Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
61/11.7GAAMM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CAÇA POR MEIOS PROIBIDOS
Nº do Documento: RP2013011661/11.7GAAMM.P1
Data do Acordão: 01/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O art. 6°, n.° 1 al. c) da Lei n.° 173/99, de 21 de setembro [Lei de Bases Gerais da Caça], deve ser interpretado em harmonia com o art. 2°, al. c) do mesmo diploma, considerando proibido o "exercício da caça" isto é, a captura, espera ou perseguição de espécies cinegéticas fora dos respetivos períodos de caça.
II – São suscetíveis de integrar a prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, do art. 30.º da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, por referência ao art. 6.º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma, os arguidos que, de comum acordo e segundo plano previamente delineado, circulam, à noite, num veículo automóvel conduzido por um deles enquanto o outro empunha uma espingarda, com o objetivo de caçar coelhos que fiquem encadeados pela luz do veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 61/11.7GAAMM.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Judicial de Armamar, inconformado com a decisão proferida a fls. 135 dos autos que rejeitou a acusação, por entender que os factos constantes da mesma não constituíam crime, recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação com as conclusões seguintes (transcrição):
1 —"(A)ndar à caça", "ser encontrado a caçar", "sair à caça", "entretinham-se à caça" são expressões com um duplo sentido, jurídico e corrente; "são expressões vulgares, da linguagem corrente, podendo ser utilizadas como conceito de facto" (Acórdão da Relação de Coimbra de 02 de Novembro de 1990, CJ, V, pág. 77).
2 — "A caça é uma actividade complexa, de procura, espera, perseguição e captura, que não se reduz ao acto de disparar" nem, tão-pouco, acrescentamos, ao de acertar no alvo (Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Junho de 1998, CJ, III, pág. 60). Trata-se, portanto, de expressão que pode configurar, em certo contexto, um conceito jurídico e que, noutros casos, pode ser utilizada em linguagem corrente, inteiramente perceptível sem apelo a noções e quadro jurídicos, e tradutora de factos reais.
3 - A Douta Decisão de fl. 135 contraria a letra e o espírito da lei e, bem assim, a jurisprudência consolidada.
4 - A narração dos factos descrita na acusação deduzida pelo Ministério Público contempla todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em causa, pelo que a acusação não podia ser rejeitada, nos termos do disposto no artigo 311.°, nº. 2, alínea a) e n.º 3 alínea d) do Código de Processo Penal.
5 - A Mma. Juiz do Tribunal a quo faz uma interpretação divergente de quem deduziu acusação, sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, deste modo violando o princípio do acusatório.
6 - A opinião divergente manifestada pela Mma. Juiz recorrida, apoiada numa mera interpretação desprovida de qualquer suporte na lei e na jurisprudência, por muito válida que pudesse ser e que não o é, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré juízo pelo Juiz de julgamento sobre o mérito da acusação.
7 - A acusação deduzida nos presentes autos até poderá vir a improceder, mas esse terá de ser um juízo que o Tribunal fará na fase própria, isto é, em sede de julgamento, devendo a Mma. Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime.
8 - A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada e, consequentemente, rejeitada, com base na alínea d) do nº. 3 do artigo 311.° do Código de Processo Penal, quando resultar evidente que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
9 - "Esse pressuposto não se verifica nos casos em que o Juiz, em sede de saneamento do processo, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da alínea d) do n.º 3 do artigo 311° não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de Novembro de 2009, Processo nº. 742/08.2GCMFR.S1.L1, 3.a Sec., www.pgdl.pt).
10 - Por maioria de razão, deverá entender-se que em situações, como a dos presentes autos, em que o Juiz, desprovido de qualquer suporte na lei e na jurisprudência, opta por determinado entendimento que poderá ser tido por incontroverso, senão mesmo contra legem e contra a jurisprudência consolidada, não pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada.
11 - Por conseguinte, tendo em consideração que toda a jurisprudência disponível defende o entendimento oposto ao aventado na Douta Decisão em crise, a questão foi tornada discutível pela própria Mma. Juiz.
12 - O Tribunal recorrido não decidiu bem ao rejeitar a acusação do Ministério Público, por considerá-la manifestamente infundada, uma vez que tal peça processual não é desprovida de fundamento, por ausência de factos que suportem a imputada conduta delituosa.
13 - O despacho recorrido deve ser substituído por outro que não considere a acusação manifestamente infundada e que designe dia, hora e local para audiência (artigos 311.° e 312.° do Código de Processo Penal), se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.
14 - Violou-se, assim, na Douta Decisão o disposto no artigo 311.° do Código de Processo Penal.
Assim, julgando totalmente procedente o recurso interposto, revogando e determinando a substituição da Douta Decisão recorrida por outra que designe dia, hora e local para a audiência, V. Ex. farão a costumada e habitual

Os arguidos B… e C…, não responderam à motivação do recurso.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, concluindo que, “… analisado o despacho recorrido, facilmente se conclui que nele se faz uma interpretação demasiado restritiva do preceito legal incriminador, o qual porém, sem sombra de dúvida, contempla o circunstancialismo fáctico descrito na acusação, de forma a considera-lo suficiente para fundamentar a inclusão da conduta imputada aos arguidos no tipo legal definido em tal preceito. Termo em que, tendo por inverificado o pressuposto exigido pela al. d) do n.º 3 do art. 311º do CP para que fundamentalmente se possa rejeitar a acusação pública pelo crime de exercício ilegal de caça, somos de parecer que o presente recurso do M.P. deve proceder”.

Cumprido o disposto no art. 417º, 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o julgamento do presente recurso são os seguintes:
a) Em 24-04-2012 o MP junto do Tribunal Judicial de Armamar deduziu acusação contras os arguidos B… e C…, imputando-lhe a prática dos seguintes factos:
“1º
No dia 20 de Outubro de 2011, pelas 00 horas e 45 minutos, os arguidos, de comum acordo e segundo um plano que previamente haviam delineado, deslocaram-se ao D…, em …, Armamar, área desta comarca, tendo em vista caçar coelhos durante aquela noite. 2º
Na distribuição de tarefas, consoante haviam acordado, os arguidos faziam-se transportar na carrinha de marca Peugeot com a matrícula ..-..-SM, sendo que o arguido C… conduzia o veículo enquanto que o arguido B…, empunhava a espingarda de caça marca Mekel, n.º ……, de calibre, 12, de dois canos.

Os arguidos ao circularem no referido veículo praticavam o exercício da caça, procurando e esperando que algum coelho passasse e ficasse encadeado pela luz do veículo aludido para, assim, o matarem.

Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços e identidade de fins, dividindo tarefas entre si na execução do plano comum previamente gizado, com intenção comum de praticarem o exercício da caça fora das respectivas jornadas.

Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que na referida altura era proibida a caça e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

b) Considerou assim o MP que, com a prática dos aludidos factos, “incorreram os arguidos, em co-autoria, na prática do crime previsto e punível pelos artigos 2º, al. c), 6º, n.º 1, al. c) e 30º da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro e art. 88º, n.º 1 e n.º 2 do Dec. Lei 202/2004 de 18 de Agosto”.

c) Em 27-06-2012, foi proferido o despacho recorrido, do seguinte teor:
Decorre da factualidade alegada pelo D.M.M.P. não a prática do crime p. e p. pelo art. 30º da lei 173/99 de 21 de Setembro, mas antes a prática de actos de execução com vista à prática desse mesmo crime, porquanto, e conforme é descrito na factualidade indiciariamente provada, os arguidos encontravam-se no veículo, sendo que um deles com uma espingarda, à espera de coelhos atraídos pela luz da viatura, para depois os caçarem.
Ora, atenta essa mesma factualidade descrita, não estamos no âmbito da prática do crime mas no âmbito da tentativa, porquanto a conduta descrita na alínea c) do art. 6º da referida lei, ao referir “caçar”, tal palavra deverá ser interpretada, de acordo com os critérios previstos no art. 9º do C. C. como o acto de captura, não se encontrando abrangida pela expressão “exercício da caça” prevista na alínea c) do art. 2 da referida lei, a qual é definida em termos amplos, abrangendo diversos tipos de comportamentos e actos, como a espera e a perseguição.
Pelo que, em nosso entender a conduta punida no referido art. 6º,n.º 1º al. c) é o acto de captura, caso contrário a norma não utilizaria a expressão “caçar”, mas a expressão exercício a caça”, para além de abranger todas as condutas na alínea c) do art. 2º.
O crime previsto no art. 30º da Lei 173/99, de 21 de Setembro é punível com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 100 dias, pelo que, atenta a sua moldura penal, é inaplicável o disposto no n.º 1 do art. 23º do Código Penal, sendo que na referida lei não se encontra especificamente prevista a punibilidade da tentativa.
Assim, sendo a conduta dos arguidos apenas subsumível à tentativa do crime imputado, e não sendo especificamente prevista a punibilidade da tentativa, inexiste qualquer indício da prática de crime, pelo que se indefere a aplicação aos arguidos da suspensão provisória do processo, por ausência de verificação do pressuposto a que alude o n.º 1 do art. 281º do CPP.
Face ao exposto, e por entender que não resulta dos factos vertidos na acusação, indiciariamente provada a prática de facto punível como crime, rejeito a acusação nos termos do disposto no art. 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP.
Notifique.

2.2. Matéria de Direito
A questão objecto do presente recurso é a de saber se os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público integram o crime de previsto no artigo 30º da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, ou integram apenas a prática de actos de execução desse tipo de ilícito (tentativa não punível).

Vejamos então.

O art. 30º da Lei nº. 173/99, de 21 de Setembro, tem a seguinte redacção:
A infracção ao disposto no n.º 1 do art. 6º do presente diploma é punida com a pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.

O art. 6º do mesmo diploma (norma invocada pelo MP) refere o seguinte:
“Artigo 6º
Preservação da fauna e das espécies cinegéticas
1 — Tendo em vista a conservação da fauna e, em especial, das espécies cinegéticas, é proibido:
a) Capturar ou destruir ninhos, covas e luras, ovos e crias de qualquer espécie, salvo nas condições previstas na lei;
b) Caçar espécies não cinegéticas;
c) Caçar espécies cinegéticas que não constem das listas de espécies que podem ser objecto de caça ou fora dos respectivos períodos de caça, das jornadas de caça e em dias em que a caça não seja permitida ou por processos e meios não autorizados ou indevidamente utilizados;
d) Ultrapassar as limitações e quantitativos de captura estabelecidos;
e) Caçar nas queimadas, áreas percorridas por incêndios e terrenos com elas confinantes, numa faixa de 250 m, enquanto durar o incêndio e nos 30 dias seguintes;
f) Caçar nos terrenos cobertos de neve, excepto nos casos previstos em regulamento;
g) Caçar nos terrenos que durante inundações fiquem completamente cercados de água e nos 250 m adjacentes à linha mais avançada das inundações, enquanto estas durarem e nos 30 dias seguintes, excepto nos casos previstos em regulamento;
h) Abandonar os animais que auxiliam e acompanham o caçador no exercício da caça.

2 — Para fins didácticos ou científicos, o Governo pode autorizar a captura de exemplares de espécies cinegéticas cuja caça esteja proibida, em áreas e períodos a determinar.

Finalmente, a referida lei define o conteúdo dos conceitos de “Caça” e “Exercício da caça ou acto cinegético”, nos seguintes termos:
Caçaa forma de exploração racional dos recursos cinegéticos” – art. 2º, al. b) da referida lei.
Exercício da caça ou acto cinegéticotodos os actos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente, a procura, a espera e a perseguição”. – art. 2º, al. c) da mesma lei.
Das normas legais acima transcritas, torna-se claro que a decisão recorrida não tem qualquer apoio, nomeadamente literal.

Não existe, desde logo, a definição do acto de caçar como o acto de captura das espécies cinegéticas. A definição de “caça”, como forma de exploração racional e, portanto, legalmente regulada, não tem qualquer equivalência a “acto de captura”. Caça é a forma de exploração racional dos recursos cinegéticos e não o acto de caçar. Dito de outro modo, para o legislador, o acto de caçar é definido como “exercício da caça ou acto cinegético”. Nesta definição, o legislador engloba quer o acto de captura, quer o acto de procura, espera ou perseguição das espécies.
Note-se ainda que o legislador usa a expressão “captura” no art. 6º, 1 da citada Lei, quando pretende que seja esse o facto proibido. Tal decorre do disposto na alínea d) do n.º1 do art. 6º, ao referir ser proibido “ultrapassar as limitações quantitativas de captura estabelecidos”. Não se compreenderia que o legislador usasse, na al. c), a expressão “caça” com o sentido de “captura”, quando na al. d) tipifica apenas a “captura”. Só tem razão de ser essa distinção se entendermos que “caçar” quer dizer exercer a actividade que engloba capturar, esperar e perseguir espécies cinegéticas.

Por outro lado, várias disposições punitivas referem-se claramente ao “exercício da caça”, como é o caso do art. 30º, n.º 2 (exercício da caça em locais não autorizados) e do art. 32º (exercício da caça sem habilitação com carta de caçador), mostrando que para o legislador o acto típico de caçar é identificado com o exercício da caça, ou seja, a actividade que engloba os actos de captura, espera e perseguição.

Deste modo, o art. 6º, n.º 1 al. c) da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, deve ser interpretado em harmonia com o art. 2º, al. c) do mesmo diploma legal, considerando proibido o “exercício da caça” isto é, a captura, espera ou perseguição de espécies cinegéticas fora dos respectivos períodos de caça. Com esta interpretação, a acusação do MP contém a narrativa de factos qualificáveis como crime e punidos como tal, nos termos do art. 30º, 1 da lei 173/99, de 21 de Setembro, pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida.
Face ao exposto, o recurso merece provimento, devendo revogar-se a decisão recorrida, para ser substituída por outra que, se nada mais obstar, receba a acusação e designe dia e hora para a audiência de discussão e julgamento.

3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e ordenar que a mesma seja substituída por outra que, se nada mais obstar, designe dia e hora para a audiência de discussão e julgamento.
Sem custas.

Porto, 16/01/2013
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando