Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
Descritores: | REGISTO PREDIAL REGISTO OBRIGATÓRIO IMPUGNAÇÃO DO ACTO DE QUALIFICAÇÃO DO REGISTO LEGITIMIDADE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL LEGITIMIDADE DO NOTÁRIO | ||
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Nº do Documento: | RP20121219196/12.9TBLSD.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/19/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Legislação Nacional: | ARTº 8º-B, 140º, 147º E 148º DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL | ||
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Sumário: | O notário que titulou o facto jurídico sujeito a registo obrigatório, mas que não requereu o respetivo registo, não tem legitimidade ativa para impugnar a decisão do conservador, tomada no âmbito do processo de registo promovido pelo apresentante do pedido de registo. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 196/12.9TBLSD.P1 (Apelação) Tribunal recorrido: Tribunal Judicial de Lousada (2.º Juízo) Apelante: Direcção Geral dos Registos e Notariado Apelados: B… e Ministério Público Sumário: O notário que titulou o facto jurídico sujeito a registo obrigatório, mas que não requereu o respetivo registo, não tem legitimidade ativa para impugnar a decisão do conservador, tomada no âmbito do processo de registo promovido pelo apresentante do pedido de registo. Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO B…, notária, com Cartório Notarial em Lousada, impugnou judicialmente, ao abrigo do artigo 145.º do Código de Registo Predial, para o Tribunal Judicial de Lousada, o despacho da conservadora do Registo Predial de Lousada, proferido em 20/05/2011, que qualificou de provisório por dúvidas o pedido de registo da Ap. n.º 2541, de 13/05/2011, a favor de C… (aquisição em partilha extrajudicial de um identificado prédio urbano), apresentado pelo mesmo. Na fundamentação da impugnação judicial, alegou, em suma: - A sua legitimidade para a impugnação judicial por ter titulado, como notária, a escritura pública de habilitação de herdeiros, assumindo a posição de sujeito vinculado no cumprimento da obrigação de titular o registo, nos termos do artigo 8.º-B, do Código de Registo Predial; - Pela apresentação n.º 2541 de 13/05/2011, C… solicitou na Conservatória do Registo Predial de Lousada, o registo de aquisição do prédio urbano não descrito e inscrito na matriz sob o artigo 1646, juntando os documentos comprovativos das obrigações fiscais relativas a IMT e IS, certidões das escrituras públicas de habilitação de herdeiros e de partilha por óbito de D…, com adjudicação da nua propriedade do referido prédio ao apresentante e do usufruto a E…; - O pedido de registo de aquisição foi, em 20/05/2011, efetuado como provisório por dúvidas, com fundamento na falta de demonstração da qualidade de herdeiros de alguns dos partilhantes, posto que a escritura pública de habilitação de herdeiros não foi instruída com certidões do registo civil, provando o parentesco entre os herdeiros legítimos e o autor da sucessão, mas com exibição de públicas-formas do bilhete de identidade e do cartão de cidadão dos declarados herdeiros, o que no entender da conservadora do Registo Predial, contraria o disposto no artigos 85.º do Código do Notariado; - Dessa qualificação foi apresentado, em 22/06/2011, recurso hierárquico para o Instituto do Registo e Notariado (IRN), com o fundamento que o citado artigo não limita a prova do parentesco entre os herdeiros e o autor da sucessão às certidões do registo civil e que os bilhetes de identidade e o cartão de cidadão também servem para demonstrar essa qualidade de herdeiro legítimo do autor da sucessão. Porém, o Conselho Técnico, em 14/12/2011, emitiu parecer[1] pronunciando-se em sentido oposto ao defendido pela reclamante, o que veio a ser homologado por despacho do Presidente do IRN, datado de 22/06/2011; - Porém, não se conforma com esse entendimento por inexistir fundamento legal para a não aceitação do bilhete de identidade e do cartão de cidadão para prova da sucessão legítima por parte dos descendentes do de cujus; - A prova do facto positivo de quem são os herdeiros é feita apenas perante o notário, a este competindo averiguar se é feita a prova da sucessão legítima e foge à qualificação do conservador, não podendo este, atento o princípio da legalidade, questionar os meios ou a idoneidade dos meios de prova com base nos quais o notário deu como justificada a sucessão legítima, uma vez que os mesmos nem sequer lhe são apresentados; - Ao fazê-lo, o despacho impugnado viola o disposto nos artigos 83.º e 85.º, n.º 1, do Código do Notariado. A conservadora do Registo Predial proferiu o despacho previsto no 142.º-A, n.º 1, do Código do Registo Predial, e nele sustentou o despacho impugnado. O Ministério Público emitiu o parecer ao abrigo do artigo 146.º, n.º 1, do Código de Registo Predial, conforme consta de fls. 55, no sentido da improcedência da impugnação judicial. Foi proferida sentença, conforme consta de fls. 56 a 68, que jugou a impugnante dotada de legitimidade ativa e, conhecendo de mérito, decidiu julgar “procedente a impugnação judicial deduzida devendo o pedido de registo da apresentação número 2541 de 13.05.2011 da aquisição em partilha a favor de C… em causa ser qualificado como definitivo.” Inconformado, apelou o Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., apresentando as conclusões que abaixo se transcrevem. A recorrida B… apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, que, igualmente, se transcrevem. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo. Os autos foram remetidos a esta Relação que ordenou a sua remessa à 1.ª instância para se pronunciar sobre a nulidade da sentença, arguida em sede de alegações do apelante, o que fez, concluindo pela não existência da invocada nulidade (despacho de fls. 125). Conclusões da apelação: “Sobre a ilegitimidade da notária para impugnar a decisão do conservador 1.ª- Em face das disposições conjugadas dos artigos 141.º, 71.º, 61.º/1/b) e 64.º, todos do Código do Registo Predial, só tem legitimidade para impugnar a decisão de qualificação do registo aquele que no pedido figura como apresentante, porquanto é com esta pessoa que efetivamente se inicia a relação de conhecimento publicitário; é ela quem dá inicialmente a conhecer o facto jurídico a inscrever no registo predial e quem participa no devir processual; é ela o primeiro sujeito do procedimento registral e o interlocutor único da conservatória, quer para efeitos de aperfeiçoamento do pedido quer para notificação do resultado. 2.ª - A obrigação de promover o registo, como a que está fixada para as entidades tituladoras (artigo 8.º-B/1/b) do CRP), cessa no caso de este se mostrar promovido por qualquer outra entidade que tenha legitimidade (artigo 8.º-B/5 do CRP). 3.ª - Após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 533/99, de 11 de dezembro, o interesse moral do notário na definição do critério a seguir nos casos duvidosos deixou de lhe conferir uma posição impugnatória, e, diante das disposições conjugadas dos artigos 36.º e 8.º-B/5 do CRP, a sua qualidade de sujeito da obrigação de registar perde relevância a partir do momento em que se alheia do cumprimento dessa obrigação e o pedido se mostra apresentado por outra entidade com legitimidade para o efeito. 4.ª - A notária, que titulou o facto jurídico sujeito a registo obrigatório mas não requereu o registo, não tem legitimidade para impugnar a decisão do conservador tomada no âmbito do processo de registo promovido pelo sujeito ativo do facto (apresentante). 5.ª - A questão processual atinente à legitimidade da recorrente (notária) foi incorretamente resolvida na sentença recorrida, suscitando-se a sua reapreciação em sede de acórdão a produzir no presente recurso (artigo 713.º/2 do CPC), atento o disposto nos artigos 493.º a 495.º do CPC e sem prejuízo do preceituado na 2.ª parte do artigo 288.º/3 do mesmo Código. Sobre o mérito da sentença proferida 6.ª- A sentença é nula, por encerrar contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 668.º/1/c) do CPC), na parte em que considera que a escritura pública apresentada não pode valer como habilitação de herdeiros, por não ter sido instruída com os documentos necessários; que só podem ser registados os factos constantes dos documentos que legalmente os comprovem (artigo 43.º do CRP); e que o princípio da legalidade referido no artigo 68.º do CRP demanda a apreciação dos aspetos formais e dos requisitos de conteúdo dos documentos apresentados, e, de seguida e contraditoriamente, conclui que só os interessados (herdeiros preteridos), não o conservador, podem sindicar a insuficiência do título; que, portanto, o registo pode ser feito com base em título insuficiente para a prova legal do facto. 7.ª - Título para registo só pode ser o documento que, pela sua forma e conteúdo, possa considerar-se suficiente para justificar a existência de um direito relevante para o registo predial e para que no registo se inscreva esse direito com eficácia erga omnes (artigo 43.º do CRP). 8.ª- Não configura “habilitação de herdeiros” e, como tal, título bastante para a prova da qualidade de herdeiro e para registo, uma escritura pública como a dos autos, que contém a declaração prevista no artigo 83.º do CN mas não foi instruída com prova legal do facto jurídico (filiação) que sustenta a qualidade de herdeiro de algumas das pessoas nela mencionadas. 9.ª- A sentença recorrida fez uma incorreta interpretação das normas contidas nos artigos 43.º e 68.º do CRP, porquanto das mesmas resultam que, não podendo valer como habilitação de herdeiros a escritura pública que não preencha os requisitos previstos no artigo 85.º do Código do Notariado, o facto complexo de produção sucessiva em que se analisa o fenómeno sucessório, incluindo a abertura da sucessão e a qualidade de sucessores e únicos interessados na partilha, não está titulado no documento apresentado. 10.ª - A sentença recorrida não atendeu à finalidade do registo (artigo 1.º do CRP) e aos seus efeitos (artigos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º do CRP), e, por isso, não compreendeu que o registo predial representa interesses de segurança e certeza jurídica, através duma fiscalização rigorosa da legalidade dos atos, em que as situações publicadas se baseiam, e que a apreciação no ato registal faz-se não pela comparação de interesses com a lei, mas diretamente entre o facto a registar e as disposições que regulam a admissibilidade a registo. 11.ª - Como tal, interpretou mal o princípio da legalidade consagrado no artigo 68.º do Código do Registo Predial, que precisamente visa vincular o conservador não só a uma análise das formalidades externas do documento apresentado como também a uma rigorosa verificação do conteúdo deste, confrontando-o com o que a lei prescreve e apenas admitindo o seu registo se estiver conforme com ela (salvo quando se trate de decisões judiciais, cujo conteúdo tem de ser acatado nos seus precisos termos); considerando-o como documento suficiente quando, efetivamente, se revista dos requisitos de forma e de conteúdo que permitem integrá-lo no tipo ou classificação visado pela lei. Pelo exposto: O presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a douta decisão, mantendo-se o registo como provisório por dúvidas, nos termos da qualificação efetuada pela conservadora.” Conclusões das contra-alegações: “I. A Recorrida, devido à sua qualidade de entidade que titulou a escritura pública de habilitação de herdeiros, assume a posição de sujeito vinculado ao cumprimento da obrigação de promover o registo – cf. artigo 8º - B, do CRP; II. A Recorrida, por lhe ser imposto, com carácter vinculativo e prioritário, o cumprimento do princípio da obrigatoriedade do registo, tem um interesse directo na presente demanda e deverá ser considerada parte legítima; III. Como resulta do voto de vencido do ilustre relator, proferido no parecer do Conselho Técnico, emitido na sessão de 14 de Dezembro de 2011, esta legitimidade é reforçada pelo papel relevante que é imposto à Recorrida, enquanto oficial público e na satisfação do interesse público decorrente do princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário previsto no artigo 1º, do CRP; IV. A decisão da Senhora Conservadora impede a Recorrida de, para a prática do mesmo tipo de actos, poder praticar preços que possam competir com os preços praticados nas Conservatórias de Registo Predial, levando, em consequência, à perda de clientes, pelo que, também pela aplicação analógica do disposto no artigo 680º, nº 2, do Código do Processo Civil, se poderá reconhecer legitimidade à Recorrida para recorrer do acto da senhora Conservadora. V. O artigo 85º do CN ao referir-se a documentos justificativos da sucessão legítima, quando nesta se fundamente a qualidade de herdeiro de algum dos habilitandos, não está, naturalmente, a limitar-se a permitir a justificação da sucessão legítima, no caso dos descendentes, mediante a apresentação de uma certidão do registo civil, porquanto, se fosse esse o único documento admissível o legislador tê-lo-ia, certamente, dito expressamente; VI. O Decreto-Lei nº 29/87, de 14 de Janeiro, veio precisamente criar a possibilidade de a exibição dos bilhetes de identidade substituírem a exibição das certidões de registo civil, desde que se trate de provar o nome, a filiação e a naturalidade, acrescentando-se inclusivamente que as entidades perante quem essa prova seja feita não podem recusar-se a aceitar tal substituição – cf. preâmbulo deste diploma e artigo 4º; VII. Mais, quer o diploma que regula a emissão do bilhete de identidade, quer a lei que cria o cartão de cidadão, referem expressamente, para efeitos de prova da filiação, a força probatória dos mesmos – cf. artigo 3º do Decreto-Lei nº 33/99, de 18 de Maio e artigo 2º da Lei nº 7/2007, de 5 de Fevereiro; VIII. Por outro lado, a não observação desta formalidade apenas lesa os interesses dos particulares (os herdeiros) e não o interesse público; IX. Assim, porque em causa estão apenas interesses particulares, pensa-se que o princípio da legalidade não confere à Senhora Conservadora o poder de analisar e pronunciar-se sobre os meios de prova considerados pela Recorrida para determinar se as pessoas indicadas eram efectivamente os herdeiros legítimos. Termos em que o Recurso deve ser julgado improcedente, com as legais consequências, com o que, V. Ex.cias, Senhores Desembargadores, farão JUSTIÇA.” II- FUNDAMENTAÇÃO A- Objeto do Recurso Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), redação atual, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, as questões a decidir são: I. Nulidade da sentença; II. Legitimidade da impugnante; III. Se a sentença recorrida fez errada interpretação da lei ao julgar procedente a impugnação judicial. B- De Facto I- A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto: “1. Pela apresentação n.º 2541 de 13.05.2011 C… solicitou na Conservatória do Registo Civil e Predial de Lousada, o registo de aquisição do prédio urbano não descrito e inscrito na matriz sob o artigo 1646, juntando os documentos comprovativos do cumprimento das obrigações fiscais relativas a IMT e IS e certidões das escrituras públicas de habilitação de herdeiros e de partilha por óbito de D…, com adjudicação da nua propriedade do referido prédio ao apresentante e do usufruto a E…. 2. Este pedido de registo de aquisição foi, em 20.05.2011, efectuado como provisório por dúvidas, com fundamento na falta de demonstração da qualidade de herdeiros de alguns dos partilhantes, posto que a escritura pública de habilitação de herdeiros não foi instruída com certidões do registo civil, provando o parentesco entre os herdeiros legítimos e o autor da sucessão, mas com exibição de públicas-formas do bilhete de identidade e do cartão de cidadão dos declarados herdeiros, o que no entender da Exma. Conservadora contraria o disposto nos artigos 85.º do Código do Notariado.” II- Considerando os documentos infra referidos, não impugnados, resultam também provados os seguintes factos (artigos 659.º, n.º 3 e 713.º, n.º 2 do CPC): 3. Com o pedido de registo de aquisição com base em partilha extrajudicial de herança foi apresentada uma escritura pública de habilitação de herdeiros, realizada em 11/05/2011, a fls. 34 do Livro 67-A do Cartório Notarial de Lousada, B… (fls. 39 a 42); 4. Nessa escritura procedeu-se à verificação da legitimidade dos partilhantes e considerou-se justificada a sucessão legal com base nas públicas-formas de bilhete de identidade e cartão de cidadão dos habilitandos, que se encontram juntas a fls. 37 e 38. III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO I. Nulidade da sentença O apelante arguiu a nulidade da sentença, invocando o disposto no artigo 668.º, n.º1, alínea c), do CPC, por, em seu entender, existir contradição entre os fundamentos e a decisão, na parte em que considera, por um lado, que a escritura pública apresentada não pode valer como habilitação de herdeiros, por não ter sido instruída com os documentos necessários, e, por outro lado, contraditoriamente, que só os interessados (herdeiros preteridos), não o conservador, podem sindicar a insuficiência do título, concluindo, pois, que o registo pode ser feito com base em título insuficiente para a prova legal do facto. Vejamos. As nulidades das decisões (em sentido lato, abrangendo a sentença/acórdão e os despachos) encontram-se previstas taxativamente no artigo 668.º, n.º 1, conjugado com os artigos 666.º, n.º 3, 716.º e 726.º do CPC. Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada. Assim, excetuando a falta de assinatura do juiz [alínea a) do n.º 1 do artigo 688.º], as alíneas b) a e) do preceito reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença. “Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alínea b) [falta de fundamentação] e c) [oposição entre os fundamentos e a decisão]. Respeitam aos seus limites os das alíneas d) [omissão ou excesso de pronúncia] e e) [pronúncia ultra petitum].”[2] A nulidade da alínea c), onde se prescreve que “a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, só se verifica quando existe uma contradição lógica entre a fundamentação da sentença e o sentido decisório da mesma, de tal forma que das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas se extrairia inexoravelmente decisão diversa daquela que foi proferida.[3] Por isso, não releva, para este efeito, o eventual desacerto do julgador na interpretação da lei ou na sua aplicação aos factos, que pode determinar erro de julgamento, mas não é enquadrável em qualquer das situações previstas na lei geradoras de nulidade da sentença, mormente na referida alínea c), do n.º1 do artigo 668.º do CPC. A previsão normativa em apreço, refere-se, pois, “…à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão…”, aplicando-se quando “…a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.”[4] Na sentença em apreciação, não vislumbramos que se verifique a situação subjacente ao normativo em causa, uma vez que não decidiu que o registo pode ser feito com base em título insuficiente para prova legal do facto positivo comprovativo da qualidade de herdeiro do de cujus. O que se decidiu foi exatamente o inverso, por se ter entendido que esse “facto carece de ser justificado documentalmente mediante certidões de nascimento ou através do acesso à base de dados”. Mas também se entendeu que não compete ao conservador do Registo Predial reapreciar a prova da qualidade de herdeiro legítimo do autor da sucessão e, por isso, também não pode pronunciar-se sobre a força probatória dos documentos com base nos quais o notário considerou provada a referida qualidade, uma vez que entendeu que a questão se reporta a interesses predominantemente particulares e disponíveis, não de ordem pública, competindo, assim, aos interessados invocar o vício, e não ao conservador do Registo Predial dele conhecer oficiosamente, recusando o registo ou lavrando-o provisoriamente por dúvidas, por aplicação dos artigos 68.º a 70.º do Código de Registo Predial, como sucedeu no caso em apreciação. Se esse entendimento se baseia numa errada interpretação das normas legais aplicáveis, haverá error in judicando, mas não nulidade da sentença. Donde, a conclusão a retirar é que a arguida nulidade não se verifica. II. Legitimidade da impugnante 1. Na petição da impugnação judicial a própria impugnante afirma a sua legitimidade, afirmando que a mesma lhe advém da qualidade de entidade que titulou a escritura pública de habitação de herdeiros, pelo que assume a posição de sujeito vinculado no cumprimento da obrigação de promover o registo, conforme prescreve o artigo 8.º-B, do Código de Registo Predial. Na sentença recorrida, o tribunal a quo, conheceu da legitimidade ativa da impugnante, pronunciando-se nos seguintes termos: “Legitimidade activa: Atendo o disposto no artigo 8.º-B, do CPC o notário que lavrou o título do registo é sujeito da obrigação de registar o facto, pelo que se me afigura que tem legitimidade para interpor recurso hierárquico da decisão de recusa da prática do acto de registo, ainda que não tenha sido ele o apresentante, tendo interesse na feitura do registo. Assim dado o seu interesse na causa as partes são legítimas.” 2. Nas conclusões 1.ª a 5.ª da apelação, a recorrente expressa discordância quanto ao decidido, defendendo que a impugnante não é dotada de legitimidade ativa para impugnar a decisão de qualificação do registo por a mesma apenas estar deferida ao apresentante do pedido de registo (e, no caso, a impugnante não apresentou o pedido de registo, já que o mesmo foi pedido pelo interessado C…), requerendo, consequentemente, que a questão seja reapreciada em sede de recurso. Nas quatro primeiras das conclusões das contra-alegações, a recorrida reitera a sua posição sobre a questão. Assim, importa decidir se a impugnante, face aos contornos concretos da situação em apreço, é dotada de legitimidade para impugnar a referida decisão. 3. A impugnação das decisões do conservador encontra-se regulada nos artigos 140.º a 149.º do Código de Registo Predial[5]. Decorre daqueles normativos que a decisão de recusa da prática de ato de registo nos termos requeridos[6] pode ser impugnada mediante a interposição de recuso hierárquico para o presidente do IRN ou mediante impugnação judicial (n.º 1 do artigo 140.º), sendo que a impugnação judicial pode ocorrer após ter sido julgado improcedente a recurso hierárquico ou decorrido o prazo legal para o mesmo ser apreciado (artigo 145.º, n.º1 e 144.º, n.º 1, do mesmo diploma). No que diz respeito à atribuição de legitimidade, seja para o recurso hierárquico, seja para a impugnação judicial, o Código de Registo Predial, nos preceitos mencionados, não contempla expressamente qualquer regra sobre essa matéria. Razão pela qual esta questão tem sido alvo de apreciação em alguns pareceres emitidos pelo Conselho Técnico do IRN, aliás, como sucedeu no caso presente (cfr. nota 1), podendo-se ler no parecer proferido que a legitimidade da ora recorrida foi apreciada como questão prévia, tendo-se admitido a interposição do recurso hierárquico apenas em relação ao apresentante por se ter entendido que aquela não era dotada de legitimidade para o efeito.[7] A questão, porém, não tem tido tratamento consensual nos referidos pareceres. Ainda que os mesmos se reportem, obviamente, apenas ao recurso hierárquico[8], a questão coloca-se exatamente do mesmo modo quanto à impugnação judicial, uma vez que a lei não estabelece distinção relativamente aos pressupostos da atribuição de legitimidade em relação a uma ou outra situação. 4. Da consulta dos referidos pareces sobressai que subsiste o entendimento que vem defendido nas alegações do recorrente, embora noutros, se tenha adotado a perspetiva defendida pela ora recorrida, apesar de se nos afigurar que se trata de entendimento minoritário. Em termos sintéticos, o primeiro entendimento referenciado[9], baseia-se na seguinte interpretação normativa: - O artigo 141.º do Código de Registo Predial ao prescrever que o prazo para interposição da impugnação judicial se conta a partir da notificação a que se reporta o artigo 71.º do mesmo diploma, evidencia que o sujeito ativo da relação registral é o apresentante do pedido de registo, ao prescrever do seguinte modo: “1. Os despachos de recusa e provisoriedade por dúvidas (…) são notificados ao apresentante (…)”; - Os apresentantes são definidos como as pessoas que tenham participado, no lado ativo ou passivo, no procedimento registral, como apresentantes ou como representados destes (artigos 61.º, n.º1, alínea b), 64.º, 36.º e 39.º do Código de Registo Predial e artigos 2.º a 4.º da Portaria n.º 621/2008, de 18/07); - Outras pessoas que não tenham participado no referido processo registral, ainda que possam, em face da lei, comprovar que também são titulares de um interesse direto ou indireto na realização do registo, inclusivamente por a lei deferir aos mesmos o dever de promover o registo de factos obrigatoriamente sujeitos a registos, como é o caso do notário que, na qualidade de entidade pública, titulou o ato que implica alterações aos elementos da descrição registral (cfr. artigos 8.º-B, n.º1, alínea a) e artigo 36.º do Código de Registo Predial), sendo terceiro na relação que entre a Conservatória e o apresentante se desencadeou com o pedido de registo, a sua intervenção apenas em sede de impugnação judicial do ato, não se encontra tutelada em nenhuma disposição legal; - Não existe qualquer interesse direto, indireto, público ou privado que justifique a atribuição de legitimidade autónoma a quem se alheou da promoção do registo, sendo que o interesse público na feitura do mesmo dele cuidará o próprio serviço de registo logo que tenha conhecimento do facto pela via adequada e reunidos os pressupostos de legalidade previstos no artigo 68.º do mesmo Código; Finalmente, a revogação do artigo 143.º do Código do Registo Predial por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04/07, que previa a audição do notário no processo de impugnação, evidencia a desvalorização da intervenção do notário na definição dos interesses em litígio. O segundo entendimento acima referido[10] (contraposto ao que se acabou de sintetizar) defende que, por força do artigo 36.º do Código de Registo Predial, as pessoas que estejam obrigadas à promoção do registo têm legitimidade para pedir o registo; - Esta legitimidade radica num interesse próprio, direto e imediato do legitimado, com base na obrigação de registar de que o mesmo é sujeito, que, por sua vez, assenta no interesse público da segurança do comércio jurídico imobiliário, que demanda uma coincidência entre a realidade física (substantiva) e a registal; - Esse interesse público está presente não apenas no processo de registo propriamente dito, mas também na impugnação de decisões registais desfavoráveis que neste processo forem proferidas, pelo que se justifica a atribuição de legitimidade ativa ao notário para impugnar a decisão registal, ainda que não tenha sido ele o seu apresentante. 5. Em face do dissenso, há que tomar posição, sendo certo que se nos afigura, salvo o devido respeito, que a mera remissão para o artigo 8.º-B, do Código de Registo Predial (sem sequer mencionar qual das situações ali previstas se ajusta ao caso) e concomitante afirmação genérica de uma legitimidade baseada na obrigação de registar por parte do notário, como foi afirmado no segmento da sentença que apreciou a questão da legitimidade, é nitidamente insuficiente para dirimir a questão colocada. Vejamos. Para além do já antes referido quanto aos preceitos legais em apreciação, convém precisar que o artigo 36.º do Código de Registo Predial, na redação introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04/07 (no segmento abaixo sublinhado), sob a epígrafe “Regra geral de legitimidade”, estipula do seguinte modo: “Têm legitimidade para pedir o registo os sujeitos ativos ou passivos, da respetiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse ou que estejam obrigadas à sua promoção.” Por outro lado, o referido diploma de 2008 aditou ao Código de Registo Predial, entre outros, os artigos 8.º-A a 8.º-D, relativos à obrigatoriedade de promoção do registo de factos obrigatoriamente sujeitos a registo. O artigo 8.º-B, preceito que cabe ponderar na situação concreta, prescreve do seguinte modo: “Artigo 8.º-B - Sujeitos da obrigação de registar 1 - Devem promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos as seguintes entidades: a) As entidades públicas que intervenham como sujeitos activos ou que pratiquem actos que impliquem alterações aos elementos da descrição para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 90.º; b) As entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas; c) As instituições de crédito e as sociedades financeiras quando intervenham como sujeitos activos; d) As entidades públicas que intervenham como sujeitos passivos; e) As instituições de crédito e as sociedades financeiras quando intervenham como sujeitos passivos; f) As demais entidades que sejam sujeitos activos do facto sujeito a registo. 2 - No caso de, em resultado da aplicação das alíneas do número anterior, deverem estar obrigadas a promover o registo do mesmo facto mais de uma entidade, a obrigação de registar compete apenas àquela que figurar em primeiro lugar na ordem ali estabelecida. 3 - Estão ainda obrigados a promover o registo: a) Os tribunais no que respeita às acções, decisões e outros procedimentos e providências judiciais; b) O Ministério Público quando, em processo de inventário, for adjudicado a incapaz ou ausente em parte incerta qualquer direito sobre imóveis; c) Os agentes de execução quanto ao registo das penhoras e os administradores da insolvência quanto ao registo da respectiva declaração. 4 - No caso das entidades referidas nas alíneas c) e e) do n.º 1, a obrigatoriedade de promover o registo estende-se a todos os factos constantes do mesmo título. 5 - A obrigação de pedir o registo cessa no caso de este se mostrar promovido por qualquer outra entidade que tenha legitimidade. 6 - Quando, na sequência de acto jurídico de transmissão ou oneração titulado por qualquer forma legalmente admitida, haja que proceder-se ao registo do cancelamento de hipotecas previamente existentes sobre os prédios, a promoção deste registo constitui obrigação da entidade obrigada a promover o registo daquele acto jurídico. 7 - Quando o registo do cancelamento de hipoteca deva ser requerido isoladamente, a respectiva promoção constitui obrigação do titular do direito de propriedade.” Resulta do preceito, na sua conjugação com o referido aditamento do artigo 36.º, que o legislador, na prossecução do interesse ou finalidade subjacente ao registo predial (conforme prescreve o artigo 1.º do respetivo Código: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”), afetou à obrigação de promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos, pessoas e entidades que, por via das suas funções privadas ou públicas, de algum modo tenham tido intervenção nos atos sujeitos a registo obrigatório. O que se enquadra, aliás, na previsão do artigo 41.º do referido Código ao mencionar que “O registo efectua-se mediante o pedido de quem tenha legitimidade, salvo os casos de oficiosidade previstos na lei.” Assim, para além do apresentante do pedido de registo (n.º1, alínea f) do artigo 8.º-B), o elenco dos sujeitos obrigados a promover o registo abrange um vasto leque de entidades públicas e privadas. Assim, além das demais situações mencionadas no preceito, estão obrigados àquele dever de promover, instituições de crédito e as sociedades financeiras quando intervenham como sujeitos ativos ou passivos (n.º 1, alíneas c) e e), do artigo 8.º-B), os notários que tenham tido intervenção no ato do qual decorrem as mencionadas alterações dos elementos da descrição (n.º1, alínea a), do artigo 8.º), mas também os próprios serviços de registo (n.º1, alínea b), do artigo 8-º-B, artigo 8.º-C, n.º 7), bem como aos próprios Tribunais e o Ministério Público (n.º 3, alíneas a) e b), do artigo 8.º-B). Este alargamento encontra-se justificado no preâmbulo do mencionado Decreto-Lei n.º 116/2008, quando ali se escreveu: “…as entidades com competência para praticar actos relativos a imóveis por escritura pública ou documento particular autenticado passam a estar obrigadas a promover o registo predial do acto em que também tenham intervenção, assim desonerando os cidadãos e empresas das deslocações inerentes aos serviços de registo.” E mais à frente acrescentou-se: “… adopta-se um sistema de registo predial obrigatório, potenciando a coincidência entre a realidade física, a substantiva e a registral e contribuindo, por esta via, para aumentar a segurança no comércio jurídico de bens imóveis.” Em conformidade com estas alterações ao Código de Registo Predial, introduzidas pelo citado Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04/07, a aferição da legitimidade para reagir às decisões do conservador do Registo Predial enquadradas pela previsão normativa do artigo 140.º do mesmo Código, encontra-se alargada a todas aquelas entidades. Assim, e no caso em apreço, a notária que interveio na realização da escritura de habilitação de herdeiros, pressuposto da alteração registral, consequente à partilha extrajudicial realizada, em face da conjugação dos artigos 1.º, 8.º-B, n.º1, alínea a) e 36.º do Código de Registo Predial, estava legitimada para promover o referido registo. 6. Porém, esta conclusão não esgota nem dirime a questão essencial em apreço, já que o cerne do dissídio radica noutro aspeto, ou seja, se o notário, assim legitimado, perde essa legitimidade para impugnar a decisão do conservador, proferida na sequência da apresentação do pedido de registo por parte do interessado, por não ter cumprido o dever de promover o registo imposto pelo citado artigo 8.º-B. Quanto a este ponto, é imperioso considerar o disposto no n.º 5 do mesmo preceito que estipula: “A obrigação de pedir o registo cessa no caso de este se mostrar promovido por qualquer outra entidade que tenha legitimidade.” Decorre deste preceito legal que, para a prossecução da finalidade prevista na norma atributiva de legitimidade, apesar de se estabelecer uma ordem de prioridade relativamente à vinculação ali estabelecida (cfr. n.º 2 do preceito), é indiferente quem cumpre a obrigação de promover o registo, já que cumprida a obrigação por um deles, libera todos os demais sujeitos dessa obrigação. Ora sendo assim, afigura-se-nos estar em coerência com esta previsão o entendimento que a legitimidade para impugnar o ato de registo levado a cabo pelo sujeito que o promoveu, está condicionada, pelo menos, à sua promoção (ainda que o registo não seja concretizado nos termos requeridos), ou seja, a legitimidade para colocar em crise o ato promovido, mas não realizado nos termos em que o foi, estabelece-se entre esse sujeito que o requereu e a entidade que praticou o ato impugnado. Neste sentido, afigura-se-nos absolutamente pertinente a declaração de voto no parecer R.P. 110/2011 (já antes citado), que transcrevemos: “O sr. Notário, tendo formalizado o título apresentado, tinha indiscutível legitimidade para subscrever o pedido de registo – só que não subscreveu. E, ao não subscrever, pôs-se à margem do processo de registo instaurado com o pedido que, em vez de por ele, antes foi subscrito pelo sujeito ativo do facto registando – assim liminarmente se auto-excluindo do direito de provocar a reapreciação da decisão registal desfavorável em sede de recurso.” 7. Este entendimento, salvo o devido respeito, não colide com o papel público das entidades tituladoras na satisfação do comércio jurídico imobiliário, contrariamente ao defendido pela recorrida sufragando-se na declaração de voto aposta no parecer R.P. 150/2011, proferido sobre a concreta situação em apreciação. Na verdade, não tendo o registo, em regra, efeitos constitutivos, mas meramente declarativos (ou consolidativos), a relação registral, de cariz publicitário, estabelece-se entre a pessoa que inicialmente dá a conhecer o facto (apresentante do pedido de registo), a pessoa que transmite, após certa elaboração, o conhecimento assim obtido (conservador) e a pessoa a quem, em última análise, se destina o conhecimento do despacho de qualificação (o mesmo apresentante, ainda que outros interessados existam).[11] Assim, o apresentante ao requerer o registo (mesmo que venha posteriormente a verificar-se que não se encontram preenchidos alguns dos requisitos enunciados nos artigos 36.º a 39.º), ou mesmo que a sua iniciativa de dar a conhecer não conduza à feitura do registo nos termos da apresentação, no âmbito da relação registral, é o único interlocutor da Conservatória, por ter sido ele quem promoveu e desencadeou o procedimento respetivo e ao qual é dado conhecimento da recusa ou da qualificação do registo (artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Registo Predial), assistindo-lhe, assim, legitimidade para impugnar o ato. A intervenção de terceiros, em relação a esta relação, ainda que tenham tido intervenção na realização dos atos subjacentes ao pedido de registo, como será o caso do notário que titulou a escritura com base na qual se pede o registo do facto a publicitar, se não interveio na relação registral por não ter promovido o registo do mesmo, apresenta-se como terceiro nessa relação registral, não sendo titular de qualquer interesse em conflito ou sequer da relação de direito substantivo implicada e a tutelar, não se podendo considerar vencido ou prejudicado com a decisão. Ademais, a obrigação de promover o registo, embora seja conferida ao notário, não é essa a sua função essencial, já que na veste de oficial público (artigo 1.º, n.º 2, primeira parte do Estatuto do Notariado[12]), e em conformidade com o artigo 1.º, n.º 1, do Código do Notariado[13] “A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.” Consequentemente, conforme faz notar PEDRO NUNES RODRIGUES, “…o núcleo essencial da função notarial é constituída pela dação da fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais e pela actividade de conformação dos mesmos à lei substantiva e adjectiva.”[14] Ainda que na estrita medida em que o Código de Registo Predial lhe confere o dever de promover o registo, esteja a contribuir para as finalidades previstas no artigo 1.º do mesmo Código, fomentando a correspondência entre a verdade substantiva e a realidade tabular, a legitimidade para colocar em crise o ato registal é uma consequência da concretização efetiva da função de dar a conhecer o facto registando, promovendo a sua feitura. Se através da conduta omissiva, se alheou dessa função, não se vislumbra que a lei lhe reconheça um interesse próprio ou sequer a representação de um interesse público ou privado que justifique a atribuição de legitimidade para impugnar o ato registal desencadeado pelo apresentante. Não será, aliás, alheio a esta maneira de ver a revogação do artigo 143.º do Código de Registo Predial operada pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, que consagrava o direito do notário ser ouvido, no âmbito do recurso hierárquico da qualificação do conservador, fundamentado em vício de que alegadamente enfermasse o título lavrado por notário. Acresce ainda, e em nosso entender, relevantemente, que podem subsistir interesses contraditórios e conflituantes entre o sujeito afetado pela qualificação do ato registral (que o promoveu) e o sujeito que interveio na realização dos atos habilitantes daquela promoção, sem ter promovido o registo. E no confronto dos mesmos, no tocante à atribuição de legitimidade para questionar a decisão qualificadora, não nos suscita dúvida que sempre seria de dar prevalência ao interesse do sujeito que promoveu o registo, tanto mais que as finalidades publicitárias visadas com o mesmo se encontram asseguradas. 8. Por outro lado, o prejuízo invocado pela recorrida relacionado com custos acrescidos com a prática do ato titulado, como fundamento da legitimidade do titulador, que se abstém de promover o seu registo obrigatório, não nos parece que se coadune com a ratio legis subjacente às normas atributivas de legitimidade para a promoção do registo obrigatório (artigos 8.º-B e 36.º já citados). E seguramente não será a vertente relativa ao estatuto de profissional liberal também referida no n.º 2 do artigo 1.º do Estatuto do Notariado, que justifica a atribuição de uma legitimidade própria para promover o registo do ato titulado, e, por consequência, a legitimidade para impugnar o despacho de qualificação. 9. Invoca também a recorrida a aplicação analógica do artigo 680.º, n.º 2, do CPC, com vista a ser-lhe reconhecida legitimidade para impugnar o ato de qualificação. Este preceito dispõe sobre quem pode recorrer das decisões proferidas sobre relações jurídico-privadas adjetivadas segundo as regras processuais civis. Pressupõe a existência de uma lide processual, com partes, atribuindo legitimidade para recorrer a quem tenha ficado vencido (n.º 1), a terceiros que tenham ficado efetivamente prejudicados pela decisão, mesmo não sendo partes ou sendo apenas partes acessórias (n.º 2), ou, no caso de haver recurso de revisão, ao terceiro ali mencionado (n.º 3). Ora, o artigo 147.º-B do Código de Registo Predial instituiu como direito subsidiário, no recurso hierárquico, o disposto no Código do Procedimento Administrativo, nada estipulando no tocante ao direito subsidiário aplicável na impugnação judicial, mormente quanto aos critérios de atribuição de legitimidade para recorrer. Motivo, aliás, que determinou toda a análise antecedente. Por conseguinte, não se afigura defensável a aplicação subsidiária das regras insertas no referido artigo 680.º do CPC. Do mesmo modo, também se afasta a aplicação analógica do regime previsto naquela norma, porquanto não se perspetiva sequer a existência de analogia que justifique o recurso ao artigo 10.º, n.º 1 e 2 do Código Civil. Assim, e conforme se menciona no parecer R.P. 17/2007[15], já citado, entendimento que sufragamos, “…a subsidiariedade a que se refere o artigo 147.º-B do CPR não é via para aplicar as normas contidas no artigo 680.º do Código de Processo Civil (CPC) e, com isso, alargar o leque de impugnantes, desde logo, porque no procedimento registral não há partes, nem principais nem acessórias, não há lide, não há vencedores nem vencidos, e é justamente, por não se descortinar contrariedade que com ele não se coadunam os pressupostos e o prazo da intervenção previstos nos artigos 680.º, n.º 2, e 685.º, n.º 3, do CPC.” 10. Em face de todo o exposto, a conclusão a retirar é que a impugnante não é dotada de legitimidade para impugnar o ato de qualificação do registo. Conforme resulta da análise dos artigos 140.º e seguintes do Código de Registo Predial, não se encontra previsto qual o destino da impugnação nesta situação[16]. Admitir-se o funcionamento da exceção dilatória e suas consequências – absolvição da parte passiva da instância – por aplicação dos artigos 493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, alínea e) e 288.º, n.º 1, alínea e), todos do CPC, não se enquadra nas caraterísticas do procedimento registral, pelas razões já referidas, onde avulta a circunstância de inexistirem partes ou lide, na aceção prevista no regime processual civil. Mesmo em sede de impugnação judicial, o que se impugna “é a decisão sobre a realização do acto de registo”[17], ou seja, a decisão qualificadora do registo, visando-se a obtenção de uma sentença judicial que julgue procedente ou improcedente a impugnação da qual resulta, respetivamente, a subsistência ou insubsistência da recusa do ato registral nos termos requeridos (artigo 148.º do Código de Registo Predial)[18]. No entanto, defende, o apelante que deve ser aplicado o regime prescrito na parte final do artigo 288.º, n.º 3, do CPC. Porém, julgamos tal regime inaplicável ao caso concreto. O preceito referenciado permite o conhecimento de mérito, ainda que subsista a exceção dilatória (por falta de sanação), desde que esteja em causa a tutela da contraparte, no pressuposto da decisão lhe ser integralmente favorável. Fomenta, assim, a prevalência do conhecimento de fundo sobre a forma, em simultaneidade com a salvaguarda da economia processual[19]. Porém, conforme adverte TEIXEIRA DE SOUSA, a aplicação do preceito “pressupõe uma distinção entre pressupostos processuais dispensáveis e não dispensáveis”[20], ou seja, há que atender, na sua aplicação, se o pressuposto processual em falta, que ainda subsiste, era ou não passível de sanação, nos termos previstos no artigo 265.º, n.º 2, do CPC. Ora, a legitimidade singular é insuscetível de sanação. Não se verifica assim um dos pressupostos, essenciais, da aplicação do preceito mencionado. Por conseguinte, a solução a dar ao caso em análise, atentas as suas especiais caraterísticas, é a procedência da apelação com consequente revogação da sentença recorrida, subsistindo a decisão que qualificou o ato registral, ficando, assim prejudicada a apreciação da questão relativa ao mérito da sentença. IV- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, subsistindo a decisão que qualificou o ato registral. Sem custas, dada a isenção prevista no artigo 4.º, n.º1, alínea g) do RCP. Oportunamente, cumpra-se o n.º 5 do artigo 147.º do Código do Registo Predial. Porto, 19 de dezembro de 2012 Maria Adelaide de Jesus Domingos Carlos Pereira Gil Luís Filipe Brites Lameiras _______________ [1] O referido parecer (R.P. 150/2011 SJC-CT) encontra-se junto aos autos (fls. 12 a 22, mas também é consultável em www.irn.mj.pt), lendo-se nas suas conclusões: “I – O registo de aquisição com base em partilha extrajudicial de herança que não tenha sido precedido de inscrição de aquisição em comunhão hereditária actualizada deve ser instruído com a habilitação de herdeiros e o documento comprovativo do acto que ponha fim à indivisão hereditária. II – Não constitui título bastante para o registo predial a escritura pública que, embora contendo a declaração a que se refere o artigo 83.º do Código do Notariado, não tenha sido instruída com os documentos que legalmente comprovem a qualidade de herdeiro dos habilitandos (artigo 85.º/1/c) do Código do Notariado), posto que, deste modo, não preenche os requisitos que permitem qualificá-la como habilitação notarial.” [2] LEBRE DE FREITAS et al., “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 2001, Vol. 2.º, p. 699. [3] Cfr., exemplificativamente, Ac. STJ, de 13.11.2008, proc. 08B2715, em www.dgsi.pt. [4] ANTUNES VARELA et al., “ Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 689-690. [5] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06.07, republicado pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04.07, retificado pela Declaração de Retificação n.º 47/2008, de 25.08, e alterações subsequentes. [6] Conforme refere MOUTEIRA GUERREIRO, “Noções de Direito Registral (Predial e Comercial)”, Coimbra Editora, 1993, p. 283 (2) e p. 284, a recusa do registo nos termos requeridos a que se alude no artigo 140.º, n.º 1, do Código de Registo Predial tanto abrange a recusa do registo prevista no artigo 69.º como “toda a decisão que se oponha (nesse sentido recuse) à pretensão do interessado, como é o caso da provisoriedade prevista no art. 70.º”. [7] De referir que o requerimento de interposição do recurso hierárquico foi subscrito pelo apresentante do pedido de registo e pela ora recorrida. Já a presente impugnação foi apenas apresentada por esta última e subscrita por advogado. [8] O termo “recurso hierárquico” corresponde à “reclamação hierárquica” e o termo “impugnação judicial” ao “recurso” (contencioso), na terminologia da versão inicial do artigo 140.º do Código de Registo Predial. [9] Podem-se consultar os seguintes pareces que veiculam esta interpretação: R.P. 150/2011 SJC-CT (já referenciado por se reportar ao emitido no âmbito do recurso hierárquico da situação em apreciação, mas com declaração de voto em sentido oposto), o R.P. 136/2006 DSJ-CT, o R.P. 17/2007 DSJ-CT, o R.P. 151/2006 DSJ-CT e a declaração de voto aposta no R.P. 110/2011 SJC-CT, todos disponíveis no site acima indicado. [10] Neste sentido, veja-se o parecer referido em último lugar na nota antecedente, sintetizado na seguinte deliberação: “1- O notário que lavrou o título do registo peticionado, que é o sujeito da obrigação de registar o facto, tem legitimidade para interpor o recurso hierárquico da decisão de recusa do acto de registo nos termos requeridos, ainda que não tenha sido ele o “apresentante”.” Cfr., ainda, o R.P. 92/2011 SJC-CT. [11] Esta relação registral, nas palavras de CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, na sua obra “Publicidade e Teoria dos Registos”, Almedina, 1966, p. 163, profusamente citada em vários pareceres do Conselho Técnico do IRN, é uma relação entre um sujeito (cognoscente) e um objeto (cognoscível) e é um meio mediato de conhecimento que pressupõe a existência de um ato intermédio dirigido ao conhecimento, que está a cargo de um órgão estadual, acentuando, contudo, que a mesma é essencialmente privada e o efeito jurídico externo que visa – oponibilidade, como regra, e a validação ou a eficácia, como exceção – é exclusivamente privado. Ou seja, não obstante a decisão do conservador que recusa ou lavra o registo, reconhecendo as vicissitudes do facto a inscrever, provir de um órgão da Administração, não deixa de se reportar a uma relação jurídica de direito privado para efeitos exclusivamente privados. Veja-se, assim, e exemplificativamente, o P. 151/2011, já citado, p. 2-6 e o P. 136/2006 DSJ-CT, p. 2-4. [12] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 04.02. [13] Decreto-Lei n.º 207/95, de 14.08. [14] PEDRO NUNES RODRIGUES, “Direito Notarial e Direito Registal”, Almedina, 2005, p. 35. [15] Que, por sua vez, remete para o Parecer 151/2006, também já referenciado. [16] Cfr. artigo 148.º do Código de Registo Predial quanto aos efeitos da impugnação, do qual resulta que apenas estão contempladas as situações de procedência/improcedência, desistência da impugnação, deserção do recurso ou paragem do mesmo durante mais de 30 dias por inércia do recorrente. [17] MOUTEIRA GUERREIRO, ob. cit., p. 285. [18] Se a impugnação for julgada procedente é lavrado oficiosamente o registo com base na apresentação correspondente à recusa ou convertido oficiosamente o registo provisório (n.º 4 do artigo 148.º); se for julgada improcedente é anotado o facto, a seguir à anotação da interposição da impugnação (n.º 1 e 2 do artigo 148.º). Cfr. ISABEL PEREIRA MENDES, “Código de Registo Predial, Anotado e Comentado”, 17.ª ed., Almedina, 2009, p. 517-518; MOUTEIRA GUERREIRO, ob. cit., p. 291-292. [19] LEBRE DE FREITAS, ob. cit., p. 515-516. [20] TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 85. |