Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00041257 | ||
Relator: | GUERRA BANHA | ||
Descritores: | DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO IMPUGNAÇÃO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP200804010820528 | ||
Data do Acordão: | 04/01/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 268 - FLS. 178. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | 1. O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento realizado em 1ª instância e a consequente reanálise de todas as provas aí produzidas, mas tão só a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento. 2. Não basta ao recorrente atacar a convicção do tribunal recorrido para provocar uma alteração da matéria de facto; é indispensável, sob pena de rejeição, que cumpra os ónus de especificação impostos pelos nºs 1 e 2 do art. 690º-A do CPC. 3. Estes ónus consistem em: - especificar quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; - indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; - desenvolver a análise crítica dessas provas que demonstre que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível nem plausível 4. A credibilidade que o julgador atribui ao depoimento de cada testemunha é insusceptível de sindicância, já que assenta no contacto directo que o próprio estabelece dialecticamente com as testemunhas, em que, para além da razão de ciência e da expressão verbalizada, intervém um conjunto de outros elementos, físicos e psicológicos, inerentes à postura mantida em audiência por cada testemunha ao longo do seu depoimento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 528/08-2 1.ª Secção Cível Acordam no Tribunal da Relação do Porto I 1. Nos presentes autos de acção declarativa com processo comum ordinário que corre termos no …...º Juízo Cível da comarca de Gondomar com o n.º …../2000, B……………, residente em Fânzeres, demandou C……………, residente na mesma localidade, pedindo que se declare nulo e de nenhum efeito o testamento identificado no art. 11.º da p.i., ou seja, o testamento de D……………., lavrado em 28-05-1999, no Cartório Notarial de Rio Tinto, a fls. 26 e 27 do Livro de Testamentos 13T, para que fique a prevalecer o testamento feito anteriormente pela mesma testadora. Alegou, em síntese, que a testadora foi pressionada e coagida pela ré a fazer o testamento, mas já não tinha capacidade intelectual para decidir o que fazer ao seu património nem para entender o alcance do testamento, cujo conteúdo não corresponde à vontade da testadora, sendo ela, Autora, e um seu primo, de nome E…………….., os únicos herdeiros legais da D……………., falecida em 24-06-1999. A Ré contestou, negando que tenha coagido a testadora a fazer o testamento, sustentando que esta estava no gozo das suas capacidades intelectuais para decidir livremente e em consciência sobre os seus bens e concluindo pela improcedência da acção e a condenação da Autora, em multa e indemnização a favor da Ré, por litigância de má-fé. A autora apresentou réplica onde impugna alguns dos factos alegados na contestação e concluiu como na petição inicial. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e absolveu a Ré do pedido. 2. A Autora apelou dessa sentença, extraindo das suas alegações as conclusões seguintes: 1. O testamento objecto dos autos contém – e o seu conteúdo está dado como assente – em si próprio a incapacidade da sua autora; 2. Ela ditou-o ao Notário e nele legou – aliás mantendo o anterior testamento que tinha feito com a ajuda e na presença do marido – à sobrinha neta D…………….. duas fracções autónomas; 3. E legou também aos irmãos da D…………., F……………. e G………………, também 2 fracções a cada um. E, embora os três sejam irmãos intitulou-os filhos da irmã; 4. O que é denotador da sua incapacidade; 5. A própria assinatura está muito frágil, muito tremida; 6. A falecida tinha quase 84 anos à data do falecimento, faleceu menos de um mês após a celebração do testamento e deste não foi testemunho nenhum médico; 7. A falecida vivia com a Ré que não deixava ninguém aproximar-se e ficar sozinho com ela: 8. A falecida não era auto-suficiente e vivia com a Ré; 9. Da reprodução vídeo constante dos autos resulta claro que a falecida esteve totalmente dependente da Ré e não tinha autonomia e capacidade para se decidir; 10. A Ré foi efectivamente funcionária da família e porque foi dedicada os falecidos (a D. D………….. e o falecido marido) a contemplaram com um óptimo legado, não obstante lhe terem pago a retribuição sempre; 11. Nunca por nunca a fizeram herdeira universal, tendo-se tornado pelo testamento impugnado, celebrado poucos dias antes do falecimento da testadora com quase 84 anos de idade; 12. O testamento não estava marcado no Notário mas sim uma habilitação de herdeiros; 13. Foi a Ré quem pagou o seu custo; 14. Foi a Ré quem contratou a sua testemunha H………… para o preparar; 14. Apurou-se que a falecida andava com um cartão no bolso, que se perdia e não sabia ir para casa; 15. Já o primeiro testamento da falecida foi orientado pelo marido; 16. A alteração efectuada no testamento proporcionou à Ré largas centenas de milhares de contos; 17. A testemunha I……………. afilhado da falecida esclareceu que esta o não conheceu, que não podia andar sozinha, que não tratava de dinheiro, esclarecendo que o próprio marido em sua vida a considerava trenga. Que a falecida nem sabia o número do telefone, nem ir para casa; 18. A testemunha D. J………….. referiu que quando lhe perguntou o que foi fazer ao Banco lhes respondeu: a L…………… é que sabe; 19. A testemunha M………….. afirmou que quando se perdeu no Souto – disse eu não sei por onde andei – o N…………. (o marido) é que sabe; 20. A testemunha O…………. afirmou que a D. D………… (a falecida) não atinava; 21. A testemunha P…………… também confirmou a falta de capacidade da falecida; 22. A testemunha Q…………. esclareceu que ainda em vida do marido a encontrou perdida perto do cemitério não se sabendo orientar numa zona sua conhecida (esperava pelo marido fora do cemitério e andou e perdeu-se); 23. A testemunha R…………… confirmou a falta de capacidade do falecido acto para as coisas mais pequenas; 24. Consideram-se incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto: 25. Assim, quanto ao quesito 1.º entende-se dever ser alterada a resposta para: a falecida na altura da celebração do testamento referido em E) estava acompanhada pela Ré, Ré que pagou a escritura e que encarregou a testemunha H……………… de tudo tratar. Quesito 2.º para provado. Quesito 3.º para provado na totalidade. Quesitos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º para provado. Quesitos 8.º, 9.º, 10.º, 11.º e 12.º para provados. Quesitos 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 20.º e 21.º para provados. Quesito 25.º para – a falecida D………….. desde há muitos anos que dizia que a Ré seria contemplada no seu testamento. Quesito 36.º provado que a falecida era diabética. Quesito 37.º, 38.º e 39.º manter-se a resposta dada mas com a explicitação que sempre acompanhada. 26. Os meios probatórios são em especial os depoimentos de todas as testemunhas que indicamos que estão gravadas e cujos registos estão devidamente referenciados nos actos do julgamento que aqui se dão por reproduzidos por razão de economia. A Ré não contra-alegou. 3. De harmonia com as disposições legais contidas nos arts 684.º, n.ºs 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação que delimitam o objecto do recurso. Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela apelante, o objecto do recurso visa, essencialmente, a decisão proferida sobre a matéria de facto, quanto às respostas dadas aos quesitos n.º 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 20.º, 21.º, 25.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º, que a apelante pretende que sejam alteradas no sentido que propõe, e, com base nessa alteração a realizar na matéria de facto provada, que a acção seja julgada procedente, declarando-se nulo o testamento. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II 4. No tribunal recorrido foram julgados provados os factos seguintes: 1) Em 24 de Junho de 1999 faleceu D……………, no estado civil de viúva de S………….., com 83 anos de idade (alínea A) dos Factos Assentes). 2) A falecida era filha de T…………. e U………….. (alínea B) dos Factos Assentes). 3) A autora é sobrinha da falecida (alínea C) dos Factos Assentes). 4) A falecida, à data da morte não tinha filhos, irmãos ou irmãs vivos (alínea D) dos Factos Assentes). 5. A falecida em 28/05/99 celebrou no cartório notarial de Rio Tinto uma escritura de testamento, lavrada de fls. 26 a 27 do livro de testamentos 13T do referido Cartório (alínea E) dos Factos Assentes). 6) Em vida do marido, era ele quem de tudo tratava (resposta ao quesito 3.º). 7) Era a ré C…………. quem tratava de tudo à ré (resposta ao quesito 6.º). 8. A ré C…………… estava sempre presente, ao lado da autora (resposta ao quesito 8.º). 9) A falecida, pelo menos nos seus últimos tempos de vida, tinha dificuldade em se deslocar sozinha (resposta ao quesito 9.º). 10) Mesmo em vida do marido andava com um cartão no bolso com a morada (resposta ao quesito 10.º). 11) Não foi a falecida quem marcou a escritura (resposta ao quesito 15.º). 12) O património financeiro da falecida era muito elevado (resposta ao quesito 19.º). 13) A falecida, orientada pelo seu falecido marido, celebrou um testamento, em 1995, em que já dispôs dos bens a favor do marido no caso de falecer primeiro e onde já efectuou vários legados para o caso de falecer depois (resposta ao quesito 22.º). 14) Depois, em 6 de Outubro, rectificou o testamento (resposta ao quesito 23.º). 15) Ao celebrar estas escrituras fê-lo na presença do marido que simultaneamente celebrou outras idênticas (resposta ao quesito 24.º). 16) A falecida D………….. desde há muitos anos e até à hora da morte sempre disse que a sua herdeira era a ré (resposta ao quesito 25.º). 17) Há alguns anos, os falecidos D………… e marido, porque não tinham filhos, pediram à autora que os deixasse ir morar com ela que lhes deixariam tudo, instituindo-a única e universal herdeira (resposta ao quesito 27.º). 18) A autora recusou sempre tal pedido (resposta ao quesito 28.º). 19) Desde 1968 até à morte do último, a ré trabalhou para os falecidos D………… e marido... (resposta ao quesito 30.º). 20) Até 1980 no estabelecimento de móveis que aqueles exploraram e na lide da residência deles... (resposta ao quesito 31.º). 21) Depois de 1980 na lide da residência deles e nos trabalhos e colaboração de que eles carecessem (resposta ao quesito 32.º). 22) Em 1984 ou 1985 o falecido S………….. disse mesmo à ré que deixaria um testamento... (resposta ao quesito 34.º). 23) A falecida era diabética, sendo como tal portadora de um cartão com o nome telefone e morada (resposta ao quesito 36.º). 24) A falecida levantava-se de manhã, ia à missa de autocarro, e ao fim da manhã regressava a casa (resposta ao quesito 37.º). 25) A falecida passeava muito de autocarro (resposta ao quesito 38.º). 26) A falecida ia ao banco (resposta ao quesito 39.º). 27) A falecida e a ré foram juntas ao banco, tendo aquela dado instruções para fazer transferência de dinheiro para o Brasil (resposta ao quesito 40.º). III 5. Como ficou enunciado supra, é sobre a decisão proferida quanto à matéria de facto controvertida que incide o presente recurso. Pretendendo a apelante que sejam alteradas as respostas dadas aos quesitos n.º 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 20.º, 21.º, 25.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º, ou seja, todos os quesitos que contêm matéria de facto que, na sua globalidade, é susceptível de revelar que a testadora não estava no gozo das suas capacidades volitivas e foi coagida pela ré a alterar o testamento que havia feito anteriormente. Antes, porém, de nos determos na apreciação em concreto sobre o mérito desta pretensão da apelante, importa fazer duas breves considerações preliminares: a primeira, de natureza adjectiva, tem que ver com a finalidade e o regime do recurso em matéria de decisão de facto; a segunda, de direito substantivo, tem que ver com a força probatória dos documentos autênticos, como é o caso do testamento aqui em causa, e a restrição legal de a fazer ilidir apenas na base da sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do Código Civil), que neste caso a Autora não arguiu. 5.1. Quanto à finalidade e ao regime do recurso em matéria de decisão de facto, é hoje entendimento consensual na doutrina e na jurisprudência que das disposições legais contidas nos artigos 690.º-A, n.ºs 1 e 2, e 712.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, decorrem estas duas conclusões nucleares: 1.º) que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento realizado na 1.ª instância e a consequente reanálise de todas as provas aí produzidas, mas visa tão só “a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento” (cfr. LOPES DO REGO, em Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. I, p. 468 e 592; e ac. do STJ de 21-06-2007, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 06S3540). O que quer dizer que a reapreciação da matéria de facto pela Relação tem um campo muito limitado aos casos em que “ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada” (cfr. acs. desta Relação de 29-05-2006, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0650899, e de 19-02-2008, proferido na Apelação n.º 6122/07-2); 2.º) que não basta ao recorrente atacar a convicção do tribunal recorrido para provocar uma alteração da matéria de facto. É indispensável, “sob pena de rejeição”, que cumpra os ónus de especificação impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art. 690.º-A do Código de Processo Civil, que consistem em: a) especificar quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; b) indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; c) desenvolver a análise crítica dessas provas que demonstre que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível ou não é plausível (cfr., entre muitos outros, os acs. do STJ de 25-09-2006, 10-05-2007, 30-10-2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 0654155, 06B1868 e 07A3366, respectivamente). Neste caso, evidencia-se que a apelante manifesta a sua discordância com a decisão do tribunal recorrido relativamente a todos os pontos de facto que lhe são desfavoráveis, fazendo-o por razões de mero interesse subjectivo, e não por erro evidente de julgamento que, como se irá demonstrar, não ocorreu. Acresce que, baseando esta sua impugnação em depoimentos prestados e gravados em audiência de julgamento, competia-lhe, nos termos do n.º 2 do art. 690.º-A do Código de Processo Civil, referenciar esses depoimentos pelos registos das gravações, o que não fez, apenas remetendo para as actas da audiência de julgamento. O que, mesmo concedendo que não deva constituir motivo para rejeitar o recurso, não deixa de ser mais uma imprecisão, a somar às demais, que não reverte em favor da apelante. 5.2. Quanto à restrição legal imposta pelo n.º 1 do art. 372.º do Código Civil, no sentido de que a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida na base da sua falsidade, ocorre dizer que: Nesta acção, a Autora pretende a declaração de nulidade de um testamento público, lavrado por notário no livro de notas respectivo (art. 2205.º do Código Civil), sendo, por isso, um documento autêntico (arts. 363.º, n.º 2, e 369.º, n.º 1, do Código Civil). Para fundamentar o pedido de declaração de nulidade do testamento, a Autora/apelante alegou que a testadora “foi pressionada e coagida” pela ré a fazer o testamento e que já “não tinha capacidade intelectual para decidir” o que fazer ao seu património nem para entender o alcance do testamento. Este tipo de alegação dúbia e imprecisa leva a que se deva questionar que tipo de vício ou vícios a Autora aponta ao testamento: o vício da coacção física, a que alude o art. 246.º do Código Civil, ou o da coacção moral, previsto no art. 255.º do mesmo código? o vício da falta de consciência da declaração, a que também alude o art. 246.º do Código Civil, ou o vício da incapacidade acidental referido nos arts. 257.º e 2199.º do mesmo código? E a dúvida é tanto mais pertinente quanto se constata que, quer na petição inicial quer nas alegações deste recurso, a Autora não indicou qualquer norma jurídica em que baseia este pedido de nulidade. Sendo certo que a declaração negocial só é nula ou anulável quando nasce afectada por algum vício que a lei sanciona com algum daqueles efeitos (cfr. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, em Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 468, e HEINRICH EWALD HÖRSTER, em A parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 1992, p. 515). Ora, só em relação aos vícios referidos no art. 246.º do Código Civil (coacção física e falta de consciência da declaração) é que, na interpretação de alguns autores, a declaração é nula (neste sentido, CASTRO MENDES, em Teoria Geral do Direito Civil, (AAFDL), vol. II, p. 137). O preceito em causa prescreve que “a declaração não produz qualquer efeito”, o que é interpretado por outros autores como um caso de “inexistência jurídica”, e não de nulidade (neste sentido, C. A. MOTA PINTO, ob. cit. p. 403, e LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, em Teoria Geral, 1983, 2.º, p. 396). Já no que respeita à coacção moral e à incapacidade acidental, a lei sanciona-os com a anulabilidade (arts. 256.º, 257.º, 2199.º e 2201.º do Código Civil), cujo regime de arguição e efeitos diverge do regime da nulidade (arts. 286.º, 287.º e 289.º do Código Civil). Não é, pois, indiferente que a Autora devesse esclarecer com precisão que vício ou vícios da vontade aponta ao testamento. Sucede que consta do teor do testamento, certificado a fls. 17-20, que: “No dia 28 de Março de 1999, no Cartório Notarial de Rio Tinto, perante o notário Licenciado V……………, compareceu como outorgante D…………..” e que “pela outorgante foi dito que faz o seu testamento pela forma seguinte”, seguindo-se o texto das disposições sobre os bens. No final desse texto, o notário fez constar que: “Li este testamento e expliquei o seu conteúdo em voz alta à outorgante na presença simultânea de todos os intervenientes”. Não tendo sido arguido a falsidade do testamento, este, como documento autêntico que é, faz prova plena quanto aos factos contidos nesses dizeres (art. 371.º n.º 1, do Código Civil), já que se tratam ou de factos praticados pelo próprio notário, ou de factos por ele directamente percepcionados (cfr. ac. do STJ de 09-10-1996, na CJ-STJ/ano IV-1996/Tomo III/p. 41, e ac. da Relação do Porto de 05-02-1987, na CJ/ano XII-1987/Tomo I/p. 219). É certo que, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça antes citado, a não arguição da falsidade do testamento não impedia a autora de demonstrar que a testadora, ao outorgar no testamento, havia sido coagida física ou moralmente, ou que não tinha a consciência das declarações que prestou perante o notário, ou que se encontrava incapacitado de entender o sentido das suas declarações, ou ainda que não tinha o livre exercício da sua vontade (art. 2199.º do Código Civil). Não obstante, tem que reconhecer-se que era um ónus (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil) e um desafio de grau de dificuldade muito elevado, face aos vários obstáculos de ordem legal que se deparavam e lhe incumbia ultrapassar, como, a propósito de um caso similar, refere M. HENRIQUE MESQUITA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 130.º, p. 141, comentando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima citado. É que, do contexto do documento que refere que a testadora fez as declarações nele exaradas e que essas declarações foram-lhe lidas e foi-lhe explicado o seu conteúdo pelo notário já decorre, implicitamente, que a testadora teria agido, pelo menos aparentemente, com vontade livre e com conhecimento do significado das declarações que fez perante o notário e este reproduziu no texto do documento, porquanto, se assim não fosse, o notário deveria ter-se recusado a lavrar o testamento ou, ao menos, teria que fazer constar essas menções do próprio documento, como lhe era imposto pelo art. 173.º, n.º 1, als. a) e c), do Código de Notariado, segundo a redacção então vigente. Prescreve este artigo, nos segmentos referidos, que o notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado se esse acto for nulo ou se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes. Ora, tem que entender-se que o notário que lavrou este testamento não desconhecia o preceito legal citado, como não desconhecia os vícios que a lei prevê como causas de nulidade do testamento. O qual, por isso, deveria ter-se recusado a praticar o acto se detectasse a existência de algum desses vícios, seja em relação à pessoa da testadora, seja em relação ao conteúdo das suas declarações. E se dúvidas tivesse sobre a integridade das faculdades mentais da testadora, incumbia-lhe supri-las com o recurso a dois peritos médicos que garantissem a sanidade mental daquela, devendo este facto ser mencionado no documento, como impõem os arts. 173.º, n.º 2, 46.º, n.º 1, al. h), e 67.º, n.º 4, todos do Código do Notariado. Não constando do documento nenhuma dessas menções, só pode concluir-se que ao notário nenhuma dúvida se suscitou acerca das faculdades mentais da testadora, designadamente sobre a sua capacidade de entender o significado das declarações que prestou. O que, aliás, foi pelo próprio confirmado no depoimento que prestou em audiência de julgamento. Acresce que, nos termos do n.º 2 do art. 42.º do Código do Notariado, a terminologia a utilizar pelo notário na redacção dos actos é aquela que, em linguagem jurídica, melhor traduza a vontade das partes. Pelo que deve entender-se, na falta de prova em contrário, que o notário reproduziu no documento por si exarado a redacção que melhor correspondia à vontade e ao sentido das declarações perante si emitidas pela declarante. E se a estas referências se acrescentar ainda que a função notarial é dotada por lei de fé pública (art. 1.º, n.º 1, do Código do Notariado) e que nenhuma ilicitude é apontada à conduta do notário que lavrou este testamento, facilmente se percebem os enormes obstáculos de ordem legal que à apelante se colocavam para, não arguindo a falsidade do testamento, poder demonstrar a existência de eventuais vícios que pudessem afectar a vontade da testadora e fossem geradores da nulidade do testamento. O que, de algum modo, também já esclarece a falta de rigor em algumas das “interrogações” que a apelante suscita sobre a convicção formada pelo tribunal recorrido. 6. Feitas estas observações, que reputamos pertinentes para o esclarecimento das dúvidas que a apelante opõe à decisão sobre a matéria de facto, importa apreciar em concreto os pontos de facto impugnados. Constam estes factos dos quesitos n.º 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 20.º, 21.º, 25.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º da base instrutória. 6.1. O quesito 1.º tem a seguinte redacção: “A falecida, na altura da celebração do testamento referido em E), foi pressionada e condicionada pela ré C……………..?”. O tribunal recorrido respondeu “não provado”. A apelante pretende que se responda: “Provado que a falecida, na altura da celebração do testamento referido em E), estava acompanhada pela Ré, que pagou a escritura e que encarregou a testemunha H…………. de tudo tratar”. A resposta que a apelante propõe já sugere conformidade com a resposta dada pelo tribunal recorrido, no sentido de que não foi feita prova de que a testadora tivesse sido “pressionada” e “condicionada” pela Ré (pese a imprecisão que caracteriza estes termos, os quais, todavia, reflectem a imprecisão da alegação da Autora, a que já fizemos referência). Porém, os factos que a apelante pretende inserir na resposta ao quesito ficam à margem do seu âmbito, não estão fundamentados em provas concretas e, acima de tudo, são totalmente irrelevantes para a decisão. 6.2. O quesito 2.º perguntava: “A falecida já há vários anos que não tinha capacidade intelectual para dispor do seu património e para gerir a sua vida?”. O tribunal recorrido respondeu “não provado”. Fundamentando a sua resposta nos depoimentos, que considerou fiáveis e credíveis pelas razões de ciência reveladas e pela isenção que mostraram ter em relação ao objecto da causa, das testemunhas H……………., que conhecia a testadora e o seu marido, há mais de 20 anos, e foi testemunha do testamento de 1999, X………….., que foi caseira da falecida durante 32 anos e também foi testemunha do mesmo testamento, Padre Y……………, pároco da paróquia que conhecia bem testadora e o seu marido, de quem era amigo e com quem privou de perto, Z………….., afilhado do casal, os quais visitava regularmente, e Dr. BB………….., que conheceu a testadora com quem se encontrava regularmente nos últimos quatro anos, todos tendo declarado que a testadora estava na posse das suas capacidades intelectuais e que ela e seu marido sempre manifestaram vontade de instituir a ré sua herdeira A apelante pretende que se considere este quesito como provado, com a seguinte argumentação: porque, no testamento, tratou os legatários F………….. e G…………. como sendo filhos da R…………… quando são irmãos desta; a assinatura que fez neste testamento está mais tremida do que a que consta de fls. 24 e 27; ia fazer 84 anos; e a gravação e a cassete vídeo reproduzidas em audiência são esclarecedoras da incapacidade intelectual da testadora. Ora, a fragilidade desta argumentação é inequívoca. Desde logo porque a apelante nem sequer indica qual a causa da incapacidade intelectual da testadora, que tipo de doença afectava as suas funções cognitiva e volitiva. A idade e a velhice não são, só por si, causas incapacitantes das funções intelectuais das pessoas. E, portanto, haveria que estabelecer a conexão do alegado estado incapacitante da testadora com uma causa que fosse adequada a produzi-lo. E essa conexão não foi estabelecida. Além disso, é patente que a apelante confunde eventuais lapsos de memória, que ocorrem com qualquer pessoa independentemente da idade, com o estado de incapacidade intelectual ou demência. O facto de ter tratado os irmãos da Autora como sendo filhos desta não passa de um lapso (que pode ser um lapso material, de comunicação ou de memória), mas não é, só por si, um sintoma de anomalia psíquica, de incapacidade intelectual. Aliás, não obstante esse lapso, ela soube identificá-los pelos seus verdadeiros nomes e beneficiá-los com alguns dos seus bens (não foi legá-los a pessoas estranhas). Quanto à assinatura, é normal em todas as pessoas que, com o andar dos anos, a escrita saia menos escorreita, mais tremida, mais desproporcionada. A verdade é que não restam dúvidas de que foi ela quem assinou e que o fez com o seu nome completo e correcto, e não com um nome diferente do seu. Relativamente ao conteúdo da gravação e do vídeo, o tribunal recorrido considerou-os sem relevância, por se tratar de registo de casos isolados, episódicos e inconclusivos e, como tal, absolutamente inidóneos para demonstrar o alegado estado de incapacidade intelectual da pessoa. Competia à apelante desenvolver a análise do conteúdo dessas provas, susceptível de demonstrar a sua relevância probatória. O que não fez. Não existe, pois, o menor fundamento para alterar a resposta dada pelo tribunal recorrido. 6.3. Os quesitos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 17.º e 21.º contêm factos interligados com o estado de incapacidade intelectual da testadora referido no quesito 2.º e estavam formulados do seguinte modo: 3.º – Em vida do marido, era ele quem de tudo tratava, não tendo a falecida acesso ou conhecimento acerca dos dinheiros e negócios do casal? 4.º – Tão pouco procedia aos pagamentos dos fornecimentos mais elementares quer da luz, quer da água, quer das compras necessárias à alimentação e ao seu próprio vestuário? 5.º – A falecida era incapaz de gerir a sua vida doméstica? 6.º – Era a ré C…………. quem tratava de tudo à ré, limitando-se a falecida a assinar o que ela lhe punha à frente para assinar? 9.º – A falecida não tinha capacidade intelectual e física para andar sozinha? 10.º – Mesmo em vida do marido andava com um cartão no bolso com a morada para, no caso de se perder, a levarem a casa? 11.º – A falecida perturbava-se, enervava-se e não sabia sequer ir para casa? 12.º – Era a ré quem movimentava as contas bancárias da falecida, limitando-se esta a assinar o que lhe punham à frente, dizendo muitas vezes quem manda é a C……………, ela é que sabe o que devo fazer? 17.º – A falecida dependia intelectual e fisicamente da ré? 21.º – A falecida, poucos meses antes de morrer, ficou tão perturbada, perturbação de que nunca se recompôs, que já não conhecia pessoas das suas relações há mais de 40 anos? O tribunal recorrido, baseando-se nos depoimentos das cinco testemunhas já acima identificadas, respondeu a estes quesitos: 3.º – Provado apenas que em vida do marido, era ele quem de tudo tratava; 6.º – Provado apenas que era a ré C…………. quem tratava de tudo à ré (é manifesto que tanto a redacção do quesito como a resposta que lhe foi dada contêm um lapso de escrita, quando referem que “era a ré C…………… quem tratava de tudo à ré”; o facto que se quer provar e que foi considerado provado é que “era a ré C……………. quem tratava de tudo à testadora”, o que deve ser corrigido). 9.º – Provado apenas que a falecida, pelo menos nos seus últimos tempos de vida, tinha dificuldade em se deslocar sozinha; 10.º – Provado apenas que mesmo em vida do marido andava com um cartão no bolso com a morada; Quesitos 4.º, 5.º, 11.º, 12.º, 17.º e 21.º – Não provados. A apelante pretende que os factos contidos nestes quesitos sejam considerados provados na totalidade. Quanto a provas, indica os depoimentos das seguintes testemunhas: 1) I……………, afilhado, que disse que ela não o conheceu em 1995, numa festa que o padrinho (marido da testadora) organizou para os afilhados; que ela não podia andar sozinha, tinham que a segurar e tinham que lhe fazer de comer; e que ela não estava por dentro dos negócios do padrinho, não tratava do dinheiro, não pagava a luz, a água, não andava com dinheiro; que não ia sozinha a lado nenhum, nem à missa ia sozinha, e que se perdeu uma vez em Fânzeres e não soube ir ter a casa; que não sabia o número de telefone da casa nem sabia fazer uma chamada para casa; que o padrinho (marido da testadora) lhe dizia que ela estava “trenga”, estava “choné”; 2) J………….., sua conhecia, que disse que “a coitada não podia fazer nada”, que conversava quase todos as semanas com ela mas “falava pouco e não falava sobre nada sério” e ouviu a Autora perguntar-lhe “a madrinha sabe o que foi fazer ao Banco?” e ela respondeu-lhe que “a C…………. é que sabe”; 3) M………….., que disse que ela se perdeu, no dia do casamento do Toninho adormeceu na missa, na mesa deram-lhe à boca, tiveram que a levar ao quarto de banho, perdeu-se no Souto e disse “eu não sei por onde andei, o S………… é que sabe” e depois que levou a trombada (que trombada?...) ficou muito mal; 4) O…………, sacristão, que disse que ia lá para pagar a renda e ela não recebia nem passava recibo, não dizia nada de jeito e não atinava; 5) P…………., que disse que a D. D…………… não se relacionava, dizia que “a C……………. é que sabe, eu não sei”, tinha olhar pasmado, não trazia dinheiro nem o sabia gastar; 6) Q…………., que disse que ela não se sabia localizar junto ao cemitério ainda no tempo do marido, tendo sido a testemunha que a orientou para se encontrar com o marido; e já depois de viúva, viu-a sentada num degrau de uma casa com o chão molhado estando a filha da Ré por perto; 7) R…………. e BC………….., que disseram que ela não consegui afazer as coisas mais pequenas e simples como escolher a roupa que ia vestir. O tribunal recorrido considerou que estas testemunhas “não demonstraram um conhecimento directo dos factos constantes da base instrutória, apresentando depoimentos ora baseados em meras opiniões, ora imprecisos”, desvalorizando os seus depoimentos relativamente aos das cinco testemunhas acima referidas, que considerou mais consistentes e mais credíveis e prestaram declarações em sentido contrário a estas. A credibilidade que o julgador atribui ao depoimento de cada testemunha é insusceptível de sindicância, já que assenta no contacto directo que o próprio estabelece dialecticamente com as testemunhas, em que, para além da razão de ciência e da expressão verbalizada, traduzida nas respostas dadas a cada pergunta, intervêm um conjunto de outros elementos, físicos e psicológicos, inerentes à postura mantida em audiência por cada testemunha ao longo do seu depoimento, e que no seu conjunto integram o que se designa por “linguagem silenciosa e do comportamento” (cfr. RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, em A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997; e ac. do STJ de 20-09-2005, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 05A2007). Porque tais elementos são insusceptíveis de ser captados pela gravação, o juízo de credibilidade atribuído a cada testemunha apenas pode ser constatado e apreciado através da motivação da decisão, mas é insusceptível de ser rebatido, em sede de recurso, por qualquer outro tribunal superior, com base nas gravações áudio, por lhe faltarem a relevância dos elementos físicos e psicológicos transmitidos pela imediação. Em todo o caso, importa aqui realçar os seguintes aspectos que decorre daqueles depoimentos: 1) O primeiro é que as frases que a apelante transcreve dos depoimentos das testemunhas acima referidas estão desinseridas do contexto em que foram proferidas, já que se reportam, na sua globalidade, a casos isolados de que ouviram falar e eram precedidas da expressão (omitida pela apelante) “eu acho que …”, “ouvi dizer que uma vez…”. A ponto de, em relação a algumas delas, o Sr. advogado que procedia ao seu interrogatório (aparentemente, o advogado da Autora) as ter interpelado nestes termos: “o senhor só acha, só acha … isso não vale nada. (…) Ou sabe ou não sabe e diz que não sabe”. 2) A testemunha M…………, quando perguntada se a D. D…………, quando foi fazer o testamento, sabia o que estava a fazer, deu esta ilustrativa resposta: “só sei que estava tudo uma gatafunhada … aquilo foi tudo uma gatafunhada”. Como se percebe pelas respostas dadas às perguntas subsequentes que lhe foram feitas, a “gatafunhada” a que se referia era a assinatura da testadora constante do testamento. Todavia, respondeu que nunca viu esse documento e nunca viu essa assinatura, apenas lhe fora dito (por quem e com que fim?...). E foi em contextos como este que as testemunhas referidas falaram da testadora como sendo uma incapaz, uma demente. 3) A globalidade destas testemunhas não tinha contactos regulares com a testadora, sobretudo nos últimos anos, em que não a encontraram mais do que uma ou duas vezes em intervalos de dois ou mais anos. Foram os casos das testemunhas I…………., M…………… e Q…………… (esta nem soube dizer há quantos anos – 5, 10, 15 ― não a tinha visto, quando sucedeu o caso que contou). 4) A testemunha I………….., afilhado, quando disse que ela não ia para lado nenhum sozinha e não podia andar sozinha, referiu-se a problemas de saúde física, e não a problemas de natureza psíquica ou mental, esclarecendo que ela não se segurava das pernas e caía. Perguntado depois “E da cabeça?” respondeu: “Nem pensar”, querendo com isso dizer que ela também não estava bem da cabeça, e que o “padrinho” (referindo-se ao marido da testadora), lhe dissera uma vez (em conversa de homens) que ela estava “trenga” (segundo os dicionários de língua portuguesa que contêm a palavra «trengo», atribuem-lhe o significado de “maçador”, “importuno”, e não de “maluco”, “incapaz” ou “demente”). Esta testemunha identificou-se como sendo “carpinteiro”; passavam-se anos sem ver e contactar com a “madrinha”; no espaço de vários anos, teve um encontro de alguns minutos com ela, ainda em vida do marido, quando este o chamou lá a casa por causa da festa que ia dar aos afilhados; perguntado “com quem ela ficou a viver após a morte do marido” respondeu “parece que foi aqui com a senhora que já lá estava”. Sendo estes os elementos de referência da sua razão de ciência, questiona-se: o que é que isto prova sobre o estado das capacidades intelectuais da senhora? ou sobre o que ela fazia, como fazia e com quem tratava dos seus assuntos pessoais? Obviamente, nada prova. 5) A apreciação global aos depoimentos deste conjunto de testemunhas permite concluir que não correspondem a um conhecimento adequado da pessoa e da vida da testadora nem a um conhecimento resultante de um contacto directo e regular com a mesma, e limitaram-se a referir condutas isoladas e meramente ocasionais ocorridas com a testadora que, podendo configurar situações pontuais de desorientação no espaço, apenas podem atribuir-se a eventuais lapsos de memória, e não a uma situação permanente de demência ou a um quadro endémico de anomalia psíquica. Tanto assim que, ao que se percebe dos depoimentos, nessas situações, a própria tinha a noção de que estava desorientada e pedia ajuda 6) De relevante, extrai-se desses depoimentos que, ao longo dos tempos, era, de facto, o marido da testadora quem geria os negócios do casal e quem tratava de todas as questões burocráticas e dos assuntos bancários (como foi considerado provado na resposta ao quesito 3.º). E, por isso, não pode espantar, é de todo normal, que, após a morte do marido, tenha passado a ser a ré, pessoa da máxima confiança da testadora, a tratar desses assuntos (resposta ao quesito 6.º). Sem que isso permita concluir que a testadora o não fazia por incapacidade intelectual ou que estava totalmente à margem desses assuntos e não dava instruções sobre o modo como deviam ser tratados (daí as respostas parcialmente negativas aos quesitos 3.º, 6.º e 9.º e totalmente negativas aos quesitos 4.º, 5.º, 11.º, 12.º, 17.º e 21.º). No que respeita ao quesito 12.º, sobre o movimento das contas bancárias, importa ainda realçar os depoimento das testemunhas Dr. BD……………., que foi gerente do balcão de Rio Tinto do Banco ………….., e BE…………., que trabalhou na mesma agência bancária, onde a testadora e o seu marido tinham conta e iam tratar de assuntos bancários, os quais confirmaram que a D. D………….. (testadora) acompanhava o marido e os dois realizavam em conjunto as operações bancárias e, depois da morte do marido, passou a ser acompanhada pela Ré, que era quem a ajudava naquelas operações, mas era a D. D………….. que dava as instruções sobre as operações que pretendia realizar. 6) Finalmente, importa referir que era à Autora que cabia o ónus da prova deste conjunto de factos (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil). Ainda que o depoimento destas testemunhas pudesse apontar no sentido de que o estado mental da testadora estava degradado a ponto de a tornar incapaz para fazer ou tratar do que quer que fosse, foram contraditados pelos depoimentos das testemunhas H…………., X………….., Padre Y……………., Z……………. e Dr. BB………….., cuja razão de ciência já acima ficou mencionada (cfr. supra n.º 6.2) e eram pessoas que contactavam regularmente (se não diariamente, pelo menos semanalmente) com a testadora, designadamente nos seus últimos anos de vida, que afirmaram todos eles o estado mental capaz da senhora, sem prejuízo das debilidades físicas que apresentava. Ora, numa situação de inconcludência sobre a realidade de um facto, o art. 516.º Código de Processo Civil determina que a dúvida seja resolvida contra a parte que tinha o ónus de o provar ou a quem o facto podia aproveitar. Pelo que, se o tribunal tivesse dúvidas sobre a prova destes factos, teria que as resolver contra a Autora, julgando os factos não provados. Conclui-se de tudo o exposto que nenhuma alteração se impõe realizar quanto às respostas negativas dadas pelo tribunal recorrido a este conjunto de quesitos. 6.4. Quanto aos quesitos 7.° e 8.º, os factos neles contidos eram os seguintes: 7.º – De tal forma a falecida ficou cercada pela ré C……………. que a autora não pode abeirar-se sozinha da tia, não mais tendo possibilidades de com ela sair para lanchar, para a levar a passear, para com ela privar ...? 8.º – ... A ré C………… impedia-a, e quando não conseguia, estava sempre presente, sempre ao lado para impedir qualquer conversa particular? O tribunal recorrido considerou não provado o facto do quesito 7.º e respondeu restritivamente ao quesito 8.º, considerando apenas como provado que “a ré C…………… estava sempre presente, ao lado da autora” (também nesta resposta se impõe uma correcção, já que o termo «autora» não se refere à Autora na acção, mas à testadora). A apelante pretende que os dois quesitos sejam considerados totalmente provados, mas sem razão. Que a Ré acompanhava a D. D………… para todo o lado decorre dos depoimentos de todas as testemunhas, incluindo as mencionadas pela apelante, a que já fizemos referência, devido às debilidades físicas da senhora. Que a Ré a impedisse de falar a sós com a Autora é que não se mostra minimamente provado. E até sucede que algumas testemunhas da própria Autora (por ex. a testemunha M………….) disseram que a D. D…………. ia todas as quartas-feiras a casa desta. 6.5. Os quesitos 13.º, 14.º, 15.º e 16.º têm a seguinte redacção: 13.º – O testamento referido em E) foi celebrado em cumprimento das instruções que a ré transmitiu à falecida? 14.º – Na altura da celebração do testamento referido em E) a falecida não tinha capacidade intelectual para saber o que estava a fazer? 15.º – Não foi a falecida quem foi ao notário tratar de marcar a escritura, nem foi quem diligenciou para a sua feitura? 16.º – Foi a ré quem tratou de tudo, quem organizou, quem tudo preparou e quem deu as instruções à falecida? No tocante aos factos constantes destes quesitos, o tribunal recorrido apenas considerou provado, na resposta dada ao quesito 15.º, “que não foi a falecida quem marcou a escritura”. Todos os demais factos foram considerados não provados. A justificação das respostas dadas baseia-se, essencialmente, no depoimento prestado em audiência pelo próprio notário que lavrou o testamento, Dr. V………….., que depôs e esclareceu esses factos, complementado com os depoimentos das testemunhas H………… e X…………., que serviram de testemunhas no dito testamento. Ora, quanto a estes factos, a Autora não indica uma única testemunha diferente daquelas três que revele ter conhecimento directo desses factos e também nenhum desenvolvimento faz acerca dos depoimentos prestados por aquelas três testemunhas no sentido de demonstrar que o tribunal recorrido se equivocou na sua valoração quanto a algum ou a todos os factos constantes destes quesitos. E deste modo, não se vê com que fundamento se pode alterar as respostas dadas. 6.6. Quanto ao quesito 20.º, pergunta-se aí se “a ré sempre foi remunerada pelo trabalho que prestou à falecida e, antes da viuvez desta, ao casal?”. O tribunal recorrido considerou este facto “não provado” por falta de provas credíveis. A apelante pretende que o facto seja considerado provado, mas também não concretiza através de que meios de prova. Limita-se a dizer, sob o n.º 45 das alegações do recurso, que “A C………… sempre recebeu salário”. Ora, não basta afirmá-lo, é também necessário demonstrá-lo (art. 342.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). A não indicação de provas que imponham alteração da resposta dada conduz à sua rejeição, como já ficou dito supra (art. 690.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Deve acrescentar-se, em todo o caso, que algumas das testemunhas arroladas pela Autora (o I……………. e o M……………) declararam que ouviram dizer ao Sr. S………… (marido) que pagava um salário à Ré. É aceitável que, pelo menos até determinado momento, o casal pagasse um salário à Ré, mas não é possível afirmá-lo com a necessária segurança e de modo algum se pode considerar provado que ela “sempre foi remunerada”, como consta do quesito. Atento o critério previsto no art. 516.º do Código de Processo Civil, a dúvida tem que resolver-se contra a Autora, que era quem tinha o ónus da prova deste facto. 6.7. O quesito 25.º diz o seguinte: “A falecida D………….. desde há muitos anos e até à hora da morte sempre disse que a sua herdeira era a ré?”. O tribunal recorrido respondeu “provado”. A apelante discorda desta resposta e propõe que se corrija no sentido de apenas se considerar provado que “a falecida D………….. desde há muitos anos que dizia que a Ré seria contemplada no seu testamento”. E sob os n.ºs 29 a 33 das suas alegações argumento que “a falecida afirmou que a Ré seria sua herdeira quando efectuou o primeiro testamento e a partir daí, mas não se põe em questão tal realidade, o que se põe em causa é a alteração da Ré de herdeira dos legados que sempre foi dito que lhe seriam efectuados … para herdeira universal do remanescente onde foram incluídas várias centenas de milhares de contos; daí que se imponha a alteração da resposta ao quesito 25.º porque o que a falecida disse era que (a Ré) iria ser sua herdeira e não a sua herdeira”. Esta argumentação é bem ilustrativa do verdadeiro objectivo que move a Autora nesta acção (e do sentimento que lhe subjaz), mas tem algo de pertinente no que respeita à pretendida restrição na resposta a dar ao quesito. Com efeito, o que efectivamente decorre dos depoimentos prestados sobre este facto é que a testadora e o seu marido sempre manifestaram vontade em instituir a Ré sua herdeira a partir do momento em que quiseram que fosse a Autora a cuidar deles e esta recusou, socorrendo-se, então, da disponibilidade da Ré para cuidar deles. Todavia, não deserdaram por completo a Autora e os restantes sobrinhos, que contemplaram com valiosos legados. Embora irrelevante, aceitamos que é mais rigoroso considerar provado apenas que “a falecida D…………….. desde há muitos anos e até à hora da morte sempre disse que a Ré seria sua herdeira” (deste modo lhe retirando o sentido, ínsito no quesito, de que pretendiam, instituir a Ré sua única herdeira). 6.8. Finalmente, quanto às respostas dadas aos quesitos n.ºs 36.º, 37.º, 38.º e 39.º, cujo teor é o seguinte: 36.º – A falecida era diabética, sendo corno tal portadora de um cartão com o nome, telefone e morada? 37.º – Até à véspera da sua morte, a falecida levantava-se às 6,3 horas, ia à missa de autocarro, e ao fim da manhã regressava a casa? 38.º – A falecida passeava muito de autocarro? 39.º – A falecida ia ao banco e usava o dinheiro? O tribunal recorrido respondeu: Quesito 36.º – Provado; Quesito 37.º – Provado apenas que a falecida se levantava de manhã, ia à missa de autocarro e ao fim da manhã regressava a casa; Quesito 38.º – Provado; Quesito 39.º – Provado apenas que a falecida ia ao banco. A apelante pretende que estas respostas sejam corrigidas do seguinte modo: Quesito 36.º – provado apenas que a falecida era diabética. Quesitos 37.º 38.º e 39.º – manter as respostas dadas mas com a explicitação de que ia sempre acompanhada. Também aqui estamos perante factos que irrelevam de todo para a decisão de direito. E também quanto a estes factos a apelante não justifica as pretendidas alterações com a indicação de provas que as imponham (art. 690.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). E, por isso, não encontramos fundamento sério para alterar as respostas dadas pelo tribunal recorrido. Quanto ao quesito n.º 36, a globalidade das testemunhas disse que a D. D…………. trazia consigo o cartão com os dizeres referidos no quesito. Quanto aos restantes três quesitos, não faz sentido acrescentar a restrição de que “ia sempre acompanhada” porque, se é verdade que dos depoimentos das várias testemunhas resulta que, habitualmente, ia acompanhada, primeiro pelo marido, depois pela Ré, são referidos alguns casos em que isso não aconteceu. 6.9. Conclui-se, do exposto, que, relativamente às respostas dadas aos quesitos impugnados, apenas se impõe fazer as seguintes correcções: Na resposta ao quesito 6.º: provado apenas que “era a ré C………… quem tratava de tudo à D………….”. Na resposta ao quesito 8.º: provado apenas que “a ré C………… estava sempre presente, ao lado da D…………..”. Na resposta ao quesito n.º 25.º: provado apenas que “a falecida D…………. desde há muitos anos e até à hora da morte sempre disse que a Ré seria sua herdeira”. 7. As correcções operadas na matéria de facto em nada interferem com o sentido global dos factos provados e, por isso, em nada afectam a decisão de direito proferida, que aqui se mantém e confirma, pelos fundamentos constantes da sentença da primeira instância e ainda pelo que ficou dito supra sob o n.º 5.2, para que se remete. IV Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida, sem prejuízo das correcções supra referidas no n.º 6.9. Custas pela apelante (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). * Relação do Porto, 01-04-2008António Guerra Banha Anabela Dias da Silva Maria do Carmo Domingues |