor de entidade financiadora, inserida num contrato de mútuo cuja quantia se destina ao pagamento do preço de aquisição de um automóvel ou outro bem de consumo. Acerca desta questão a jurisprudência dos nossos tribunais superiores encontra-se dividida entre decisões que admitem a validade da cláusula e decisões que se pronunciam pela sua inviabilidade legal [1] A favor da inviabilidade legal da cláusula argumenta-se, em geral, que no n.º 1 do artigo 409.º do Código Civil apenas se prevê a possibilidade do alienante reservar para sai a propriedade, não um terceiro [2]; que a reserva de propriedade não pode existir na esfera jurídica da entidade financiadora, do mutuante, pois se o preço é pago ao alienante a propriedade transfere-se para o comprador. Por outro lado, como o mutuante não é titular do direito de propriedade sobre o veículo, não pode ser, logicamente, titular da cláusula de reserva de propriedade, pelo que a estipulação de tal cláusula enferma de nulidade por impossibilidade legal da prestação, nos termos do artigo 280.º do Código Civil. Os defensores da tese oposta, sustentam que a titularidade da cláusula de reserva de propriedade na pessoa do mutuante é legalmente possível a partir do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º do Código Civil. Podendo ainda acrescentar-se, que a colocação da reserva de propriedade na esfera jurídica da entidade financiadora pode dar-se por via de sub-rogação contratual, nos termos do n.º 1 do artigo 591.º do Código Civil (Sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor), onde se dispõe que «O devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor». Os defensores da tese negativa objectam que a sub-rogação só ocorre, como vem referido no n.º 2 do mesmo artigo, quando «…haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor», declaração que, em regra, não figura nos contratos. Ponderadas as razões de um lado e de outro afigura-se que deve prevalecer a tese que admite a viabilidade da cláusula de reserva de propriedade na titularidade do financiador, pelas seguintes razões: a) Em primeiro lugar, a lei, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil, respeita e tutela a liberdade contratual dos sujeitos ao proclamar que «Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver». Como escreveu M. J. Almeida Costa, a propósito da liberdade contratual e referindo-se aos sujeitos, «É-lhes possível a escolha de um dos contratos directamente previstos pelo legislador, incluindo ou suprimindo as cláusulas que queiram, ou, consoante de declara, a celebração de contratos diferentes desses, ou, ainda, a reunião, no mesmo contrato, de “regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei» [3]. b) Em segundo lugar, não deixa de impressionar o facto da arquitectura contratual exposta no anterior ponto «1.», da presente «al. b)», servir harmonicamente, em milhares de casos, os interesses de todos os intervenientes no contrato – vendedor, comprador e financiador. E, por outro lado, não se vislumbrar qualquer ofensa a preceitos imperativos da ordem jurídica [4] Isto mostra que esta arquitectura jurídica é adequada a satisfazer os diversos interesses dos intervenientes, cumprindo, por conseguinte, ao direito respeitar a composição dos interesses das partes e traçar o respectivo enquadramento dogmático por forma a tutelar adequadamente tais interesses. c) A figura da sub-rogação prevista nos artigos 589.º a 594.º do Código Civil enquadra de forma adequada os interesses das partes contratantes. Com efeito, a sub-rogação consiste, como resulta do artigo 589.º do Código Civil, na transmissão de uma posição contratual activa de um primeiro sujeito para um segundo sujeito, originada pelo facto do primeiro ter recebido do segundo a prestação contratual devida ao primeiro por um terceiro. Nas palavras de Antunes Varela, «A sub-rogação pode assim definir-se, segundo um critério puramente descritivo, como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento» [5]. E, continua este autor, «A sub-rogação tem a sua utilidade prática, que lhe garante um lugar ao sol entre as modificações subjectivas da relação obrigacional. O terceiro que paga é de algum modo favorecido, na medida em que adquire com o cumprimento da obrigação os direitos do credor, e realizando as mais das vezes um interesse próprio; o credor também é beneficiado, mediante a satisfação do crédito por terceiro, quando o devedor possivelmente não estaria em condições de o fazer; e beneficiado pode ainda ser o devedor, por se libertar da obrigação de cumprir (e de recair em mora, no caso de o não fazer) num momento que pode não ser oportuno para ele» [6]. A sub-rogação é, por conseguinte, uma forma de transmissão singular de créditos [7]. Por conseguinte, o instituto da sub-rogação permite a transferência, de um sujeito para o outro, de uma posição jurídica por inteiro, justificada, como se disse, pelo facto do novo titular ter satisfeito, no lugar de outro, a prestação devida como correspectivo, no âmbito do contrato [8]. d) No direito nacional, a transferência de direitos reais realiza-se através da figura do contrato, como se vê face ao disposto no n.º 1, do artigo 408.º do Código Civil, onde se dispõe que «A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei». No n.º 1 do artigo 409.º do mesmo Código determina-se que «Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento». Face a estas normas, verifica-se que a transferência da propriedade sobre um bem ou a sua venda com reserva de propriedade a favor do vendedor realizam-se através da vontade dos sujeitos expressa num contrato. Por conseguinte, não se vê impedimento a que, no âmbito da geminação de um contrato de compra e venda de um veículo com um contrato de mútuo, destinado a proporcionar ao comprador do automóvel meios financeiros para o comprar, a posição activa do vendedor do veículo transite, por sub-rogação, para o mutuante do preço. Porém, como a reserva da propriedade só existe associada à propriedade, como uma sua possível manifestação, então, a sub-rogação transmite, do proprietário vendedor para o mutuante, não apenas a cláusula de reserva de propriedade, mas também a propriedade do veículo vendido. Não procede a objecção à construção baseada na sub-rogação, o argumento no sentido de que não poder ocorrer a reserva de propriedade a favor do mutuante, porque, com o pagamento do preço, o direito de propriedade extinguiu-se na esfera jurídica do vendedor e arrastou a extinção da possibilidade de constituir uma tal cláusula. Ora, cumpre observar que ambos os contratos estão unidos por vínculos genéticos e finalísticos, não existindo um sem o outro, pelo que, ao mesmo tempo que se extingue a propriedade na esfera jurídica do vendedor, por transmissão entre sujeitos, a mesma surge na esfera jurídica do mutuante. Por conseguinte, se se considerar impeditiva da sub-rogação a circunstância da «reserva de propriedade» não caber no conceito de «garantias e acessórios» constante do artigo 582.º, n.º 1, do Código Civil, o que não se concede, pois a sub-rogação transfere a posição jurídica global, sempre se pode considerar que a propriedade do veículo foi transferida tout court por força da vontade contratual exarada no contrato e comum ao vendedor, comprador e financiador [9]. e) Poderá objectar-se, e com sucesso, com base no disposto no n.º 2, do artigo 591.º do Código Civil, que «A sub-rogação (…) só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor». A este argumento responde-se que ao declarar-se expressamente, no contrato de compra e venda ou no contrato de mútuo, desde que assinado pelos três intervenientes, que a reserva de propriedade sobre o veículo fica a pertencer ao mutuante que pagou o preço ao vendedor do veículo, esta declaração, que é expressa tem de ser entendida na sua implicação directa, ou seja, valendo como um consenso no sentido de que a reserva de propriedade que originariamente pertencia ao vendedor é transmitida ao mutuante e, logicamente, também se transmite a propriedade reservada, por não se afigurar possível dissociar a cláusula de reserva de propriedade da própria propriedade. Apesar de não se utilizar no texto do contrato o termo «sub-rogação» ou se dizer «que o mutuante fica subrogado nos direitos do vendedor», com a declaração expressa no contrato, de que a cláusula de reserva de propriedade é constituída a favor do mutuante, as partes estão a enunciar, de forma literal e directamente, os efeitos inerentes à sub-rogação, isto é, estão a declarar que os direitos inerentes à propriedade do veículo passam doravante para a esfera jurídica do mutuante. Com efeito, o tribunal não pode exigir que as partes se exprimam em termos técnicos rigorosos, o que seria excessivo, pelo que, como diz Maria Isabel M. Menéres Campos, «…há que fazer uma exegese do sentido das declarações da partes no negócio em causa, quando no contrato não se refira expressamente de que forma a reserva de propriedade é transmitida para o financiador. Tendo-se convencionado num contrato de compra e venda financiada por terceira entidade que, como garantia do cumprimento do empréstimo, a reserva de propriedade incidente sobre a coisa a adquirir com recurso ao crédito se transmite para o financiador, haverá que entender que as partes pretenderam atribuir-lhe os direitos que ao vendedor assistiriam se se tratasse de uma pura venda a prestações» [10]. Ora, enunciar os efeitos inerentes à sub-rogação ou aludir tão-só à sub-rogação, afigura-se serem expressões equivalentes. No caso dos autos, a cláusula de reserva de propriedade encontrando-se inscrita no registo predial a favor da recorrente. Nos termos do artigo 7.º (Presunções derivadas do registo), do Código de Registo Predial, «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define». Face a esta presunção, a Recorrente não necessita de provar os factos que dão origem ao respectivo direito – artigo 350.º do Código Civil –, pelo que fica arredada qualquer dúvida que pudesse surgir acerca da correcta estipulação da cláusula no contrato. Entende-se, por conseguinte, que o texto contratual cumpre minimamente exigência feita pelo mencionado n.º 2, do artigo 591.º, do Código Civil. Cumpre, face ao exposto, julgar o recurso procedente. IV. Decisão. Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida e declara-se válida a cláusula de reserva de propriedade em questão a favor da recorrente. Custas pela massa. * Porto, de 18 Dezembro de 2013.Alberto Ruço Correia Pinto Ana Paula Amorim (Voto Vencido) _____________ [1] A jurisprudência sobre esta questão é muito numerosa, pelo que se indicam apenas alguns acórdãos recentes onde pode ser consultada uma extensa indicação de jurisprudência e doutrina sobre a matéria: acórdão do TRL de 12-08-2013 (PEDRO MATINS), no proc. 3225/12.2YXLSB e acórdão do TRL de 15-5-2012 (L. ESPÍRITO SANTO), no proc. 2261/12.3YXLSB (admitem a validade da cláusula se tiver ocorrido sub-rogação), ambos em www.dgsi.pt. [2] Ver, p. ex., acórdão do STJ de 2-10-2007 com referência ao n.º 07A2680 (FONSECA RAMOS) e, mais recentemente, o acórdão do S.T.J. de 31-3-2011, no proc. n.º 4849/05.0TVLSB (ÁLVARO RODRIGUES), ambos em www.dgsi.pt. [3] Direito das Obrigações, 4.ª edição. Coimbra Editora, 1984, pág. 173. [4] Neste sentido MARIA ISABEL HELBLING MENÉRES CAMPOS, quando diz que «A admissibilidade da reserva de propriedade a favor do financiador não choca (…) com nenhuma disposição de carácter imperativo de tal modo que se tenha de afirmar, categoricamente, que tal estipulação é ferida de nulidade por ser contrária à lei, como o fazem os que defendem a invalidade da figura. A regra é a autonomia contratual e não o contrário» - A Reserva de Propriedade: do vendedor ao financiador. Coimbra Editora, 2013, pág. 358. [5] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição. Coimbra: Almedina Editora, 1999, pág. 335/336. [6] Ob. cit., pág. 338/339. [7] Neste sentido, ALMEIDA COSTA. Direito das Obrigações, 4.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pág. 560. [8] No sentido da viabilidade da cláusula de reserva de propriedade poder ser atribuída ao financiador, ver MARIA ISABEL H. MENÉRES CAMPOS, quando diz: «12. Pugnamos pela validade dessa estipulação, baseando-nos sobretudo em três argumentos: por um lado, o argumento interpretativo e o princípio da equiparação que permitiriam estender a previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro; por outro lado, o princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado português, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato deste tipo; finalmente, a reserva de propriedade a favor do financiador corresponderá a um interesse das partes, digno de tutela legal, não contendendo, por seu turno com os interesses de ninguém de tal modo que se possa afirmar que a cláusula é nula» - Ob. cit., pág. 382. [9] Neste sentido FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO (autor que se manifesta contra o argumento da sub-rogação) quando argumenta: «…a inexistência dessa declaração expressa importa apenas que não se dê a sub-rogação do financiador nos direitos do vencedor, e por conseguinte que não possa transmitir-se a reserva de propriedade por essa via; mas já não impede que possa transmitir-se a propriedade do veículo (ficando depois a ulterior transferência para o mutuário condicionada ao integral pagamento do montante em dívida) pela via normal de um negócio apto a operar tal transmissão. É certo que esse negócio é muitas vezes designado de forma imprópria: os sujeitos referem-se à constituição do “encargo de reserva” pelo mutuante, ou à transferência da “reserva” de propriedade pelo próprio vendedor, quando o que sucede exactamente, como temos vindo a dizer, é a atribuição à instituição financeira de um direito de propriedade sob condição de integral cumprimento do mútuo (…) Diremos pois que a aquisição da “reserva de propriedade” pelo financiador não se funda aqui nesse título legal que é a sub-rogação prevista no art. 291.º, mas no título negocial que será o contrato mediante o qual o financiador adquiriu a propriedade» - Regista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143, pág. 52. [10] Ob. cit., pág. 372-373. ________________ VOTO VENCIDO Voto vencida a decisão e confirmava a sentença, por considerar nula a cláusula aposta no contrato de mútuo por via da qual o mutuante reserve para si a propriedade do veículo cuja aquisição foi financiada através daquele contrato. Com o devido respeito pela posição assumida no presente acórdão, temos defendido, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que em face do disposto nos artigos 408.º, 409.º, 784.º e 879.º do Código Civil, a cláusula de reserva de propriedade está concebida para garantir o vendedor nas situações de compra e venda com recebimento diferido do preço, funcionando como uma condição suspensiva da transferência do direito de propriedade, que apenas se completa com o pagamento integral do mesmo. Tem-se entendido que a parte final do n.º 1 do artigo 409.º, quando alude à possibilidade do alienante reservar para si a propriedade até à verificação de “qualquer outro evento”, continua a reportar-se a um acontecimento que tenha uma ligação com o contrato de alienação, mas que se contenha dentro do objectivo e das finalidades desse contrato, ou seja, dentro da relação protegida pela cláusula de reserva de propriedade e não fora dela. Ora sendo assim, e visando a cláusula a protecção dos efeitos da resolução do contrato de alienação e não decorrendo dos efeitos legalmente previstos da resolução de um contrato de mútuo a restituição do veículo, a aposição desta cláusula num contrato desta natureza excede os fins para que foi concebida. Neste contexto, concordamos com a corrente jurisprudencial que considera nula, por aplicação do artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil, tal convenção, por não existir qualquer direito substantivo que atribua ao seu beneficiário a propriedade sobre o bem e, consequentemente, o direito de a reservar para si, por via do acto de alienação do bem. Acresce que no caso concreto não se provou que entre as partes ficou convencionado a sub-rogação dos direitos do vendedor a favor do financiador, nos termos do artigo 589.º e seguintes do Código Civil. A sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor encontra-se prevista no artigo 591.º do Código Civil, sendo um dos requisitos a declaração expressa no documento do empréstimo que a coisa mutuada se destina ao cumprimento da obrigação e que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (n.º 2 do artigo 591.º). A cláusula de reserva de propriedade registada a favor da requerente não obedece, pois, aos requisitos legais e, nesse sentido, está ferida de nulidade nos termos do artigo 280.º do Código Civil, não podendo ser invocada em juízo como garantia acessória do contrato de mútuo, com base na qual a mutuante, resolvendo o contrato, beneficiaria do direito de pedir a restituição do veículo. Daqui resulta que o pedido de restituição do veículo não se consubstancia no contrato de mútuo invocado, nem na resolução do mesmo, por o direito de propriedade sobre o veículo independentemente da sorte do contrato, sempre pertencer ao mutuário e nunca ao mutuante. Acresce que nada impede que o mutuante faça uso de outras garantias, como seja a hipoteca e a fiança, mas que no caso não usou. Neste sentido pronunciaram-se, entre outros, os Ac. STJ 10.07.2008, Proc. 08B1480, Ac. STJ 07.07.2010, Proc. 117/06.8TBOFR.C1.S1, Ac. STJ 31.03.2011, Proc. 4849/05.0TVLSB.L1.S1, Ac. STJ 12.07.2011, Proc. 403/07.0TVLSB.L1.S1, Ac. Tribunal da Relação do Porto 18.04.2013, Proc.173/11.7TBMDB-A.P1, Ac Tribunal da Relação do Porto de 24 de Outubro de 2011, Proc. 1931/11.8TBPRD.P1 (este último subscrito por nós na qualidade de 1ª Adjunta, votado por unanimidade) todos publicados no endereço electrónico: www.dgsi.pt. Cumpre-nos, ainda, tecer umas breves considerações. A posição assumida no acórdão não apresenta novos nem diferentes argumentos, que levem a reapreciar os argumentos já defendidos na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. A liberdade contratual apesar de constituir um dos pilares do nosso ordenamento jurídico não é absoluta, como decorre desde logo da previsão do art. 280º CC. Na doutrina, no recente estudo de FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO defende-se que a apreciação da validade da cláusula deve ser analisada à luz da figura da “alienação fiduciária em garantia” ou da “propriedade fiduciária” (para garantia)[1]. Questiona-se, contudo, a admissibilidade de tal cláusula, face ao princípio da tipicidade dos direitos reais, já que o nosso regime não prevê tais formas de garantia[2]. De todo o modo, o Autor citado, admite em certos quadros, a figura e a relevância da garantia assim concebida, excepto quando: “se demonstre que o bem cuja propriedade foi deferida ao credor é de valor substancialmente superior ao crédito, e simultaneamente não se achem previstos mecanismos que permitam a satisfação, ao devedor, da correspondente defesa de valores, em caso de definitiva apropriação da coisa pelo credor”[3]. No caso concreto, mesmo admitindo tal interpretação, verifica-se que a apelante não configura tal suposto direito, nem os factos provados permitem tal qualificação, na medida que a sua apreciação estaria dependente da análise da vontade das partes e da ponderação do valor do bem, ou seja, “uma avaliação externa para a determinação da diferença”[4]. Perante o exposto, entendo que a sentença recorrida não merece censura, quando julgou e declarou nula a cláusula que consagra a reserva de propriedade a favor do financiador no contrato de mútuo celebrado com o comprador, pelo que, confirmava os seus termos. Ana Paula Amorim _________________ [1] FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO «Ainda a Cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador» in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 143, Nº 3982, Setembro-Outubro 2013, pág. 53 [2] Cfr. FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO “Ainda a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ob. cit., Nota 34, pág. 48. [3] Cfr. FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO “Ainda a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ob. cit., Nota 34, pág. 49. [4] Cfr. FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO “ Ainda a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ob. cit., Nota 34, pág. 49. |