Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0250194
Nº Convencional: JTRP00030449
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
NATUREZA JURÍDICA
OPERAÇÃO PORTUÁRIA
DANO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP200203040250194
Data do Acordão: 03/04/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 483/99-1S
Data Dec. Recorrida: 05/11/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR COM - TRANSP MAR.
Legislação Nacional: DL 37748 DE 1950/02/01.
DL 298/93 DE 1993/08/28 ART2 A ART22 N5.
Sumário: I - O contrato de transporte de mercadorias por mar implica uma obrigação de resultado, porque o transportador ou armador obriga-se a deslocar as mercadorias de um porto para outro e a entregá-las, incólumes, ao destinatário.
II - Esse contrato abrange as obrigações de carga e descarga, que correm por conta do transportador.
III - Quando as mercadorias se encontrem depositadas em espaço controlado pela autoridade portuária, na realização de operação portuária a seu cargo, incumbe-lhe a responsabilidade pelos danos causados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

“O T... - Companhia de Seguros, S.A.”, intentou, em 4.5.1999, pelos Juízos Cíveis do Porto, actualmente 2ª Vara Cível - acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra:
“APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões, S.A.”, e;
“C... - -Companhia Marítima de Contentores, Ldª”.
Pedindo a condenação destas a pagarem-lhe a quantia de 1.084.827$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados sobre 923.259$00, desde 4/05/99 até efectivo e integral reembolso.
Como fundamento alegou, em síntese, que as rés são solidariamente responsáveis pelo furto da mercadoria da área portuária de Leixões, e enquanto esteve ali depositada para o cumprimento dos trâmites das formalidades necessárias ao seu levantamento, porquanto à APDL cabia em especial a vigilância da área portuária, seus armazéns e recintos e, consequentemente, das mercadorias neles depositadas.
Por sua vez, segundo alega, à ré C... competia igualmente exercer adequada vigilância sobre as mercadorias confiadas à sua guarda, uma vez que era sua obrigação entregá--las à destinatária, na quantidade e estado por elas recebidas.
Invoca, ainda, que a mercadoria em falta, no valor de 861.027$00, se encontrava coberta por seguro da autora, titulado pela apólice ... e seu certificado ..., razão pela qual diz ter pago, no cumprimento das suas obrigações contratuais, à transitária Carg..., seguradora da mercadoria por conta e ordem daquela sua destinatária, bem como a quantia de 62.232$00 despendida com a peritagem efectuada e tornada necessária por via de violação do contentor e consequente necessidade de averiguação das mercadorias em falta e respectivo valor.
Citadas, a ré “C... -Companhia Marítima de Contentores, Ldª”, veio contestar, pedindo a improcedência da acção e alegando, para o efeito, que não é o agente do navio da Portlink, mas a mera consignatária do contentor, como consta da própria cópia do conhecimento de embarque, não tendo efectuado a descarga “da mercadoria” e o seu depósito no recinto da APDL, tendo esse serviço sido efectuado pelo agente do navio.
Por sua vez, a ré APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões, S.A., pedindo igualmente a improcedência da acção, veio invocar não ter celebrado com a segurada da autora qualquer contrato, nem recebido qualquer taxa de armazenamento ou depósito e muito menos recepcionado qualquer mercadoria ou contentor, não sendo como tal responsável pelo pagamento de qualquer falta ou dano, sendo antes o operador portuário que assume a integral responsabilidade pela operação a seu cargo e pelas perdas e danos provocados às mercadorias que lhe estejam confiadas para a realização de qualquer operação de movimentação de cargas.
Na resposta à contestação, a Autora manteve o peticionado, aceitando que a “C...” era simples consignatária do contentor em causa nos autos.
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Proferido o despacho saneador e estabelecidos os Factos Assentes e elaborada a Base Instrutória delas reclamou, sem êxito, a 1ª Ré – APDL.
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Procedeu-se a julgamento, e a final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e condenou as RR. no pedido.
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Inconformadas as RR. recorreram.
A 2ª Ré – APDL - alegando, formulou as seguintes conclusões:
1. A matéria constante das alíneas B), C), D), E), F), G), H) e I) da Base Instrutória com MATÉRIA DE FACTO ASSENTE, por controvertida, deve ser eliminada e passada para a Base Instrutória como factos a provar;
2. Deve a matéria alegada pela Ré - Recorrente em 4, 5, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33 da sua contestação, ser devidamente quesitada por ter manifesto interesse para a correcta decisão do pleito segundo, pelo menos, uma das soluções plausíveis da questão de direito.
3. Devendo, assim, ser revogado o despacho que decidiu Reclamação de fls. 67 e ordenar-se a formulação de novos quesitos contendo a factualidade referida em 1 e 2 destas conclusões.
E,
4. Declarar-se nulos todos os actos processuais subsequentes, incluindo o julgamento e a sentença.
Sem conceder;
5. A sentença em apreço padece de oposição entre os fundamentos e a decisão.
Para além de que;
6. Não se pronunciou sobre a questão suscitada nos autos relativamente à responsabilidade da empresa de estiva e/ou Operador Portuário. O que gera a sua nulidade.
Acresce que;
7. Nenhum contrato de depósito foi celebrado com a Apelante, pelo que esta não tinha qualquer obrigação de guardar a mercadoria e da sua restituição.
Pois;
8. Jamais a Apelante teve a mercadoria à sua guarda.
9. A Apelante não efectuou qualquer Operação Portuária.
10. As diversas operações portuárias referidas nos autos foram efectuadas por uma empresa de estiva, devidamente licenciada para actuar como operador portuário.
11. Era a este operador a quem as mercadorias tinham que ser entregues pelo transportador marítimo e que tinha a obrigação de as guardar e restituir nos termos de um depositário.
12. Nenhum facto ficou provado no sentido de que à Apelante possa ser imputada qualquer culpa no desaparecimento das mercadorias em falta.
13. Não se descortina qual a norma jurídica violada pelo comportamento da Apelante.
14. Decidindo como decidiu, a douta sentença violou o disposto nos artigos 1185.°, 1187.°, 1191.° e 483.° do Código Civil; 490.° n°.1, 2 e 3; 511.° e 668, n.° 1, c) e d) do Código de Processo Civil e artigo 18.° do D.L. 352/86 de 21 de Outubro.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e por via disso:
A) - revogado o despacho que decidiu a reclamação de folhas 67, ordenando-se a formulação de novos quesitos nos termos referidos e anulando-se todo o processado subsequente;
ou, se assim não se entender;
B) - revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a acção improcedente e absolva a ora recorrente do pedido, tudo com as legais consequências.
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A 1ª Ré – “C...”- alegou e formulou as seguintes conclusões:
1. Apenas pode resultar dos autos que ora apelante era a simples consignatária do contentor e não o agente do armador, porquanto:
a) Resulta da alínea J) da matéria assente;
b) Tendo a autora na sua petição considerado a apelante como consignatária e agente do armador (art.2ºda petição), face à contestação da apelante, na sua resposta, expressamente aceita a sua qualidade de simples consignatária;
c) Do conhecimento de embarque ou Bill of Lading figura como agente de navegação da Portlink, a “... - Agência Marítima de Contentores, Ldª”.;
d) A profusa prova testemunhal produzida na audiência do julgamento (v. depoimentos das testemunhas António Maria..., Vítor Manuel... e José...) é unanime a considerar a simples qualidade de consignatária à apelante e a atribuir à ...- Agência Marítima de Contentores, Lda., a qualidade de agente do armador.
e) A própria sentença, a fls. 126 e 127, reconhece face à posição das partes, que a “C...” não era agente do armador, mas sim simples consignatária do contentor.
2. Impõe-se, desta forma a modificação da decisão sobre a matéria de facto por este Venerando Tribunal, tudo nos termos do art. 712.° do Cod. Proc. Civil, no que respeita à resposta dada ao quesito 1°, retirando-se da mesma a expressão final - “como agente do armador”.
3. O consignatário é o destinatário da mercadoria ou o seu representante, é aquele que detém a posse do documento que dá o direito a reclamar a entrega da mercadoria (ou o contentor), após a mesma ser descarregada do navio.
4. Por isso mesmo é que a resposta dada ao quesito 10.° é “não provado”.
5. A douta sentença confunde os conceitos de consignatário, de depositário e de agente de navegação, atribuindo à apelante indistintamente os três atributos.
6. Porém reconhece que a depositária do contentor é a ré APDL, que de resto é matéria de facto assente (alíneas B a I).
7. Há assim manifesta a oposição entre os fundamentos e a decisão (art.668.°, al. c) do Cod. Proc. Civil), pelo que a sentença recorrida padece do vício de nulidade.
8. A ora apelante foi condenada com fundamento no art. 18.° do DL n.°352/86, de 21/10, quando o mesmo não lhe era aplicável, na sua qualidade de simples consignatária, mas tão só e apenas à co-ré APDL.
9. Não sendo a apelante depositária do contentor, nem tendo a apelante intervindo no contrato de transporte como agente do armador, não pode ser condenada nos termos do art. 1, al. c) do DL n.° 76/89, de 3 de Março, com a redacção que lhe foi dada pelo DL. 148/91, nº1, de 12 de Abril, e não lhe pode ser aplicado o disposto no art. 441º do Cod. Comercial.
10. Não existe qualquer nexo de causalidade entre a falta de mercadorias dentro do contentor e a actuação da apelante, que permita a sua condenação.
11. Também por esta via a sentença recorrida padece do vício de nulidade, por ser manifesta a oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 668°, al. c) do Código de Processo Civil).
Nestes termos, bem como em todos os mais que não deixarão de ser supridos no provimento do presente recurso, deve ser proferido Acórdão, alterando a resposta dada ao quesito 1° e revogando a sentença recorrida, substituindo-se por outra que absolva a apelante do pedido, que se fará por obediência à lei e imperativo de Justiça.
A Autora, contra-alegou pugnando pela confirmação do julgado, muito embora admita dúvidas sobre se deve manter-se a condenação da ré “C...”.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que na 1ª Instância foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
1) - Entre 29/9 e 13/10/97, o navio CMBT Corvette descarregou no porto de Leixões um contentor com 243 caixas de cartão contendo confecção para homem importada da China pela firma “... Araújo, Ldª”, de Braga, e a que respeita a factura junta a fls. 10, da sua exportadora, a firma P... LTD – al. A), da especificação.
2) - A 1ª R. era, ao tempo, um instituto público concessionária da exploração comercial da área portuária do porto de Leixões, com os seus armazéns, recintos e espaços reservados para o depósito temporário das mercadorias a embarcar ou desembarcadas – al. B), da especificação.
3) - As quais ficam ali depositadas sob a guarda e fiscalização da APDL, a quem compete a vigilância permanente da área portuária, seus recintos e armazéns – al. C), da especificação.
4) - Pela utilização dos quais ela cobrava e a ré APDL continua a cobrar, dos seus utilizadores, as taxas estabelecidas – al. D), da especificação.
5) - Sendo que só com a sua prévia autorização e sob o seu controlo poderão ser dali retiradas as mercadorias, nomeadamente as sujeitas ao controlo aduaneiro, como acontecia com as referidas em A) – al. E), da especificação.
6) - Aquando da sua descarga e depósito no recinto que lhe foi destinado, o referido contentor encontrava-se com o selo de origem – al. F), da especificação.
7) - O contentor foi apenas desselado para a verificação alfandegária da mercadoria, depois do que foi novamente selado pela Polícia Marítima – al. G) da especificação.
8) - A 2ª Ré só autorizou o levantamento do contentor depois de novamente selado pela autoridade marítima – al. H), da especificação.
9) - À 1ª R. cabia em especial a vigilância da área portuária, seus armazéns e recintos, e, consequentemente, das mercadorias neles depositadas – al. I), da especificação.
10) - A 2ª Ré era simples consignatária do contentor aludido em A) - al. J), da especificação.
11) - As rés foram interpeladas por cartas da Autora de 17/2/98 para procederem ao reembolso da quantia de 923.259$00, o que não fizeram – al. L), da especificação.
12) - A essa carta respondeu a lª Ré, em 23/3/98, nos termos que constam de fls. 40 – al. M), da especificação.
13) - O transporte da mercadoria referida em A) de Rotterdam/Holanda para Leixões foi executado via marítima pela empresa Portlink, vindo o contentor consignado à 2ª Ré, como agente do armador - resposta ao quesito lº.
14) - A 2ª Ré é uma empresa que opera junto do porto de Leixões - resposta ao quesito 2º.
15) - Depois do referido em G), o selo foi quebrado - resposta ao quesito 4º.
16) - O contentor foi levantado e transportado para o seu destino sob o acompanhamento de um perito da “Pamarconsulte”, a quem a Autora solicitou que procedesse a uma vistoria da mercadoria, a fim de verificar possíveis faltas ou avarias - resposta ao quesito 5º .
17) - O que aconteceu depois de convidada a 2ª Ré a estar presente, o que ela recusou - resposta ao quesito 6º.
18) - Nessa vistoria verificou-se terem sido retirados de caixas de cartão transportadas no contentor, as diversas peças de confecção referidas no relatório de fls. 12 - resposta ao quesito 7º.
19) - A mercadoria em falta encontrava-se coberta por seguro da Autora titulada pela apólice... e seu certificado ... - resposta ao quesito 8º.
20) - A Autora pagou à transitária “Carg...” , seguradora da mercadoria, por conta e ordem da sua destinatária, o valor da mercadoria em falta, no montante de 861.027$00 - resposta ao quesito 9º.
21) - Com a referida e necessária peritagem a Autora despendeu a quantia de 62.232$00 - resposta ao quesito 11º.
Fundamentação:
A questão objecto dos recursos - delimitada pelo teor das conclusões dos recorrentes, que balizam o respectivo âmbito de conhecimento, – é parcialmente comum, do ponto em que ambas se insurgem quanto à sentença apelada pelo facto de as ter condenado a indemnizar a Autora.
De particular, no recurso da APDL, estão questões de índole processual.
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Comecemos por apreciar o recurso da apelante APDL.
Pretende, como emerge das conclusões que formulou, que o julgamento seja anulado, porquanto foi considerada assente a matéria constante das alíneas B) a I) da Base Instrutória que, na sua perspectiva não pode considerar-se aceite, devendo tal matéria passar ao questionário; assim com deve neste ser incluído o que alegou na sua contestação – artigos identificados na conclusão 2ª do recurso. Sustenta, ainda, ser a sentença nula, por omissão de pronúncia, acerca da responsabilidade da empresa de estiva/e, ou operador portuário.
Sob o ponto de vista do mérito, entende que, por não ter tido a mercadoria à sua guarda, não pode ser responsabilizada pelo furto.
Vejamos:
Antes e de entrarmos na apreciação das questões colocadas pela recorrente APDL, importa afirmar que as partes não dissentem que o pleito se relaciona com o incumprimento de um contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Na ordem jurídica portuguesa sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar, estão em vigor a “Convenção Internacional Para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga”, assinada em Bruxelas a 25.8.1924, publicada no Diário do Governo, Iª Série, de 2.6.1932, e rectificada em 11.7.1932, tornada direito interno pelo DL. 37.748, de 1.2.1950- “Convenção de Bruxelas”- e o DL. 352/86, de 31 de Outubro.
“O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode ser definido como aquele pelo qual um determinado transportador se obriga a transportar por mar uma certa quantidade de mercadorias que lhe foram entregues em determinado porto por um carregador e entregá-las num outro porto a um destinatário, mediante o pagamento de uma determinada remuneração, o frete. Por aqui se vê que são geralmente três as partes nesse contrato: o transportador, o carregador e o destinatário se designado no contrato” – “Contratos de Utilização do Navio”, de José M. P. Vasconcelos Esteves, 1988, vol. II, pág.84.
O contrato em causa implica uma obrigação de resultado, ou seja, o transportador ou armador, na designação do art. 1º da Convenção de Bruxelas de 1924, obriga-se a deslocar as mercadorias de um porto para outro – o do destino - entregando-as incólumes.
Mas volvendo às questões de natureza adjectiva colocadas pela APDL no seu recurso.
Nas alíneas A) a I) da Base Instrutória foram considerados factos que, no essencial, correspondem à alegação da ora apelante, na sua contestação, no que concerne à sua competência legal e regulamentar, orgânica, no contexto da sua actividade institucional atinente à sua jurisdição portuária.
Quanto aos factos alegados na contestação e que entende que deveriam ter sido quesitados, cumpre recordar que a Ré se defendeu por impugnação e não por excepção, pelo que o ónus da prova da matéria alegada pela Autora impendia sobre esta, já que não foi aceite pela contestante – art. 342º, nº1, do Código Civil.
Concluímos, assim, que a reclamação sobre os factos assentes e a Base Instrutória carece de fundamento, sendo que a matéria de facto levada ao questionário foi a pertinente para se apreciar as questões colocadas, sem necessidade de inclusão nesta peça, do alegado pela Ré na sua contestação.
Sobre a questão da alegada omissão de pronúncia, abordá-la-emos quanto apreciarmos a questão comum a ambos os recursos.
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Quanto ao recurso da co-ré “C...”:
De harmonia com as conclusões formuladas, uma questão vem suscitada de natureza processual.
Com efeito, a recorrente pretende que seja retirada da resposta ao quesito 1º a expressão “como agente do armador”, uma vez que a recorrente negou ter actuado nessa qualidade que lhe foi inicialmente atribuída pela Autora, mas que esta na resposta – a fls. 48 – retirou afirmando expressamente – “vem aceitar que a “C...” era simples consignatária do contentor em causa nos autos”.
Tal afirmação foi, inclusivamente, aceite como dado adquirido, pelo que nos Factos Assentes, na al. J), se escreveu: -“A 2ª Ré era simples consignatária do contentor aludido em A)”.
Ora, na resposta ao quesito 1º, sua parte final, afirma-se que o contentor veio consignado à 2ª ré como “agente do armador”.
Sustenta que do documento de embarque – “Bill of Lading”, a “C...” consta como consignatária do contentor transportado, facto que é reconhecido na sentença.
Assiste razão à recorrente.
Sendo totalmente distintas as figuras do “consignatário” e do “armador” e estando assente na “Especificação” que a “C...” era mera consignatária, não pode ao mesmo tempo, ser considerada “armador”.
Assim, havendo contradição entre um facto constante da especificação e outro constante das respostas aos quesitos, a primazia probatória é a daquele.
Nestes casos, e ao abrigo do art. 712º b), do Código de Processo Civil, prevalece o especificado, relativamente ao que se deu como provado nas respostas aos quesitos - cfr. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, V, 472, e BMJ 363-612, 366-575, 393-678, 395-670.
Nesta conformidade, procede a conclusão 1ª da alegação da “C...”, eliminando-se da parte final da resposta ao quesito 1º, a expressão - “... como agente do armador”.
Sendo a ré “C...” consignatária do contentor, as suas atribuições são, essencialmente, a de representante legal do destinatário [no caso do importador das mercadorias acondicionadas no referido contentor].
Entrando no cerne da questão comum ambos os recursos:
Através do contrato de transporte marítimo, o transportador obriga-se, mediante o pagamento de um preço (frete), a deslocar incólumes as mercadorias que lhe são confiadas, de um ponto para outro diverso – cfr. art. 1º do DL. 352/86, de 21.10.
As operações de transporte não se esgotam, todavia, na mera deslocação, abrangendo as obrigações de carga e descarga que correm por conta do transportador, daí que o Ac. do STJ, de 23.9.1997, in CJSTJ, III, 33, tenha considerado que - “O operador portuário ou qualquer outro agente é auxiliar do transportador, mesmo que não escolhido por este e responde para com o transportador”.
Mas, no caso em apreço, a Autora não demandou o transportador, pelo facto de não lhe imputar o furto das mercadorias, já que este não aconteceu durante qualquer operação daquele tipo.
O contentor foi descarregado no porto de Leixões e aí esteve à guarda da APDL até que se cumprissem as formalidade inerentes ao controlo aduaneiro. Foi durante este período que aconteceu o furto.
Pretende a APDL que, por não ter estabelecido qualquer contrato com quem quer que fosse, não é responsável, nem como depositária, do evento que levou a Autora a indemnizar o importador seu segurado.
A questão prende-se com as atribuições orgânicas e funcionais de tal entidade.
Nos termos do Estatuto Orgânico da Administração dos Portos do Douro e Leixões anexo ao DL. 308/87, de 7 de Agosto – que o aprovou – aquela entidade, designada no art. 1º do Estatuto - por APDL - “ É um instituto público dotado de personalidade jurídica de direito público e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial”, tendo como atribuições as previstas no art. 5º, mormente as de : “explorar economicamente, conservar e desenvolver os portos do Douro e Leixões” – al. a); - “ assegurar a coordenação, fiscalizar e regulamentar as actividades exercidas dentro da sua área de jurisdição, sem prejuízo das atribuições conferidas por lei a outras entidades”- al. d); - “ prestar dentro e fora da sua área de jurisdição, os serviços para que se encontra habilitada”- e).
A Portaria 107/91, de 13 de Março, regulamentou a exploração dos portos do Douro e de Leixões, sendo aplicável à APDL.
O DL.298/93, de 28.8 estabelece o regime jurídico da “Operação Portuária”, definindo as respectivas condições de acesso e exercício - art.1º, nº1.
No seu art. 2º a) define-se: - “Operação portuária é a actividade de movimentação de cargas a embarcar ou desembarcadas na zona portuária, compreendendo as actividades de estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação de mercadorias em cais, terminais, armazéns e parques, bem como a formação e decomposição de unidades de carga e ainda de recepção, armazenagem e expedição de mercadorias”.
Na al. g) definem-se empresas de estiva como “as pessoas colectivas licenciadas para o exercício da actividade de movimentação de cargas na zona portuária”.
Nos termos do art. 7º c) do citado diploma, as operações de controlo, segurança ou fiscalização que assumam natureza aduaneira não estão abrangidas pelo âmbito de actividade das empresas de estiva.
Daí que seja azado afirmar que carece de razão a APDL quando sustenta a nulidade da sentença pelo facto de ter omitido qualquer pronúncia acerca da actividade da empresa de estiva que alega ter actuado - cfr. conclusão 6º das suas alegações.
Não estando em causa que o sinistro ocorreu aquando de operação de carga ou descarga, mas durante a permanência do contentor para cumprimento de formalidades aduaneiras para as quais as empresas de estiva não têm competência, mas sim a APDL, por se tratar de serviço público, é totalmente irrelevante, neste contexto, indagar acerca da actuação de qualquer empresa de estiva.
Também não é exacto que a APDL nada tenha que ver com a actividade de movimentação de cargas e descargas, actividade que é de “interesse público” – art. 3º, nº1, do DL 298/93, de 28.8 - já que tal actividade pode, nos termos do art. 3º, nº2, c) do citado diploma ser exercida “pela autoridade portuária”.
Nos termos do nº5 do art. 22º do aludido DL, conjugado com os números precedentes, quando as mercadorias se encontrem depositadas em espaço controlado pela autoridade portuária, na realização de operação portuária a seu cargo, a responsabilidade pelos danos causados incumbe-lhe.
Estando o contentor depositado nas instalações da APDL, após a respectiva descarga do navio transportador, para fins de controle alfandegário, tal entidade actua como depositária – art. 1185º do Código Civil - sendo obrigada a restituir a mercadoria, no estado em que a recebeu, após a realização da fiscalização aduaneira.
A disciplina do contrato de depósito resulta aplicável por força do disposto na parte final do art. 18º do DL. 352/98, de 21.10, que estabelece que quando as mercadorias tenham de ser entregues no porto de descarga “à entidade a quem de acordo com os regulamentos locais caiba recebê-la, são a esta aplicáveis as disposições respeitantes ao contrato de depósito regulado na lei civil”.
Estabelecendo a lei a aplicabilidade, neste caso, do regime contratual da responsabilidade civil por via da relação de depósito, a depositária tem contra si a presunção de culpa do art. 799º, nº1, do Código Civil.
A APDL, de modo algum ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, o que no caso, consistia em demonstrar que o furto ocorrido no contentor que tinha à sua guarda, por imperativo legal, não correu por culpa sua.
“Para afastar a presunção de culpa, o devedor necessita de alegar e demonstrar a existência, no caso concreto, de circunstâncias, especiais ou excepcionais, que eliminem a censurabilidade da sua conduta” – Antunes Varela, in RLJ. 119º-126.
De modo algum a APDL logrou ilidir tal presunção, pelo que se tornou responsável pelos prejuízos causados.
Assiste razão à APDL quando argumenta que consigo nada foi contratado.
Todavia, compete a tal entidade prestar um “serviço público”, pelo qual cobra taxas – cfr. art. 3º, d) do DL.335/98, de 3.11 - assistem-lhe, assim, deveres que não têm a natureza contratual “tout court”, sendo-lhe aplicável excepcionalmente, por imposição legal, as normas que regem a responsabilidade do depositário, como claramente resulta da parte final do art. 18º do DL. 352/86.
Trata-se, sem dúvida, de responsabilidade funcional de um ente, a quem nos termos da lei, incumbe a obrigação de prestar um serviço de interesse público.
O contentor não tinha que ser entregue a qualquer empresa de estiva, porquanto do que se tratava era controlar aduaneiramente, a carga do contentor e tal competência caber, não a qualquer empresa de estiva, mas à autoridade dotada de poderes públicos nesse âmbito – a APDL.
O furto não correu em qualquer operação de movimentação de descarga, mas quando o contentor se achava sob custódia da APDL, para fins de controle alfandegário que apenas a ela competiam.
Improcedem, destarte, as conclusões do recurso da APDL.
Quanto ao recurso da “C...”:
Vista e resolvida já, a questão de índole processual que colocou e viu julgada a seu favor, apenas importa curar da sua pretensão, considerando a sua qualidade de consignatária do contentor - J) da Especificação – e exoneração, por via dela, da imputada responsabilidade ressarcitória.
Como consignatária do contentor, mais não era que representante do destinatário e detentora do documento que titulava a posse dos bens transportados, o que lhe permitia reclamar a entrega da mercadoria após ser descarregada.
Não tendo actuado como operador portuário, nem estivador, nenhuma intervenção teve nas operações de descarga e controle alfandegário tanto mais que a mercadoria não lhe foi logo entregue, tendo ficado à guarda da APDL, para os fins de controle referidos.
Como a recorrente não era depositária do contentor não lhe são aplicáveis as normas que regulam o contrato de depósito, como antes vimos.
Como consignatária não lhe incumbiam quaisquer funções de guarda – cfr. ainda resposta negativa ao quesito 10º - pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada quanto ao furto, porquanto não era quem tinha, por obrigação legal, o dever de guarda e vigilância da mercadoria.
O facto de se ter considerado na sentença que a apelante era consignatária e também depositária do contentor, não exprime nulidade da sentença, por contradição manifesta entre os fundamentos e a decisão – art. 668º c) do Código de Processo Civil - mas tão somente erro de julgamento, pelo que a sentença não enferma de nulidade.
Ademais, não tendo o contentor à descarga sido directamente entregue à apelante “C...” no cais, mas ficando à guarda da APDL, para efeitos aduaneiros, e tendo sido durante esse lapso de tempo que ocorreu o furto, de modo algum a apelante pode ser responsabilizada pelos danos causados ao importador e que e que a apelada ressarciu.
Nem efectiva, nem presumidamente actuou com culpa, pelo que não lhe cabe o dever de indemnizar – art. 483º, nº1, do Código Civil e 799º, nº1, do mesmo diploma.
Decisão.
Nestes termos, acorda-se em:
Negar provimento ao recurso da ré “APDL”, confirmando-se quanto a ela a sentença recorrida.
Conceder provimento ao recurso da co-ré “C...” revogando-se a sentença que a condenou, absolvendo-a do pedido.
Custas, em ambas as instâncias, pela APDL e pela apelada, na proporção de metade.
Porto, 4 de Março de 2002.
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale