Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1380/17.4T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: COLIGAÇÃO PASSIVA
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
OBSTÁCULO À COLIGAÇÃO
Nº do Documento: RP201804111380/17.4T8PNF.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 820, FLS 183-190)
Área Temática: .
Sumário: I - A competência material para o julgamento de acções com pedidos de declaração de nulidade de dissolução do casamento e dos respectivos averbamentos pertence ao Tribunal de Família.
II - Já a competência para o julgamento de acções em que são formulados pedidos de declaração de nulidade da partilha efectuada na sequência da dissolução do casamento, por simulação, e, subsidiariamente, da sua ineficácia, por impugnação pauliana, pertence ao Tribunal Cível.
III - Intentada no Tribunal Cível uma única acção pelo alegado credor contra os ex-cônjuges para obter a declaração de nulidade da dissolução do casamento e da subsequente partilha do único bem que integrava o património comum, por simulação, e, subsidiariamente, a declaração da sua ineficácia, relativamente ao autor, por impugnação pauliana, estamos perante uma coligação passiva.
IV - A coligação configura-se como uma acumulação, no mesmo processo, de pedidos que poderiam ser deduzidos em acções separadas.
V - Como tal, a menos que o autor se oponha, a verificação de um obstáculo à coligação (como a incompetência em razão da matéria) deve determinar apenas a paralisação do pedido para cuja apreciação o tribunal é incompetente, prosseguindo o processo quanto aos demais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1380/17.4T8PNF.P1
Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 2.

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Avenida ..., n.º .., em Lisboa, instaurou contra B... e C..., residentes na ..., n.º .., ..., Baião, a presente acção declarativa, com processo comum, formulando os seguintes pedidos:
“a) Deve declarar-se a nulidade da dissolução do casamento dos RR e designadamente a nulidade da decisão do Sr(a). Conservador(a) do Registo Civil proferida no dia 12 de Agosto de 2014, no Processo de Divórcio com o número 259290/2014, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, que decretou o divórcio por mútuo consentimento;
b) Deve declarar-se a nulidade e ordenar-se o respectivo cancelamento do Averbamento n.º 2, de 2014-08-14, sob o Assento de Nascimento nº 1217 do ano de 2014 do 1º R.;
c) Deve declarar-se a nulidade e ordenar-se o respectivo cancelamento do Averbamento n.º 2, de 2014-08-14, sob o Assento de Nascimento nº 3860 do ano de 2010 da 2ª R.;
d) Deve declarar-se a nulidade da partilha efectuada pelos RR. no dia 24 de Setembro de 2014, no Cartório Notarial da D..., sito na Rua ..., nº .., sala .., União das freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia e, designadamente, deve declarar-se a nulidade da adjudicação à 2ª R. do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, sito no ..., actualmente ..., nº .., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número 409 – ... e inscrito na matriz sob o artigo 507, com a consequente declaração de nulidade da escritura pública de partilha outorgado no dito Cartório e lavrada a partir de folhas 137 do Livro 187-A;
e) Deve declarar-se a nulidade e ordenar-se o respectivo cancelamento do registo de aquisição do imóvel a favor da 2ª R., constante da AP. 674 de 2014/11/14, tendo como causa a partilha subsequente a divórcio, efectuado na descrição predial 409/19951129, da Conservatória do Registo predial de Baião;
f) Deve decretar-se e ser ordenado à 2ª R. a restituição do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, sito no ..., actualmente ..., nº .., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número 409 – ... e inscrito na matriz sob o artigo 507, ao património comum dos RR., de modo a que esse imóvel possa responder pelo cumprimento da obrigação do 1º R. a favor do A. – artigo 601º do C.C. e possa ser judicialmente executado, de modo a que o A. se possa pagar à custa desse prédio – artigo 817º do C.C., o que tudo se pede ao abrigo do disposto no artigo 605º do C.C.;
Sem prescindir, para o caso do supra exposto em 61º a 101º desta p.i. e os pedidos formulados de a) a f) não mereceram acolhimento, mais se pede a título subsidiário, que:
g) Deve ser decretada a ineficácia em relação ao A. do ato de partilha referido em 30º a 44º desta p.i.;
h) Mais devendo ainda ser ordenado à 2ª R. a restituição do prédio urbano composto de rés-do-chão, sito no ..., actualmente ..., nº .., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número 409 – ... e inscrito na matriz sob o artigo 507, de modo a que o A.. se possa pagar à custa desse prédio.
Por qualquer uma das vias e pedidos supra formulados, mais devem:
i) Serem os RR. condenados a absterem-se de por qualquer forma, ato, meio ou expressão, impedirem, perturbarem ou obstarem o livre exercício pelo A. dos seus legítimos direitos de recuperação do crédito que lhe é devido;
ii) Serem os RR. condenados em custas e procuradoria”.

Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
É titular de um crédito sobre o réu B..., no montante de 102.192,32 €, decorrente do pagamento da indemnização devida ao lesado, E..., e despesas, a que ambos e o filho daquele, F..., foram condenados no processo n.º 25/08.8TBRSD, por sentença de 30/1/2014, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/10/2014, transitado em julgado.
Na pendência do recurso, o réu B... e a ré C... divorciaram-se e procederam à partilha do único bem comum do casal, constituído pelo prédio urbano acima identificado, onde ambos residem, que haviam adquirido na constância do casamento.
Quer o divórcio quer a escritura de partilha foram outorgados, de forma simulada, com o intuito de enganar e prejudicar os credores daquela indemnização, seja o inicial E..., seja o autor por via da sub-rogação legal decorrente do pagamento que àquele foi feito por este.
Caso se entenda que não houve simulação, deve a partilha ser declarada ineficaz, por se verificarem os requisitos da impugnação pauliana.

Apenas contestou a ré sustentando a validade do divórcio e da subsequente partilha, negando querer prejudicar o autor, concluindo pela improcedência da acção.

Por despacho de 13/11/2017, anunciando o propósito de conhecer oficiosamente da excepção dilatória da incompetência material do tribunal relativamente aos pedidos formulados sob as alíneas a) a c) e configurando uma excepção dilatória inominada no que concerne à “coligação/cumulação ilegal de pedidos”, a Mm.ª Juíza titular do processo ordenou a notificação das partes, tendo apenas respondido o autor sustentando a inexistência da anunciada excepção inominada e batendo-se pelo conhecimento dos pedidos formulados a título principal e, se for o caso, subsidiário.
Seguiu-se despacho, de 19/12/2017, com o teor que aqui se transcreve:
“No despacho em que se adiantou o entendimento do tribunal, para o qual nos remetemos, reconheceu-se que sempre os pedidos deduzidos pelo A. têm autonomia entre si, sem prejuízo da óbvia prejudicialidade dos primeiros mencionados (sob a) a c)) com relação aos seguintes…, i.é., anotou-se a subsidiariedade do pedido quanto ao qual assiste competência material a este tribunal…
Contudo, evidencia-se que para o conhecimento dos pedidos sob as alíneas a) a c) do petitório, precisamente o pedido principal, é materialmente competente a jurisdição de família e menores, nos termos e para os efeitos do artigo 122º, nº 1, al. g) da LOSJ.
Sendo o Tribunal Cível materialmente incompetente para o julgamento daqueles pedidos – a competência pertence, como vimos no despacho antecedente, ao Tribunal de Família e Menores - prescreve, a propósito, o nº 1 do art. 31º CPC que a coligação não é admissível, entre outros casos, quando a cumulação (de pedidos) possa ofender as regras de competência em razão da matéria; logo, para que a coligação seja legal, o tribunal deverá ser materialmente competente para todos os pedidos.
A subsidiariedade da pretensão cumulada não altera a questão decisiva, posto que colocada à apreciação do tribunal, com precedência lógica e cronológica, hoc sensu, uma questão para a qual não lhe assiste competência material, com o que inviável o conhecimento desta e, por outro lado, atentos mesmos os termos da pronúncia que antecede, inadmissível o conhecimento da subsidiária….
Com efeito, é o A. quem reitera o interesse na apreciação primária e principal dos pedidos quanto aos quais existe incompetência material deste tribunal. Ora, quando a pretensão é subsidiária, a possibilidade da sua apreciação depende da insubsistência/improcedência do pedido principal ou da avaliação do seu desinteresse pelo Autor… Não é o que sucede, no caso, posto que o A. reitera a matéria em que estriba aquele pedido primeiro e manifesta a vontade na respectiva apreciação.
Donde, como se referiu já no despacho anterior, se de lege data, existindo uma coligação ilegal, a mesma só é suprível na situação em que a ilegalidade resulta da falta de conexão entre os pedidos exigida pelo art. 36º do CPC, já não sendo suprível nas restantes situações de coligação ilegal, designadamente quando esta ocorre porque o tribunal competente, em razão da matéria, para uns pedidos, o não é já para outros; no caso acresce que a solução de prosseguir com o conhecimento do pedido subsidiário vem a ser desconforme à vontade de tutela manifestada pela parte mesma. É que, pese embora a declaração de vontade de prosseguimento destes autos para apreciação da pretensão subsidiária, o A. reitera a verificação e vontade de anulação deduzida a título principal, cuja precedência é lógica e quase se dirá ontológica em relação ao pedido de impugnação pauliana…
Visto o que antecede, remetendo-nos ademais para a fundamentação constante do despacho antecedente, decide-se absolver os RR da instância, por verificação da referida excepção dilatória inominada, qual seja, a da coligação/cumulação ilegal de pedidos.
Custas pelo Autor.
Registe e notifique.”

Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
“1. Entendeu o Tribunal que o Autor Fundo de Garantia Automóvel, na douta petição inicial junta aos autos, efetuou uma cumulação/coligação de pedidos que não é admissível e que não poderá prosseguir.
2. O Autor FGA efetuou pedidos subsidiários.
3. Ao abrigo do disposto no artigo 554º nº 1 do CPC, “Podem formular-se pedidos subsidiários. Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior.
4. Conforme dispõe o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 825/15.2TSLRA.C1.S1, de 29-06-2017, “Com a formulação de um pedido principal e um pedido subsidiário, o autor declara uma preferência pelo primeiro, devendo o tribunal apreciar essa pretensão jurisdicional e apenas passar à apreciação do pedido subsidiário, no caso do pedido principal improceder.”
5. Alega o Autor que o 1º R. e a R. casaram catolicamente na Igreja ..., concelho de Baião, a 4 de dezembro de 1977, sob o regime da comunhão de adquiridos, conforme assentos 231 e 213 e assentos de nascimento números 1217 e 3860,
6. Na constância do casamento, os RR. compraram o prédio urbano sito no ... — ..., com a área total de 61,1 m2 e área coberta de 61,1 m2, composto por casa de r/c, sala, cozinha, dois quartos, casa de banho e despensa, a confrontar do Norte com Herdeiros de G..., do Sul com caminho público, do Nascente e Poente com Herdeiros de G..., inscrito na matriz predial sob o artigo 507 e descrito na Conservatória do Registo Predial da freguesia de Baião com o nº 409, com inscrição de aquisição a seu favor pela AP. 8 de 1996/04/24.
7. No dia 30 de janeiro de 2005, ocorreu um acidente de viação, que deu origem à acção judicial declarativa de condenação que correu termos no Tribunal Judicial de Resende sob o processo nº 25/08.8TBRSD, interposta no ano de 2008, pelo E... contra o F..., como 1º R., o B..., como 2º R., e Fundo de Garantia Automóvel.
8. Nos 30 dias seguintes à prolação da sentença judicial, o B... interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, e na pendência do mesmo, os aqui RR. B... e C... requereram o respetivo divórcio por mútuo consentimento.
9. Por sua vez, o Tribunal da Relação do Porto, proferiu acórdão datado de 21 de outubro de 2014, notificado às partes em 23 de outubro de 2014, julgando improcedente a apelação interposta pelo aqui 1 R. B... e apelações dos demais RR. naquele outro processo, confirmando a douta sentença proferida.
10. O 1º R. nunca pagou qualquer quantia à aqui A., que teve de se munir dos meios que tinha à sua disposição, designadamente a interposição de uma ação executiva, que corre termos na Comarca de Viseu — Secção de Execuções de Viseu sob o processo nº 363/16.2T8 VIS.
11. No decorrer das pesquisas efetuadas por bens do Executado, aqui 1º Réu, susceptíveis de penhora, no âmbito da referida ação executiva, a Autoridade Tributária e Aduaneira deu a informação de que existia apenas o artigo 507 urbano da matriz predial respectiva da freguesia ..., do concelho de Baião.
12. Quando o FGA tentou registar a penhora sobre o referido imóvel, tal não foi possível, pois este estava registado a favor de pessoa diversa do Executado.
13. Sendo a pessoa diversa a sua ex-cônjuge.
14. Ou seja, o que se verificou foi um acordo entre ambos os RR., com o intuito de enganar e prejudicar os credores da indemnização arbitrada por aquele Tribunal.
15. O A. deduziu os pedidos principais da presente ação, da alínea a) a f), onde se “ataca” em primeiro lugar a questão inicial, pedindo a nulidade da dissolução do casamento, por motivo de falsas declarações, conforme al. a) do pedido.
16. Mais se pediu o cancelamento dos averbamentos efetuados nos assentos de nascimento dos RR., conforme al. b) do pedido, e ainda a nulidade da partilha e da consequente adjudicação do imóvel à 2 R, conforme al. d) do pedido.
17. Por fim, ainda a titulo principal, foi pedido o cancelamento do registo de aquisição do imóvel a favor da 2ª R. e que fosse ordenada a restituição deste pela 2ª R., conforme al. e) e f).
18. No caso de o Tribunal entender não serem procedentes os pedidos principais deduzidos pelo A., deverá, sim, partir para a apreciação dos pedidos subsidiários.
19. Conforme dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 1665/08.OTBPBL.C1, de 17-04-2012, “Havendo pedido subsidiário, a procedência do pedido principal prejudica a apreciação do pedido subsidiário na primeira instância”.
20. A formulação do pedido subsidiário trata-se de uma alternativa formal ao pedido principal a ser tomado em consideração caso este não proceda.
21. O A. a título subsidiário, para o caso de não merecerem acolhimento os pedidos das al. a) a f), pediu, que fosse decretada a ineficácia em relação ao FGA do ato de partilha por divórcio, celebrada entre os RR.
22. Por fim, pediu ainda a título subsidiário, que fosse ordenada à 2ª R. a restituição do prédio urbano, de modo a que o A. se possa pagar à custa desse mesmo prédio.
23. Sempre se dirá que os pedidos deduzidos pelo A. são compatíveis.
24. Com a posição adotada pelo Tribunal, o Autor vê prejudicada a apreciação dos pedidos subsidiários que efetuou.
25. Deverão ser admitidos os pedidos formulados pelo Apelante na douta petição inicial ou, caso assim não se entenda, serem apreciados os pedidos formulados a título subsidiário, tudo com os devidos e legais efeitos.
26. Ora, ao assim não decidir violou, o Tribunal a quo, o disposto nos artigos 554º, nº 1 e 555º nº 1 ambos do Código de Processo Civil, o que invoca com as legais consequências.
Atento tudo quanto exposto, requer-se a V. Exia. que se dignem julgar totalmente procedente o recurso apresentado pelo Apelante, só assim se fazendo a mais sã e elementar JUSTIÇA.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a verdadeira questão que importa dirimir consiste em saber se a incompetência material do tribunal recorrido para a apreciação dos três primeiros pedidos determina ou não que o processo finde relativamente a todos os pedidos, com a absolvição da instância dos réus, por coligação ou cumulação ilegal de pedidos.

II. Fundamentação

1. De facto

Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que resultam do antecedente relatório, visto que outros não se mostram provados nem como tal foram indicados na decisão recorrida.

2. De direito

Se bem interpretamos o douto despacho recorrido, a ali denominada excepção dilatória inominada, por coligação/cumulação ilegal de pedidos, decorre do facto de se ter considerado o Tribunal Cível incompetente para os pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c), por serem da competência do Tribunal de Família e Menores, nos termos do art.º 122.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 62/2013, de 26/8, - Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – e que essa incompetência representava um obstáculo à coligação passiva promovida pelo autor.
No recurso não vem questionada aquela qualificação, que também nos parece correcta, uma vez que, pedindo-se a declaração de nulidade da dissolução do casamento entre os réus e dos respectivos averbamentos, dizem respeito “ao estado civil das pessoas”.
Mas já se nos afigura incorrecto o entendimento segundo o qual a incompetência para o conhecimento desses pedidos importa a coligação/cumulação ilegal dos restantes pedidos, os quais versam, recorde-se, sobre a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de partilha outorgada entre ambos os réus, e, subsidiariamente, a ineficácia decorrente da impugnação pauliana de tal partilha feita na sequência da dissolução do casamento, cujo conhecimento e julgamento são, inquestionavelmente, da competência dos tribunais cíveis.
Assim, não se trata da ordem de apreciação dos pedidos principais e secundários, devendo estes ser considerados somente no caso de aqueles não procederem, como claramente decorre do art.º 554.º, n.º 1, do CPC e como sustenta o apelante, mas do efeito que a incompetência em razão da matéria dos aludidos três primeiros pedidos acarreta para os restantes, alguns deles também deduzidos a título principal, como é o caso dos formulados sob as alíneas d), e) e f). O conhecimento dos pedidos subsidiários constantes das alíneas g) e h) só surgirá, como é óbvio, se e quando improcederem aqueles.
A questão essencial que se coloca nos autos consiste, pois, como se referiu, em saber se, em caso de coligação passiva inadmissível por falta de competência do tribunal em razão da matéria para a apreciação daqueles três primeiros pedidos, o processo deve findar na totalidade, relativamente a todos os pedidos, com a absolvição da instância de ambos os réus, como se entendeu no despacho recorrido, ou apenas na parte relativa aos pedidos para os quais o tribunal carece de competência material, prosseguindo para apreciação dos demais pedidos relativamente aos quais é materialmente competente, como parece pretender o apelante, embora sem colocar devidamente a questão.
O art.º 36.º, n.º 1, do CPC permite a “um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência.”
E o n.º 2 do mesmo artigo permite igualmente a coligação “quando, sendo embora diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito”.
No presente caso, estamos perante uma coligação passiva.
O autor demandou ambos os réus para obter a declaração de nulidade da escritura de partilha que ambos outorgaram, o cancelamento do registo do imóvel que dela foi objecto e a sua restituição ao património comum, com fundamento em simulação, ou, subsidiariamente, a ineficácia da mesma partilha relativamente a ele, autor, por impugnação pauliana.
É fácil constatar que estes pedidos assentam na nulidade da separação de bens e partilha por simulação e, subsidiariamente, na impugnação pauliana dessa partilha, geradora da respectiva ineficácia, por a mesma visar frustrar a satisfação do crédito do autor.
Embora sejam diferentes as causas de pedir, a procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação dos mesmos factos.
Sendo o Tribunal Cível recorrido incompetente para o julgamento dos pedidos de declaração de nulidade da dissolução do casamento e dos respectivos averbamentos, como vimos e parece ser incontestado, por serem da competência dos Tribunais de Família, vejamos quais as consequências desse facto neste processo.
A este propósito, o n.º 1 do art.º 37.º do CPC prescreve que a coligação não é admissível, entre outros casos, quando a cumulação (de pedidos) possa ofender as regras de competência “em razão da matéria”.
Logo, depreende-se daqui, que, para que a coligação seja legal, o tribunal deverá ser materialmente competente para todos os pedidos.
E se não o for, como acontece no caso em apreço?
Nesse caso, há quem sustente que o processo não pode prosseguir, argumentando-se que, sendo a coligação facultativa, o autor podia optar entre ela e a propositura de acções separadas.
Parece ter sido este o entendimento que esteve subjacente ao despacho recorrido, embora sem o dizer expressamente e citando normas do anterior CPC, já revogado, que não tem aqui aplicação [cfr. art.ºs 4, al. a) e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6], ainda que de teor idêntico às normas aqui citadas.
Efectivamente, foi por considerar a incompetência material do tribunal cível para julgar os três primeiros pedidos que o tribunal recorrido absolveu os réus da instância, entendendo que, em caso de coligação passiva com cumulação de pedidos, a verificação de um obstáculo à coligação determinava a inutilização de todo o processo, pois configurava uma excepção dilatória inominada.
Porém, o recorrente não aceita este entendimento, servindo-se de argumentos que pouco têm a ver com a questão, dizemo-lo como todo o respeito.
Que dizer?
É óbvio que não se trata da precedência do conhecimento dos pedidos principais relativamente aos pedidos subsidiários.
E também nos parece evidente que a relevância daquela questão decorre da cumulação de pedidos perante tribunal incompetente para conhecer de alguns deles, porquanto, caso fosse o tribunal incompetente para conhecer de todos, ela não se colocaria: a incompetência absoluta em razão da matéria determinaria a absolvição da instância in totum.

Como se disse, com excepção dos pedidos das alíneas a) a c), todos os restantes pedidos deduzidos [sob as alíneas d) a f), erigidos como pedidos principais, e g) e h), como pedidos subsidiários e, ainda, comum a ambas as categorias o da al. i)] situam-se na área de competência material inquestionada do Tribunal Cível.
Os mesmos baseiam-se na simulação e na impugnação pauliana.
Embora de forma deficiente, o autor pretende o prosseguimento da acção para apreciação destes pedidos e causas de pedir.
Importa apurar se poderá ter lugar a separação de causas, em razão da competência.
O actual CPC não contempla directamente esta hipótese[1].
O art.º 37.º, n.º 4, do CPC prevê a notificação do autor para indicar qual o pedido ou os pedidos que continuarão a ser apreciados no processo, se se entender haver “inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente”.
E o art.º 38.º, n.º 1, por sua vez, prevê que “ocorrendo coligação sem que entre os pedidos exista a conexão exigida pelo artigo 36.º, o juiz notifica o autor para (…) indicar qual o pedido que pretende ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles”.
É esta a solução que a lei adjectiva preconiza para suprir a coligação ilegal por falta de conexão entre os pedidos.
Não sendo operada tal solução (porque o juiz omitiu tal notificação) ou, sendo-o, o autor quedar inerte (não esclarecendo qual o pedido ou pedidos que pretende seja apreciado), a consequência será a absolvição da instância com fundamento em excepção dilatória nominada expressamente prevista no art.º 577.º al f) – “coligação de autores ou réus, quando entre os pedidos não exista a conexão exigida no artigo 36.º”.
É manifesto que o caso sub judice não se enquadra em qualquer destas hipóteses, porque o que obsta à coligação é a falta de competência material do Tribunal Cível para todos os pedidos, visto que só tem competência para parte deles.
«Assim sendo, a inadmissibilidade de coligação decorrente da incompetência do tribunal em razão da matéria para alguns dos pedidos cumulados poderá configurar:
- ou uma excepção dilatória, determinativa da absolvição da instância quanto a todos eles (por incompetência em razão da matéria quanto a alguns deles), pois o processo tal como foi apresentado (pluralidade de partes, cumulação de causas de pedir e de pedidos) não pode prosseguir;
- ou uma mera ineficácia do(s) pedidos(s) relativamente aos quais o tribunal é incompetente.
De comum a qualquer destas soluções possíveis é que a coligação tal como foi configurada pelo Autor não pode prosseguir.
Resta indagar qual das apontadas soluções deve ser adoptada.
Começaremos por referir, desde já, que a primeira não se apresenta conforme com os princípios que presidem à admissibilidade e suprimento da coligação.
Na verdade, uma coligação é, fundamentalmente, uma acumulação num único processo de acções que, apesar de conexas entre si, poderiam ser propostas separadamente perante o mesmo juiz, desde que qualquer das causas conexas não caiba na competência material de um outro juiz, diferente.
Funda-se numa razão de conveniência e de economia processual decorrente do princípio normativo básico de que podem, em regra propor-se unidas todas as causas que, se propostas em separado, são passíveis de se unirem (v.g., por via da apensação de processos).
A limitação decorrente da imperatividade da competência jurisdicional em razão da matéria funda-se em razões de interesse e ordem pública que prevalecem sobre as conveniências processuais decorrentes da conexão de causas justificativas da coligação.
Facilmente se compreenderá, por isso, que um dos requisitos da acumulação de acções num único processo seja a competência do tribunal em razão da matéria para todas essas acções.
Para além da economia processual, uma das vantagens associadas à coligação é a prevenção de decisões contraditórias ou divergentes entre as várias acções (se intentadas em separado).
Se bem que o processo (com todas as acções acumuladas) seja instruído e julgado conjuntamente e decidido numa única decisão, é preciso ter em conta que as pretensões conservam a sua distinção e autonomia umas perante as outras. Sendo o processo único e os actos processuais os mesmos, a autonomia das acções (pretensões) implicará, entre outras, que a concorrência tanto dos pressupostos processuais como dos requisitos de fundo de cada acção, há-de examinar-se separadamente e que as acções conservam a sua autonomia para efeitos de actos de disposição processual (confissão, desistência, transacção) (cfr. Andrés de la Oliva Santos – Ignacio Diez-Picazo Gimenez, Derecho Procesal Civil, El proceso de declaracion, p. 170).
Sendo os pressupostos processuais verificados relativamente a cada uma das acções, a cumulação, no mesmo processo, de acções ou pretensões para as quais o tribunal seja materialmente competente com outras para as quais ele não o seja, deve ter como consequência que o processo continuará exclusivamente para julgamento das acções relativamente às quais o tribunal é competente, paralisando apenas e tão só as acções relativamente às quais falece a competência do tribunal.
Era esta a solução preconizada pelo Prof. Alberto dos Reis; segundo este:
“… a circunstância de se cumularem pedidos com infracção dos requisitos relativos a forma do processo e à competência do tribunal dá em resultado ficar sem efeito um ou alguns dos pedidos. Qual ou quais?
Naturalmente aquele ou aqueles a respeito dos quais a forma do processo empregada é imprópria ou o tribunal é incompetente em razão da matéria ou da hierarquia. Se é a incompetência ou o erro de forma que faz cair o pedido, para que o efeito esteja em correlação com a causa tem necessariamente de admitir-se que o pedido posto fora de campo é precisamente aquele a que se não ajusta a forma de processo adoptada ou de que o tribunal não pode conhecer em razão da matéria ou da hierarquia” (Cfr. Comentário ao CPC, vol, III, p. 168).
No mesmo sentido, o Prof. Castro Mendes, confrontado com o problema da ilegalidade da coligação resultante de incompatibilidades processuais (incompetência do tribunal e erro a forma de processo) escreveu:
“Se (a ilegalidade da coligação) resultar de incompatibilidade processual, por violação do art. 31º nº 1[2] (…) o que se verifica é – quanto a um ou aos dois pedidos – um vício de incompetência ou de erro na forma de processo. Assim, aqui a consequência será a absolvição da instância quanto àquele ou aqueles dos pedidos para que o tribunal for incompetente ou a forma de processo inadequada” (cfr. Direito processual Civil, vol. II, p. 274-275).
Igualmente o Prof. Lebre de Freitas:
“A separação das causas tem também lugar quando só quanto a alguns pedidos o tribunal é incompetente ou a forma de processo é inadequada, mantendo-se no tribunal da propositura a apreciação dos restantes” (cfr. Código de Processo Civil, vol. 1.º, 1999, p. 67[3]).
Esta solução é a que se coaduna com a concepção da coligação como acumulação no mesmo processo de acções que poderiam ser intentadas separadamente; nesta hipótese – propositura separada de acções – o processo que findaria seria aquele em que fora formulado pedido para cuja apreciação o tribunal carecia de competência em razão da matéria; ora, não se descortinam razões para afastar esta regra na hipótese de coligação.»[4]
O princípio normativo que subjaz a esta solução é, aliás, o mesmo que aflora nas hipóteses normativas expressamente previstas nos citados art.ºs 37.º n.º 4 e 38.º, n.º 1.
Podemos assim dizer, como se afirmou no citado acórdão do STJ, fazendo as necessárias actualizações normativas, que os obstáculos à coligação a que alude o art.º 37.º do CPC “são impedimentos à inclusão no processo das causas a que eles se referem; impedem apenas que certas causas sejam cumuladas no mesmo processo, mas não que outras, relativamente às quais, inexistam obstáculos, o sejam; logo, a absolvição da instância deverá atingir, não todo o processo (isto é, todas as acções ou causas cumuladas), mas apenas aquelas relativamente às quais se verificam os referidos obstáculos”.
No caso em apreço, é o próprio autor/recorrente quem, aceitando, embora, a incompetência em razão da matéria do tribunal cível relativamente aos pedidos que formulou sob as alíneas a) a c), pede o prosseguimento dos autos para julgamento dos restantes pedidos, principais e, se for o caso, subsidiários, com vista à declaração de nulidade por simulação e, subsidiariamente, de ineficácia da partilha do único bem comum do dissolvido casal.
E, como decorre do exposto, nada obsta a que, não podendo prosseguir o processo no Tribunal Cível para o julgamento dos três primeiros pedidos, por ser materialmente incompetente, aí continue a respectiva tramitação para o julgamento dos demais pedidos formulados contra ambos os réus, para os quais é inquestionavelmente competente.
Procede, por conseguinte e nos termos sobreditos, a apelação, pelo que não pode subsistir a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir para apreciação dos (restantes) pedidos principais e, na improcedência destes, dos pedidos subsidiários deduzidos, se outro obstáculo não for verificado em sede de saneamento.

Sumariando:
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III. Decisão

Por tudo o exposto, julga-se a apelação procedente, nos termos sobreditos, e, em consequência:
a) Declara-se a incompetência do Tribunal cível, recorrido, em razão da matéria, para o julgamento do pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c) e, consequentemente, absolvem-se os réus da respectiva instância;
b) Revoga-se o despacho impugnado no que respeita aos restantes pedidos [formulados sob as alíneas d) a ii)] por o Tribunal Cível ser materialmente competente para deles conhecer e, consequentemente, ordena-se o prosseguimento para apreciação e julgamento desses mesmos pedidos, sem prejuízo das regras da subsidiariedade e prejudicialidade resultantes do disposto nos art.ºs 554.º, n.º 1 e 608.º, n.º 1, ambos do CPC.
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Sem custas, visto o autor/apelante ter obtido êxito, no essencial, no recurso e os réus não terem dado causa à apelação, não se podendo considerar vencidos, nem dela tiraram proveito (cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, a contrario).
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Porto, 11 de Abril de 2018
Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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[1] Tal como já não contemplava o anterior, que, de resto, continha normas idênticas ao actual.
[2] A que corresponde o n.º 1 do art.º 37.º do CPC actual, com alterações de pormenor, para aqui irrelevantes.
[3] E volume 1.º, 3.ª edição, pág. 88, onde reproduz aquele parágrafo citando Castro Mendes, obra e local acima referidos, em anotação ao art.º 37.º do actual CPC.
[4] Cfr. acórdão do STJ de 8/5/2013, proferido no processo n.º 5737/09.6TVLSB.L1-S1, disponível em www.dgsi.pt, que aqui seguimos e reproduzimos parcialmente, por concordarmos como ele e vista a sua pertinência e similitude com a situação aqui em discussão.