Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0843220
Nº Convencional: JTRP00041639
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: INJÚRIA
AGRAVAMENTO
Nº do Documento: RP200809240843220
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 332 - FLS 190.
Área Temática: .
Sumário: Não opera a agravação do artº 184º do Código Penal se a ofendida, sendo embora uma professora do ensino público, se encontra, no momento da ofensa, em funções de coordenação de uma eleição para o conselho executivo de um agrupamento de escolas e não está apurada a causa da ofensa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 3220/08 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)
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1. Relatório
Consta do despacho de 4 de Janeiro de 2008:
“I
1. A arguida B………. encontra-se acusada nos presentes autos, pelo Ministério Público, da prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime agravado de injúria, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 10º, 14º, n.º 1, 26º, 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea j) (na sequência da reforma operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a alínea j) do n.º 2 do artigo 132º passou a constituir a alínea l) do mesmo preceito; uma vez que a alteração legislativa em apreço não modificou substancialmente tal preceito, desenvolveremos, consequentemente, todas as considerações subsequentes identificando-o de acordo com a legislação em vigor à data da prática dos factos aqui em apreço), todos do Código Penal (doravante, C. P.), com base na seguinte factualidade:
‘A ofendida C………. é professora do ensino básico há nove anos.
A partir do ano lectivo 2005/2006, a mesma passou a exercer funções na D………., em ………., neste Concelho de Comarca de Paredes, leccionando aos alunos do 1º Ciclo, aos quais sempre prestou apoio ao estudo em aulas extracurriculares.
Nunca a ofendida C………. teve qualquer problema com alunos, encarregados de educação ou colegas docentes.
Sucede que, no dia 1 de Junho de 2007, realizou-se uma reunião entre docentes e pais de alunos da referida Escola com o objectivo de se proceder à eleição do novo grupo de professores para o E………., estando todos aqueles convocados para a mesma.
Na eleição em causa participou a ofendida C………., na qual teve uma função de coordenação, sendo apoiante da Lista ..
Sem nada que o fizesse prever, por volta das 19h15, já quando a eleição tinha terminado e os participantes começavam a dispersar-se, abandonando a Escola, apareceu a arguida B………., apoiante da Lista ., e dirigindo-se, em voz alta, para a ofendida C………, a qual se encontrava no interior das instalações da Escola, dizendo por repetidas vezes “não tenho medo da Professora C………., aquela puta que venha cá para fora”, “aquela puta que venha cá para fora”, “vaca”, “cobarde”, “vou-te desfazer”, expressões que a ofendida ouviu perfeitamente do sítio onde se encontrava a realizar as diligências subsequentes à reunião mantida.
Naquele local, encontravam-se, além dos demais docentes, também pais e crianças, na sua maioria discentes da D………., em ………. .
A ofendida C………. encontrava-se no pleno exercício das suas funções de autoridade pública, fazendo parte da organização de uma reunião para a qual estavam convocados docentes e pais de alunos da D………., em ………., o que a arguida sabia.
Sentiu-se muito magoada pelas expressões objectiva e subjectivamente ofensivas de que foi vítima, para além de ficar muito ofendida na sua honra e consideração de cidadão e de professora e por ter sido humilhada perante outras pessoas, designadamente a comunidade escolar ali presente.
Agiu a arguida B………. livre, voluntária e deliberadamente, com intenção de insultar e dizer mal da professora em questão, tendo proferido e repetido aquelas expressões, de forma audível e explícita, perante várias pessoas, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que dirigiu esses insultos a uma funcionária pública e que se encontrava naquele local no exercício das suas funções’.
2. Nos termos do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal (de ora em diante, apenas C. P. P.), «recebidos os autos no tribunal, o presidente (ou seja, o juiz titular do processo) pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer» (n.º 1). No caso de o processo ter sido «remetido para julgamento sem ter havido instrução», como sucede no caso vertente, despacha, ainda, no sentido: «a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada» ou «b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284º, n.º 1, e 285º, n.º 3, respectivamente» (n.º 2). Para tanto, «a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime» (n.º 3).
3. No caso vertente, e porque se nos afigura, salvo naturalmente o respeito devido por entendimento diverso - designadamente o do Digno Magistrado que a subscreve -, que a acusação aqui deduzida contra a arguida não se encontra em condições de ser recebida, este é, pois, o momento azado para a rejeitar, de acordo com as disposições legais citadas. Vejamos, pois, rapidamente, as razões que justificam tal rejeição.
II
A)
4. Como se disse, a arguida encontra-se acusada da prática de um crime agravado de injúria, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 10º, 14º, n.º 1, 26º, 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea j), todos do C. P.. Funda-se tal acusação, em suma, na circunstância de, alegadamente, ter ela dirigido à aqui queixosa, e assistente, C………., quando esta se encontrava ‘no pleno exercício das suas funções de autoridade pública, fazendo parte da organização de uma reunião para a qual estavam convocados docentes e pais de alunos da D………., em ……….’, expressões como ‘não tenho medo da Professora C………., aquela puta que venha cá para fora’, ‘vaca’, ‘cobarde’, ‘vou-te desfazer’, tudo o que terá feito com a intenção - concretizada, segundo a douta acusação pública contra ela formulada - de atingir, ilicitamente, a honra e consideração da mesma assistente.
5. Dispõe o artigo 181º, n.º 1, do Código Penal, que «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de multa até 120 dias». E no caso concreto, atendendo ao tipo de expressões que a arguida utilizou (concretamente, os epítetos de ‘puta’ e ‘vaca’) e à carga pejorativa que social e culturalmente assumem, cremos que se poderá concluir sem dificuldades que, a provarem-se os factos que aqui são imputados à arguida, não deixaria ela de ser condenada pela autoria do crime em apreço.
6. No entanto, a arguida não se encontra apenas acusada da prática de um crime de injúria; ela encontra-se acusada da prática de um crime agravado de injúria, ex vi o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 184º e 132º, n.º 2, alínea j) do C. P. Segundo aquela norma, «as penas previstas nos artigos 180º, 181º e 183º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas …», ou seja, se for «membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso» (sublinhado nosso).
7. Na hipótese vertente, a acusação refere que a aqui queixosa é professora do ensino básico, e terá sido quando ela desempenhava as suas funções (embora no âmbito de uma actividade não especificamente docente) que os factos em causa nestes autos ocorreram. E daí que se justifique - sempre na perspectiva do Digno Magistrado do Ministério Público que subscreve a acusação - a agravação proposta para o crime que aqui é imputado à arguida.
8. Mas - salvo sempre o respeito que nos merece tal entendimento - não cremos que esta conclusão seja correcta.
B)
9. A alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do C. P. tem as suas origens remotas no Decreto-Lei n.º 101-A/88, de 26 de Março. Explicando a aprovação de tal diploma, escreveu o legislador no respectivo preâmbulo:
«De entre as manifestações da moderna criminalidade violenta e organizada avultam os atentados à vida ou à integridade física de agentes das forças e dos serviços de segurança e, em geral, de funcionários ou agentes encarregados da execução de mandados de captura ou de ordens legítimas de detenção, bem como daqueles a quem compete a guarda de pessoas legalmente presas, detidas ou internadas em estabelecimentos a isso destinados ou a custódia das mesmas, quando devam deslocar-se para diversos fins previstos na lei processual penal.
Tais comportamentos provocam justificado alarme na opinião pública e contribuem para abalar a confiança no regular funcionamento e na eficácia do sistema penal, potenciando sentimentos de insegurança.
Não pode a ordem jurídica alhear-se das graves consequências que deles decorrem e demitir-se do dever de encontrar soluções que, a um tempo, reforcem a confiança nas instituições vocacionadas para o combate à criminalidade violenta e contribuam para uma adequada protecção das vítimas preferenciais dos referidos actos, ponderando, quanto a estas, os riscos consideráveis a que estão expostas no exercício das suas funções ou por causa delas, embora observando, como não pode deixar de ser, critérios de justiça e de proporcionalidade.
Comportamentos como os descritos são objecto de reacções criminais particularmente severas em muitos países que, de há muito, com eles se têm defrontado, como é o caso de Itália e de França».
10. E, por isso, acrescentaram-se, então, ao artigo 132º, n.º 2, do Código Penal, duas novas alíneas, as alíneas h) e i), do seguinte teor:
«h) Ter praticado o facto contra agente das forças e serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente da força pública ou cidadão encarregado de um serviço público, no exercício das suas funções ou por causa delas;
i) Ter praticado o facto para se subtrair à detenção, à captura ou ao cumprimento de reacções privativas da liberdade, incluindo os casos em que o agente é deslocado, sob custódia, para actos ou diligências previstos na lei processual penal, ou ainda, quando em fuga, para adquirir meios de subsistência».
11. Esta solução mereceu, desde logo, o reparo da doutrina. Assim, TERESA SERRA (Homicídio qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1992, reimpr., pág. 95, nota 251) logo assinalou que a adição destas alíneas constituía uma «resposta a situações que tiveram um grande impacte na opinião pública», sendo um «exemplo do que é legislar sob pressão do caso concreto, com a qual não pode por forma alguma concordar-se. A alínea h) não indicia por si só uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enquanto a alínea i) contém situações que são já abarcadas pela alínea e) do n.º 2 do artigo 132º».
12. Em certo sentido, estas críticas ressurgiram durante o processo de revisão do Código Penal, no início da década de 90 do século passado. Na Comissão de Revisão, FIGUEIREDO DIAS defendeu «que a matéria consagrada na primeira das alíneas referidas poderia ser contemplada no local próprio (crimes contra os agentes de autoridade e contra o Estado)» e pronunciou-se pela eliminação da alínea i) (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 190). No entanto, respondendo às preocupações do então Procurador-Geral da República - que, «embora concordando, em princípio, que a matéria da alínea i) não devia estar prevista neste artigo, expressou sérias dúvidas quanto à sua eliminação pura e simples, pois poderia ser entendida como uma atenuação, ficando sem previsão as situações dos foragidos da justiça, indivíduos especialmente perigosos» (ob. cit., pág. 190) -, FIGUEIREDO DIAS sugeriu, e a Comissão de Revisão aceitou, a inclusão do «conteúdo útil dessa alínea na actual alínea e)» (ou seja, a alínea f); cfr. a ob. cit., págs. 190 e 194).
13. Já quanto à questão da manutenção da alínea h), no entanto, a Comissão de Revisão mostrou-se mais dividida. MANSO PRETO inclinou-se pela eliminação da alínea h) «fundamentalmente por considerar que a mesma matéria se encontra prevista no Capítulo relativo aos crimes contra a autoridade pública» (id., pag. 194), e também COSTA ANDRADE se pronunciou no sentido de que «no artigo 132º o bem protegido é a vida humana e não qualquer outro», e por isso, «em bom rigor, não se deveriam prever referências à protecção de outros bens jurídicos (no caso de funções de eminente relevo social)» (ob. cit., págs. 194-195). Mas já LOPES ROCHA, SOUSA E BRITO e FERREIRA RAMOS, no entanto, pronunciaram-se a favor da «manutenção da alínea, na linha proposta (por SOUSA E BRITO), deixando no entanto uma porta aberta a uma necessária harmonização com os tipos legais próximos destas causas de agravação» (ib., pág. 194).
14. A solução adoptada pela Comissão - que, no essencial, assumiu forma de lei com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, passando a constar da nova alínea h) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal - logo foi, porém, objecto de ainda mais viva crítica por parte de TERESA SERRA (Homicídios em série em CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal. Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, vol. II, 1998, pág. 151), que considerou que «a enumeração constante da alínea h) … contrariava frontalmente a técnica legislativa dos exemplos-padrão. Pela força da sua própria natureza, os exemplos-padrão, enquanto imagem expressiva de um determinado quadro valorativo, não são compatíveis com enumerações fechadas ou cuja exaustividade é passível de ser avaliada em termos de grau. Ademais, abrem caminho fácil aos problemas tradicionalmente colocados por qualquer enumeração exaustiva, como também ocorre com a da alínea h). Por exemplo: quando se fala em docente ou examinador público, é caso para perguntar se as mesmas razões deixam de valer se se tratar de um docente ou examinador privado!» (questão que - antes da entrada em vigor da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro - logo respondeu pela negativa «dado o Leitbild de que a referida alínea h) constituía expressão», pois «o quadro valorativo que sobressai do preceito em causa é precisamente o exercício das funções públicas por parte da vítima do homicídio»; id., ib., nota 27; sublinhados no original). Segundo TERESA SERRA, a alínea h) do n.º 2 do artigo 132º do C. P. seria, mesmo, «surrealista» (id., pág. 148).
15. Na mesma linha, MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA (Direito Penal II. Os homicídios, vol. II, 1998, pág. 67), veio igualmente salientar que o artigo 132º caminhava «para uma aglutinação de bens jurídicos protegidos, embora permanecesse no âmbito dos crimes contra a vida e se chamasse, como no princípio, ‘homicídio qualificado’. Já não é só a vida que aqui se protege … Outros bens jurídicos se tutelam e de forma aparentemente casual e não sistemática». O exemplo seria, é claro, a alínea h) do n.º 2 preceito: «matar um titular de órgão de soberania ou quem exerça uma função pública é potencialmente um homicídio mais grave. É verdade que a alínea se estende a outras vítimas, mas há um denominador comum a elas, que é o exercício (ainda que pontual) de funções públicas ou que impliquem uma posição de supremacia, de autoridade da vítima face ao seu agressor» (id.). Como a vida humana, continua a mesma autora, «tem idêntico valor, independentemente do cargo que se ocupe, político, cívico ou de outra ordem, a explicação para a alínea em questão não se encontra na tutela pura e simples da vida humana» (ib., págs. 67-68). E conclui com uma interrogação: «sobretudo cabe perguntar se a própria presunção de maior culpa tem verdadeira legitimidade neste caso: em nome de quê supor mais culposo o comportamento criminoso da parte mais débil numa relação social? Não é isto, a suspeita de que quem “é menos” desse ponto de vista será também potencialmente mais nocivo nos seus actos (mais perigoso?), uma maneira insidiosa de violar o princípio da igualdade perante a lei?».
16. Estas posições críticas ecoam, de algum modo, nas considerações que JOSÉ de FARIA COSTA tece, agora especificamente a propósito da agravação prevista no artigo 184º do C. P. (escritas já depois das alterações que, no diploma legal em apreço, foram introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e que transformaram a referida alínea h) em alínea j) do mesmo preceito):
«Temos alguma dificuldade em aceitar - por certo que não em termos de definição de uma intencionada política criminal, pois essa tem um vector que escapa à análise normativa - que se introduzam elementos outros na composição dos bens jurídicos que se antolham perfeitamente definidos e coesos na sua expressão mais simples e canónica. A honra, enquanto valor ou bem imaterial, já o dissemos, tal como outros, perfila-se a mesma quer a vejamos encarnada no mais nobre espírito, quer a olhemos no mais refinado biltre. No entanto, o legislador, a partir de uma lógica que assenta na ideia de que o estatuto funcional - quer na óptica de sujeito passivo, quer na de sujeito activo - dos cargos de determinadas pessoas acrescenta uma mais-valia à própria honra, passou a considerar que os actos desonrosos que atacassem essa honra acrescida ou densificada mereceriam uma maior punição. É claro que essa intensificação do valor da honra só existe enquanto se está em funções ou, ao menos, não estando em funções, se permite o efeito à distância de se considerar que - se acto violador da honra, porque ainda resultante daquelas funções - se prende retroactivamente ao exercício próprias funções. O que tudo dá a ideia de que há uma “honra funcional”. Realidade que se pode discutir mas cujo lugar apropriado não é, seguramente, este.
O que já é adequado, aqui, problematizar - porque importante para o estudo que se realiza - prende-se com a questão de saber se este seria o lugar sistematicamente justo para proteger o bem jurídico “honra funcional”, porquanto o que se deseja agora proteger é, indesmentivelmente, o bem pessoalíssimo honra. Sempre se poderá dizer, contudo, que a solução encontrada pelo legislador é aquela que privilegiou, ratione materiae, a própria honra, transigindo unicamente naquela densificação funcional. Uma tal argumentação não deixa de apresentar algum retórico peso específico mas claudica, em nosso juízo, porque, desse jeito, o legislador poderia criar um conjunto alargado de bens jurídicos compósitos e, por mor desse expediente, subverter uma das regras mais importantes da actividade legiferante nos domínios da incriminação: a regra da identidade nominal. Isto é: a uma norma incriminadora deve corresponder um e um bem jurídico e este deve, tanto quanto possível, apresentar-se na sua forma mais coesa de simplicidade e de unidade».
(Anotação ao artigo 184º do Código Penal no Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo I, §§ 3-4, pág. 652; todos os sublinhados no original)
17. Em suma, pois, a especial protecção jurídico-penal que aos titulares das funções elencadas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do C. P. é conferida no tocante aos atentados dirigidos contra a sua vida, integridade física e - que é o que aqui directamente nos interessa - honra, para além de introduzir um elemento de perturbação na organização sistemática da Parte Especial do Código Penal, suscita, igualmente, especiais problemas de aplicação, porquanto pode ela implicar (designadamente através do exacerbamento da protecção do estatuto funcional da vítima do crime) a postergação de valores relevantes do ordenamento jurídico (como o próprio princípio da igualdade, que tem, como se sabe, consagração ao nível da Lei Fundamental do País).
18. Impõe-se por isso, a nosso ver - é isso, afinal, o que aconselham a história, que vimos de bosquejar nos seus elementos essenciais, da norma em questão, bem como as críticas que a esta foram sendo dirigidas pela melhor doutrina -, uma especial cautela na identificação das situações que podem (devem) ser subsumidas à previsão do artigo 184º do C. P., sobretudo tendo em consideração que se este preceito «importa» a enumeração de funções constante da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal para identificar as eventuais vítimas do crime agravado que prevê, já não permite que a qualificação do crime contra a honra de uma dessas mesmas vítimas revista a natureza facultativa que, à luz da técnica dos exemplos-padrão, vai associada à verificação de um ataque à sua vida (neste sentido, vd. FARIA COSTA, cit., §§ 6-8, págs. 653-654). O que, na prática, significa que se impõe grande circunspecção na interpretação do que sejam crimes cometidos «no exercício» das funções elencadas na alínea h) do n.º 2 do artigo 132º, ou «por causa delas».
19. No caso dos autos, no entanto, o comportamento da arguida não é ligado geneticamente, na douta acusação pública contra ela aqui formulada, ao exercício, por parte da queixosa, das suas funções de professora do ensino básico, ou dito de outra forma, não se atribui ao exercício de funções docentes por banda da queixosa a origem do comportamento que aqui se verbera à arguida. O que se lhe atribui é a prática dos factos que alegadamente terá praticado e a que atrás se fez já menção quando a queixosa neste processo se encontrava no exercício das suas funções públicas. Ou seja, não vem a arguida acusada da prática de um crime agravado contra a honra da aqui assistente por causa das funções que exerce, mas apenas por alegadamente o ter cometido quando esta se encontrava no exercício dessas mesmas funções. E sendo assim, só relativamente à verificação, in casu, desta exigência típica, teremos, agora, de analisar os factos em causa nestes autos.
C)
20. Como se referiu já, a referência, na alínea h) do n.º 2 do artigo 132º do C. P. (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), a «docente ou examinador público» foi objecto de imediata crítica por TERESA SERRA, que logo alertou para que as razões que justificavam a inclusão dos docentes ou examinadores do sector público (e, portanto, a aplicação da moldura agravada que a especial censurabilidade dos ataques contra eles perpetrados implicava) valiam, igualmente, para todos os docentes ou examinadores, ainda que do sector privado.
21. Pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, o legislador veio reconhecer razão a tais críticas, alterando a redacção da alínea em causa (que se converteu, entretanto, na alínea j) do preceito, como se referiu atrás). A sua formulação passou, assim, a ser a seguinte (sublinhados, naturalmente, nossos):
«j) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas».
22. Em nosso modo de ver, pois, a eliminação da alusão ao carácter público das funções do docente ou examinador não pode senão implicar que, ao menos a partir da entrada em vigor da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e relativamente a tal categoria de pessoas, o que está em causa, no preceito sob análise, não é já a protecção do exercício de funções públicas (ou seja, de autoridade) por banda do docente ou examinador implicado, mas simplesmente o exercício das funções de docente e de examinador propriamente ditas. Dificilmente se entenderia, na verdade, que aludindo a uma mesma categoria de pessoas (e após a expressa eliminação da referência ao carácter público das funções por elas exercidas), quisesse o legislador proteger diferentemente tais pessoas consoante exercessem elas as suas funções no sector público ou no sector privado.
23. O relevo da alteração reconhece, aliás, FIGUEIREDO DIAS (anotação ao artigo 132º do Código Penal no Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, § 32, pág. 41), ao sublinhar que as modificações introduzidas pela citada Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, não são insignificativas, «no sentido de que à solução que ela permite se chegaria já através da técnica dos exemplos-padrão …; antes se devendo dizer que, com a equiparação do docente ou examinador privado ao público é a própria estrutura do exemplo-padrão que se modificou» (sublinhados nossos).
24. Deixou assim de valer, ao menos em relação aos docentes e examinadores, a conclusão enunciada por MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA (cit., pág. 67), de que o «denominador comum» entre todas as pessoas referidas na alínea j) do Código Penal «é o exercício (ainda que pontual) de funções públicas» (embora no tocante aos docentes e examinadores possa continuar a valer a ideia de que lhe subjaz o interesse de proteger uma pessoa que se encontra numa «posição de supremacia, de autoridade … face ao seu agressor», a que, no mesmo local, alude a autora em apreço).
25. Quando é que, então, deveremos, para efeitos de aplicação das disposições conjugadas do artigo 184º e da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do C. P., dizer que estamos perante o exercício de funções como docente (por serem estas as funções que, na douta acusação pública, se atribuem à aqui queixosa)?
26. Um docente é o responsável pelo desenvolvimento, em contexto formal ou informal, de um processo de ensino-aprendizagem (transmitindo conhecimentos e facilitando, ou auxiliando, a aquisição de determinadas competências por parte dos discentes), e pela avaliação dos correspondentes resultados (ou seja, pela definição do grau de sucesso ou insucesso) desse mesmo processo. Em sentido rigoroso, portanto, só quando (e enquanto) realize tais actividades é que um docente se pode dizer no exercício das suas funções, independentemente do contexto e do espaço em que as mesmas decorram: um professor que acompanha os seus alunos numa visita de estudo (e, portanto, fora de um espaço especificamente escolar) está, como é óbvio, no exercício das suas funções docentes, mas já não o estará, a nosso ver, o professor que, na escola onde trabalha, se dedica ao convívio informal com os seus respectivos colegas; por outro lado, pouco importará que o professor se dedique à docência no contexto de uma aula, de uma conferência ou de qualquer outro formato de ensino, pois que ainda em todas estas situações, como em outras, estará a desenvolver funções docentes.
27. Mas se isto é assim, então afigura-se-nos de meridiana clareza que, no caso vertente, a aqui assistente não se encontrava no exercício de funções docentes quando foi, alegadamente, injuriada pela arguida. Nesse momento, na verdade, limitava-se ela, segundo a acusação pública, a participar na eleição dos professores que integrariam o E………., ainda que aí tivesse, novamente segundo aquele libelo, ‘uma função de coordenação’; esta, na verdade, não configura nenhuma actividade que possa subsumir-se ao conceito de docência, tal como o deixámos delineado. Tratou-se de uma actividade ainda (eventualmente) incidental à qualidade de professora da assistente, mas totalmente marginal à docência e sem tal natureza.
28. Reconhece-se, é claro, que esta visão restritiva do que deve entender-se por exercício de funções docentes para efeitos do preceituado no artigo 184º do C. P. - que cremos ser a única compatível com o carácter excepcional da agravação da pena que vai associada à prática de certos crimes no decurso de tal exercício, e susceptível de representar o denominador comum entre as funções de docente público e privado que agora são abrangidas, nos moldes já referidos, pela alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal - não é a única forma possível. Assim, a douta acusação pública aqui formulada contra a arguida parece seguir o entendimento - que também se não afigura de todo inadmissível, embora com o mesmo, pelas razões já referidas, não possamos concordar - de que todas as actividades que um professor desenvolva e que decorram ainda do seu estatuto funcional de docente (neste caso, do sector público), têm de considerar-se exercício de funções docentes para efeitos de aplicação da norma legal que vem de citar-se.
29. Relativamente aos professores integrados no ensino público, e se bem vemos, isto significaria que teria de incluir-se ainda, no conceito de exercício de funções docentes, a realização de todas as actividades que, por força (directa) da lei (hoc sensu), fossem ainda cometidas aos professores, como parte integrante do elenco legal das suas atribuições funcionais.
30. Só que, na hipótese vertente, não estamos perante uma dessas actividades. Na verdade, embora a douta acusação pública não indique concretamente o diploma legal de onde entende decorrer, para a assistente, como sua obrigação funcional específica, o dever de ‘coordenar’ a reunião na sequência da qual terão alegadamente ocorrido os factos aqui em questão, cremos que só poderia ter em mente, como fonte de uma tal obrigação estatutária, o Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, que aprovou o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (na redacção da Lei n.º 24/99, de 22 de Abril). Acontece, porém, que tal diploma não impõe, em lado algum, sobre os docentes, como seu dever estatutário próprio ou, sequer, funcional, a participação ou colaboração na organização dos actos eleitorais nele previstos. E sendo assim, tal participação ou colaboração - ainda que indispensável, é certo, à realização dos actos eleitorais em questão - é totalmente alheia às funções (sejam elas especificamente docentes ou não docentes) dos professores do ensino público.
31. De qualquer modo, no momento em que os factos aqui em questão terão alegadamente ocorrido, já a reunião onde se procedeu à eleição do E………. tinha terminado (di-lo a própria acusação pública) e a aqui assistente realizava apenas ‘diligências subsequentes à reunião mantida’, que a acusação formulada nestes autos não caracteriza mas que não se nos afigura que possam ter-se como funções próprias de um docente. Repare-se que estamos aqui cada vez mais distanciados do núcleo essencial de razões que justificam a agravação dos crimes cometidos contra docentes, na medida em que no momento em que terão ocorrido os factos aqui em questão a assistente não praticava quaisquer actos próprios da profissão de docente, nem sequer actos que possam reconduzir-se ao leque de atribuições que, legalmente, e na qualidade de docente, lhe são cometidas.
32. Não convém esquecer, a nosso ver, que não basta ser docente (ou examinador, público ou privado) para que tudo o que se faça - ainda que relacionado, directa ou indirectamente, com a comunidade escolar que se integra - possa ser tido como exercício de funções docentes. Ao exigir, explicitamente, que as pessoas aludidas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do C. P. sejam vítimas de um crime no exercício das suas funções ou por causa delas, torna-se evidente que o legislador não se limitou a punir de forma mais severa quem perpetre um ataque contra pessoas que se encontram investidas em certos cargos, sendo ainda necessário, sempre, que tal ataque ocorra no decurso do cumprimento dos deveres inerentes a tais cargos, ou a ele devido. Em situações como a vertente, não basta que alguém actue enquanto professor, é ainda necessário que o faça como professor, para que se possa dizer que está no exercício das suas funções. O que, se bem vemos, não se verifica, como se disse já, na hipótese sub judice.
D)
33. Em suma, pois: a conclusão, contida na douta acusação pública, de que no momento em que ocorreram os factos aqui em questão ‘a ofendida C………. encontrava-se no pleno exercício das suas funções de autoridade pública, fazendo parte da organização de uma reunião para a qual estavam convocados docentes e pais de alunos da D………., em ………., o que a arguida sabia’, é, do ponto de vista jurídico-criminal, e como procurámos demonstrar, incorrecta. A aqui assistente encontrava-se em ambiente escolar, é certo, mas nesse momento não exercia funções docentes, no sentido em que esta expressão toma para efeitos de qualificação prevista no artigo 184º do C. P.; e, como tal, à arguida nestes autos só pode ser imputada, em nossa opinião, a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do mesmo diploma.
34. Haveria, pois, que corrigir, neste sentido, a qualificação jurídica que, dos factos que aqui imputa à arguida, faz o Ministério Público na, aliás douta, acusação que formulou neste processo contra ela. Só que, a ser assim, suscita-se, agora, o problema da legitimidade do Ministério Público para a prossecução do presente procedimento penal.
35. De acordo com o preceituado no artigo 48º do C. P. P., «o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º» do mesmo diploma legal. Segundo o n.º 1 daquela norma, «quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo». No entanto, «quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular» (artigo 50º, n.º 1, do corpo de normas em referência).
36. Ora, segundo o artigo 188º, n.º 1, do C. P., «o procedimento criminal pelos crimes previstos no … capítulo (VI do título I do livro II do mesmo diploma) depende de acusação particular, ressalvados os casos:
a) Do artigo 184º; e
b) Do artigo 187º, sempre que o ofendido exerça autoridade pública; em que é suficiente a queixa ou a participação».
37. Dito de outro modo, o crime p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do C. P., contrariamente ao ilícito agravado tipificado no artigo 184º do mesmo diploma, é um crime particular, o que implica que a assistente nestes autos, a fim de assegurar a prossecução dos mesmos, teria de ter deduzido acusação particular, o que não se mostra que tivesse feito, Aliás, a assistente nem sequer acompanhou, expressamente, a acusação pública formulada contra a aqui arguida, sendo que se o tivesse feito, de alguma forma se poderia interpretar tal gesto como sendo suficiente para colmatar a ilegitimidade ora em apreço.
38. Nestas circunstâncias, pois, carece o Ministério Público de legitimidade para a prossecução do presente procedimento criminal, o que naturalmente não pode aqui deixar de ser declarado, com a consequente rejeição da acusação por ele deduzida. Isso, então, o que agora se decidirá.
III
39. Nestes termos, e pelas razões sucintamente expostas, decido não receber a, aliás douta, acusação pública deduzida nestes autos contra a arguida B………., por entender carecer o Ministério Público de legitimidade para a prossecução do presente procedimento criminal.
…”.
**
Ministério Público veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - Numa sociedade democrática e pluralista, os professores têm o direito fundamental de participar na gestão democrática da escola (vide artigo 77º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e o direito estatutário de eleger e ser eleitos para os seus órgãos colegiais da escola (vide artigo 5º, n.º 2, alínea e) do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo D. L. n.º 15/2007, de 19 de Janeiro).
2ª - A assistente C………., logo após o final de uma reunião entre docentes e pais dos alunos da D………., em ………., em Paredes, com o objectivo de eleição do novo grupo de professores para o E………. e, encontrando-se ainda no interior das instalações da Escola, encontrava-se no exercício de funções de docente.
3ª - A assistente C………. foi ofendida na sua honra funcional de docente pela arguida B………., quando esta proferiu, entre outras, na presença de colegas, pais e crianças e do interior da Escola, a seguinte expressão: ‘não tenho medo da Professora C………., aquela puta que venha cá para fora’.
4ª - Mesmo que se entendesse que a assistente não estava no exercício das funções de docente, sempre se diria que estaria no exercício das funções de funcionário público, tal como resulta dos artigos 386º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e 4º, n.º 1, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensino Básico e Secundário (D. L. n.º 15/2007, de 19 de Janeiro).
5ª - Em sede de despacho que designa dia para julgamento, onde aprecia a regularidade formal e material da acusação, nos precisos termos legais do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal, não pode o juiz, por meras deduções e interpretações, e, muito menos, por processos de apreciação que impliquem e exijam uma produção de prova, proceder a qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e, assim, considerar que o Ministério Público carece de legitimidade para acusar.
6ª - O despacho recorrido, para além das disposições legais supra mencionadas, violou o preceituado nos artigos 32º da Constituição Política da República Portuguesa, 181º, 184º, 132º do Código Penal e artigos 311º e seguintes do Código de Processo Penal.
7ª - Assim, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, revogar-se o aliás douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia para julgamento da arguida B………., acusada pelo crime agravado de injúria, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelos artigos 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea j), todos do Código Penal, na redacção do D. L. n.º 48/95 e, actualmente, previsto e punido nas normas dos artigos 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro”.
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2. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, do C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2004, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, tomo III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
Há que, então, face às enunciadas conclusões, definir o objecto do recurso, pela referência às questões que se colocam para apreciação e que são as seguintes (o respectivo conhecimento, como é de boa regra, por isso, deve respeitar o princípio da precedência lógica, pois a solução dada uma pode prejudicar a apreciação de outra):
1ª - Para a pronúncia sobre a questão prévia da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, a coberto do disposto no art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, pode proceder-se à alteração do crime imputado, à arguida, segundo a acusação (a chamada alteração da qualificação jurídica)?
2ª - De acordo com a narração, contida na acusação, dos factos que fundamentam a imputação, à arguida, do crime de injúria com agravação, com previsão e punição nos arts. 181º, n.º 1, 184º, e 132º, n.º 2, al. i), do C. Penal, deve esta mesma imputação manter-se, ou, pelo contrário, tem de ser a do crime de injúria, com previsão e punição no art. 181º, n.º 1, do C. Penal?
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Os elementos que, por assentes (disponibilizados pelos autos; logo, com o valor probatório constante do art. 169º do C. de Processo Penal) são relevantes para apreciação e solução destas questões são as seguintes:
A acusação, deduzida contra a arguida (B……….) contém a seguinte narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena (crime; art. 1º, al. a), do C. de Processo Penal):
“A ofendida C………. é professora do ensino básico há nove anos.
A partir do ano lectivo 2005/2006, a mesma passou a exercer funções na D………., em ………., no Concelho e Comarca de Paredes, leccionando aos alunos do 1º Ciclo, aos quais sempre prestou apoio ao estudo em aulas extracurriculares.
Nunca a ofendida C………. teve qualquer problema com alunos, encarregados de educação ou colegas docentes.
Sucede que, no dia 1 de Junho de 2007, realizou-se uma reunião entre docentes e pais de alunos da referida Escola, com o objectivo de se proceder à eleição do novo grupo de professores para o E………., estando todos aqueles convocados para a mesma.
Na eleição em causa participou a ofendida C………., na qual teve uma função de coordenação, sendo apoiante da Lista ..
Sem nada que o fizesse prever, por volta das 19h15, já quando a eleição tinha terminado e os participantes começavam a dispersar-se, abandonando a Escola, apareceu a arguida B………., apoiante da Lista ., e, dirigindo-se, em voz alta, para a ofendida C………., que se encontrava nas instalações da Escola, disse, por repetidas vezes, ‘não tenho medo da Professora C………., aquela puta que venha cá para fora’, ‘vaca’, ‘cobarde’, ‘vou-te desfazer’, expressões que a ofendida ouviu perfeitamente do sítio onde se encontrava a realizar as diligências subsequentes à reunião mantida.
Naquele local, encontravam-se, além dos demais docentes, também pais e crianças, na sua maioria discentes da D………., em ………. .
A ofendida C………. encontrava-se no pleno exercício das suas funções de autoridade pública, fazendo parte da organização de uma reunião para a qual estavam convocados docentes e pais de alunos da D………., em ………., o que a arguida sabia.
Sentiu-se muito magoada pelas expressões objectiva e subjectivamente ofensivas de que foi vítima, para além de ficar muito ofendida na sua honra e consideração de cidadão e de professora e por ter sido humilhada perante outras pessoas, designadamente a comunidade escolar ali presente.
Agiu a arguida B………. livre, voluntária e deliberadamente, com intenção de insultar e dizer mal da Professora em questão, tendo proferido e repetido aquelas expressões, de forma audível e explícita, perante várias pessoas, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que dirigira esses insultos a uma funcionária pública e que se encontravam naquele local no exercício das suas funções”.
O crime imputado à arguida foi o de injúria com agravação (“arts. 10º, 14º, n.º 1, 26º, 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, al. j), do C. Penal”).
No despacho a que alude o art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal (saneamento do processo), e ora sob recurso, foi entendido que aqueles factos somente fundamentavam a imputação, à arguida, do crime de injúria (art. 181º, n.º 1, do C. Penal) e, por isso, carecia o Ministério Público de legitimidade para promover o processo penal.
A assistente não deduziu acusação (art. 285º, n.º 1, do C. de Processo Penal) nem, sequer, aderiu à acusação do Ministério Público (art. 284º, n.º 2, al. a), do C. de Processo Penal).
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Atentemos, então, na primeira das questões acima destacadas: para a pronúncia sobre a questão prévia da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, a coberto do disposto no art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, pode proceder-se à alteração do crime imputado, à arguida, segundo a acusação (a chamada alteração da qualificação jurídica)?
O art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, dispõe o seguinte: «recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer».
Isto é, e dito de outra forma, não tendo havido instrução, a fase da audiência não se abre, necessariamente, por a acusação ter sido deduzida, pois há lugar, sempre, à apreciação judicial da verificação dos necessários pressupostos da fase de julgamento; «temos assim que o despacho proferido ao abrigo do art. 311º tem função similar à decisão instrutória, de apreciação da legalidade da acusação e subsistência dos pressupostos para que o arguido possa ser submetido a julgamento pelos factos da acusação», sendo menos exigente, somente, no que toca ao juízo de indiciação.
Então, e por isso, pode suceder que, por causa de um vício processual, o processo não possa prosseguir, por falta, por exemplo, de um pressuposto processual (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e actualizada, 2000, págs. 203, 204 e 183/184).
De acordo com o ensinamento de Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, II, 1986, pág. 10, «pressupostos processuais são requisitos que devem verificar-se para que possa proferir-se no processo uma decisão de mérito ou uma decisão meramente processual»; ou segundo o de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista e actualizada, 2000, pág. 45, «pressupostos processuais são, na perspectiva funcional, requisitos de admissibilidade, condições prévias para a tramitação de uma relação processual, e, na estrutural, são elementos constitutivos da relação jurídica processual, que devem verificar-se para que possa proferir-se no processo uma decisão».
Um dos pressupostos processuais é, manifestamente, então, o da legitimidade do Ministério Público (para promover o processo penal).
Ora, quando se está face a crime particular (que é aquele em que a lei faz depender o procedimento de acusação particular), essa legitimidade não se verifica quando não tiver lugar a acusação particular, isto é, para que, neste caso, o Ministério Público tenha legitimidade para exercer a acção penal é indispensável que o titular do direito de acusação particular, e para lá do mais (que tem a ver, unicamente, com a promoção do inquérito), acuse, isto para que o procedimento possa prosseguir para as fases posteriores (art. 50º, n.º 1, do C. Penal), constituindo-se no que se pode ter por condição de prosseguibilidade (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista e actualizada, págs. 47 e 261, e III, 2ª edição revista e actualizada, pág. 120).
Sucede que situações há em que somente após tratamento jurídico diverso dos factos narrados na acusação, pela alteração da qualificação jurídica dos factos que permitiam sustentar a imputação de um crime ao arguido, em termos de se ter de sustentar a imputação de um crime diferente daquele que constava da acusação, é que é possível atentar na verificação, relevante, daquele pressuposto processual.
Situação que é a do caso: segundo a acusação, o crime imputado à arguida era o de injúria com agravação, com previsão e punição nos arts. 181º, n.º 1, e 184º e 132º, n.º 2, al. i), do C. Penal, e de acordo com o despacho a que alude aquele art. 311º, n.º 1, e com base nos mesmos factos, o crime devia ser o de injúria, com previsão e punição no art. 181º, n.º 1, do C. Penal, crime particular, isto é, crime cujo procedimento depende de acusação particular (art. 188º do C. Penal).
Mas será que se podia, neste despacho, proceder dessa forma?
Não vemos como podemos deixar de responder positivamente.
Na verdade, e em repetição do já acima dito, o despacho a que alude o art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, tem uma função similar à decisão instrutória, pelo que se tem de apreciar a legalidade da acusação e a subsistência dos pressupostos para que possa ter lugar o julgamento do arguido pelos factos da acusação.
Na decisão instrutória, como se intui do disposto no art. 303º, n.º 1, em conjugação, coerente, com o disposto no art. 358º, n.ºs 1 e 3, do C. de Processo Penal, a alteração não substancial dos factos não pode deixar de ser equiparada, em termos de admissibilidade, pelo menos em certos termos, à da qualificação jurídica dos factos.
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista e actualizada, 2000, pág. 383, não deixa de defender entendimento que possibilita, claramente, sem forçar, aquele, pelo menos, também, em certos termos, entendimento que é o seguinte:
«A alteração da qualificação jurídica só deve ser considerada ou equiparada à alteração não substancial dos factos da acusação quando não implique a imputação ao arguido de um crime substancialmente diverso, ou seja, quando o sentido da acusação se mantiver o mesmo, ainda quando diversa na sua gravidade.
É que …, citando Castanheira Neves, “os possíveis pontos de vista incriminatórios não poderão ser diferentes daqueles que estejam em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo do caso concreto”».
Ademais, e mais uma vez no âmbito daquela equiparação, temos que a decisão instrutória podia, unicamente, ter como objecto a qualificação jurídica de determinada factualidade, exactamente porque sempre a mesma podia ter sido o fundamento da instrução (José Souto de Moura, in Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, 1988, pág. 121/122).
E, finalmente, se não se pudesse proceder daquela forma, certamente que estaríamos a consagrar um entendimento claramente ilógico (estando o despacho a que alude o art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, integrado na fase do julgamento, fase em que se integra, igualmente, o disposto no art. 358º, n.ºs 1 e 3, do C. de Processo Penal, que rege para o que a audiência deu ou foi dando a conhecer, seguramente após a produção de prova, em termos relevantes para este aspecto, certamente que não se perceberia que, não sendo necessária a audiência, designadamente através da produção de prova, para afirmar essa alteração da qualificação jurídica, se tivesse de relegar para esse momento, necessariamente ulterior, aquilo que já era passível de considerar) e violador, decisivamente, do princípio da economia processual, pela prática de actos absolutamente inúteis (como aqueles que são a essência daquela fase: os da produção de prova), pois já, em momento anterior (o da elaboração daquele despacho), se sabia e sem necessidade da prática daqueles actos essenciais (pela entidade juridicamente competente: o juiz) que a qualificação jurídica era diversa [«o princípio da economia processual significa simplesmente que não devem ser praticados actos inúteis e vale para todas as fases do processo; deve procurar-se o máximo o máximo rendimento processual com o mínimo custo; nesta conformidade deve cada processo resolver o máximo possível de litígios (economia de processos); e deve por outro lado comportar só os actos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de actos e economia de formalidades); é muito frequente este princípio para evitar a prática frequente de actos inúteis, tanto no inquérito, como na instrução e no julgamento; …; também no julgamento só devem ser produzidos os meios de prova cujo conhecimento seja necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa, devendo ser indeferidos os requerimentos de provas irrelevantes ou supérfluas, de obtenção impossível ou com finalidade meramente dilatória (art. 340º)» - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista a actualizada, 2000, pág.81].
Dito tudo isto, temos que a conclusão, em termos de solução, decisória, para a questão que se veio de abordar, somente pode ser no sentido de que, para a pronúncia sobre a questão prévia da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, a coberto do disposto no art. 311º, n.º 1, do C. de Processo Penal, pode proceder-se à alteração do crime imputado, à arguida, segundo a acusação (a chamada alteração da qualificação jurídica).
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Abordemos, agora, a segunda das sobreditas questões: de acordo com a narração, contida na acusação, dos factos que fundamentam a imputação, à arguida, do crime de injúria com agravação, com previsão e punição nos arts. 181º, n.º 1, 184º, e 132º, n.º 2, al. i), do C. Penal, deve esta mesma imputação manter-se, ou, pelo contrário, tem de ser a do crime de injúria, com previsão e punição no art. 181º, n.º 1, do C. Penal?
Uma evidência: o núcleo da presente questão (claramente delimitado pelo despacho sob recurso e pelas conclusões com que terminou a motivação do recurso) está na verificação, dada a conhecer pelos factos narrados na acusação, da circunstância modificativa agravante prevista no art. 132º, n.º 2, al. i), do C. Penal (na redacção anterior à dada pelo art. 1º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro; depois desta redacção, a única alteração processou-se ao nível da alínea, que passou a ser a l)), mais precisamente respeitando às pessoas aí indicadas, aquando do exercício das suas funções ou por causa delas, como o impõe o art. 184º do C. Penal [«a primeira leitura da norma parece apontar ou sugerir a interpretação que se baseia na ideia por último exposta, isto é, a remissão para a al. i) vale unicamente para se determinar o universo dos candidatos a sujeitos passivos … que possam sustentar a agravação; no entanto, devemos, em bom rigor, trabalhar um pouco mais este 1º grau de interpretação; nesta esteira, dir-se-á, por conseguinte, que não faz sentido - ou faz pouco sentido - chamar o regime da alínea sem, simultaneamente, se convocar - honrando, dessa maneira, o cânone hermenêutico da globalidade - toda a disciplina normativa que envolve a específica regulamentação da já mencionada al. i); e, a esta luz, também ela suficientemente densa para que, sem outras razões, a possamos, desde logo, afastar, dever-se-ia sustentar que o legislador teve como finalidade a aplicação da al. i) dentro de todo o seu contexto normativo; sucede, porém, que uma análise intra-sistemática mais aprofundada diz-nos, por comparação, que o legislador, noutras circunstâncias (v. g., art. 146º, n.º 2), sempre que convocou o regime em toda a sua extensão - regime baseado na técnica dos exemplos-padrão - o fez de forma inequívoca; o que parece introduzir a intencionalidade de que, se, no caso concreto, o não faz é porque queria impor um diferente âmbito de protecção à norma de agravação; a tudo isto acresce que o modus operandi legislativo utilizado na presente norma não é, de modo algum, um caso isolado; tal maneira de circunscrever o universo dos sujeitos passivos susceptíveis de serem vítimas “privilegiadas” é retomado, ponto por ponto, por exemplo, no n.º 2, al. f), do art. 158º; ora, esta nítida divisão aponta para diferentes intencionalidades legislativas; por isso, a al. i) deve ser vista, unicamente, como um catálogo de cargos ou funções que podem “privilegiar” a vítima ou onerar o agente atribuindo-lhes, nas condições referidas na lei, o “privilégio” de verem a honra acrescida do “valor funcional”; o chamamento da referida alínea vale no sentido preciso da expressão significante que ela encerra em leitura simples; a interpretação cruzada, levada a cabo com os diferenciados apelos a determinações intra-sistemáticas ou axiológicas, só vem dar o beneplácito de uma correcta metodologia e tornar, agora, inequívoca a teleologia da norma» - José de Faria da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Artigos 131º a 201º, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, §§ 7 e 8, págs. 653 e 654].
Para o caso, e de acordo com o que, ao nível, genérico, de mera referência, do facto, é narrado pela acusação, a pessoa em causa (ora assistente) é uma professora, que leccionava em escola do ensino básico, que foi tida como uma autoridade pública e como uma funcionária pública, no exercício de funções, funções que se concretizaram na coordenação de uma eleição de professores para a constituição de um preciso conselho executivo.
Dito isto, e tomando em consideração o que consta da al. i), do n.º 2, do art. 132º, do C. Penal, do elenco das pessoas aí consideradas, relevam as seguintes: membro de serviço ou organismo que exerça a autoridade pública e funcionário público.
Mas não só estas, devendo considerar-se, ainda (até porque exaustivamente tido em conta naqueles despacho e conclusões), o docente (expressemos a nossa admiração pela circunstância de se não ter ponderado, expressamente, este aspecto na acusação; a não ser que, no limite, tivesse sido pelo reconhecimento de que ele não era, verdadeiramente, de contemplar, ou, quando não, que tal referência era devida à circunstância de se estar face a membro de serviço ou organismo que exerça a autoridade pública, ou, mesmo, a funcionário público …).
Em primeiro lugar, e no caso, tal como descrito, agora de forma mais desenvolvida, por factos, na acusação, a assistente, que era professora do ensino básico, leccionava aos alunos do 1º Ciclo na Escola D………., ………. .
Ou seja, era, por isso, sem dúvidas, docente (arts. 2º e 35º, n.ºs 1, 2 e 3, als. a) a o), do Dec.-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril; com as alterações introduzidas pelos diplomas legais mencionados no art. 1º e pelo art. 2º, este e aquele da Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro).
Sucedeu que, ainda de acordo, como não podia deixar de ser, mesmo que em certos termos, com os factos narrados na acusação, a assistente teve intervenção na coordenação da eleição realizada para a constituição do E………., tendo sido no fim desta eleição que a arguida se lhe dirigiu e lhe endereçou os já mencionados, digamos assim, impropérios.
Tenhamos presente o que caracteriza a função de docente, que passa, decisivamente, pela sua natureza decisivamente profissional, logo, técnica e científica, enquadrada pelas orientações de política educativa, pelas exigências do currículo nacional, pelos programas e orientações programáticas ou curriculares em vigor e pelo projecto educativo da escola; isto é, essa mesma função concretiza-se em leccionar (disciplinas, matérias e cursos), planear, organizar e preparar (actividades lectivas), conceber, aplicar, corrigir e classificar (instrumentos de avaliação das aprendizagens), participar (no serviço de exames e reuniões de avaliação), elaborar (recursos e materiais didáctico-pedagógicos), participar (na respectiva avaliação), promover, organizar e participar (em todas as actividades complementares, curriculares e extracurriculares, incluídas no plano de actividades ou projecto educativo da escola, dentro e fora do recinto escolar), organizar, assegurar e acompanhar (actividades de enriquecimento curricular dos alunos), assegurar (actividades de apoio educativo), executar (planos de acompanhamento de alunos determinados), cooperar (na detecção e acompanhamento de dificuldades de aprendizagem), acompanhar e orientar (aprendizagens dos alunos), facultar (orientação e aconselhamento em matéria educativa, social e profissional dos alunos), participar (nas actividades de avaliação da escola), orientar (prática pedagógica), participar (em actividades de investigação, inovação e experimentação científica e pedagógica), organizar e participar (como formando ou formador, em acções de formação contínua e pedagógica) e desempenhar (actividades de coordenação administrativa e pedagógica) - art. 35º, n.ºs 1, 2 e 3, als. a) a o), do Dec.-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril; com as alterações introduzidas pelos diplomas legais mencionados no art. 1º e pelo art. 2º, este e aquele da Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro.
Ou seja, quando a assistente participa, digamos assim, de acordo com a narração dos factos feita na acusação, numa eleição para um conselho executivo, não está, como é de patente clareza, perante o que se acabou de explanar, a exercer qualquer daquelas funções características de docente.
É certo que o docente tem direitos, chamados profissionais («direitos especialmente decorrentes do exercício da actividade docente» - Isabel Pires Rodrigues, Júlia Araújo e Luís Silveira Botelho, in Estatuto da Carreira Docente, Anotado, Actualizado pelo Decreto-Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro, 1ª edição, 2007, pág. 32 ), entre os quais se encontra o de participação no processo educativo, através do direito de eleger e de ser eleito para órgãos colegiais dos estabelecimentos de educação ou de ensino (arts. 4º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 5º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Dec.-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril; com as alterações introduzidas pelos diplomas legais mencionados no art. 1º e pelo art. 2º, este e aquele da Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro).
Mas esse direito, quando exercido, não integra, naturalmente, até pelo dito, qualquer das funções características de docente.
E daqui não podemos sair, tanto mais que a expressão da lei, docente, tem um significado que se tem de intuir como rigoroso, preciso («o texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei; mas cabe-lhe, igualmente, uma função positiva, nos seguintes termos; primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma»), para mais quando não se colhe a existência de qualquer outra norma, bem pelo contrário, pelo que acima se viu, que imponha a conclusão de que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador [«quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então, a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis; e que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita; ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar, em princípio, por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento» - João Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, 2000, pág. 182].
Até porque não podemos esquecer que a enunciada qualidade de docente está tipicamente relacionada com (as suas) funções (no exercício delas ou por causa do exercício delas), o que é verdadeiramente impressivo e, por isso, decisivo, não bastando, portanto, a sobredita qualidade («o legislador, a partir de uma lógica que assenta na ideia de que o estatuto funcional … dos cargos de determinadas pessoas acrescenta uma mais-valia à própria honra, passou a considerar que os actos desonrosos que atacassem essa honra acrescida ou densificada mereceriam uma maior punição; é claro que essa intensificação do valor da honra só existe enquanto se está em funções ou, ao menos, não estando em funções, se permite o efeito à distância de se considerar que - se o acto violador da honra, porque ainda resultante daquelas funções - se prende retroactivamente ao exercício das próprias funções; o que tudo dá a ideia de que há uma “honra funcional” - José de Faria da Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Artigos 131º a 201º, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, 1999, § 3, pág. 652 ).
E mais.
Em segundo lugar, igualmente, por isto, se não pode dizer que bastava ter a assistente como membro de organismo ou serviço que exercesse a autoridade pública (face ao sentido objectivo, que é dado pela doutrina administrativa, autoridade pública significa poder público ou o conjunto dos poderes públicos, de imperium - Rodrigues Queiró, Autoridades Administrativas, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 1990, pág. 627; v., a este respeito, os arts. 3º e 8º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril; com as alterações introduzidas pelos diplomas legais mencionados no art. 1º e pelo art. 2º, este e aquele da Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro) para aquela circunstância modificativa agravante se ter, desde logo, por verificada, isto é, reiterando o já, decisivamente, dito, era necessário, incondicionalmente, que aquela estivesse no exercício de funções (de docente, portanto) ou a descrita actuação da arguida tivesse como justificação esse exercício de funções (de docente).
Em terceiro lugar, e pelas mesmas, essenciais e decisivas razões, também a qualidade de funcionária pública, por banda da assistente, não bastava para aquele efeito, face à circunstância de que tinha de ter estado no exercício de funções (de docente, portanto) ou a descrita actuação da arguida tinha tido como justificação esse exercício de funções (de docente), o que até releva do facto de a sobredita qualidade ter a ver com a de docente (art. 34º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 139-A/90, de 28 de Abril; com as alterações introduzidas pelos diplomas legais mencionados no art. 1º e pelo art. 2º, este e aquele da Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro).
E o certo, também para aqui, é, como se disse, que a assistente não estava no exercício de funções.
Nem, tão-pouco, de acordo com a narração que a acusação faz dos factos ilícitos típicos, se pode dizer que as acima concretizadas expressões dirigidas pela arguida à assistente tivessem a ver com o exercício das indicadas funções de docente, pois, daquelas, nada se retira, com mínima segurança (nenhuma, mesmo, temos de o dizer, sem titubear …), que tivessem, as mesmas, a ver com o dito exercício de funções (evidentemente que, raciocinemos de forma mais ampla, ainda que, somente, para efeitos de demonstração, não podemos ter como bastante a menção a “Professora C……….”, já que ela somente tem valia para identificar a pessoa que a arguida invectivava, nada dizendo sob que aspecto tal identificava o exercício daquelas precisas funções …).
Dito tudo isto, temos que a conclusão, em termos de solução, decisória, para a questão que se veio de abordar, somente pode ser no sentido de que, de acordo com a narração, contida na acusação, dos factos que fundamentam a imputação, à arguida, do crime de injúria com agravação, com previsão e punição nos arts. 181º, n.º 1, 184º, e 132º, n.º 2, al. i), do C. Penal, não pode (deve) esta mesma imputação manter-se, tendo a ajustada de ser (esta concreta imputação, de forma, aliás, completamente compreensiva, já que o que não era pacífico, neste âmbito era, somente, a verificação, ou não, da sobredita circunstância modificativa agravante, não foi posta em causa no recurso que ora se aprecia, como se colhe das acima enunciadas conclusões com que se finalizou a motivação …) a do crime de injúria, com previsão e punição no art. 181º, n.º 1, do C. Penal, isto, como não podia deixar de ser, com as consequências ditadas no despacho sob recurso (que, mais uma vez de forma coerente, pelo já dito quanto a este fundamento da discordância manifestada pelo recurso, não foi - nem podia, convenhamos, como é de fácil demonstração, feita no despacho em crise - objecto de dissensão decisória …).
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Aqui chegados, e por tudo o que se disse, é tempo de afirmar a conclusão final: improcede o recurso.
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3. Dispositivo
Nega-se provimento ao recurso.
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Porto, 24 de Setembro de 2008
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento