Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0725015
Nº Convencional: JTRP00040721
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
PRAZO DE CADUCIDADE
FACTOS
EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
Nº do Documento: RP200710300725015
Data do Acordão: 10/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 255 - FLS. 157.
Área Temática: .
Sumário: I- O prazo de 30 dias para requerer o embargo de obra nova conta-se a partir do momento em que o titular do direito tenha efectivo conhecimento da verificação do dano e não apenas do conhecimento do início da obra.
II- O estado da obra que releva é o que existe no momento da propositura do procedimento e não no momento da decisão.
III- Os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter conhecimento no exercício das suas funções (art. 514º nº 2 do CPC), são apenas os já julgados pelo mesmo juiz noutro processo e não os factos de que se tem conhecimento no âmbito da própria acção a julgar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 5015/07-2
1.ª Secção Cível
NUIP ……./07.8TBMAI-B
*
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.

I

1. B……………………… e mulher C…………….., residentes na Rua ……………., n.º…, em …………, concelho da Maia, instauraram, no Tribunal Judicial da comarca da Maia, procedimento cautelar contra as sociedades comerciais D………………, S.A. e E………………., S.A., ambas com sede na Rua de ………………, freguesia de ………….., concelho de Braga, em que requereram que fosse ordenada a suspensão das obras de construção de um arruamento incluído nas obras do F………………., que confronta com a extrema nascente do prédio urbano onde residem e de que são proprietários, bem como a suspensão da abertura e inauguração desse mesmo arruamento.

As requeridas, notificadas para se pronunciarem sobre aquela providência cautelar, deduziram oposição, em que suscitaram as seguintes excepções: 1) a extemporaneidade da providência; 2) inexistência de todos os pressupostos essenciais da providência requerida; 3) ilegitimidade da segunda requerida, empreiteiro da obra; 4) incompetência material do tribunal da comarca da Maia para conhecer da providência requerida. Para além disso, impugnaram os fundamentos de facto alegados pelos requerentes.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão que julgou improcedentes as excepções deduzidas pelas requeridas e determinou “a suspensão das obras de urbanização do F…………….no que se refere ao arruamento que confronta com a extrema nascente do prédio dos requerentes, suspensão essa que abrange a circulação de veículos no mesmo arruamento e inauguração desse arruamento”.

2. As requeridas, não se conformando com essa decisão, recorreram para esta Relação, extraindo da sua motivação as conclusões seguintes:

a) Vem o presente recurso interposto da sentença que decretou o procedimento cautelar em apreço nos autos.

b) Os Requerentes configuram a lide como providência cautelar de embargo de obra nova, e apenas assim poderá o pedido ser apreciado e/ou decretado, o que e s.m.o. in casu não sucedeu.

c) Os Recorridos tiveram conhecimento da obra em causa em Novembro de 2006, uma vez que, directa e imediatamente contactavam com os trabalhos da mesma, o que resulta aliás dos depoimentos colhidos e gravados em audiência.

d) No entanto, apenas em 7 de Março de 2007 empreenderam uma acção para acautelar o direito que, em seu entender, havia sido violado ou estaria em risco, pelo que precludiu o direito de intentar a providência em questão, nos termos do art. 412.º do Código de Processo Civil (CPC), pois passaram 30 dias a contar do conhecimento do facto (Novembro de 2006), sendo que nesses 30 dias os Recorridos nada fizeram.

e) Ora, o exercício extemporâneo do direito é cominado com caducidade, o que cumpre ser decretado, sob pena de violação, que no caso ocorreu, do art. 412.º, n.º 1, do CPC.

f) É igualmente claro que, à data de encerramento da discussão, a obra estava concluída, não poderia então o embargo ser decretado por falta de pressuposto e fundamento legal e assim tendo ocorrido, violou-se o prescrito no art. 412.º, n.º 1, do CPC.

g) A comprovar este facto e o da abertura da rua ao trânsito automóvel, está a assentada da diligência de inspecção ao local efectuada em 17 de Abril de 2007, para além do doc. 1 junto a estas alegações.

h) Motivo pelo qual, tais factos − obra concluída e abertura da mesma ao trânsito automóvel − deveriam ter sido dados como assentes e tidos em conta na decisão final, sendo de importância manifesta para a mesma.

i) Até porque o tribunal conhece de tais factos no exercício das suas funções e como tal eles não carecem de alegação, apenas de um documento que os comprove (cfr. art. 514.º, n.º 2, do CPC), sendo neste caso o documento em causa a acta da diligência de inspecção ao local.

j) Deste modo, os factos das als. g) a l) dos factos dados como provados na sentença não têm qualquer correspondência com a prova constante dos autos que, em parte e certamente por lapso, não foi atendida.

k) Assim sendo, há erro nos pressupostos de facto motivadores da decisão, motivo pelos quais os mesmos têm de ser revistos à luz da conclusão do arruamento e abertura do mesmo ao trânsito.

l) Ao que acresce o facto da decisão, seguramente por lapso, olvidar um conjunto de elementos e documentos, devidamente juntos aos autos, que impunham decisão diversa da proferida, por si só, sob pena de violação do vertido no art. 669.º, n.º 2, al. b), do CPC.

m) De acordo com o artigo 663.º, n.º 1, do CPC, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão, o que no caso, não veio a suceder, como cumpria.

n) E, segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/1982 (in BMJ, 321.º - 378) “a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão, sendo também até esse momento que em articulado superveniente, hão-de ser deduzidos tais factos, a não ser que se trate de factos notórios ou de que o tribunal tenha conhecimento no exercício das suas funções, ou seja caso de se entender comprovado o uso anormal do processo (arts. 506.º, 507.º e 663.º do Cód. Proc. Civil)”.

o) Ademais que se trata de procedimento cautelar, no qual se visa acautelar um dano actual e/ou futuro.

p) Note-se que o tribunal teve conhecimento dos factos em causa no exercício das suas funções.

q) Mais ainda, este contexto estava já indiciado nos factos dados como assentes que anunciavam para breve (em poucos dias) a abertura do aludido arruamento.

r) A consolidação deste facto implicou uma condenação em objecto diverso do pedido e em quantidade superior, já que impõe o encerramento de uma rua devidamente aberta ao trânsito, quando estava apenas peticionada, a suspensão da inauguração do mesmo, não se cumprindo com disposto no art. 661.º, n.º 1, do CPC, colocado em causa está o princípio do dispositivo.

s) Sempre se refira que tal decisão apenas poderia ser tomada em sede de acção principal e nunca de procedimento cautelar, como veio a ocorrer.

t) Neste caso em concreto, com a obra concluída, o procedimento cautelar de embargo de obra nova resulta esvaziado de objecto e, bem assim, dos legais pressupostos, pelo que era ilegal o seu decretamento.

u) Sendo que, ao decidir como decidiu o Tribunal violou os artigos 287.º, 412.º, 514.º, 661.º e 663.º do Código de Processo Civil.

Pretendem, assim, que, em reparação do agravo, seja revogada a sentença recorrida.

3. Os recorridos não contra-alegaram.

Os autos foram a visto dos Ex.mos adjuntos e realizou-se a conferência.


II

4. O objecto do presente recurso, delimitado pelas suas conclusões (arts. 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), opõe à decisão recorrida três questões:

1) primeiro, as recorrentes invocam que a presente providência é legalmente inadmissível por ter sido exercida extemporaneamente;

2) segundo, dizem que a providência é ainda inadmissível por “inexistência dos pressupostos essenciais”, referindo-se, em concreto, ao facto de inexistir obra ou trabalhos em curso, porquanto “ainda antes da data do encerramento da discussão da providência, a obra já se encontrava concluída”;

3) terceiro, discordam da decisão proferida em matéria de facto, entendendo que “deveriam ter sido dados como assentes os factos constantes da assentada da diligência da inspecção ao local, realizada em 17 de Abril de 2007”, confirmativos de que, nessa data, o arruamento aqui em causa já estava concluído e aberto ao trânsito em ambos os sentidos, devendo conduzir à improcedência desta providência cautelar.

5. Na decisão recorrida foram julgados provados os factos seguintes:

a) OS Requerentes são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano, correspondente a casa de rés - do - chão e 1 º andar para habitação e quintal, sito na Rua ……….., nº …., na freguesia de …………, concelho da Maia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 319 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 00981/10012003.

b) Os Requerentes, por si e seus antepossuidores, utilizam o prédio para sua habitação e sua família, há mais de 20 anos, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, à vista de todas as pessoas, na convicção de serem seus proprietários.

c) A 1.ª Requerida é dona e legítima proprietária de um terreno destinado a construção sito na Rua …………., S/N, freguesia de ……………., concelho da Maia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo P1212 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob os nºs 00389 e 00331, que confronta de Nascente com o prédio titulado em nome dos Requerentes.

d) Nesse terreno destinado a construção a 2ª Requerida está a efectuar a construção de um estabelecimento comercial (supermercado F………….) e restantes obras de urbanização.

e) O prédio dos Requerentes confina de Nascente com o terreno da 1 ª Requerida que se situava a um nível inferior ao da moradia dos Requerentes.

f) Agora esse terreno, após terraplanagens efectuadas pela 2ª Requerida por ordem da 1 ª Requerida, situa-se a um nível superior ao da casa dos Requerentes, isto é, a cota do terreno é a mesma da cota do muro da casa, ficando o logradouro e a casa dos requerentes abaixo do nível do terreno da 1 ª Requerida

g) Os Requerentes, no início do mês de Março pretérito, tomaram conhecimento de que no prédio propriedade da 1.ª Requerida o arruamento nele construído iria ficar com as cotas e com a configuração que tem actualmente e seria destinado a trânsito automóvel, que vai desembocar directamente na extrema do prédio dos requerentes, frente à Rua …………… e no prolongamento da Av………….. Isto é, a rua termina exactamente no mesmo nível do muro dos Requerentes.

h) Essa rua destina-se ao trânsito de veículos automóveis que se dirijam ao parqueamento do Supermercado (local público) que irá ser inaugurado dentro de dias.

i) Com a abertura deste supermercado e consequente abertura dessa rua, o trânsito automóvel vai aumentar de forma considerável, atraindo ao local milhares de pessoas.

j) Confrontando a rua, a um nível superior, com o jardim dos requerentes, onde brincam a sua neta e sobrinhos, há o perigo iminente de um veículo automóvel, numa manobra menos cuidadosa cair para dentro do quintal e causar danos à vida das crianças e de adultos e ainda danos ao jardim dos Requerentes.

k) A rua que vai ser aberta deita directamente - em linha recta - para os quartos e cozinha dos Requerentes.

l) Com as chuvas que têm caído nos últimos dias tem havido infiltrações de água na propriedade dos Requerentes devido às obras de urbanização que estão a ser efectuadas pelas Requeridas, ao longo da extrema do prédio dos Requerentes, havendo o risco de aluimento de terras e inundação da casa dos Requerentes.

6. A primeira questão que as recorrentes invocam refere-se à caducidade do direito dos requerentes de intentarem a presente providência cautelar, no pressuposto de que, quando a instauraram, já haviam decorrido mais de 30 dias a contar do conhecimento da obra dita lesiva do seu direito, aludindo ao prazo previsto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Civil.

Em sustentação desta sua tese, alegam que os requerentes “terão tido” conhecimento dos factos em Novembro de 2006, “uma vez que diária e pessoalmente contactavam com a direcção da obra” e ainda “pela proximidade da sua casa ao armamento” e só em 7 de Março de 2007 requereram esta providência cautelar.

Esta motivação já havia sido invocada pelas ora recorrentes na oposição que deduziram à providência (cfr. arts. 1.º e 2.º, a fls. 75-76), mas não obteve acolhimento na decisão recorrida, com a seguinte fundamentação: “Também é requisito do embargo judicial que a realização do embargo deva ser accionado no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do facto. O início da contagem de tal prazo faz-se a partir do momento em que o titular do direito tenha efectivo conhecimento da verificação do dano, dado que o art. 412.º, n.º 1, se reporta ao facto complexo (realização da obra e ocorrência do dano), e não apenas ao simples facto da existência de uma obra (cfr. Acórdão da relação de Lisboa, de 25 de Fevereiro 1976, in CJ, tomo I, pág. 245)”.

Ou seja, na interpretação do segmento normativo constante do n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Civil que se refere ao prazo de 30 dias para requerer o embargo de obra nova, foi considerado na decisão recorrida que o momento relevante a partir do qual se inicia a contagem desse prazo não é, necessariamente, o do conhecimento da existência da obra ou trabalho, mas do momento em que essa obra ou trabalho se torna lesiva dos direitos do requerente.

E não pode deixar de ser assim, na interpretação contextualizada da norma, na medida em que exige que a obra ou trabalho a embargar cause ofensa no direito do requerente.

Enquanto a obra do arruamento em causa não atingiu o nível da extremidade superior do muro de vedação do prédio dos requerentes, em que ainda não era perceptível o perigo e o dano que podia causar para o prédio dos requerentes e para as pessoas que ali habitam, não era possível recorrer à providência do embargo dessa obra. Só a partir do momento em que o estado das obras tornou perceptível o prejuízo que o arruamento iria causar para o prédio dos autores e para as pessoas que ali habitam é que estes ficaram legitimados a embargar a dita obra.

Neste sentido tem decidido de modo convergente a jurisprudência, designadamente desta Relação, de que são exemplo os acórdãos de 21-11-2000 e de 11-11-2002, ambos sumariados em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0021013 0251484. O primeiro refere que “o prazo de 30 dias fixado na lei para ser requerido o procedimento de embargo de obra nova deve ser contado a partir do momento em que se tem conhecimento de que a obra ofende, viria a ofender ou ameaçava ofender o direito do requerente. Não releva, por isso, o conhecimento do início da obra, se ainda não se pode inferir a dita ofensa ou ameaça dela”. Acrescentando ainda que “é ao requerido deste procedimento que cabe a demonstração dos factos integrantes do decurso do referido prazo dos trinta dias”. O segundo também refere que “para efeitos de caducidade, é relevante a data em que o interessado toma conhecimento da lesão, e não a do início da obra embarganda”.

De modo que, quanto a este aspecto, nenhuma censura merece a decisão recorrida.

7. As duas restantes questões estão interligadas entre si, já que ambas se reportam ao mesmo facto: o momento da conclusão da obra.

Por motivo de ordem lógica, há que começar por apreciar a impugnação da decisão quanto a este ponto da matéria de facto, no sentido em que as recorrentes pretendem que sejam tomados em conta na decisão de direito sobre a providência requerida esses novos factos, relativos ao momento da conclusão da obra do arruamento, que dizem ter resultado provados da audiência de julgamento e foram omitidos na decisão recorrida.

No essencial, os factos que as recorrentes pretendem que sejam julgados provados e aditados na decisão final sobre a providência são estes dois: que “a obra do arruamento ficou totalmente concluída em 2 de Abril de 2007” e que “em 17 de Abril de 2007, o arruamento em causa já estava aberto ao trânsito”.

Sustenta a prova destes dois factos nos documentos que juntou com a alegação deste recurso, a fls. 24 a 28 (fotocópias do livro da obra, do termo de encerramento e declaração do técnico responsável pela direcção técnica da obra), dos quais consta que, efectivamente, a obra ficou concluída em 2 de Abril de 2007, e no teor da acta da audiência, a fls. 118, sobre a inspecção judicial ao local realizada no dia 17 de Abril de 2007, de que ficou a constar:

«O lado poente da habitação dos Requerentes confina com um arruamento que é composto por dois sentidos de trânsito, separados por um eixo central e cada sentido de trânsito com duas faixas.
O sentido de trânsito no sentido Norte ao aproximar-se da propriedade dos Requerentes está cortado em sentido oblíquo eliminando-se por completo até ao ponto de encontro do eixo central.
O único resguardo que existe entre o dito arruamento e a propriedade dos Requerentes são umas grades amovíveis colocadas na vertical.»

Não consta, porém, dessa acta, nem tal é alegado pelas recorrentes, que no decurso da audiência tenham requerido o aditamento desses novos factos para serem aí discutidos e considerados na decisão final, como não consta que o tenham feito antes ou depois desse momento, e em tempo de tais factos poderem ser considerados na decisão. O que quer dizer que, mesmo que tais factos pudessem ser tomados em conta na decisão final, não foram sujeitos ao contraditório nem objecto de discussão em audiência. O que só por si é motivo impeditivo de a decisão se fundamentar nesses factos novos, tal como decorre do disposto nos arts. 3.º, n.º 3, e 264.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil).

Mas na perspectiva das recorrentes, tratam-se de factos que, embora não alegados pelas partes, deveriam ser conhecidos oficiosamente pelo tribunal, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 514.º do Código de Processo Civil, por deles ter tido conhecimento no exercício das suas funções. E correspectivamente, pretendem que se altere a decisão quanto aos factos provados das als. g) a l), que entendem estar contraditados por aquelas provas e deverem ser considerados não provados.

Ora:

1) Em primeiro lugar, temos como certo que o n.º 2 do art. 514.º do Código de Processo Civil é de todo inaplicável à situação aqui configurada pelas recorrentes. Os factos a que alude aquele preceito legal, de que o tribunal se pode servir por deles ter conhecimento no exercício das suas funções, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo, e não os factos de que tem conhecimento no âmbito da própria acção a julgar. De tal modo é assim que o preceito legal citado impõe que, para que esses factos possam ser considerados na decisão, tem que ser junto ao processo “documento que os comprove”. O que quer dizer que esses factos, embora não careçam de alegação pelas partes, não estão isentos de prova (cfr. neste sentido, JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 3.ª edição, Almedina, 2002, p. 234 − nota 142).

É este o entendimento que vem sendo sufragado na doutrina e na jurisprudência. Escreveu o Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS sobre a interpretação deste preceito, no segmento que se refere aos “factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”, que no Código de 1939 figurava no art. 518.º: “O facto há-de constar de qualquer processo, acto ou peça avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal”. Esclarece ainda que, na sessão de 23-11-1937 da Comissão Revisora do Texto do Código do Processo Civil, tal como consta da Acta n.º 20, págs. 24 e 25, “acordou-se que o artigo se refere a conhecimentos obtidos noutro processo e que é sempre necessário juntar a documentação dos mesmos” (em Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição − reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 264).

É também neste sentido que se referem JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, na obra e local supra citados, e o acórdão da Relação de Lisboa de 30-05-1996, na CJ/Ano XXI−1996/III/107.

A interpretação extensiva que as recorrentes pretendem induzir, a ser validada, afrontaria os princípios do processo equitativo e leal, a que alude o n.º 4 do art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, na media em que permitiria ao juiz, através do uso incontrolável de factos novos revelados na discussão da causa, distorcer o objecto desta e assim favorecer uma parte em detrimento da outra. O que é de todo inaceitável.

Fica assim claro que os factos aqui pretendidos aditar pelas recorrentes ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 514.º do Código de Processo Civil não cabem na previsão desta norma.

2) Em segundo lugar, o estado da obra que releva, para efeitos do disposto no art. 412.º do Código de Processo Civil, é o que existe no momento da propositura da providência cautelar, e não no momento da sua decisão. E o Sr. Juiz apreciou e tratou correctamente esta questão na motivação da decisão, dizendo que “o arruamento com as cotas actuais só foi finalizado em inícios de Março de 2007”, mas “na data em que o presente procedimento cautelar foi instaurado, ainda não se encontravam concluídos, como resulta das fotografias juntas a fls. 21 e 22, de onde se poda observar que ainda faltava a conclusão dos trabalhos de saneamento ou de escoamento das águas pluviais e a colocação do piso final, bem como a conclusão das bermas do dito arruamento”.

É assim indiferente, para o exercício da providência cautelar, que o arruamento tenha sido concluído em 2 de Abril de 2007. Já que o que importa, para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Civil, é que a obra a embargar ainda não esteja finalizada no momento em que o embargo é requerido.

3) Em terceiro lugar, é inaplicável ao caso o disposto no art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no sentido preconizado pelas recorrentes, já que a eventual conclusão do arruamento no decurso da pendência da providência cautelar não constitui nenhum facto de cariz modificativo ou extintivo do direito dos requerentes. Pelo contrário, evidencia o carácter da violação do direito dos requerentes.

Facto modificativo ou extintivo do direito dos requerentes, para efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil seria, por exemplo, se as recorrentes pusessem termo à ofensa ou ameaça de ofensa ao direito de propriedade dos requerentes, repondo o nível anterior do arruamento ou acordando com estes quaisquer obras que pudessem corrigir os aspectos lesivos apontados pelos requerentes. O que não sucedeu.

Não existe, pois, qualquer violação ao disposto no art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

4) Também não se vê qualquer divergência ou contradição entre os factos descritos como provados nas als. g) a l) e o que consta da acta da audiência sobre a inspecção judicial ao local. Esta descreve o que o juiz observou no dia em que ali se deslocou. Aqueles factos reportam-se aos factos de que os requerentes tiveram conhecimento no início de Março (de 2007) e às consequências lesivas de que tais factos poderão vir a ocorrer para o seu prédio. Ou seja, tratam-se de momentos e factos diferentes. Pelo que é normal que não coincidam nem têm que coincidir.

De tudo o exposto, impõe-se concluir que não procede nenhum dos fundamentos aduzidos pelas recorrentes para alterar a decisão recorrida, quer quanto ao aditamento de factos novos à matéria de facto provada, quer quanto à eliminação de algum dos factos provados, quer ainda quanto à verificação de todos os requisitos legais da providência cautelar decretada.


III


Deste modo, nega-se provimento ao agravo.

Custas pelas recorrentes (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


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Relação do Porto, 30-10-2007
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues