Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2015/07.9TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
A FAVOR DO FINANCIADOR
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP201110202015/07.9TBMTS.P1
Data do Acordão: 10/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Viola o princípio da concretização a transportadora que não satisfaz o dever de guarda da mercadoria a que estava obrigada até à sua entrega, incólume, ao destinatário, bem como viola o dever de boa fé ao não acautelar a confiança que nela foi depositada pelo expedidor quanto à preservação da mercadoria.
II - Por isso, torna-se responsável pelo desaparecimento da mercadoria se não demonstrar que a perda teve por causa algum dos factos previstos no n.º 2 do art.º 17.º da CMR.
III - O furto de mercadoria facilmente removível, transportada num semi-reboque coberto por lona, ocorrido durante a noite, quando o veículo estava estacionado num parque de estacionamento sem vigilância e onde o motorista se encontrava a dormir, não exclui a culpa da transportadora, por não constituir caso fortuito susceptível de integrar alguma daquelas causas de exclusão da sua responsabilidade.
IV - O prazo prescricional do direito à indemnização é de um ano, estabelecido no art.º 32.º, n.º 1 da CMR, e não de dez meses, previsto no art.º 16.º do DL n.º 255/99, de 7/7, para a actividade de transitário sempre que este se obrigue a efectuar o transporte e ainda que o venha a fazer por intermédio de outro transportador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2015/07.9TBMTS.P1 – 3ª Secção (apelação)

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Pinto de Almeida
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede na Rua …, .. – …. … Lisboa, intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra:
1. C…, S.A., pessoa colectiva nº ………, com domicílio no … – …, Estrada Nacional … – … – …, ….-… Matosinhos; e
2. D…, LDA., pessoa colectiva nº ………, com domicílio no …, …., ….-… …, …, alegando essencialmente que, na qualidade de seguradora da E…, S.A., pelo risco de transporte da mercadoria que aquela produzia e vendia, a indemnizou pelo valor dos bens (€ 22.914,61) que terão sido furtados do camião durante o transporte para uma empresa cliente da sua segurada, no Reino Unido.
Para a realização daquele transporte entre Portugal e aquele país a sua segurada contratou os serviços da 1ª R., que, por sua vez, contratou a 2ª R. que, efectivamente, o realizou, competindo ao transportador entregar a mercadoria no destino, tal como a recebia.
Porém, de 326 volumes transportados, apenas chegaram 29 por, aparentemente, essa mercadoria ter sido furtada durante a viagem de camião.
Acrescenta que ao pagar à sua segurada ficou sub-rogada nos direitos desta contra o “terceiro causador do sinistro”, ou seja contra as R.R., cuja responsabilidade é solidária. Ao valor da indemnização acrescem os juros de mora, à taxa lega.
Culmina a petição inicial com o seguinte pedido:
«Nestes termos, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e as R.R. condenadas a pagar à A. a quantia de Euros 22.914,61, (vinte e dois mil novecentos e catorze Euros e sessenta e um cêntimos) acrescida de juros vincendos até integral pagamento, conforme peticionado, e bem assim, custas, procuradoria e o mais legal.»
Citada, a 1ª R. começou por dizer que prossegue actividade transitária e deduziu incidente de intervenção acessória da Companhia de Seguros F…, S.A. alegando que, em cumprimento do mandato que a E…, S.A. lhe conferiu, celebrou um contrato de transporte rodoviário com um transportador, não sendo, a contestante, responsável pelos prejuízos emergentes do furto de mercadoria que aconteceu no percurso do transporte.
Caso assim não se entenda, enquanto empresa transitária, celebrou um contrato de seguro com aquela companhia de seguros destinado a garantir a responsabilidade civil por danos causados no exercício da actividade a clientes ou a terceiros. Por isso, chama-a à acção por lhe assistir o direito de regresso contra ela para ser indemnizada do prejuízo que lhe cause a perda da presente demanda.
Na contestação, propriamente dita, defendeu-se por excepção e por impugnação.
Pela primeira via, invocou a prescrição do direito da A. e a ilegitimidade passiva da contestante.
Quanto ao primeiro fundamento, alegou que decorreu o prazo de 10 meses a contar da data da conclusão da prestação de serviços contratados entre a segurada da A. e a R. enquanto transitária, a que se refere o art.º 16º do Decreto-lei nº 255/99, de 7 de Julho (Estatuto Regulamentar da Actividade Transitaria), pelo que prescreveu o direito de indemnização a que a A. se arroga nesta acção.
Relativamente à ilegitimidade, entende que, enquanto transitária, a sua actividade se limitou ao desempenho de um contrato de expedição, interpondo-se entre o carregador e o transportador, na sequência da solicitação daquele para que se encarregasse de celebrar o contrato de transporte pretendido. Aquele contrato é um mandato pelo qual, enquanto transitário, se obrigou a celebrar um contrato de transporte por conta do expedidor-mandante, sem poderes de representação, por falta de procuração, assim, sob a disciplina dos art.ºs 1180º a 1184º do c e art.ºs 266º e seg.s do Código Comercial.
Foi no uso destes poderes que a contestante, em nome próprio, mas por conta do seu cliente, como expedidora, contratou a 2ª R. para a realização do transporte internacional rodoviário das mercadorias, sendo desta, enquanto transportadora, e não da contestante, a responsabilidade pela perda de mercadoria entre o momento do carregamento e a entrega no destino.
Com efeito, a 1ª R. enquanto «transitário é um simples encarregado do comitente (expedidor) para a celebração de um contrato de transporte, e como tal não assume nenhuma responsabilidade pessoal em ordem à execução do transporte. Não assumiu perante a cliente da Autora a obrigação de entrega, mas tão só a de contratar. E se o contrato de transporte foi efectivamente incumprido, a responsabilidade pelos danos emergentes desse incumprimento tem de ser aferida no contexto do obrigado no transporte e naturalmente assacada ao transportador. Daí a ilegitimidade da 1ª R., acrescenta.
Por via da impugnação, a 1ª R. alega que a quantia peticionada é superior ao valor da mercadoria efectivamente perdida. O valor da mercadoria em falta, 297 cartões é, conforme as facturas que a acompanhavam, de GBP 14.178,78.
Sendo o câmbio oficial do Banco de Portugal daquela moeda, à data da emissão da respectiva nota de crédito, de 0,6946 por euro, o valor da mercadoria cifra-se em € 20.412,87 (14.178,78 X 0,6946).
Encerra a sua defesa solicitando o deferimento do chamamento, a procedência das excepções que invocou e a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

A 2ª R. também contestou a acção, impugnando parte dos factos alegados na petição inicial.
Alega que não tem qualquer responsabilidade na perda parcial da mercadoria porque foi furtada durante a execução do transporte em circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar. Concretamente, enquanto, durante a noite, o motorista dormia na cabine do camião, num parque de repouso, vigiado e com boa luminosidade, junto a uma estrada nacional, em Inglaterra, rasgaram a lona que cobria o semi-reboque e por ali subtraíram a mercadoria. E tal como o camião da R., outros camiões foram ali assaltados naquela noite, nada fazendo prever que o semi-reboque pudesse ser alvo de furto naquele local.
Acrescenta que se tratou de uma situação inevitável e imprevisível tendo em conta o modus operandi dos assaltantes.
Por outro lado, a mercadoria tinha o valor de GBP 14.178,78, constante da nota de crédito alegadamente enviada à cliente da A. Sendo o câmbio oficial do Banco de Portugal na data da referida nota de crédito era de 0,6946, o valor correcto da mercadoria era de € 20.412,61.
Pugnou pela improcedência da acção, com absolvição da R. do pedido.

A A. replicou.
Quanto à contestação da 2ª R., alega que o desaparecimento da mercadoria não ocorreu devido a circunstâncias que a 2ª R. não podia evitar e cujas consequências não podia obviar, uma vez que bastaria ter utilizado um outro tipo de semi-reboque, ou parado o veículo transportador num parque fechado e vigiado para evitar o furto, tendo a mesma R. aceitado, implicitamente, a sua responsabilidade pelo acidente em causa, ao reconhecer os perigos do transporte que efectua e a necessidade de cobertura de seguro CMR. Entende que deve improceder a excepção de exclusão de responsabilidade invocada pela 2ª R.
No que respeita à contestação da 1ª R., alega que esta assumiu o transporte da mercadoria da segurada da A., tendo subcontratado esse transporte com a 2ª R. Como transportadora, não só tem legitimidade passiva, como devem ser aplicados os prazos de prescrição constantes da Convenção CMR que, no caso, é de um ano, nos termos do respectivo art.º 32º, nº 1.
A acção foi expedida para o Tribunal de Matosinhos em 28.2.2007, com pedido de citação urgente. Tendo a mercadoria chegado ao seu destino, embora com faltas, em 9 de Março de 2006, a presente acção foi instaurada em tempo.
Concluiu no sentido da improcedência das excepções invocadas.

Deferido o chamamento da Companhia de Seguros F…, S.A. ao abrigo do art.º 331º, nº 2, do Código de Processo Civil, foi a mesma citada, oferecendo a contestação de fl.s 142 e seg.s, pela qual invocou também a prescrição do direito de indemnização da A. pelo decurso do prazo de 10 meses a que se refere o art.º 16º do Decreto-lei nº 255/99, de 7 de Julho, respeitante à responsabilidade do transitário.
Mais invocou a ilegitimidade das R.R. C…, S.A. e F… – Companhia de Seguros, S.A., essencialmente, com os argumentos expendidos na contestação da 1ª R. sua segurada.
Impugnou parcialmente os factos da petição inicial e defendeu que o furto ocorrido no veículo da segunda R. é uma circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, por não ser previsível que o furto fosse ocorrer nas condições em que estava parqueado o veículo que efectuava o transporte.
Defende ainda a correcção do valor da mercadoria furtada nos termos em que as R.R. o fizeram nas suas contestações.
Termina no sentido de que se julgue a acção improcedente.

A A. replicou à matéria de excepção invocada pela interveniente B…, SA, dando como reproduzida a réplica anteriormente apresentada em resposta às mesmas excepções, acrescentando, porém, que o início do prazo prescricional só começa a correr quando o direito pode ser exercido (art.º 306º, nº 1, do Código Civil), como tal, apenas na data em que a A. indemnizou a sua segurada, ou seja, em 19.5.2006. Com efeito, devendo a prescrição considerar-se interrompida a 6.3.2007, nos termos do art.º 323º do Código Civil, o prazo de 10 meses invocado pela interveniente para o exercício do direito ao abrigo do art.º 16º do Decreto-lei nº 255/99, de 7 de Julho ainda não tinha decorrido.
Quanto à questão da legitimidade, acrescenta ao já anteriormente aduzido, que nem na hipótese --- que continua a não aceitar --- da 1ª R. ter agido exclusivamente na qualidade de transitário ela deixaria de ser parte legítima, responsável perante a A. pelo incumprimento dos contratos celebrados com terceiro, independentemente de ter actuado com ou sem representação, por tal resultar do disposto no artigo 15°, nº 1, daquele decreto-lei.
Igualmente, deu por reproduzido o invocado nos art.ºs 1º a 10º da réplica às contestações dos R.R. na matéria da “excepção relativa à exclusão de responsabilidade do transportador derivada do artigo 17° nº 2 da Convenção CMR”.
Conclui mais uma vez pela improcedência das excepções invocadas, reafirmando o pedido da acção.

A convite do tribunal, a A. esclareceu a relação contratual existente entre a sua segurada E…, S.A. e a 1ª R., transitária, no sentido de que esta se obrigou perante aquela a transportar-lhe a mercadoria de Portugal para o Reino Unido.
A 1ª R. e a interveniente exerceram o respectivo contraditório, e a A. replicou de novo, tudo de modo essencialmente idêntico ao que haviam alegado nos articulados anteriores.

Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador no qual se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade invocada pela 1ª R. e pela interveniente e se relegou para a sentença o conhecimento da excepção da prescrição por estar dependente da apreciação de matéria de facto controvertida.
Seguiu-se a condensação, com factos assentes e base instrutória, de que não houve reclamação.
*
Instruídos os autos, teve lugar a audiência de discussão da causa, na sequência da qual, respondida que foi, fundamentadamente, a matéria da base instrutória, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as R.R. do pedido.

Da sentença, apelou a A. formulando as seguintes CONCLUSÕES das alegações:

«I – No presente caso, não se verificaram circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, susceptíveis de afastar a responsabilidade do transportador (artigo 17º nº 2 da Convenção C.M.R.);
II – O semi-reboque foi assaltado quando estava parado num parque de repouso (aberto), numa estrada nacional, na localidade de …, Inglaterra, e não num parque fechado e vigiado;
III – A 2ª R. D…, Lda. alegou que se tratava de um local vigiado e com boa luminosidade, facto que foi considerado não provado pelo Tribunal a quo devido “a total ausência de prova sobre a realidade do mesmo”;
IV – O transporte internacional de mercadorias em semi-reboques de lona, potencia e facilita, manifestamente, o furto de mercadorias no seu interior, pois basta um qualquer rasgão na lona, para a mercadoria transportada ficar exposta e poder ser subtraída;
V – O risco de furtos em parques de repouso (abertos) não guardados, junto a uma estrada nacional, no estrangeiro, durante a noite, é um dado de experiência comum que uma empresa de transportes e os seus motoristas não podem ignorar,
VI – Impondo-se-lhe, por isso, adoptar um mínimo de cautelas, quer na utilização do veículo mais adequado (semi-reboque hermeticamente fechado), quer na escolha de um local de estacionamento seguro (fechado e vigiado), quer na adopção de dispositivos adequados a prevenir ou a alertar a introdução de estranhos no interior do veículo ou o acesso destes à mercadoria guardada;
VII – Em qualquer caso, competiria às RR. demonstrar que no caso concreto não existiam tais parques guardados e fechados ou que por qualquer outra razão não lhes foi possível utilizar tais parques, bem como invocar hipotéticas causas válidas para a não utilização de semi-reboque com o compartimento de carga hermeticamente fechado e mecanismos de segurança, o que não lograram fazer;
VIII – A posição da Sentença recorrida ao sustentar, em abstracto, que não é exigível ao transportador o uso de veículos hermeticamente fechados e que apenas estacione os veículos em parques fechados e guardados, leva a uma inaceitável diminuição do grau de diligência exigível do transportador, bem como a uma total desconsideração dos interesses igualmente relevantes dos expedidores, destinatários e seguradoras;
IX – E está, de forma indirecta, a desobrigar o transportador da sua responsabilidade atendendo aos defeitos do veículo de que este se serve para a execução do transporte, o que viola o disposto no artigo 17º nº 3 da Convenção C.M.R.,
X – O ónus da alegação e prova de “circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar” incumbe ao transportador que pretende eximir-se da responsabilidade decorrente da perda da mercadoria (cfr. artigo 18º nº 1 da Convenção C.M.R. e artigo 342º nº 2 do C. C.)
XI – Não basta, de facto, invocar-se o furto de mercadorias por parte de quem assume contratualmente o especial dever de as guardar, no âmbito de um contrato de transporte, para conferir a esse acontecimento carácter fortuito,
XII – É necessário, ainda, provar-se que se tomaram as medidas e precauções adequadas a prevenir tal tipo de ocorrências, ou que, pelo menos, estas se apresentavam como inteiramente imprevisíveis,
XIII – No transporte internacional de mercadorias, da conjugação dos artigos 17º nºs 1 e 2 e 18º nº 1 da Convenção C.M.R. resulta uma verdadeira presunção de culpa do transportador, em caso de perda ou de danificação da mercadoria (cfr. tb. artigo 799º nº 1 do C. C.);
XIV – A culpa por violação do dever de guarda da mercadoria durante o trajecto seguido pelo camião tem que ser apreciada de acordo com o critério definido no art. 487º nº 2 do C.C., aplicável ex vi do artigo 799º nº 2 do mesmo diploma, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso;
XV – No caso sub judice não pode considerar-se imprevisível o furto de mercadorias retiradas de um semi-reboque coberto por lona estacionado num parque de repouso aberto junto a uma estrada nacional, numa localidade situada no estrangeiro, durante a noite;
XVI – A 1ª R., na qualidade de entidade que aceitou a realização do transporte solicitado e que se comprometeu perante a Segurada da A., ora Recorrente, a entregar a mercadoria no destino é transportadora e responde, como se fossem por si cometidos, pelos actos e omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorre para a execução do transporte (cfr. artigo 3º da Convenção C.M.R.),
XVII – E, a 2ª R. é solidariamente responsável com a 1ª R., por se tratar da transportadora que executava o transporte quando se produziu o facto que causou a perda da mercadoria;
XVIII – A confissão judicial feita pela 1ª R., relativa à responsabilidade da transportadora a que recorreu para a concretização do transporte, tem força probatória plena contra si, facto este que não foi apreciado, como deveria ter sido, pelo Tribunal a quo (cfr. artigo 358º nº 1 do C. C.), o que constitui causa de nulidade da Sentença (cfr. artigo 668º nº 1, alínea d) do C. P. C.).
XIX – A confissão extra-judicial por parte da 2ª R. D…, Lda., deveria igualmente ter sido apreciada pelo Tribunal (cfr. artigo 358º nº 4 do C. C.), o que constitui também causa de nulidade da Sentença (cfr. artigo 668º nº 1, alínea d) do C. P. C.).» (sic)
Termina no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, seja revogada a sentença, a substituir por decisão que condene solidariamente as RR. Recorridas a pagar à A., a quantia de € 22.914,61, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.

Respondeu apenas a 1ª R., C…, S.A., que, por ter formulado também conclusões, se transcrevem, ipsis verbis:

«I. O caso dos autos constitui, indubitavelmente, caso fortuito.
II. Está por isso abrangido pela parte final do n.º 2 do artigo 17.º da CMR.
III. A Obrigação de guarda é uma obrigação acessória ou secundária, em relação ao transportador. Sendo que a diligencia exigida ao transportador a este nível se afere pelo critério do bom pai de família.
IV. A previsibilidade do furto tem de ser apreciada em face das circunstancias do caso (em concreto), tendo em conta o grau de diligência exigivel (em abstracto) ao transportador.
V. Não é de prever que ocorrerá um furto de mercadoria num parque de repouso, onde se encontram estacionados outros camiões, e em cujos interiores os motoristas se encontram.
VI. Tendo ocorrido o furto nas circunstâncias dadas como provadas nos autos, constitui um caso fortuito, e está, como se disse já, abrangido pela parte final do n.º 2 do artigo 17 da CMR, pelo que está excluída a responsabilidade do transportador.»
Pugnou assim pela manutenção do julgado.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
As questões a decidir
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso, sendo que se apreciam apenas questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova (art.ºs 660º, nº 2 e 684º e 690º, do Código de Processo Civil, na versão que precedeu a que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto)[1].
1- Importa decidir se a transportadora é responsável pela perda da mercadoria objecto de furto. Caso se entenda que não é responsável, haverá que confirmar a decisão recorrida.
2- Se for de concluir que há responsabilidade e obrigação de indemnizar por parte das duas R.R., ou de alguma delas, com revogação da sentença recorrida, a Relação usará da regra da substituição ao tribunal a quo e decidirá a acção com conhecimento das questões que ficaram prejudicadas pela solução encontrada na decisão recorrida, sendo elas:
a) Saber se está prescrito o direito à indemnização da A. relativamente à 1ª R.
b) Saber se apenas a 2ª R., D…, L.da, ou se também a 1ª R. C…, SA é responsável pelo respectivo pagamento à A., como reembolso do que pagou à sua cliente segurada;
c) Saber qual o valor da indemnização; e
d) Nulidade da sentença, nos temos do art.º 668º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil.
*
III.
São os seguintes os factos provados e a considerar:
A)
A autora é uma companhia de Seguros;
B)
A ré «C…» é uma empresa transitária que se dedica à actividade de transportes;
C)
A ré «D…, Ldª» dedica-se à actividade de transporte rodoviário de mercadorias;
D)
A sociedade «E…, SA» celebrou com a autora o contrato de seguro para cobertura dos riscos de transporte de mercadorias titulado pela apólice n.º mm…….., no âmbito do qual foi emitido o certificado de seguro n.º ……, cuja cópia está junta a fls. 16, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, com as condições gerais e especiais constantes dos documentos juntos a fls. 17 e segs., com o teor que também aqui se dá por integralmente reproduzido.
E)
Para realização do transporte de 326 volumes, via rodoviária, entre Portugal e o Reino Unido, a sociedade «E…, SA» contactou a ré «C…», que aceitou o serviço solicitado;
F)
Na data convencionada, a ré «C…» recebeu a mercadoria da «E…, SA» e emitiu o documento junto a fls. 33, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
G)
Em 7 de Março de 2006, a ré «C…» emitiu e entregou à segurada da autora a factura n.º ……., cuja cópia está junta a fls. 173, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, cujo valor foi pago por esta à ré «C…»;
H)
Para concretização do transporte para o seu destino, a ré «C…» contratou a ré «D…»;
I)
De acordo com a declaração CMR, junta a fls. 34, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde figura como expedidora a ré «C…» e como transportadora a ré «D…” foram carregados no camião com a matrícula ..-..-LD 326 volumes contendo têxteis;
J)
O destinatário da mercadoria recebeu apenas 26 daqueles 326 volumes;
L)
A mercadoria que não chegou ao destino tinha o valor de GBP 14.178,78;
M)
A autora remeteu às rés as cartas cujas cópias estão juntas a fls. 39 e 40, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;
N)
Na noite de 8 para 9 de Março de 2006, quando o motorista da ré «D…» se encontrava a dormir no camião, o semi-reboque onde eram transportadas as mercadorias supra referidas foi assaltado;
O)
Este semi-reboque era coberto por uma lona, que foi rasgada, e dele retiradas as mercadorias transportadas que não chegaram ao seu destino;
P)
O semi-reboque foi assaltado quando estava parado num parque de repouso, numa estrada nacional, na localidade de …, Inglaterra;
Q)
Na altura, encontravam-se outros veículos pesados estacionados, para além do camião da ré «D…»;
R)
E, tal como o camião desta ré, também eles foram assaltados nessa noite.

A sociedade «E…, SA, no exercício da sua actividade vendeu, em Março de 2006, à empresa Inglesa «G…» as mercadorias têxteis que vêm discriminadas nas facturas juntas a fls. 10 a 15.

No âmbito desse contrato de compra e venda, competia ao vendedor tomar as providências necessárias ao transporte da mercadoria de Portugal para o Reino Unido e respectivo seguro.

Para cobertura dos riscos desse transporte, a «E…, SA» contratou com a autora o seguro referido em D).

Invocando o contrato de seguro, a «E…, SA» reclamou da autora o pagamento do valor da mercadoria segura em falta.

A autora pagou à «E…, SA» a indemnização de €22.914,61.

A Ré C… obrigou-se para com a E…, S.A. (segurada da Autora) a entregar a mercadoria no destino.
*
1ª questão: Da responsabilidade da transportadora pela perda da mercadoria objecto de furto
A sentença recorrida absolveu as R.R. do pedido da acção por considerar, em face das circunstâncias do caso concreto, que o furto constituiu um caso fortuito, por a sua ocorrência ser imprevisível. Na perspectiva do tribunal recorrido, o transportador cumpriu a sua obrigação de guarda dos objectos transportados, tendo em conta o dever de diligência exigível ao homem médio em face das circunstâncias concretas do caso.
As partes não discutem no recurso a existência de um contrato de transporte internacional, com aplicação da CMR[2]. Foi, aliás, esta a qualificação que o tribunal a quo também lhe conferiu na sentença.
Está em causa o transporte de mercadorias (artigos têxteis) de Portugal para o Reino Unido, países diferentes, por estrada e mediante o pagamento de um preço, por via do qual a transportadora assumiu uma obrigação de resultado: entregar a mercadoria da segurada da A. no Reino Unido; circunstâncias que nos remetem para o direito interno de origem internacional. O contrato tem natureza comercial (cf. art.ºs 2º, 13º, nº 2, e 366º, proémio, do Código Comercial).
A referida Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, em veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes (artigo 1º, n.º 1, daquele diploma[3] e ao qual pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem).
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008[4], o contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada traduz-se na convenção por via da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, a realizar a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país (cf. art.º 1º da CMR).
Temos, pois, como certa e segura a aplicabilidade da CMR, assinada em Genebra, de 19 de Maio de 1956, inserida no direito interno português pelo Decreto-Lei n.º 46235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro, tendo Portugal depositado o respectivo instrumento de confirmação e adesão a este Protocolo em 17.08.89, conforme aviso publicado no D.R., I série, nº 206, de 7.09.89.
Mais do que na aplicação dos art.ºs 487º, nº 2, e 799º, nºs 1 e 2, Código Civil, é na Convenção referida que se encontra regulada, por forma especial, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso do contrato em questão.
A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações: a recepção da mercadoria, a sua deslocação (ou transporte em sentido estrito) e a sua entrega ao destinatário no local de destino.
O transportador no cumprimento do contrato de transporte tem a obrigação de zelar pela guarda e segurança da mercadoria durante o transporte, mantendo-a incólume desde a entrega pelo expedidor até ao local do destino, sendo responsável pelos danos emergentes da sua violação (art.º 17º, nº 1).
Este dever de vigilância e guarda constitui um dever acessório de conduta que, como refere A. Varela[5], não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cf. art.ºs 817.° e segs.), é todavia essencial ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Estão hoje os deveres acessórios genericamente consagrados, na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no artigo 762° do Código Civil, segundo o qual “no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”, podendo a sua violação dar origem a uma indemnização pelos danos causados à outra parte ou dar mesmo lugar à resolução do contrato ou a sanção análoga.
E, como se refere também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010[6], os deveres acessórios de conduta “são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.
Aliás, o cumprimento do contrato deve ser pontual, no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto. Não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, sobretudo, no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta (art.º 405º do Código Civil).
Relativamente ao cumprimento, Menezes Cordeiro[7] apela a vários princípios, entre os quais o princípio da concretização, no sentido de que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, os sujeitos processuais devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte. A conduta devida deve realizar, no terreno, o interesse do credor.
A R. D…, L.da violou o princípio da concretização ao não dar satisfação, no terreno, ao dever de guarda da mercadoria a que estava obrigada até à sua entrega, incólume, ao destinatário britânico. E violou o dever de boa fé ao não acautelar a confiança que nela foi depositada pelo expedidor quanto à preservação da mercadoria.
Nos termos do art.º 17º, nº 1, que consagra uma verdadeira presunção de culpa, o transportador obriga-se --- como vimos já superficialmente --- a entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu (a obrigação de resultado), sendo responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
Designadamente, no caso de perda total ou parcial da mercadoria --- a situação que aqui nos interessa ---, o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se ela teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (nº 2 do art.º 17º).
É do transportador o ónus da prova de que a perda de mercadoria teve por causa um dos factos previstos no art.º 17º, nº 2, designadamente que ocorreram “circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”[8], ilidindo a presunção de culpa que emerge do nº 1 (cf. nº 1 do art.º 18º; aliás, em consonância com o art.ºs 342º, nº 2 e 799º, nº 1, do Código Civil).
Como muito bem se refere na sentença recorrida, não se pode considerar caso fortuito para o efeito de desresponsabilização do obrigado o evento que por ele podia ser evitado num quadro de previsão e diligência normal. Consistindo o furto na subtracção de bens (alheios), o que está em causa, relativamente à prestação do devedor (transportador), é a obrigação de guarda dos bens transportados.
É precisamente esta a questão: saber se o furto da mercadoria ocorreu em circunstâncias imprevisíveis, no sentido de que o transportador as não podia evitar e cujas consequências não podia prevenir; ou seja, violado que foi o dever do transportador de entregar a mercadoria no local do destino nas condições em que a recebeu do expedidor, importa apurar se ocorre o invocado fundamento de exclusão da sua culpa, mais concretamente pela qualificação do furto como um caso fortuito, portanto, imprevisível (embora pudesse ser evitado se previsto[9]), face às condições em que foi perpetrado. O caso fortuito afasta a culpa e a responsabilidade do transportador. Foi o que as R.R. tentaram demonstrar.
Importa, sobretudo, avaliar se a transportadora e os seus agentes tomaram as medidas necessárias para evitar o furto. Isto é, se agiram com a diligência a que estavam obrigados, sem culpa, perante as circunstâncias concretas, mas segundo um critério abstracto que tem como referência o bonus pater familias e a diligência exigível segundo o padrão de um profissional experiente, conhecedor e responsável (já não a diligência habitualmente empregue em situações semelhantes pelo agente; a diligentia quam suis rebus adhibere solet)[10] --- art.º 487º, nº 2 e 799º, nº 2, do Código Civil.
Segundo Menezes Cordeiro[11], a mera culpa ou negligência tem sido entendida como a violação (objectiva) de uma norma por inobservância de deveres de cuidado. No decurso da sua actuação na sociedade, as pessoas devem observar determinadas regras de cuidado, de prudência, de atenção ou de diligência para que não violem, ainda que involuntariamente, normas jurídicas. A não observância desses cuidados elementares pode provocar uma violação, ainda que não incluída, a título directo, necessário ou eventual na actuação do agente.
Enquanto no dolo existe um comportamento primariamente dirigido à violação duma norma jurídica; na negligência, a violação é-o, directamente, de deveres de cuidado. Nesta cabem, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte psicológico das acções que integram a culpa consciente, e o grau de reprovação ou de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte ou intenso o dever de o ter feito[12].
Na negligência consciente o agente tem conhecimento da existência dos deveres de cuidado mas, não obstante, não os acata, esperando que não haja danos.
Na negligência inconsciente, o agente não tem conhecimento dos deveres de cuidado. O agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida[13].
Relevam no caso, sobretudo, os seguintes factos (provados):
- Na noite de 8 para 9 de Março de 2006, quando o motorista da R. D…, L.da se encontrava a dormir no camião, o semi-reboque onde eram transportadas as mercadorias supra referidas foi assaltado;
- Este semi-reboque era coberto por uma lona, que foi rasgada, e dele retiradas as mercadorias transportadas que não chegaram ao seu destino;
- O semi-reboque foi assaltado quando estava parado num parque de repouso, numa estrada nacional, na localidade de …, Inglaterra;
- Na altura, encontravam-se outros veículos pesados estacionados, para além do camião da referida R.;
- E, tal como o camião desta R., também eles foram assaltados nessa noite.
Seguiremos de perto o douto e recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.2010[14] que tratou de um caso muito semelhante ao que agora nos ocupa, e que, por essa razão e acerto de análise, passamos, respeitosamente, a citar:
«Importa ponderar que o risco de transporte de mercadorias, feito por estrada por longos trajectos, implica risco de acidente, mas também o de furto da carga, sobretudo, quando em virtude do indispensável período de descanso do motorista, a vigilância e a guarda da mercadoria devem ser particularmente acauteladas. Não basta que o veículo transportador se acolha a parques próprios onde estacionam comboios de veículos de transportes internacionais, é que esses locais são alvos conhecidos de organizações que se aproveitam do descanso dos motoristas para perpetrarem furtos, como é consabido dos profissionais transportadores.
Dai que, o facto do motorista ter estacionado o longo veículo – camião e semi-reboque – num parque, que não se provou ser vigiado durante a noite, pese embora aí estacionarem outros veículos, por si só não revela que tenha tomado os cuidados adequados a evitar furtos.
Depois, o facto de apenas uma pessoa durante a noite pernoitar na cabina, sem que a ninguém competisse fazer vigilância (repete-se que a R. não alegou, sequer, que o parque tinha vigilância policial ou outra adequada a prevenir furtos), não a fazendo durante horas nocturnas (o que facilitou notoriamente a actuação dos autores do furto), revela conduta omissiva censurável, incompatível com o grau de diligência exigível.
Por outro lado, a R. deveria ter em conta o risco que implicava o estacionamento de um veículo cuja carga era protegida por lona – material vulnerável e facilmente removível – como sucedeu, e que a actuação dos que perpetraram o furto seria de difícil detecção, não só porque o ataque se deu no atrelado e em circunstâncias em que a actuação dos autores do furto não permitia ao motorista despertar do seu sono.
Que o local do estacionamento para descanso era manifestamente vulnerável e não consentia um razoável juízo de segurança, está o facto provado de, nessa noite de 08.04.2002, terem ocorrido nesse local assaltos pelo mesmo método a outros veículos aí estacionados».
Ainda na perspectiva daquele aresto, a R., «enquanto profissional do ramo de transportes internacionais rodoviários, não poderia ignorar que ao actuar como actuou, acolhendo o seu veículo a um parque não vigiado, não provendo ela mesmo a uma vigilância eficaz, não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende.
Se, porventura, no veículo, além do motorista, viajasse outro profissional, poderiam ter acertado eficazes procedimentos de vigilância enquanto um deles descansava. O facto de ser noite e o veículo ficar longas horas estacionado num sítio onde ocorrem furtos, deveria ter prevenido a R. a adoptar maiores cuidados, não podendo destarte invocar o nº 2 do art. 17° do CMR.»
Volvendo ao nosso caso, é de notar também que o quesito 7º da base instrutória que perguntava se o local dos factos era vigiado e tinha boa iluminação, mereceu resposta negativa.
Por conseguinte, acolhendo os considerandos daquele aresto do Supremo, nas circunstâncias provadas, o furto da mercadoria não constituiu um caso fortuito. Antes poderia ter sido evitado se a R. transportadora, acautelando a protecção do interesse da contraparte, tivesse protegido adequadamente a carga, se não pela opção por um semi-reboque composto por um material mais resistente à agressão do que a lona que envolve o reboque, ao menos através da criação de condições de efectiva vigilância técnica ou pessoal da mercadoria.
Sendo transportada uma carga composta por peças têxteis, presumivelmente leves e facilmente amovíveis, não podia o motorista/transportadora, simplesmente confiar que tudo estava seguro no seu camião enquanto dormia, de noite, tal como, provavelmente, dormiam também os demais motoristas presentes no parque, faltando prova de qualquer vigilância efectiva, como resulta evidenciado pela ocorrência de outros furtos nas mesmas circunstâncias. E não é, como vimos, pelo facto de outros motoristas tomarem condutas semelhantes que o facto pode ser desculpado.
Refere-se na douta sentença recorrida que a eventual exigência de veículos hermeticamente fechados e de estacionamento exclusivamente em parques fechados “encareceria absurdamente o preço do transporte (o que, manifestamente, não é do interesse dos expedidores das mercadorias), em muitos casos ou situações seria impraticável (pois por certo não existem parques fechados e guardados suficientes para albergar todos os veículos que se encontram em circulação afectos ao transporte de mercadorias) e nem sequer constituiria garantia suficiente de evitar a subtracção da mercadoria (pois também ocorrem assaltos em parques guardados e a camiões ou semi-reboques com o compartimento de carga hermeticamente fechado – no caso dos autos foram assaltados todos os camiões que se encontravam estacionados no local onde o camião da R. transportadora estacionou)”.
Não sendo, rigorosamente, claro que todos os demais camiões estacionados no parque de repouso em causa foram assaltados, também não releva aqui a invocação da possibilidade dos veículos serem assaltados quando estacionados em parques devidamente vigiados e com segurança controlada. Para além de se tratar de uma mera hipótese ou possibilidade, o que aqui conta é o efectivo exercício de vigilância, de modo a fazer prever que o assalto não será perpetrado, permitindo, nomeadamente, o repouso do motorista e o afastamento da culpa do transportador pela tomada da conduta adequada a prevenir o furto de carga.
Por outro lado, nem todas as cargas transportadas justificam a utilização dos parques vigiados. Há mercadoria pesada cuja subtracção do semi-reboque se torna praticamente impossível e outra mercadoria que, ainda que seja possível subtraí-la, o acto provoca necessariamente ruído ou movimentos que são adequados e suficientes a fazer despertar o motorista.
Nem todas as situações de transporte de mercadorias justificam a vigilância e a segurança que, no caso, se impunha, não estando em causa um aumento sensível e generalizado do custo dos transportes.
Havendo várias formas de tornar a carga segura e vigiada, quando facilmente removível, pode desde logo optar-se por um semi-reboque com forma mais robusta, rígida, que dificulte o acesso imediato à carga, pelo estacionamento do veículo em parque próprio e vigiado, podendo também, o motorista fazer-se acompanhar de alguém com quem organize a vigilância nos períodos de descanso, ou ainda optar-se por dispositivos automáticos denunciadores de intrusão, vulgarmente conhecidos por alarmes.
O que a transportadora não pode é, em defesa do seu interesse económico e encurtando os custos da vigilância, sacrificar o interesse do expedidor a um significativo grau de possibilidade da carga ser furtada, quando, na realidade, é sua obrigação preservar a sua manutenção e segurança de modo a garantir a sua entrega incólume no local do destino.
Por conseguinte, as R.R. não provaram que a perda de mercadoria teve por causa um conjunto de circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar; não demonstraram nomeadamente que o furto era imprevisível e se ficou a dever a um caso fortuito. Não ilidindo, assim, nos termos do nº 2, a presunção de culpa a que se refere o nº 1, ambos do art.º 17º, o transportador torna-se responsável pelo prejuízo que causou à exportadora E…, SA., pelo pagamento de uma indemnização calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que foi aceite para transporte (art.º 23º, nº 1).
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Assim decidida a questão do recurso, com necessária revogação da sentença da 1ª instância impõe-se-nos passar a conhecer, por substituição, das questões da acção, prejudicadas na sua apreciação pela decisão a revogar (art.º 715º do Código de Processo Civil). Assim:
2ª questão: Tendo-se concluído que há responsabilidade e obrigação de indemnizar, cumpre-nos determinar
a) Se prescreveu o direito da A. à indemnização
A R. C…, S.A. invoca a prescrição do direito da A. à indemnização. Segundo ela, o art.º 16º do Decreto-lei nº 255/99, de 7 de Julho, estabelece que o direito de indemnização resultante da responsabilidade do transitário prescreve no prazo de dez meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço contratada. Como a mercadoria foi entregue no destino a 9 de Março de 2006, já há muito que se encontrava prescrito o direito à indemnização relativamente à 1ª R.
Não há dúvida que a 2ª R. é uma empresa transportadora e agiu nessa qualidade realizando o transporte da mercadoria da cliente segurada da A., a E…, S.A.
Para realização do transporte de 326 volumes, via rodoviária, entre Portugal e o Reino Unido, a sociedade E…, S.A. contactou a R. C…, S.A., que aceitou o serviço solicitado. E, na data convencionada, a R. C…, S.A. recebeu a mercadoria da E…, S.A. Porém, para concretização do transporte para o seu destino, a R. C…, S.A. contratou a R. D…, L.da.
Desde logo na declaração CMR figurar como expedidora a C…, S.A. e como transportadora a R. D…, L.da. Por outro lado, está provado que a C…, S.A. obrigou-se para com a E…, S.A. (segurada da A.) a entregar a mercadoria no destino (cf. item 6º dos factos provados).
Nestas condições o contrato havido entre a 1ª R. e a E…, S.A. é o de transporte e não qualquer contrato de mandato pelo qual a primeira se obrigasse, simplesmente, como representante daquela exportadora a angariar uma empresa que viesse a efectuar o transporte por conta da E…, S.A. e a celebrar o contrato por conta daquela. É a própria C…, S.A. que se obriga directamente perante a E…, S.A. a entregar a mercadoria no destino, o mesmo é dizer, a efectuar o seu transporte até ao local do destino, no Reino Unido.
Nos termos do art.º 1º, nº 2, do Decreto-lei nº 255/99, de 7 de Julho, “a actividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias”, desenvolvendo-se, designadamente, no domínio da mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte (al. b)).
Embora o faça de uma forma mais especificada, a referida lei, que revogou o Decreto-lei nº 43/83, de 25 de Janeiro, tal como esta, refere, essencialmente, como actividade do transitário, as operações necessárias à execução das formalidades e trâmites necessários à circulação de mercadorias, revelados nas operações de planeamento, controlo, coordenação e direcção relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de mercadorias.
Como se fez constar do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.2.2003[16], “o transitário, enquanto tal, não faz transporte de mercadorias: trata apenas do necessário para que o transporte se processe normalmente, removendo obstáculos e criando condições para isso”. No entanto --- acrescenta aquele acórdão --- que “mostra a prática, que a jurisprudência publicada reflecte, que as empresas transitárias com frequência se encarregam, efectivamente, do transporte pretendido pelo exportador, que cometem a terceiro. Quando tal sucede, …, está-se, na realidade, perante um contrato de transporte – cfr. art. 367°, nº l, C.Com., …”.
Acrescenta-se naquele aresto do Supremo Tribunal de Justiça[17], que o certificado FCR --- no caso junto a fl.s 33 (doc. nº 6), e enviado pela 1ª R. à cliente da A., E…, S.A. --- “tem já sido definido, por mais de uma vez, pela jurisprudência, como o documento unilateral do transportador que certifica a recepção da mercadoria por parte deste, ou seja, como naquela alegação se diz, como um documento emitido por quem realiza o transporte ou – dele incumbindo, depois, terceiro – se assume como transportador (art.º 367°, nº l, do Código Comercial).
Mas ainda que assim não se entendesse, o que verdadeiramente aqui conta são os factos provados, dos quais resulta a obrigação assumida pela 1ª R. de “entregar a mercadoria no destino”, assim revelando a contratação do transporte, e não a assunção de uma simples obrigação de contratar; isto sem prejuízo de subcontratar, como efectivamente subcontratou com a 2ª R. a obrigação de transportar. E tendo contratado previamente o transporte com a E…, S.A. --- usando aqui, de novo, pela sua pertinência, as palavras deixadas naquele acórdão de 5.2.2004 --- “não lhe permitem os art.ºs 3° da CMR e 406º e 800º, nº l, C.Civ. alijar a responsabilidade na realidade assumida pelo contrato – de transporte – que celebrou com a exportadora …”, afastada que fica assim a mera existência de um mandato para a prática de actos próprios do transitário.
Quanto à responsabilidade da 2ª R., também como transportadora, não existem dúvidas em face dos factos provados. A mesma R. a assumiu, assim como a obrigação de indemnizar dela emergente, junto da 1ª R. através do documento/declaração que lhe enviou com data de 23 de Agosto de 2006, e esta juntou aos autos, sem que a 2ª R. o tivesse impugnado (cf. fl.s 80).
Logo, a 1ª R. responde perante a E…, S.A., solidariamente (art.º 100º do Código Comercial), com a 2ª R., por terem natureza comercial os contratos de transporte em causa (art.º 2º, 13º, § 2º, 230º, § 7º e 36 e seg.s do Código Comercial). E responde, não como transitária, mas como transportadora, nos termos da CMR.
Sendo assim, o prazo prescricional do direito à indemnização não é, nos termos do art.º 16º do Decreto-lei nº 255/99, o que resulta da actividade de transitário da 1ª R., de dez meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço contratada, mas o prazo de 1 ano estabelecido pelo art.º 32º, nº 1, da CMR.
O serviço foi concluído com a entrega da mercadoria (parte não furtada) ao destinatário no dia 9.3.2006 e a acção foi instaurada no dia 1 de Março de 2007, com um pedido de citação urgente, com vista à interrupção do prazo de prescrição aqui em causa e as R.R. foram citadas no dia 5 do mesmo mês de Março, data em que não tinha decorrido ainda aquele prazo; pelo que o crédito da A. não prescreveu (art.º 323º, nº 1, do Código Civil).
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b) Dado o dever de indemnizar, está para decidir se apenas a 2ª R., D…, L.da, ou se também a 1ª R. C…, S.A. é responsável pelo respectivo pagamento à A., como reembolso do que pagou à sua cliente segurada
Esta questão está respondida nos fundamentos da decisão da questão que antecede. A 1ª R., na qualidade de transportadora, por força do contrato de transporte celebrado com a cliente da A., é solidariamente responsável, com a 2ª R., pelo reembolso da indemnização correspondente ao prejuízo resultante do cumprimento defeituoso daquele contrato (art.ºs 17º, nº 1 2 23º, nº 1, da CMR e art.ºs 100º e 377º do Código Comercial).
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c) Valor da indemnização
A A. seguradora indemnizou a sua cliente E…, SA, pelo valor de € 22.914,61, por entender que correspondia ao contra-valor de GBP 14.178,78 da mercadoria que não chegou ao seu destino.
Porém, as R.R. defendem nas suas contestações que o câmbio oficial do Banco de Portugal na data da emissão da nota de crédito era de 0,6946, pelo que consideram que o valor correcto da indemnização é de € 20.412,87 (GBP 14.178,78 x 0,6949), e não a quantia paga de € 22.914,61.
A nota de crédito está datada de 30.3.2006 (doc. nº 10, junto a fl.s 38).
Quanto a esta questão de saber qual era câmbio oficial do Banco de Portugal na data da emissão da nota de crédito, a A. nada disse na réplica.
O nosso Código Civil acolhe o princípio nominalista, segundo o qual o cumprimento das obrigações pecuniárias se deve fazer em moeda que tenha curso legal no País e pelo respectivo valor nominal (art.º 550º do Código Civil).
Conforme informação do Banco de Portugal a taxa de câmbio oficial do GBP para o euro, em 30.3.2003 era de 0,6946.
Assim, a indemnização a pagar à A. é de € 20.412,87.
d) A nulidade da sentença
A A. recorrente invoca a nulidade da sentença ao abrigo do art.º 668º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil por omissão de pronúncia, naquela decisão, sobre o que considera ser uma confissão judicial da 1ª R. “relativa à responsabilidade da transportadora a que recorreu para a concretização do transporte” e sobre o que entende ser também uma confissão extrajudicial por parte da 2ª R. D…, L.da, em qualquer caso, com base na junção, pela 1ª R., com a contestação, do documento nº 3, a fl.s 80 dos autos.
Independentemente do mérito da questão, a sua apreciação perdeu o interesse e, como tal, está prejudicada pela solução já encontrada para as outras questões da apelação e para a própria acção na concretização da regra da substituição deste tribunal ad quem relativamente ao tribunal a quo nos termos do art.º 715º, do Código de Processo Civil.
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Nesta prudencial decorrência, só nos resta concluir pela parcial procedência da apelação, com revogação da sentença recorrida.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida que, por aplicação da regra prevista no art.º 715º do Código de Processo Civil, se substitui pela presente deliberação; e, assim, condenam-se as R.R. C…, S.A. e D…, L.DA., solidariamente, no pagamento à A., B… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., no reembolso da indemnização que esta pagou a favor da sua cliente E…, S.A., porém, pelo valor de € 20.412,87, a que acrescem os respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento.
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Custas da apelação e da acção pela A. e pelas R.R., na proporção do respectivo decaimento.
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Porto, 20 de Outubro de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
______________
[1] Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 103 e 113 e seg.s.
[2] Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada.
[3] A que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] In www.dgsi.pt.
[5] A. Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 5ª edição, pág.s 115 e 117.
[6] Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 47, citando José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato” – 1986, 42, nota 8.
[7] Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das do Obrigações”, 2010, pág. 365 e seg.s, citado no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010.
[8] Sublinhado nosso.
[9] M. de Andrade, Obrigações, pág. 417 e Pereira Coelho, R.D.E.S., 12º, T. IV, pág. 5.
[10] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, Almedina, pág. 526.
[11] Direito das Obrigações, edição da AAUL, 1980, vol II, pág.s 317.
[12] Antunes Varela, ob. cit., pág.s 525 e 526.
[13] Ob. cit., pág.s. 525 e 526.
[14] Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 55, cujo Ex.mo Relator também subscreveu, na mesma qualidade, o citado acórdão de 29.4.2010 (Conselheiro Fonseca Ramos).
[15] Sublinhado nosso.
[16] Proc. nº 03B4302, in www.dgsi.pt, citado pela A., na réplica, embora com data incorrecta.
[17] Citando Acs. Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.94, BMJ 441/338, 6° par., e de 28.1.97, CJSTJ, V. 1°, 71-H e 73, último par.