Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6914/16.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP201703226914/16.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: INFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 712, FLS.148-153)
Área Temática: .
Sumário: I – A prescrição da contra ordenação não retira eficácia ao pagamento voluntário e definitivo da coima, cujo processo havia prosseguido para aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir.
II – Arquivados os autos por prescrição, não pode ser restituído o valor da coima voluntariamente pago a título definitivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6914/16.9T8PRT.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1. No dia 08 de fevereiro de 2016, o relator proferiu nestes autos a seguinte decisão sumária:
“1. Relatório
1.1. No âmbito do processo contraordenacional, que teve por base o auto de notícia de contraordenação levantado a 17/12/2005 pela Divisão de Trânsito, notificada a recorrente do arquivamento dos autos por prescrição, veio a mesma solicitar a restituição da quantia voluntariamente paga, de €500,00, correspondente ao valor mínimo da coima, p. e p. pelos art.ºs 81º, nºs 1 e 5, al. b), 138º e 146º, al. j) do Código da Estrada, pretensão que lhe foi negada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR).
1.2. Não se conformando, impugnou a recorrente judicialmente tal decisão, nos termos que constam de fls. 36 a 44 dos autos.
1.3. Por despacho proferido na Secção de Pequena Criminalidade, J 1, da Instância Local da Comarca do Porto, de 15/09/2016, foi julgada improcedente a impugnação judicial.
1.4. Não se conformando novamente, interpôs recurso de tal decisão, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“A/ Em processo de contraordenação, o pagamento do depósito efetuado no momento da autuação, não se converte sempre em pagamento voluntário da coima;
B/ Devendo ser restituído ao arguido sempre que é proferida decisão de arquivamento por prescrição.
C/ Aceitar-se o contrário constituirá grave violação do direito de defesa, do direito ao recurso, da violação da presunção de inocência e do instituto da prescrição.
D/ A recorrente apresentou impugnação judicial da decisão condenatória proferida pela ANSR, que não foi julgada por inércia, por culpa exclusivamente imputável àquela Autoridade Administrativa - que não a apreciou como devia e estava obrigada, nem a remeteu ao Tribunal para que fosse julgada.
E/ À recorrente não estava vedada a possibilidade de, em impugnação judicial, ver discutida e julgada a prática da infração em que viria a ser condenada;
F/ Pelo que, tendo-lhe sido vedada tal possibilidade pela atuação da ANSR, viu a recorrente restringidos os seus direitos de defesa e à tutela efetiva, ferindo de ilegalidade e de inconstitucionalidade a decisão proferida, por violar o disposto no art.º 55º e 59º do RGCO e os art.ºs 18º, 20º e 32º da Constituição da Republica Portuguesa.
G/ A recorrente não se conforma com o facto de a ANSR não restituir as cauções prestadas pelos arguidos, nos casos em que, por inércia sua, os processos de contraordenação prescreverem, não lhe cabendo a possibilidade de, nos casos em que os processos prescreveram (em que deixou os processos prescreverem), apurar do preenchimento dos requisitos do art.º 173° do Código da Estrada;
H/ Manter-se a decisão agora sob recurso configura violação do direito de defesa da recorrente, que, não obstante ter impugnado judicialmente a decisão condenatória proferida, não viu decidido tal recurso por culpa da ANSR e, não obstante, acabou - sem julgamento - condenada no pagamento de €500,00.
I/ A apresentação da defesa em processo contraordenacional, tem carácter facultativo, e não pode ter qualquer efeito cominatório - como acabou por lhe fixar a decisão da Autoridade Administrativa e a sentença em crise;
J/ Em matéria contraordenacional o direito de defesa não se esgota na apresentação da defesa à matéria que consta do auto de contraordenação - vai para além desse momento, até ao momento em que a decisão condenatória pode ser judicialmente impugnada (e ainda não transitou em julgado).
K) Tendo a aqui recorrente optado por exerce o seu direito de defesa após prolação pela ANSR da decisão de condenação - mediante impugnação judicial, apresentada no tempo e modo próprios-, não pode entender-se que o valor por si pago no momento da autuação, se converteu em pagamento voluntário da coima.
L/ O direito ao recurso, que constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal (aplicável ao processo contraordenacional), com consagração constitucional, foi de forma inaceitável limitado à recorrente, por absoluta inércia da ANSR que, após apresentação daquele, nada fez senão recusar a restituição à recorrente do valor por si pago.
M/ No processo de contraordenação hão de valer os direitos e garantias constitucionalmente consagrados de direito de audiência e defesa, de acesso ao direito e á tutela jurisdicional efetiva, sob pena de violação da Lei Fundamental.
N/ A decisão de que se recorre não atentou, nem por um momento, no facto que determinou que o processo tivesse sido arquivado - a prescrição.
0/ O processo prescreveu porque a autoridade administrativa não proferiu decisão em tempo útil, pretendendo agora aproveitar-se da sua própria inércia, em claro prejuízo da recorrente, cujo processo nunca foi objeto de decisão.
P/ Não restituir o pagamento efetuado configura transmissão patrimonial sem causa justificativa, isto é, enriquecimento sem causa, que impõe a obrigação de restituir o que foi “indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (de acordo com o art.º 473º do Código Civil).
Q/ Restituição que impõe também o princípio da presunção da inocência, que vale no processo contraordenacional, já que a não restituição do valor pago configura imputação á recorrente de culpa provável, traduzindo a atribuição de efeitos resultantes da determinação da culpa da recorrente, sem que previamente se tenha provado a sua culpabilidade.
R/ O arquivamento do processo, declarada que foi a prescrição, não é suficiente para repor a situação em que a recorrente se encontrava antes da instauração do procedimento contraordenacional. Essa situação só se mostra reposta se lhe for restituído o que - mal ou bem, a titulo de coima ou de depósito - pagou, tenha ou não apresentado defesa escrita.
S/ Num Estado que se quer de Direito é inadmissível que sejam desta forma preteridos os direitos dos cidadãos, em clara afronta dos princípios legais e constitucionais que regem a defesa dos arguidos também nos processos de contraordenação.
T/ Com a definição dos prazos de prescrição do procedimento, quis a lei que o processo se exercesse dentro de certo prazo, tendo em vista a rápida definição dos direitos e a correspondente segurança jurídica, ficando protegida a segurança jurídica do recorrente e sancionada a negligência do titular do direito (no caso, a ANSR), que não o exerceu, decorrido aquele prazo.
U/ Violou a decisão de que se recorre o disposto os art.ºs 18º 200º e 32º da Constituição da República Portuguesa, 50º e 55º, 57º e 59º do RGCO, 173º do Código da Estrada e 473º do Código Civil.”
1.5. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 230.
1.6. O Ministério Público respondeu ao recurso, de fls. 233 a 237, concluindo no sentido de ser negado provimento ao recurso.
1.7. O Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 247 a 248, no qual sustentou a inadmissibilidade do recurso, com fundamento no art.º 73º do Regime Geral das Contraordenações, e por considerar que a decisão objeto do recurso não é uma decisão final, por ter sido proferida já depois do arquivamento do processo, ocorrido na fase administrativa, e, subsidiariamente, concluiu pela negação de provimento ao recurso.
1.8. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo a recorrente respondido, reiterando a posição já assumida no recurso interposto, defendendo ainda que a decisão recorrida constitui uma decisão final, porquanto a coima em que acabou “condenada” é superior a €249,40, e porque o recurso é necessário para a melhoria da aplicação do direito.
1.9. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pela recorrente e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir fundamentalmente e precipuamente a seguinte questão:
- Saber se, como advoga o Sr. Procurador-Geral Adjunto, o recurso é legalmente inadmissível.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1. O Tribunal a quo, na decisão tomada, teve por base a seguinte factualidade:
a) Em 17 de dezembro de 2005, foi lavrado auto de contraordenação imputando à agora recorrente a prática da contraordenação, prevista e punida pelos art.ºs 81º, nºs 1 e 5, al. b), 138º e 146º, al. j), do Código da Estrada, por nessa data conduzir veículo automóvel e, depois de submetida ao teste de álcool no sangue, ter acusado uma TAS de 0.94g/l;
b) Nessa mesma data foi a recorrente notificada nos termos do art.º 50º do DL nº 433/82, de 27/10, e dos art.ºs 175º e 176º do CE;
c) A recorrente, na mesma data de 17/12/2005, procedeu ao depósito do montante de €500,00, correspondente ao valor mínimo da coima legalmente aplicável à contraordenação referida em a);
d) A recorrente, apesar da notificação efetuada, supra referida em b), não apresentou qualquer defesa;
e) Nomeadamente no prazo de 15 dias, a que alude o art.º 175º, nº 2, do CE, prazo esse que terminou a 06/01/2006;
f) A 11/04/2008 foi proferida decisão pela autoridade administrativa competente a considerar extinto o procedimento contraordenacional por prescrição;
g) Na sequência da notificação que lhe foi feita de tal decisão, apresentou a recorrente requerimento a solicitar o reembolso do valor da coima anteriormente paga;
h) Pretensão que lhe foi negada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, com o fundamento no facto de não estarem preenchidos os requisitos legais dos art.ºs 173º, nºs 1 e 3, e 175º, nº 2, do Código da Estrada, e uma vez que a mesma recorrente não havia apresentado defesa dentro do prazo estipulado para o efeito.
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
Estabelece o art.º 73º do Regime Geral das Contraordenações o seguinte:
“1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a €249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
Ora, como resulta dos autos, a decisão recorrida não aplicou à recorrente qualquer coima, como a própria reconhece (ao referir-se, numa construção semanticamente pouco rigorosa, que acabou “condenada” no pagamento de uma coima superior a €49,40, colocando precisamente entre aspas o termo “condenada”). A decisão recorrida negou-lhe, isso sim, a restituição da quantia que a recorrente, visando precisamente o pagamento pelo mínimo da coima que sabia devida, pagou voluntariamente, nos termos legais. Sendo que a decisão administrativa proferida sobre tal pretensão foi dada posteriormente àquela que pôs termo ao processo contraordenacional, ou seja, a que declarou a prescrição do processo contraordenacioanal. Sendo que a remanescência de tal procedimento, e o sentido da sua continuação até à declaração da prescrição, foi a procura da determinação da sanção acessória aplicável, e em relação à qual, e apenas a ela, produziu efeitos a declaração de prescrição do procedimento, pois quanto à coima, tal procedimento tinha já perdido a sua justificação, como já resultava no nº 5 do art.º 172º do CE, ou seja, o processo, como decorre da lei, prosseguiu “restrito à aplicação da coima”, e já que a recorrente, não tendo apresentado qualquer defesa, no prazo de 15 dias a que alude o art.º 175º, nº 2, do CE, fez com que tal depósito se convertesse em pagamento.
Ou seja, nem na fase administrativa, nem na fase judicial houve qualquer condenação da recorrente no pagamento de qualquer coima. Aquela é que voluntariamente, por ação e omissão, acabou por dar em pagamento o valor da coima que agora pretende reaver.
Assim sendo, e ainda que o recurso fosse legalmente admissível, o mesmo sempre deveria ser rejeitado por manifesta improcedência.
A decisão recorrida não se enquadra, portanto, em qualquer das alíneas do art.º 73º, nº 1, do RGCO. Assim como não se vislumbra poder a situação dos autos ser subsumível ao nº 2 do mesmo artigo, e já que a solução de manifesta improcedência do recurso, como supra se deixou referido, encerra em si a implausibilidade da aceitação do mesmo com o fundamento de ser necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, e muito menos a verificação do caráter manifesto de uma tal necessidade, que tal norma também exige.
Razão por que, não sendo a decisão do Tribunal a quo recorrível, impõe-se a rejeição do recurso, ademais nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 420º, nº 2, 414º, nº 2, al. a), e 417º, nº 6, al. b), do CPP.
2.3. Da responsabilidade pelo pagamento de custas e da sanção a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP
Uma vez que a recorrente vê rejeitado o recurso por verificação de causa que deveria ter determinado a sua rejeição, além de ser responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu causa (artigos 92º, nº 1, do RGCO, 515.º e 514.º, nº 3, do Código de Processo Penal) deverá ainda ser condenada numa importância situada entre 3 UC e 10 UC, nos termos do art.º 420º, nº 3, do CPP.
Nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa de justiça em 3 ½ UC e também em 4 UC a importância a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP.
3. Dispositivo
Face ao exposto, decido:
a) Rejeitar o recurso interposto pela recorrente B…;
b) Condenar a mesma no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 3 ½ UC, e ainda no pagamento da importância de 4 UC, a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP.”
1.2. Não se conformando com tal decisão, veio a recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 417º, nº 8, do CPP, reclamar para a conferência, da decisão sumária, bem como da condenação aí proferida da recorrente na sanção prevista no art.º 420º, nº 3, do CPP, apresentando, em síntese, os seguintes fundamentos:
- Apesar de declarado prescrito o procedimento contra ordenacional, a recorrente acabou “condenada” a pagar 500,00, valor superior ao que alude o art.º 73º do RGCO.
- Ainda que assim não se entenda a questão de que este recurso dá nota, é grave demais para não merecer a tutela dos Tribunais, impondo que o Tribunal a decida, por tal se mostrar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito.
- Esqueceu o Tribunal a quo, e a decisão agora em reclamação, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/2009, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação dos art.ºs 20º, nºs 1 e 5, e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma do art.º 175º, nº 4, do Código da Estrada (…) interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infração.”
- Ambas as decisões assentam no errado princípio de que o depósito efetuado pela recorrente no momento da autuação, e sem apresentação da defesa no prazo de 15 dias a que alude o art.º 175º do CE, se converte em pagamento voluntário da coima, e a impedem de vir a discutir em tribunal a própria existência da infração.
- A arguida está privada de €500,00, não porque tenha sido condenada por qualquer decisão transitada, ou porque tenha querido que tal pagamento se convertesse em pagamento voluntário da coima (a provar que assim não quis, a impugnação judicial que apresentou), mas porque, por culpa exclusiva da ANSR, a impugnação judicial por si apresentada não foi remetida a Tribunal.
- Entendendo não ser o recurso manifestamente improcedente, considera ser injusta e ilegal a condenação da recorrente na sanção prevista no art.º 420º, nº 3, do CPP, que deverá ser revogada.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Apreciação da reclamação.
2.1.1. A recorrente reclamou para a Conferência da decisão sumária do relator, proferida no passado dia 08 de fevereiro de 2016, que rejeitou o recurso interposto, manifestando dela discordar, pela seguinte ordem de fundamentos:
a) Apesar de declarado prescrito o procedimento contraordenacional, a recorrente acabou “condenada” a pagar €500,00, valor superior ao que alude o art.º 73º do RGCO.
b) Ainda que assim não se entenda, a questão de que este recurso dá nota, é grave demais para não merecer a tutela dos Tribunais, impondo que o Tribunal a decida, por tal se mostrar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito.
c) Esqueceu o Tribunal a quo, e a decisão agora em reclamação, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/2009, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação dos art.ºs 20º, nºs 1 e 5, e 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma do art.º 175º, nº 4, do Código da Estrada (…) interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infração.”
d) Ambas as decisões assentam no errado princípio de que o depósito efetuado pela recorrente no momento da autuação, e sem apresentação da defesa no prazo de 15 dias a que alude o art.º 175º do CE, se converte em pagamento voluntário da coima, e a impedem de vir a discutir em tribunal a própria existência da infração.
e) A arguida está privada de €500,00, não porque tenha sido condenada por qualquer decisão transitada, ou porque tenha querido que tal pagamento se convertesse em pagamento voluntário da coima (a provar que assim não quis, a impugnação judicial que apresentou), mas porque, por culpa exclusiva da ANSR, a impugnação judicial por si apresentada não foi remetida a Tribunal.
f) Entendendo não ser o recurso manifestamente improcedente, considera ser injusta e ilegal a condenação da recorrente na sanção prevista no art.º 420º, nº 3, do CPP, que deverá ser revogada.
2.1.2. No que toca ao primeiro dos indicados pontos da reclamação apresentada, importa dizer que é a própria recorrente a reconhecer que a decisão recorrida não a condenou em qualquer coima. Sendo denotativo de um tal reconhecimento o facto de afirmar que o que a decisão proferida determinou foi a prescrição do procedimento contraordenacional e que essa decisão acabou por fazer com que a recorrente fosse “condenada” a pagar €500,00. Sendo óbvia a extrapolação, realizada pela recorrente, do que foi decidido para algo que não resulta possível integrar no objeto de tal decisão. A forma verbal utilizada, colocada entre aspas é disso denotativa. E como seria possível a decisão, ainda que indiretamente, “condenar” a recorrente a pagar algo que simplesmente já havia sido pago (e tido como pagamento por força da lei) há mais de onze anos? Sendo que em relação a tal obrigação de pagamento, resultante da contraordenação cometida, já há muito se havia extinguido o procedimento contraordenacional, tendo este prosseguido os seus ulteriores termos apenas para determinação da sanção acessória aplicável, como determinava o art.º 172º, nº 5, e agora determina o art.º 172º, nº 4, do Código da Estrada - “o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contraordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma.”
Em verdade, como resulta da matéria de facto dada como provada:
a) Em 17 de dezembro de 2005, foi lavrado auto de contraordenação imputando à agora recorrente a prática da contraordenação, prevista e punida pelos art.ºs 81º, nºs 1 e 5, al. b), 138º e 146º, al. j), do Código da Estrada, por nessa data conduzir veículo automóvel e, depois de submetida ao teste de álcool no sangue, ter acusado uma TAS de 0.94 g/l;
b) Nessa mesma data foi a recorrente notificada nos termos do art.º 50º do DL nº 433/82, de 27/10, e dos art.ºs 175º e 176º do CE;
c) A recorrente, na mesma data de 17/12/2005, procedeu ao depósito do montante de €500,00, correspondente ao valor mínimo da coima legalmente aplicável à contraordenação referida em a);
d) A recorrente, apesar da notificação efetuada, supra referida em b), não apresentou qualquer defesa;
e) Nomeadamente no prazo de 15 dias, a que alude o art.º 175º, nº 2, do CE, prazo esse que terminou a 06/01/2006.
Ou seja, o processo, na parte relativa à coima e ao pagamento efetuado, a partir de 06/01/2016, por força de lei, passou a ser considerado arquivado.
Extinto que está o procedimento contraordenacional, nessa parte, há mais de 11 anos, não pode vir agora a recorrente pretender transpor artificiosamente para a decisão posteriormente proferida, na parte do procedimento contraordenacional que viu prosseguir exclusivamente os seus ulteriores termos para determinação da sanção acessória de inibição de conduzir, e só para isso, os efeitos de uma tal extinção ou a possibilidade de uma qualquer sua nova reapreciação, porquanto em relação a estes o processo já se encontrava findo.
Razão por que, não aplicando a decisão recorrida qualquer coima, ademais porque não a poderia sequer aplicar, nem reapreciar, também não podia o presente recurso obter fundamento para a sua admissibilidade na al. a) do art.º 73º do RGCO.
E assim se responde também aos dois outros fundamentos da reclamação deduzida, supra referidos em d) e e), ou seja que as decisões não assentam, como pretende a todo o custo a recorrente sustentar, no errado pressuposto de que o depósito efetuado pela recorrente no momento da autuação, e sem apresentação da defesa no prazo de 15 dias a que alude o art.º 175º do CE, se converte em pagamento voluntário da coima, e a impedem de vir a discutir em tribunal a própria existência da infração. Pois é precisamente isso que resulta da lei, e que qualquer cidadão comum sabe que acontece na sequência do cometimento de uma contraordenação, sujeita ao mesmo regime da dos autos. Isto é, que depositando o valor da coima pelo montante mínimo devido e não sendo deduzida defesa, no prazo de 15 dias a que alude ao art.º 175º, nº 2, do CE, ou nos termos do art.º 50º do RGCO, tal depósito converte-se em pagamento, determinando o arquivamento dos autos nessa parte, e prosseguindo os mesmos apenas para a determinação da sanção acessória aplicável. E não é o posterior arquivamento dos autos, com fundamento na prescrição do procedimento contraordenacional na parte remanescente relativa à aplicação da sanção acessória, que precisamente por isso não veio a acontecer, que poderá retirar a eficácia de pagamento definitivo da coima já ocorrido, bem como a consequente extinção do respectivo procedimento contraordenacional, repete-se, há mais de 11 anos.
Por outro lado, não vemos qual a pertinência do chamamento ao caso dos autos da doutrina do Ac. do Tribunal Constitucional, nº 135/2009, que se reporta ao impedimento de o arguido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infração, pois nem na fase administrativa foi aplicada qualquer sanção acessória de inibição de conduzir nem na fase de impugnação judicial veio a recorrente alegar que não praticou qualquer infração. Facto que nem sequer alegou ou em relação àquela deduziu qualquer defesa, apesar do prazo que para tal lhe foi então concedido. O que veio a recorrente fazer foi formular pretensão de fazer reverter um arquivamento do processo ocorrido há mais de 11 anos, por causa do pagamento da coima devida e que aceitou ser devida, nele voluntariamente efetuado, e pela ausência de apresentação de qualquer defesa, mesmo em relação à sanção acessória que teria de lhe ser aplicada, para assim vir a receber o que justa e legalmente pagou pelo comportamento ilícito por si cometido, que aliás aceitou como fundamento daquele pagamento efetuado. Assumindo também assim, ao deduzir tal pretensão, um comportamento que se traduz num autêntico venire contra factum proprium.
E sendo tão evidente a ausência de necessidade de tutela jurisdicional neste caso, por ser tão clara a lei sobre o caso-problema posto, como supra se deixou referido, que também se não vislumbra fundamento para a admissibilidade do recurso por via do nº 2 do art.º 73º do RGCO, isto é a aceitação do recurso da sentença “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
Não vislumbramos sequer que tal admissão se afigure como necessária à melhoria da aplicação do direito, e muito menos que seja manifestamente necessária, e desde logo porque dos autos não resulta a existência de um erro claro ou clamoroso na decisão judicial proferida na primeira instância, ou que estejamos perante situação que, “face ao entendimento jurisprudencial amplamente adotado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito.”[1] Antes pelo contrário, como já deixámos antever na fundamentação acima expendida.
O que a recorrente faz é persistir num venire contra factuam proprium, assente por um lado no pagamento voluntário do valor da coima, efetuado há mais de 11 anos, bem como num comportamento logicamente consentâneo com as consequências jurídico-processuais de tal pagamento voluntário, designadamente no que toca à aceitação do cumprimento da coima pelo seu valor mínimo, enquanto consequência do comportamento ilícito adotado, pretendendo depois, artificiosamente, reverter tal pagamento, assim como o comportamento de cidadania que o enformou ou que o deveria ter enformado. Aproveitando-se do facto de o processo contraordenacional, na parte remanescente relativa à aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir ter sido declarado extinto por prescrição.
É bom de ver, por isso e também, que sendo manifesta a falta de fundamento para a admissibilidade legal do recurso para este Tribunal da Relação, e até ser manifesta a improcedência do mesmo, que era inevitável a condenação da recorrente na sanção a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP.
Razão por que deve ser indeferida a reclamação.
2.2. Responsabilidade pelo pagamento das custas
Uma vez que a recorrente decaiu na reclamação que apresentou é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
Nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 1 a 3 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 1 ½ UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Indeferir a reclamação apresentada pela recorrente B….
b) Condenar a recorrente no pagamento das custas devidas, fixando-se a taxa de justiça devida pela reclamação em 1 ½ UC.

Porto, 22 de março de 2017
Francisco Mota Ribeiro
Borges Martins
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[1] Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral, 6ª edição, Áreas Editora, Lisboa 2011, p. 538.