Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0614091
Nº Convencional: JTRP00039754
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: AMEAÇA
Nº do Documento: RP200611220614091
Data do Acordão: 11/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 464 - FLS. 150.
Área Temática: .
Sumário: Não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça a expressão " eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada".
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. nº 4091/06-1
1ª Secção Criminal
NUIP ……/05.2TAPNF
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Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I − RELATÓRIO

1. No tribunal Judicial da comarca de Penafiel, nos autos de instrução nº …../05.2TAPNF do …º Juízo, em que é arguido B………….. e assistente C…………., findo o debate instrutório foi proferida a seguinte decisão:

«O assistente C………., melhor identificado nos autos, requereu a abertura de instrução dizendo, em síntese, que existem indícios da prática pelo arguido B………… de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153°, 1, do Código Penal, sendo certo que se assim não se entender sempre deverá haver lugar à pronúncia pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181° daquele diploma legal.
Diligências efectuadas:
Realizou-se o debate instrutório.
Decisão comprovanda:
Despacho de arquivamento, constante de fls. 39 e 40, relativo aos crimes de ofensa à integridade física simples, na forma de tentativa, e de ameaça, por inadmissibilidade legal do procedimento e por inexistência de crime.
Pressupostos processuais:
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem competência para exercer a acção penal. Não existem questões prévias que devam ser decididas.
Discussão e apreciação:
Estatui o artigo 308º do Código de Processo Penal (CPP) que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Escreve Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Volume III, Verbo, 1994, pag.140) que a instrução não se trata de um recurso, desde logo porque o objecto da instrução não é uma decisão judicial, mas um acto do MP ou do assistente; corresponde antes à ideia clássica do juízo de acusação para dare actionem. Comprovar significa confirmar, reconhecer como bom, concorrer com outras provas para demonstrar. A instrução destina-se precisamente a obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, ou seja, o requerente da instrução não solicita ao Tribunal um juízo sobre o mérito da acusação, tão só a existência dos pressupostos para que a causa seja submetida a julgamento.
Acrescenta a jurisprudência que para a pronúncia não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado (cfr. Acórdãos do STJ de 1 de Março de 1961, BMJ 105/439; da Relação do Porto de 24 de Março de 1976, CJ, Tomo I, p. 131; e da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, CJ, Tomo lI, p. 65).
Por seu turno, dispõe o artigo 153º do Código Penal (CP), no seu nº 1, que quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Relativamente ao crime de ameaça, traduzindo-se esta na afirmação que o arguido terá dirigido ao assistente de que "o senhor podia ser meu pai, mas eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada", o que está em causa é de aquilatar do preenchimento dos elementos objectivos do crime.
Tem-se entendido que para haver crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não podendo pela sua iminência confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento que a ameaça encerra (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 343 e Acórdãos da Relação do Porto de 28/05/2003, processo nº 0340713, de 23/02/2005 processo nº 0510031, e de 10/03/2005, processo nº 0510587), sendo certo que, neste caso, a ameaça que o arguido terá proferido foi acompanhada de uma tentativa de agressão física imediata, apenas não concretizada pela acção de outras pessoas que a evitaram, tudo conforme relato do próprio assistente a fls. 29.
Deste modo, tal como defendido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, a alegada atitude do arguido não integra a prática do crime de ameaça ou de qualquer outro, embora esteja longe de ser correcta.
Por outro lado, não pode o assistente pretender que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do CP, porquanto, tendo este tipo de ilícito natureza particular, cabia ao assistente, nos termos dos artigos 50º, 1, e 285°, ambos do CPP, deduzir a acusação respectiva, não podendo haver lugar a uma decisão instrutória que a substitua, conforme igualmente se retira do estatuído pelo artigo 287º, 1, b), parte inicial, daquele diploma legal.
Decisão:
Face ao exposto, improcede a instrução, não sendo o arguido B………… pronunciado pelos crimes de ameaça ou de injúria.
Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal (artigos 515.º, 1, a), do CPP e 83º, 2, do CCJ).
Notifique.»

2. Dessa decisão interpôs recurso para esta Relação o assistente C……….., cuja motivação rematou com as seguintes conclusões:

Da prova produzida e que consta do processo de inquérito resultam indícios suficientes de que o arguido e ora recorrido, dirigindo-se ao Assistente, ofendido e ora recorrente, proferiu as seguintes expressões: "O Senhor podia ser meu pai, mas eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada".
Também resulta do inquérito prova indicaria suficiente de que estas expressões causaram medo e inquietação no ofendido e assistente
E, ao ouvi-las proferir, o ora recorrente sentiu-se também ofendido na sua honra e consideração, sentindo-se vexado, humilhado e magoado, tanto mais que é pessoa respeitada e respeitadora no meio em que vive.
Ao proferir a mencionada expressão, o arguido pretendeu anunciar o propósito de causar um mal futuro ao denunciante, referindo-se a uma sua actuação futura, que não chegou a concretizar-se.
E como futuro terá de entender-se tudo aquilo que está para além do presente, já que tanto é futuro o que se anuncia para daqui a um dia, ou um mês, como o que se anuncia para daqui a uma hora, um minuto ou um segundo.
A expressão proferida pelo arguido, contém, pois, todos os elementos objectivos para se enquadrar no tipo legal de crime previsto e punido pelo art. 153º, nº 1, do Cód. Penal.
E dos autos também resulta que o arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que lhe não era lícito assim proceder.
Devia, assim, o arguido ser pronunciado como autor do crime previsto e punido pelo art. 153º, nº 1, do Cód. Penal.
Se assim, se não entendesse, o que só por mera hipótese se admite, então devia o arguido ser pronunciado como autor do crime de injúria previsto e punido pelo art. 181º, do Cód. Penal, já que a sua conduta ofendeu também gravemente a honra e consideração do assistente, tanto mais que este é pessoa de bem, respeitada e respeitadora no meio em que vive.
O assistente, não tendo sido notificado para deduzir a acusação pelo crime particular previsto e punido pelo art. 181º do Cód. Penal, como preceitua o art. 285º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, não teve outra alternativa senão deduzi-la no requerimento de instrução – art. 287º, nº 2, do Cód. de Proc. Penal.
Entende o denunciante e ora recorrente que a conduta do arguido constitui ilícito criminal, não podendo admitir-se que se, por hipótese, o arguido em vez de dirigir a mencionada expressão à sua pessoa de humilde cidadão, a dirigisse a uma autoridade pública, a sua conduta ficasse impune.
A legislação penal de qualquer país civilizado tem de prever a punição de tal conduta.
Devia, assim, o Senhor Juiz "a quo" pronunciar o arguido como autor do crime de ameaça previsto, punido pelo art. 153º, nº 1, do Cód. Penal.
Ou, se assim o não entendesse, então como autor do crime de injúria previsto e punido pelo art. 181º do mesmo Cód. Penal.
Não o tendo feito, o Mº Juiz "a quo" violou, por errada interpretação, além de outros, o disposto nos arts. 153º, n.º 1, e 181º, n.º 1, do Cód. Penal e art., 307º, n.º 1, e 308º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal.

Pretende, assim, que se revogue o despacho recorrido e se ordene a pronúncia do arguido como autor do crime previsto e punido pelo art. 153º, nº 1, do Código Penal, ou, se assim se não entender, como autor do crime previsto e punido pelo art. 181º, nº 1, do mesmo Código.

3. À motivação do recurso responderam o Ministério Público e o arguido, pronunciando-se ambos no sentido de que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal e deve ser mantida e concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

4. Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 128-129, no sentido de que “a conduta do arguido, tal como vem descrita, não preenche os elementos objectivos do crime de ameaças” e, assim, o despacho recorrido não merece qualquer censura.
O referido parecer foi notificado aos demais sujeitos processuais, nos termos e para os fins do nº 2 do art. 417º do Código de Processo Penal, sobre o qual nada disseram.
Os autos foram a visto dos Ex.mos Juízes adjuntos, e, após, foram presentes à conferência para decisão.

II − FUNDAMENTOS

5. Constituiu objecto do presente recurso apreciar, em primeira linha, se os factos descritos no requerimento de instrução deduzida pelo assistente contra o arguido preenchem o crime de ameaça, da previsão do nº 1 do 153º do Código Penal, ou, numa segunda via alternativa, se podem constituir o crime de injúria, da previsão do nº 1 do art. 181º do Código Penal e, nesta hipótese, se foi validamente exercida a acção penal por este tipo de crime.
No essencial, os factos de que o assistente acusa o arguido são os seguintes:
No dia 20 de Agosto de 2005, pelas 15 horas, o denunciante compareceu na sede da "D…………", sita na Freguesia de ……., desta comarca, a fim de ali tratar de assunto respeitante ao exercício da caça, que o denunciante pratica.
Quando expunha o assunto para que lhe fosse concedida licença para caçar na "E………….", na qual estão integrados muitos terrenos de que é proprietário, sem qualquer motivo justificativo, foi ameaçado pelo denunciado, que é o Presidente daquela D………….. que, em atitude agressiva, lhe disse: "O Senhor podia ser meu pai, mas eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada. Se quiser caçar tem de pagar 100 euros".
Ao mesmo tempo em que proferia estas palavras, o denunciado fazia gestos para o agredir, e levantava os punhos cerrados, aproximando-se do denunciante e tentando agredi-lo.
O denunciante sentiu-se vexado e humilhado pelo denunciado que assim o tratou na presença de várias pessoas, muitas delas suas amigas e conhecidas.
Tanto mais que o denunciante é pessoa de bem e goza do melhor conceito e de grande respeito no meio em que vive.
A conduta do denunciado, além de vexar, humilhar e ofender o denunciante, também provocou neste sentimento de medo e inquietação, com receio de que ele levasse a efeito as suas ameaças.
O denunciado não tinha qualquer razão para assim tratar o denunciante, acontecendo até que este é proprietário de uma extensa área de terrenos que fazem parte da zona E…….., e para caçar nos seus terrenos não é obrigado a pagar qualquer importância, como o denunciado pretendia.
A conduta do denunciado, além de vexar, humilhar e ofender o denunciante, também provocou neste sentimento de medo e inquietação, com receio de que ele levasse a efeito as suas ameaças.
O denunciado não tinha qualquer razão para assim tratar o denunciante, acontecendo até que este é proprietário de uma extensa área de terrenos que fazem parte da zona E…………, e para caçar nos seus terrenos não é obrigado a pagar qualquer importância, como o denunciado pretendia.

6. O que está em causa é apreciar se a expressão «eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada», no contexto em que foi dita, preenche o tipo objectivo do crime de ameaça, tal como está descrito no nº 1 do art. 153º do Código Penal.
No despacho recorrido, o Sr. Juiz considerou que a atitude do arguido, consubstanciada naquela ameaça verbal, não integra o crime de ameaça ou qualquer outro, designadamente o crime de injúria. Embora a tenha por não correcta. Fundamentou esta sua conclusão no entendimento doutrinário e jurisprudencial que considera que, “para haver crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não podendo, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento que a ameaça encerra, (...) sendo certo que, neste caso, a ameaça que o arguido terá proferido foi acompanhada de uma tentativa de agressão física imediata, apenas não concretizada pela acção de outras pessoas que a evitaram, tudo conforme relato do próprio assistente a fls. 29”.
E, com todo o respeito por opinião contrária, pensamos que a razão está do seu lado. O que também é reconhecido, quer pelo Ministério Público na 1ª instância, quer pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação.
Com efeito, o crime de ameaça insere-se no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal. As ameaças, provocando um sentimento de insegurança, intranquilidade e medo na pessoa do ameaçado, afectam a tranquilidade e a paz individual, que é condição de uma verdadeira liberdade. O bem protegido com a norma incriminadora é, pois, a liberdade pessoal: liberdade de decisão e de acção. E não a integridade física ou a honra. Aspecto que assume particular relevância para distinguir a conduta integradora do crime de ameaça, da tentativa de ofensa à integridade física ou da injúria, que se dirigem, respectivamente, à tutela da integridade física e da integridade moral das pessoas.
Escreve TAIPA DE CARVALHO que a tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa e pluridimensional: negativa, na medida em que visa impedir as acções de terceiros que afectem a liberdade de decisão e de acção individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de acção, sexual) como autónomos objectos de protecção penal (em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 341).
Ameaçar corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar a intenção de causar, no futuro, um facto maléfico injusto, seja para bens pessoais, como a vida, a integridade física e a liberdade, seja para bens patrimoniais (art. 153º, nº 1, do Código Penal).
Assim, para o preenchimento do tipo objectivo descrito na norma legal exige-se que a ameaça proferida reúna certas características, adequadas a provocar medo ou inquietação: 1) que corresponda a um mal, seja de natureza pessoal, seja de natureza patrimonial; 2) que o mal objecto da ameaça seja futuro, não podendo ser um mal actual ou iminente, porque neste caso estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo mal; 3) e que a sua ocorrência dependa da vontade do agente (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. p. 343).
Não é, porém, necessário que, em concreto, a ameaça chegue a provocar o medo ou a inquietação. Como referiu o Prof. FIGUEIREDO DIAS (cfr. Acta da 45ª Sessão da Comissão Revisora do Código Penal, de 11 de Dezembro de 1990), “o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características adequadas a provocar medo ou inquietação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar o medo ou a inquietação”.
Com efeito, na configuração actualmente descrita no art. 153º do Código Penal, que resultou da revisão introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15-03, o crime de ameaça não exige que a ameaça provoque medo ou inquietação. Basta que seja adequada a provocar medo, a afectar ou inibir, de modo relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada. Tratando-se, não de um crime de resultado, mas de um crime de acção e de perigo concreto (cfr. ainda LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, vol. II, Lisboa, 1997, p. 185; e TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. p. 341-343).
Torna-se, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro que, objectiva e subjectivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere (cfr. acs. desta Relação de 25-01-2006 e 21-06-2006, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. nº 0544124 e 0612040).
É precisamente esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. p. 343).
Assim, haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada.
É exactamente nesta segunda hipótese que se insere a expressão proferida pelo arguido para o assistente: «eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada». Trata-se de uma ameaça actual, que se dirigia ao momento presente em que foi proferida. E não do anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior. Falta-lhe assim, uma das características essenciais da ameaça que tipifica o crime da previsão do nº 1 do art. 153º do Código Penal: o carácter de “mal futuro”.
No caso em análise, esta interpretação dos factos torna-se ainda mais clara, mais evidente. Porquanto, na versão descrita pelo assistente, o arguido não se limitou a proferir a expressão ameaçadora. “Ao mesmo tempo em que proferia estas palavras, o denunciado fazia gestos para o agredir e levantava os punhos cerrados, aproximando-se do denunciante e tentando agredi-lo”.
Como se vê, é o próprio assistente que interpreta a conduta do arguido como uma tentativa de agressão: “tentando agredi-lo”. E com evidente razão, já que aquela expressão não foi um acto isolado. Antes foi proferida num contexto que meteu “gestos para agredir”, “punhos cerrados” e “aproximação ao denunciante”. Contexto revelador de um evidente propósito de agredir fisicamente o assistente naquele momento, e, portanto, característico de uma tentativa de ofensa à integridade física, e não de uma ameaça contra a liberdade do assistente.
Sucede que a lei não pune a tentativa criminosa relativa a crimes puníveis com prisão não superior a 3 anos (art. 23º, nº 1 do Código Penal). Como ocorre com a tentativa relativa ao crime de ofensa à integridade física simples, cujo crime consumado é punível com pena de prisão até 3 anos (art. 143º, nº 1, do Código Penal). Só por isso é que a conduta do arguido não pode ser objecto de acusação e pronúncia por esse tipo de crime.
O que não é legítimo é que se pretenda descontextualizar os factos, de modo a moldá-los à configuração própria de outro tipo de crime punível. Como insiste o assistente. Para quem importante não parece ser a integração da conduta ilícita do arguido na adequada configuração normativa. Mas, antes, que a conduta não ficasse impune. Fosse qual fosse o tipo de crime que se pudesse adequar à conduta: ameaça, injúria, ou eventualmente outro. O que o leva a dizer que “a legislação penal de qualquer país civilizado tem de prever a punição de tal conduta”. Mas não foi assim que o legislador pensou. E não é assim que a lei quer.
E vistas as coisas com alguma objectividade e racionalidade, o próprio arguido compreenderá que nas relações entre as pessoas, por motivos de vizinhança, de trabalho, de negócios ou de qualquer outro tipo de interesses, existem sempre divergências, discordâncias, pequenas desavenças, alguma animosidade, susceptíveis de gerar pequenos conflitos. Até nas relações familiares ocorre esse tipo de conflitualidade. Que é própria da vida em sociedade e deve ser tolerada com normalidade.
Não se pode, pois, pretender que o Direito, e em particular o Direito Penal, tenha que intervir sempre que ocorrem esses pequenos conflitos. Tal constituiria uma forte e desnecessária limitação dos direitos e liberdades das pessoas, inequivocamente contrária ao princípio da “restrição mínima necessária” contido na norma do nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa. E, então, o Direito, em vez de exercer a sua função de garantir a paz social, passaria a constituir ele próprio uma fonte de conflitos e de perturbação da vida em sociedade (cfr. os acs. desta Relação de 12-06-2002 e 7-12-2005 (em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. nº 0210332 e 0515154).
Como disse o Prof. EDUARDO CORREIA, a propósito das “Grandes Linhas da Reforma Penal” (intervenção publicada em “Para Uma Nova Justiça Penal”, Almedina, Coimbra, 1983, 13-14), “num Estado de direito democrático devem os limites máximos do âmbito da legislação penal aferir-se pela sua necessidade. Nesse quadro, a afirmação criminalmente protegida de certos bens jurídicos há-de por ela limitar-se. Só que essa necessidade de defesa e protecção não deve ser arbitrária, ou de qualquer tipo conceitual, como seria a que partisse da ideia de um mínimo ético, de saúde pública, ou da sua particular importância para a organização da vida em sociedade. Ela deve, antes, ser, desde logo, limitada materialmente, pela maior coincidência possível com uma concepção maioritária e obtida através dos órgãos constitucionais competentes (art. 168º). Até porque, deste modo, se reduzirão ao mínimo os conflitos entre a visão do Estado e dos particulares, entre a lei penal e a consciência de cada um, limitando, até um limite do possível, os chamados crimes de consciência”.
Ora, também a propósito da caracterização do crime de ameaça, tipificado no nº 1 do art. 153º do Código Penal, escreve TAIPA DE CARVALHO (obra citada, p. 341) que “nos crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e de coacção, está subjacente uma certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção, isto é a liberdade de acção de terceiros. Nesta relação de tensão entre os interesses contrapostos, procura o legislador o ponto razoável de equilíbrio, de modo que, sem descurar a tutela penal das essenciais manifestações da liberdade individual, não caia numa excessiva criminalização de condutas que, apesar de afectarem, em alguma medida, a liberdade individual, são socialmente inevitáveis”.
Parece, assim, conformada a ideia de que nem todas as condutas ética, social e moralmente incorrectas e censuráveis, como será o caso desta, tenham que ser punidas como crime. Não é exactamente esse o conceito e a função que a Constituição Portuguesa reserva ao Direito Penal (v. arts. 18º e 29º).
Conclui-se, do exposto, que a conduta do arguido, configurada nos factos descritos pelo assistente no requerimento de abertura de instrução, não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça, da previsão do nº 1 do art. 153º do Código Penal. Como bem decidiu o despacho recorrido.

7. No entender do assistente, a mesma conduta poderá também preencher o crime de injúria, da previsão do nº 1 do art. 181º do Código Penal.
Mas este crime tem natureza particular, cujo procedimento depende de queixa e de acusação a deduzir, no momento oportuno, pelo assistente, nos termos do disposto nos arts. 188º, nº 1, do Código Penal e 50º, nº 1, e 285º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Assim, querendo exercer o procedimento criminal pelo crime de injúria, o assistente, quando foi notificado do despacho de arquivamento do Ministério Público, deveria, no prazo previsto no nº 1 do art. 285º do Código de Processo Penal, deduzir a acusação particular por esse tipo de crime. Independentemente de decidir também requerer a abertura de instrução perlo crime de ameaça. E não a deduziu.
Aliás, precisamente porque o procedimento criminal por crimes particulares é da iniciativa do assistente, e não do Ministério Público, a lei não permite que o assistente requeira a abertura de instrução por esse tipo de crimes. Como consta da al. b) do nº 1 do art. 287º do Código de Processo Penal.
Por este motivo, a instrução pelo crime de injúria, da previsão do nº 1 do art. 181º do Código Penal, era legalmente inadmissível. E teria que ser rejeitada (nº 3 do art. 287º do CPP). Não podendo, consequentemente, levar a um despacho de pronúncia por esse crime.
Deste modo, nenhuma censura merece o despacho recorrido.

III − DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas a pagar pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5UC (arts. 515º, nº 1, al. b), e 518º do Código de Processo Penal e art. 87º, nº 1, al. b), e nº 3 do Código das Custas Judiciais).
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Porto, 22 de Novembro de 2006
António Guerra Banha
Jaime Paulo Tavares Valério
Luís Augusto Teixeira