Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0835944
Nº Convencional: JTRP00042403
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: REGISTO AUTOMÓVEL
PRINCÍPIO DO TRATO SUCESSIVO
CARÁCTER DEFINITIVO DO REGISTO
Nº do Documento: RP200902260835944
Data do Acordão: 02/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 788 - FLS 122.
Área Temática: .
Sumário: I – No registo automóvel, a observância do trato sucessivo impõe que o registo seja feito com base na apresentação do requerimento-declaração para registo de propriedade, contendo as assinaturas do comprador e do vendedor e com a declaração expressa de venda deste último (Cfr. art. 11º, nº3, do DL nº 54/75, de 24.02).
II – Os direitos ou factos enumerados nos arts. 5º e 6º do DL nº 54/75 (entre eles se contando o direito de propriedade) só podem ingressar no registo com carácter definitivo, não havendo, pois, lugar a registo provisório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5944/08 – 3ª Secção (Apelação)
Rel. Deolinda Varão (338)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Cruz Pereira


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………. instaurou acção declarativa de condenação, ao abrigo do disposto no DL 108/06 de 08.06, contra C………., LDª.
Pediu que:
1. Fosse declarado que a autora não é proprietária do veículo de matrícula ..-..-FN, por o ter vendido à ré em 30.01.01;
2. Fosse a ré condenada a reconhecer tal facto;
3. Fosse a ré condenada a pagar à autora:
a) € 5.500,00, a título de indemnização por danos morais, passados, presente e futuros, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
b) € 1.986,90, a título de danos patrimoniais liquidados, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
c) Os honorários e despesas dos advogados da autora nos processos nºs …../01 da .ª Vara Criminal do Porto e …./04 do .º Juízo de Pequena Instância Cível do Porto, até ao trânsito em julgado das respectivas sentenças, acrescidos de juros à taxa legal desde o momento do seu dispêndio pela autora até efectivo e integral pagamento, a liquidar em execução de sentença;
d) Os dias de trabalho perdidos pela autora, ao valor unitário ilíquido de € 45,45 por cada dia em que a autora tiver de estar presente em juízo nos processos judiciais acima referidos:
e) As custas judiciais e de parte que a autora vier a despender nos processos acima referidos;
f) As quantias que a autora venha a ser condenada a pagar nos processos acima referidos, também a liquidar em execução de sentença, acrescidas de juros e quaisquer outros acréscimos ou actualizações aplicáveis.
Como fundamento, alegou, em síntese, que, em 30.01.01, vendeu à ré o veículo automóvel de matrícula ..-..-FN; que a ré não registou a aquisição daquele veículo a seu favor; e que, em consequência da utilização ilícita do veículo por terceiros a quem entretanto fora vendido, foi demandada em diversas acções judiciais, por se presumir ser a titular do direito inscrito, o que lhe acarretou diversos prejuízos (que discriminou e quantificou).
A ré contestou, impugnando os factos alegados pela autora e negando a obrigação de registar o veículo por o ter vendido no dia seguinte ao da compra e porque não existe normativo legal que o imponha.
Requereu a intervenção acessória da pessoa a quem vendeu o veículo, D………. .
O chamado contestou, negando ter adquirido o veículo à ré.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência:
A) Declarou que a autora não é proprietária do veículo automóvel de matrícula ..-..-FN, por o ter vendido à ré em 30.01.01 e condenou a ré a reconhecer tal facto;
B) Absolveu a ré do mais.

A autora recorreu, formulando, em síntese, as seguintes
Conclusões

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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
Em 30.01.01, a autora vendeu à ré o veículo automóvel de matrícula ..-..-FN, marca Opel, modelo ………., de cor preta. (1º p.i.)
A autora entregou o veículo à ré e esta efectuou a respectiva contra-prestação à autora, no valor de € 6.983,17, valor que lhe foi creditado no preço de uma outra viatura que a autora adquiriu à ré, num negócio a que usa chamar-se de “retoma”. (2º, 3º e 4º p.i.)
A autora entregou ainda à ré a declaração para inscrição no registo de propriedade por si assinada. (6º p.i.)
A ré não procedeu ao registo da aquisição do veículo a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel. (8º p.i.)
A ré transmitiu a propriedade do FN a terceiro, tendo entregue a esse terceiro a declaração para registo de propriedade assinada pela autora. (14º e 15º p.i.)
A ré vendeu e entregou o veículo dos autos ao chamado D………. no dia seguinte ao da compra, isto é, em 31.01.01. (5º e 10º contestação da ré)
Nessa mesma data, a ré entregou ao chamado o requerimento-declaração para registo de propriedade, o livrete, o título de registo de propriedade e o documento de inspecção periódica. (11º contestação da ré)
Ainda nessa mesma data, o chamado assinou um documento pelo qual se responsabilizou por quaisquer danos, multas, furtos, utilizações impróprias ou transgressões praticada pelo ..-..-FN a partir de 31.01.01. (12º contestação da ré)
Em 18.08.04, a autora foi citada para a acção sumaríssima que corre termos sob o nº …./04.5THPRT, em que é autor o E………., SA, que reclama da autora, ao lado de outros réus, o pagamento de € 367,85, acrescidos de juros, decorrentes de assistência prestada na sequência de um acidente de viação ocorrido com o FN em 15.09.01. (9º, 10º, 11º e 12º p.i.)
Na petição inicial daquela acção, o E………., SA alegou que a ora autora era proprietária do FN. (13º p.i.)
Por expediente datado de 31.10.05, a autora foi notificada de uma petição de indemnização civil no processo …../01.1TDPRT, da .ª Vara Criminal do Porto. (28º p.i.)
Nessa petição, a autora foi demandada para pagamento da quantia de € 374.482,09, acrescidos de juros. (29º p.i.)
Essa quantia foi peticionada à autora enquanto responsável civil pela comissão de um crime de homicídio por negligência, dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, três crimes de omissão de auxílio e um crime de condição sem habilitação legal. (30º p.i.)
Os factos que indiciam a prática de tais crimes foram imputados ao arguido nesse processo-crime, F………., quando conduzia o FN em Setembro de 2001. (31º)
A autora ficou em estado de pânico quando recebeu tal petição e tomou conhecimento dos avultados valores pelos quais judicialmente é demandada. (35º p.i.)
E sentiu, e ainda sente, vexame por ver o seu nome em processos que envolvem crimes de sangue. (37º p.i.)
A autora sentiu pânico e sofreu, e ainda sofre, de insónias – o que não acontecia antes. (38º e 39º p.i.)
Antes de lhe serem instaurados os processos judiciais acima referidos, nunca a autora tinha tido qualquer tipo de contactos com tribunais, sendo certo que são instituições que a autora muito teme e respeita. (40º p.i.)
Ser confrontada, neste curto espaço de tempo, com intervenções nos tribunais, em que é ré/demandada, veio afectar e abalar profundamente o curso normal da vida da autora, atirando-a para uma realidade que ela não conhecia, sentindo a necessidade de se defender dos referidos processos e de recolher documentação, averiguando as provas de que dispõe – o que colocou a autora em grande estado de ansiedade. (41º, 42º e 43º p.i.)
A autora sempre foi pessoa preocupada em cumprir todas as suas obrigações perante a lei e a comunidade, orgulhando-se desse facto. (44º p.i.)
O facto de terem vindo a demandá-la nos processos acima referidos fez com que a autora sentisse (e ainda sinta) que está a ser alvo de uma tremenda injustiça, o que a revoltou e ainda revolta e a desgosta profundamente. (45º e 46º p.i.)
A autora sentiu-se e ainda se sente profundamente ofendida na sua honra e no seu bom-nome, por o ver associado, enquanto ré/demandada nas acções judiciais acima referidas. (48º p.i.)
Acresce que, perante a possibilidade de vir a ser condenada naquelas acções (que formalmente existe), a autora sentiu, e sente constantemente, ansiedade e temos por todo o seu património, o que também lhe causou, e vem causando, enorme pavor e desgosto. (49º e 50º p.i.)
A autora vive do seu trabalho, auferindo cerca de € 1.000,00 ilíquidos mensais. (51º)
Perante o desenvolvimento das acções referidas, a autora contactou então advogado para a representar nesses processos judiciais e perdeu tempo na recolha de documentação e em diversas reuniões com os seus advogados, o que acarretou dano traduzido na perda do seu tempo livre. (52º, 53º e 54º p.i.)
A autora foi notificada para ser ouvida na qualidade de demandada no processo-crime referido no dia 30.01.06, o que a fez sentir pânico e nervosismo perante a perspectiva de estar presente para “responder em tribunal”. (56º)
Com data de 03.04.06, foi enviada notificação à autora de que fora designado o dia 21.06.06 para audiência de discussão e julgamento. (57º p.i.)
Até ao momento, a autora despendeu cerca de € 1.853,40 em despesas e honorários de advogados, à razão de € 90,00/hora. (66º p.i.)
Os advogados da autora emitiram nota de despesas e honorários referente aos processos acima referenciados, na qual estão discriminados outras despesas e honorários no valor global de € 1.315,39. (doc. de fls. 213)
O chamado é comerciante de automóveis. (2º contestação do chamado)
No exercício da sua actividade profissional, tem contacto com inúmeras viaturas, pessoas individuais, firmas e outros. (3º contestação do chamado)
Já teve inclusive negócios com a ré. (4º contestação do chamado)[1]

[Como tem sido reiteradamente decidido nos tribunais superiores, o método de dar como reproduzidos certos documentos é cómodo mas incorrecto, porque os documentos não são factos mas meios de prova, pelo que há que indicar os factos provados pelos documentos, não bastando dar estes como reproduzidos[2].
O que também se aplica nas acções que seguem o regime processual civil de natureza experimental, pois que o que o artº 15º, nº 1 do DL 108/06 de 08.06 permite é tão só que a discriminação dos factos provados e não provados seja feita por remissão para as peças processuais onde estejam contidos.
Por isso, considerámos provados os factos que o estão pelo teor dos documentos juntos a fls. 20 a 36, 37 a 39, 40 a 89, 90 a 93, 115, 116 a 120, 278 a 286 e 313].

O tribunal recorrido considerou não provada, além de outra, a seguinte matéria:
- Que a ré se tivesse obrigado a diligenciar por que a autora deixasse de constar como proprietária inscrita; (6º p.i.)
- Que [a declaração para registo de propriedade assinada pela autora tivesse sido entregue pela ré a terceiro] com vista a que o registo automóvel do FN aparentasse uma situação falsa, omitindo-se o facto da aquisição do mesmo pela ré à autora; (16º p.i.)
- Que a ré tenha agido livre, deliberada e conscientemente, com o objectivo de omitir um registo (ou vários), bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei; (18º p.i.)
- Que a ré tenha procurado lucrar com tal conduta ilegal, de molde a evitar que o valor comercial do FN descesse com a inscrição de mais um registo; (19º p.i.)
- Que esse registo, apesar de obrigatório, como é sabido no giro comercial dos veículos usados, era susceptível de fazer descer o valor comercial do veículo; (20º p.i.)
- Que a ré agiu de molde a que tudo se passasse documentalmente de modo desconforme com a realidade dos factos; (21º p.i.)
- Que os advogados da autora tenham apresentado contestação ao pedido cível de indemnização [nos autos nº 13900/01 da 2ª Vara Criminal do Porto]; (55º p.i.)
- Que existe ainda a possibilidade – embora os seus advogados estejam a pugnar para que tal não aconteça – de [a autora] perder uma ou ambas acções, o que lhe acarretaria um enorme prejuízo. (70º p.i.)
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III.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC) – são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Responsabilidade civil da ré.

Pelas razões que adiante melhor explicaremos, a alteração da matéria de facto pretendida pela autora não tem qualquer relevância para a decisão da causa.
Por isso, começamos por conhecer da segunda questão acima enunciada, para cuja decisão interessa reter o seguinte:
- Em 30.01.01, a autora vendeu à ré um veículo automóvel e, na mesma data, aquela entregou a esta a declaração para inscrição da aquisição no registo automóvel por si assinada;
- A ré não inscreveu a aquisição do veículo a seu favor no registo e, no dia seguinte, vendeu o veículo ao chamado D………. e entregou a este a declaração assinada pela autora para inscrição no registo;
- A autora veio a ser demandada em dois processos judiciais, instaurados em consequência de um acidente ocorrido em Setembro de 2001, no qual foi interveniente o veículo que havia vendido à ré, alegando-se em ambos os processos que a autora era, à data do acidente, a proprietária do veículo;
- Daquele facto resultaram prejuízos para a autora, dos quais pretende ser ressarcida pela ré, invocando como fundamento para a responsabilidade desta a omissão da inscrição registral a seu favor da aquisição do veículo à autora.

O registo automóvel continua a reger-se, essencialmente, pelo disposto no DL 54/75 de 24.02, com as alterações introduzidas pelos DL’s 242/82 de 22.06, 461/82 de 26.11, 217/83 de 25.05, 54/85 de 04.03, 403/88 de 09.11, 277/95 de 25.10, 182/02 de 20.08 e 178-A/05 de 28.10.
A situação dos autos ocorreu em Janeiro de 2001, pelo que não lhe são aplicáveis as alterações introduzidas pelos dois últimos Diplomas citados, abaixo se indicando o Diploma a que pertence a redacção em vigor naquela data das normas do DL 54/75 que vierem a ser citadas; na falta de indicação, a redacção da norma é a originária.
Diz o artº 1º, nº 1 do DL 54/75 (na redacção do artº 1º do DL 242/82) que o registo de automóveis tem essencialmente por fim individualizar os respectivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis.
Daquele preceito resulta desde logo que o registo automóvel não tem eficácia constitutiva, mas apenas valor declarativo[3].
Como escreve Manuel de Andrade a propósito do registo predial[4], o registo não dá direitos, mas apenas os conserva. O registo não pode, portanto, assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado um prédio, mas só que, a ter existido, ainda se conserva - ainda não foi transmitido a outra pessoa.
Um dos direitos que está sujeito a registo é o direito de propriedade (artº 5º, nº 1, al. a) do DL 54/75, na redacção do artº 2º do DL 461/82).
Se o veículo automóvel foi objecto mediato de um contrato de compra e venda, o direito de propriedade sobre ele transmitiu-se por mero efeito daquele contrato.
Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[5], a transmissão da propriedade da coisa vendida, ou a transmissão do direito alienado, tem como causa o próprio contrato, embora esses efeitos possam ficar dependentes de um facto futuro; alguns destes casos estão previstos no nº 2 do artº 408º do CC, referindo-se o seguinte (artº 409º) à reserva de propriedade, que é uma outra hipótese em que a transmissão, tendo embora por causa a compra e venda, se protela para um momento posterior. Ao lado da sua natureza real, a compra e venda tem também natureza obrigacional. O vendedor, por um lado, fica obrigado a entregar a coisa e o comprador, por outro, a pagar o preço. A transmissão da propriedade não fica, porém, dependente destas obrigações.
O contrato de compra e venda de um veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade, podendo ser celebrado verbalmente.
A declaração de venda assinada pelo vendedor é apenas um elemento necessário à efectivação do registo (artº 11º, nº 3 do DL 55/75 de 12.02), constituindo a entrega dessa declaração pelo vendedor ao comprador um dever contratual acessório daquele, em concretização do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos a que as partes estão vinculadas (artº 762º do CC) [6].
A validade e eficácia do contrato de compra e venda de um veículo automóvel não estão, pois, dependentes da efectivação do registo do direito de propriedade, apesar de este ser obrigatório (artº 5º, nº 2 do DL 54/75, na redacção do artº 2º do DL 461/82).
Segundo o artº 29º do DL 54/75, são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis, as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas naquele Diploma e no respectivo Regulamento.
Por força daquele preceito, regem em matéria de registo automóvel alguns dos princípios do direito registral que vigoram na nossa ordem jurídica, dos quais destacamos o princípio da fé pública registral e o princípio do trato sucessivo.
O princípio da fé pública registral é o que visa proteger o terceiro que contrata confiando no que o registo publica, no que dele consta. Entendido no sentido geral, este princípio leva a que este terceiro, que efectue de boa fé um negócio oneroso, com base no que o registo declara, e registe essa aquisição, passe a ter uma situação juridicamente inatacável[7].
No nosso sistema jurídico, face à natureza declarativa do registo, a protecção do terceiro – cujo conceito consta do nº 4 do artº 5º do CRP: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si – não é assim tão ampla, uma vez que se traduz numa presunção juris tantum (artº 7º do CRP), elidível por prova em contrário (artº 350º, nºs 1 e 2 do CC).
Podemos dizer que a presunção emanada do artº 7º do CRP protege também o titular inscrito, na medida em que lhe facilita a prova da titularidade do direito inscrito, ao inverter o respectivo ónus (artºs 344º, nº 1 e 350º, nº 1 do CC).
No domínio da redacção do DL 54/75 anterior à entrada em vigor do DL 178-A/05, a jurisprudência vinha já a entender, de forma dominante, que a presunção prevista naquele preceito se aplicava ao registo automóvel, dada a consonância que existia entre a norma do artº 1º, nº 1 do DL 54/75, acima citada, e a norma do artº 1º do CRP (segundo a qual, o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário).
Como se escreveu no citado Ac. desta Relação de 10.10.05, o facto do o artº 1º, nº 1 do DL 54/75 não fazer referência expressa ao aspecto da segurança jurídica do comércio não constitui razão para afastamento da aplicabilidade da presunção, já que esta resulta implicitamente da finalidade de dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis[8].
A orientação jurisprudencial acima referida encontra-se hoje reforçada pela nova redacção do artº 1º, nº 1 do DL 54/75, introduzida pelo DL 178-A/05, segundo a qual, o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
O princípio do trato sucessivo, no aspecto que aqui nos interessa, está consagrado no artº 34º, nº 2 do CRP, segundo o qual, no caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respectivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente inscrito.
Aquele princípio, no aspecto que está vertido no nº 2 do artº 34º, visa a continuidade do registo, garantindo a quem possui uma inscrição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido, ou de mera posse, que não possa, à sua revelia, ser lavrada uma nova inscrição definitiva sobre o prédio[9].
O artº 34º do CRP é dirigido somente ao conservador e da sua inobservância resulta uma nulidade do registo (artº 16º, al. e) do CRP), impondo-se ao conservador a recusa do registo ou que o mesmo seja lavrado provisório por dúvidas (cfr. artºs 70º e 71º do CRP)[10].
Como se escreveu no Parecer[11] citado pela autora nas conclusões de recurso, a protecção devida ao titular inscrito, traduzida na presunção de que o direito lhe pertence, conduz a que o registo automóvel cumpra escrupulosamente a regra do trato sucessivo sob pena de pôr em causa os seus próprios princípios e objectivos de dar publicidade aos factos nele registados.
No registo automóvel, a observância do princípio do trato sucessivo impõe que o registo seja feito com base na apresentação do requerimento-declaração para registo de propriedade, contendo as assinaturas do comprador e do vendedor e com a declaração expressa de venda deste último (cfr. artº 11º, nº 3 do DL 55/75).
Sem a intervenção do titular inscrito através da apresentação daquele documento, o conservador tem de recusar o registo, não havendo lugar a registo provisório, uma vez que os direitos ou factos enumerados nos artºs 5º e 6º do DL 54/75 (entre eles se contando o direito de propriedade) só podem ingressar no registo com carácter definitivo.
Sendo o registo predial facultativo, a segurança do comércio jurídico que constitui a sua finalidade é assegurada, fundamentalmente, através da observância dos princípios acima expressos da fé pública registral e do trato sucessivo e ainda do princípio da legitimação consagrado no artº 9º, nº 1 do CRP.
Estipula aquele preceito que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo.
O artº 9º, nº 1 do CRP tem como destinatários as entidades que titulem factos, como, por exemplo, notários ou magistrados, impondo-lhes que não titulem factos (v.g., por escritura pública ou sentença) dos quais resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre bens sujeitos a registo sem que os bens estejam definitivamente inscritos no registo a favor do transmitente ou da pessoa contra a qual se constitui o encargo.
A sua inobservância não fere de nulidade, anulabilidade ou qualquer outro vício o negócio titulado, podendo ter apenas consequências disciplinares para a entidade que titulou o acto[12].
A aplicação do princípio da legitimação de direitos ao registo automóvel tem escassa importância, atendendo a que, em regra, os contratos que tenham por objecto veículos automóveis são consensuais, não carecendo de ser titulados por entidades estranhas às partes.
Referimo-lo apenas devido à sua relação com o princípio do trato sucessivo, de que constitui como que a outra face, dirigindo-se à titulação dos actos, enquanto que o princípio do trato sucessivo se dirige ao registo.
Ao contrário do registo predial, o registo automóvel é obrigatório, como já vimos, mas essa obrigatoriedade tem como única sanção a prevista no nº 3 do artº 5º do DL 54/75 (na redacção do artº 2º do DL 461/82): na falta de registo, as autoridades a quem compete a fiscalização das leis de trânsito devem apreender o veículo e respectivos documentos, que serão remetidos à conservatória, onde ficarão até que o registo seja efectuado.
Finalmente, importa dizer que, à data dos factos, o prazo para efectuar o registo da aquisição do direito de propriedade de um veículo automóvel era de 30 dias a contar da data daquela aquisição (artº 42º, nº 1 do DL 55/75).

Entendeu-se na sentença recorrida que a ré não violou a norma do nº 2 do artº 5º do DL 54/75, que impõe a obrigatoriedade do registo da propriedade dos veículos automóveis, pelo facto de, nos termos do artº 42º, nº 1 do DL 55/75, dispor de 30 dias para o efeito e tal prazo ainda não ter decorrido na data em que vendeu o veículo ao chamado, uma vez que o vendeu logo no dia seguinte a tê-lo comprado à autora.
O facto de a ré ter entregado ao chamado o requerimento-declaração para inscrição no registo assinado pela autora leva-nos a uma conclusão diferente
Embora não se tenha alegado que aquele requerimento-declaração foi entregue pela autora à ré e por esta ao chamado sem que dele constasse nem a identificação da ré como compradora nem a assinatura desta, tem de se concluir que assim foi, pois que só dessa forma seria possível o chamado inscrever a propriedade do veículo em seu nome no registo, fazendo constar no documento a sua identificação e a sua assinatura como se o tivesse comprado directamente à autora.
Se a ré constasse do requerimento-declaração como compradora, o conservador teria de recusar o registo do veículo em nome do chamado, com fundamento na violação do trato sucessivo nos termos que acima expusemos; para que o veículo fosse registado em nome do chamado, teria então de ser apresentado outro requerimento-declaração em que a ré figurasse como vendedora e o chamado como comprador – o que não foi alegado.
O que resulta da posição assumida pela ré na contestação é que efectivamente ela entregou ao chamado o requerimento-declaração apenas assinado pela autora e sem a assinatura da ré, por forma a permitir que aquele registasse o veículo directamente em seu nome, como se lhe tivesse sido vendido directamente pela autora.
Aliás, a cópia daquele requerimento-declaração que a própria ré juntou aos autos (fls. 116) contém apenas o nome e a assinatura da autora, o número e data do seu BI e a matrícula do veículo.
Assim, se é certo que, quando vendeu o veículo ao chamado, a ré ainda estava em prazo para inscrever o veiculo no registo em seu nome, também é certo que, ao entregar ao chamado o requerimento-declaração assinado apenas pela autora, possibilitando que aquele nele viesse a figurar como comprador do veículo, a ré inviabilizou a efectivação do registo em seu nome.
Dessa forma tem de se concluir que a ré omitiu o dever imposto pela norma do nº 2 do artº 5º do DL 54/75 de registar o seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel.
A situação dos autos poderia assim enquadrar-se na previsão do artº 486º do CC, que estipula que as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei, ou de negócio jurídico, a obrigação de praticar o acto.
Entre os requisitos legais referidos naquele preceito, coloca-se o problema da causalidade, equacionado em termos “hipotéticos”, isto é exige-se que o acto omitido tivesse seguramente ou com a maior probabilidade obstado ao dano (artº 563º do CC)[13].
Ou seja, a omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar directamente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente, ou muito provavelmente, impediria a consumação dele[14].
Já vimos que, no caso, a ré tinha o dever jurídico, imposto pela lei, de inscrever em seu nome o direito de propriedade sobre o veículo que adquirira à autora.
Resta saber se essa omissão foi causa dos danos sofridos pela autora.
Diz o artº 563º do CC que a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Aquele normativo consagrou a doutrina da causalidade adequada.
Na formulação de Galvão Telles[15], como causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela relevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o risco da verificação do dano.
Como escreveu Vaz Serra[16], não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa aquela ou aquelas condições que se encontrem para com o resultado numa condição mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado.
Já vimos que o registo visa publicitar a situação jurídica dos bens, com vista a assegurar a segurança do comércio jurídico.
As suas normas destinam-se, pois, a proteger terceiros, embora exista também alguma protecção do titular inscrito, mas que se traduz apenas na maior facilidade da prova da titularidade do direito inscrito por força da presunção registral e na garantia decorrente do princípio do trato sucessivo de que, sem a sua intervenção, não será lavrada uma nova inscrição definitiva sobre o bem.
O que não cabe no âmbito das normas do direito registral, maxime, da norma que estipula a obrigatoriedade do registo, é a protecção do titular inscrito que continua a figurar como tal, apesar de já ter transmitido o direito a outrem; ou seja, o registo não protege o titular inscrito que não tem interesse em se prevalecer da presunção que o registo lhe confere, uma vez que esta presunção está estabelecida (também) a seu favor e não contra si.
Já dissemos que, face à sua natureza declarativa, o registo não confere direitos mas apenas os publicita. Por isso, ocorrendo acidente de viação em que interveio determinado veículo, o seu proprietário é quem o seja no momento do acidente, ainda que a propriedade do veículo esteja registada em nome de outra pessoa. Não tendo o titular inscrito interesse em se prevalecer da presunção que o favorece, esta é facilmente ilidida pela simples assunção do direito por parte de quem o detém no momento do acidente.
E, sendo assim, a conduta da ré, ao omitir a inscrição do veículo em seu nome no registo, não tem uma relação de tal forma estreita com os danos sofridos pela autora, que seja razoável impor àquela qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos mesmos.
A conduta adequada a produzir os danos sofridos pela autora pelo facto de ter sido demandada em duas acções judiciais emergentes de acidente de viação com o veículo registado em seu nome foi somente a conduta do proprietário do veículo no momento do acidente, ao negar essa qualidade com a finalidade de não ser responsabilizado em decorrência do mesmo.
Inexistindo nexo de causalidade entre a omissão praticada pela ré e os danos sofridos pela autora, a situação dos autos não cabe assim na previsão do artº 486º do CC, pelo que a ré não está obrigada a indemnizar a autora pelos danos sofridos.

Face àquela conclusão, fica prejudicada a apreciação da matéria de facto impugnada pela autora, uma vez que não assume qualquer relevância para a decisão da causa.
A autora impugnou a decisão proferida sobre o alegado nos artºs 6º (2ª parte), 16º, 18º, 19º, 20º, 21º, 55º e 70º, acima reproduzido.
O facto vertido na 2ª parte do quesito 6º (que ré se obrigou a diligenciar por que a autora deixasse de constar como proprietária inscrita) é irrelevante porque já vimos que a obrigação de registar o veículo resulta da lei.
O vertido nos artºs 16º, 18º, 19º, 20º e 21º diz respeito a um eventual dolo da ré, que também não interessa, uma vez que concluímos não ter a sua conduta sido adequada à produção dos danos sofridos pela autora.
Os factos vertidos nos quesitos 55º e 70º referem-se a danos sofridos pela autora, pelo que são irrelevantes pelo mesmo motivo.

Improcedem assim as conclusões da autora, pelo que resta confirmar a sentença recorrida.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
***

Porto, 26 de Fevereiro de 2009
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira

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[1] Na sentença recorrida escreveu-se que se consideravam provados os factos alegados nos artºs 1º, 2º e 3º da contestação do chamado. Ora, o artº 1º tem a seguinte redacção: “Para tanto dizendo…”, pelo que se nos evidencia existir um manifesto lapso de escrita, que acima se corrigiu, discriminando como provados os factos alegados nos artºs 2º, 3º e 4º da contestação do chamado.
[2] Cfr. Pinto de Almeida, Fundamentação da Sentença Cível, Estudos e Intervenções, www.trp.pt.
[3] Cfr. os Acs. do STJ de 24.02.77, 18.02.92 e 19.02.04 e desta Relação de 18.09.90, 19.12.96, 20.09.01, 10.10.05 e 21.09.06, todos em www.dgsi.pt.
[4] Teoria Geral da Relação Jurídica, II, págs. 21 e 22.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, II, 3ª ed., pág. 173.
[6] Ac. do STJ de 23.03.06, www.dgsi.pt.
[7] Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral, 2ª ed., pág. 26.
[8] No sentido da aplicablidade da presunção prevista no artº 7º do CRP ao registo automóvel se pronunciaram também os já citados Acs. do STJ de 19.02.04 e desta Relação de 18.09.90, 19.12.96 e 21.09.06, e ainda os Acs. do STJ de 14.10.97, 27.04.05 e 12.05.05 e desta Relação de 28.05.99 e 30.05.00, todos em www.dgsi.pt.
[9] Mouteira Guerreiro, obra citada, pág. 78.
[10] Cfr. Isabel Pereira Mendes, CRP Anotado e Comentado, 14ª ed., pág. 136.
[11] Parecer do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e Notariado aprovado em 30.03.05 e homologado em 04.04.05, Boletim dos Registos e Notariado nº 3/05, de Março/Abril 2005.
[12] Cfr. Isabel Pereira Mendes, obra citada, pág. 135.
[13] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., pág. 559.
[14] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., págs. 405 e 406.
[15] Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 405.
[16] Citado por Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª ed., pág. 547.