Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10/16.6IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DECLARAÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RP2017051010/16.6IDAVR.P1
Data do Acordão: 05/10/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 717, FLS 356-364)
Área Temática: .
Sumário: I - Conjugando o teor dos números 1 e 7 do artigo 105ºdo RGIT, conclui-se, imediatamente, pela génese dos valores a considerar para efeitos de integração no tipo legal de crime, que os mesmos devem ser considerados no tocante a cada declaração a apresentar à administração tributária, devendo cada uma das prestações efectivamente recebidas e em falta à data da referida apresentação (art. 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do C.I.V.A.) ser superior a € 7.500,--, a fim de configurar crime de abuso de confiança fiscal.
II - O "abuso de confiança fiscal" relativo à falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500,-- é punível como contraordenação (cfr. n.º 1 do art. 114.º do RGIT).

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 10/16.6IDAVR.P1
Data do acórdão: 10 de Maio de 2017

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem:
Comarca de Aveiro
Instância Local de Oliveira do Bairro | Secção de Competência Genérica

Sumário:
1. Conjugando o teor dos números 1 e 7 do artigo 105ºdo RGIT, conclui-se, imediatamente, pela génese dos valores a considerar para efeitos de integração no tipo legal de crime, que os mesmos devem ser considerados no tocante a cada declaração a apresentar à administração tributária, devendo cada uma das prestações efectivamente recebidas e em falta à data da referida apresentação (art. 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do C.I.V.A.) ser superior a € 7.500,--, a fim de configurar crime de abuso de confiança fiscal.
2. O "abuso de confiança fiscal" relativo à falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500,-- é punível como contraordenação (cfr. n.º 1 do art. 114.º do RGIT).

Acordam, em conferência, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o Ministério Público;
I - RELATÓRIO
1. Em 11 de Novembro de 2016 foi proferida nos presentes autos a sentença absolutória dos arguidos B..., Lda. e C..., que foram julgados pela acusação da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigo 7º, nº 1 e nº 3, 12º e 105º, nº 1, nº 4 alínea a) e b) e nº 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias.
2. Tal absolvição deveu-se à posição jurídica plasmada na fundamentação da sentença, segundo a qual "o preenchimento do ilícito criminal em apreço nos autos depende do recebimento do montante devido pela cobrança do imposto ter ocorrido dentro do prazo legalmente fixado para que tal imposto tivesse sido entregue nos cofres do Estado e portanto, se tal recebimento por parte do obrigado à entrega só ocorreu depois do decurso do mencionado prazo, não se poderão considerar verificados os factos objectivos do ilícito criminal em causa (…)".
(…) até à data em que a declaração periódica tinha de ser apresentada (15 de Agosto de 2015), do total de IVA liquidado de €9.707,84, a arguida apenas tinha efectivamente recebido dos seus clientes a quantia de €5.422,96; tendo o remanescente de €3.612,63 sido recebido após o terminus do prazo para entrega da aludida declaração.
3. Inconformado com esse entendimento jurídico e consequente absolvição dos arguidos, o Ministério Público interpôs recurso da decisão final, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:

"Os arguidos B..., Lda.” e C... foram acusados da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 6º, n.º 3 do artigo 7º e n.º 1, n.º 4 e n.º 5 do artigo 105º, todos do RGIT, tendo sido, por sentença de 11 de Novembro de 2016, absolvidos da comissão de tal crime, com fundamento de que o tipo de crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao elemento objectivo, implica que o agente omita, total ou parcialmente – estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal – a prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar, de valor superior a € 7.500, sendo que tal recebimento, relevante para efeitos do preenchimento do tipo, terá que se verificar até ao terminus do prazo para apresentação das declarações a que se refere o artigo 41.º do ClVA.
O fundamento invocado na sentença recorrida carece de suporte legal, porquanto efectivamente se deu como provado que os arguidos até 18 de Dezembro de 2015 receberam a quantia de €9.035,59 (nove mil e trinta e cinco euros e cinquenta e nove cêntimos) a título de IVA, constante da acusação, referente ao período tributário de Abril, Maio e Junho de 2015, tendo declarado IVA a entregar ao Estado no valor de €9.707,84.
A sociedade arguida e o arguido foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, respectivamente em 20 de Janeiro e 08 de Fevereiro de 2016.
Assim, quando – de acordo com os factos dados como provados na sentença recorrida – os arguidos foram notificados naqueles termos, haviam já recebido de IVA quantia superior a €7.500, de que se apropriaram, omitindo a sua entrega nos cofres de Estado.
Termos em que se verifica, de acordo com a factualidade provada, o preenchimento do tipo de ilícito de abuso de confiança fiscal, tendo ocorrido o efectivo recebimento da quantia de €9.035,59 a título de IVA pelos arguidos, não podendo entender-se, na esteira da doutrina plasmada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2015 do STJ que apenas deva ser valorada a quantia a título de IVA efectivamente recebida até ao termo do prazo de entrega da declaração – que se não confunde com o prazo legal de pagamento, nem contende com a efectiva liquidação do montante global facturado que da mesma deve constar, tendo ou não, àquela data, sido recebido.
Somos pois do entendimento que o recurso interposto deve merecer provimento, devendo alterar-se a sentença recorrida, em conformidade, por outra em que sejam condenados os arguidos “B..., Lda.” e C... na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 6º, n.º 3 do artigo 7º e n.º 1, n.º 4 e n.º 5 do artigo 105º, todos do RGIT..

3. Notificados da motivação de recurso, os arguidos não apresentaram resposta.
5. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
6. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, propugnando pela procedência do recurso.
7. Não houve resposta ao parecer.
8. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questão a decidir
O Ministério Público imputa à sentença recorrida um erro em matéria de direito, uma vez que, de acordo com o recorrente, o momento relevante para o recebimento da quantia referente a I.V.A. liquidado de valor superior a € 7.500,-- é, em concreto, a data da notificação efetuada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do R.G.I.T., em vez da data até à qual a declaração periódica tivesse de ser apresentada (tese expressa na fundamentação da sentença).
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Para decidir tais questões controvertidas, importará, primeiramente, concretizar os factos jurídico-processuais relevantes – os factos provados respeitantes à tipicidade da conduta dos arguidos e a fundamentação jurídica da sentença absolutória -.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A - Os factos processuais relevantes:
- Factos provados:
«(…)
A arguida “B..., Lda.” é uma sociedade por quotas que tem por objecto social a indústria de moldes, cunhos, cortantes e serralharia e a indústria agrícola e pecuária, com o NIPC ......... e sede na ..., Lote .., em ..., Oliveira do Bairro, na área desta comarca de Aveiro.
O arguido C... é actualmente e era, no período compreendido entre o dia 1 de Abril de 2015 e o dia 30 de Junho de 2015, gerente da sociedade arguida, nessa qualidade sendo o único responsável pelos negócios desta, praticando todos e quaisquer actos indispensáveis ao regular funcionamento da mesma, designadamente, contratando trabalhadores, procedendo ao pagamento de salários e impostos, contraindo empréstimos bancários, sendo o rosto visível daquela sociedade, nas relações comerciais mantidas com clientes, fornecedores e entidades bancárias.
No período compreendido entre o dia 1 de Abril de 2015 e o dia 30 de Junho de 2015, a sociedade arguida encontrava-se enquadrada, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, no regime normal de tributação com periodicidade trimestral.
No exercício da sua actividade, no período compreendido entre o dia 1 de Abril de 2015 e o dia 30 de Junho de 2015, a sociedade arguida prestou diversos serviços a vários clientes, tendo emitido as respectivas facturas cujo valor a título de I.V.A. (Imposto sobre o Valor Acrescentado) corresponde ao montante total de €18.559,04 (dezoito mil, quinhentos e cinquenta e nove euros e quatro cêntimos).
Ao montante de I.V.A. indicado em 4), a sociedade arguida deduziu o imposto suportado naquelas operações - €8.851,20 - referente ao período do 2º trimestre de 2015, o que originou o Imposto apurado de I.V.A. a entregar nos Cofres do Estado no montante de €9.707,84 (nove mil setecentos e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), pelo que estava obrigada a enviar aos Serviços Centrais da Administração do I.V.A. – até ao dia quinze do segundo mês seguinte ao final desse trimestre - a declaração relativa àquelas operações efectuadas no exercício da sua actividade, bem como a proceder, no mesmo prazo, ao pagamento do montante de imposto exigível.
Do montante global de €9.707,84 (nove mil setecentos e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) de IVA liquidado, até ao 15 de Agosto de 2015, a sociedade arguida apenas recebeu, efectivamente, a quantia de €5.422,96 (cinco mil quatrocentos e vinte e dois euros e noventa e seis cêntimos), tendo após tal data e até 18 de Dezembro de 2015 recebido ainda a quantia de €3.612,63 (três mil seiscentos e doze euros e sessenta e três cêntimos), continuando por receber dos seus clientes o montante de €672,25 (seiscentos e setenta e dois euros e vinte e cinco cêntimos).
Em cumprimento das suas obrigações tributárias, a sociedade “B..., Lda.” remeteu à Administração Fiscal a declaração periódica de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) referente ao 2.º trimestre de 2015 (de 1 de Abril de 2015 a 30 de Junho de 2015), declaração que, no entanto não foi acompanhada do correspondente pagamento respeitante ao montante de IVA liquidado no período em causa, no sobredito valor de €9.707,84 (nove mil setecentos e sete euros e oitenta e quatro cêntimos).
A sociedade arguida não procedeu ao pagamento das quantias referidas em 5 e 6 nos 90 (noventa) dias subsequentes ao termo do prazo mencionado em 5.
Acresce que o arguido C... e a sociedade arguida foram devida e regularmente notificados para procederem ao pagamento, em 30 (trinta) dias, do montante global de €9.707,84 (nove mil setecentos e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) de IVA liquidado, legais acréscimos e coima, não tendo procedido a tal pagamento nesse prazo.
À data de 29 de Março de 2016, do montante global de IVA liquidado referente ao 2.º Trimestre de 2015, a sociedade arguida havia procedido já ao pagamento da quantia parcial de €6.812,06 (seis mil, oitocentos e doze euros e seis cêntimos).
O arguido C..., actuando em representação da sociedade arguida, não entregou nos Cofres do Estado, até ao dia 15 de Agosto de 2015, como estava obrigado, o montante global de IVA liquidado referente ao 2.º Trimestre de 2015, então retendo os valores que efectivamente recebeu até tal data, integrando-os no património da sociedade arguida.
O arguido C... praticou os factos supra descritos sabendo que no âmbito das funções que exercia enquanto gerente e legal representante da sociedade “B..., Lda.” estava obrigado a entregar nos serviços da administração fiscal, no final de cada período tributário, juntamente com as competentes declarações do I.V.A., os correspondentes meios de pagamento respeitantes aos montantes facturados/liquidados nesse período a título de I.V.A., e não obstante, visou e logrou a não entrega à Administração Fiscal das quantias recebidas e declaradas por aquela sociedade a título de I.V.A., com a consequente apropriação das mesmas pela “B..., Lda.”.
Actuou no interesse e por conta da sociedade “B..., Lda.”, com o intuito logrado de, por essa via, não proceder ao pagamento do I.V.A. devido e assim obter para aquela sociedade uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito e provocar a correspondente diminuição das receitas tributárias, num valor correspondente aos montantes liquidados pela “B..., Lda.” a título de I.V.A. e não entregues à Administração Fiscal até ao dia 15 de Agosto de 2015.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(…)

- Fundamentação jurídica:
«A Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho - que entrou em vigor, de acordo com o seu artigo 14.°, no dia 5 de Julho de 2001 - aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante identificado como RGIT) e, entre outros, revogou o R.J.I.F.N.A..
Neste novo diploma, o aplicável no caso dos autos, o tipo de ilícito de cuja prática se encontram acusados os arguidos encontra-se previsto no artigo 105.°, o qual dispunha, antes da alteração operada pela Lei n.° 64-A/2008 (Orçamento de Estado para 2009), em vigor desde 1 de Janeiro de 2009, que:
“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias
Actualmente dispõe o citado normativo que:
«Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
(…)
De salientar ainda que no actual Regime Geral das Infracções Tributárias o legislador deixou de se referir expressamente à necessidade de apropriação da prestação tributária pelo agente, sendo certo que tal elemento deverá considerar-se implícito. Conforme impressivamente se sintetiza no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Março de 2009 (disponível para consulta em www.dgsi.pt):«A «apropriação» é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, pelo que, assim entendida, como omissão de entrega dessas prestações a quem de direito, com sua utilização para outros fins. Não se trata apenas da não entrega das prestações tributárias, mas da sua utilização para outros fins, com consciência de que as mesmas eram pertença do Estado.».
No que concerne à autoria, o crime em causa nos autos só pode ser cometido por quem esteja obrigado pela lei ao cumprimento dos deveres pressupostos pela norma incriminadora ou por quem, nos termos do artigo 6.° do RGIT, actue em nome daqueles que estão obrigados ao cumprimento de tais deveres tributários.
Com efeito, nos termos do artigo 7.° n.° 1 do RGIT, as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei [crimes e contra-ordenações fiscais] quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo. E prevê o n.° 3 que a responsabilidade criminal daquelas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
A responsabilidade destes advém do disposto no artigo 6.° do RGIT, o qual estatui no n.° 1 que quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. No n.° 2 da norma em causa acrescenta-se que o previsto no n.° 1 vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.
Já no que concerne à aplicação do disposto no artigo 105.°, n.°4 do RGIT, dizer desde logo que, conforme jurisprudência já uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, “a exigência prevista na alínea b) do n° 4 do artigo 105,° do RGI7] na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2. °, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.° 4 do art. 105,° do RGIT)” (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n° 6/2008 de 9 de Abril de 2008, publicado no Diário da República n° 94 Série I de 15/05/2008).
Assim, no n.°4 do artigo 105.° prevêem-se duas condições de punibilidade. Por um lado, na alínea a) estatui-se que os factos só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; por outro, na alínea b) - introduzida pela Lei 53-A/2006, de 2006, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2007 - faz-se igualmente depender a punibilidade dos factos de - nos casos em que houve declaração, mas faltando a entrega da prestação tributária devida - o contribuinte, notificado para o efeito, não pagar a prestação devida acrescida dos juros respectivos e valor da coima aplicável no prazo de 30 dias.
Importa ainda salientar que, no caso específico do IVA, o tipo exige que o sujeito passivo tenha recebido a prestação tributária que tem a obrigação legal de liquidar, sendo que a não se entender como necessário ao preenchimento do tipo o prévio recebimento pelo sujeito passivo do imposto que deve entregar à administração fiscal, não se concebe a obrigação de entrega e muito menos a existência de abuso de confiança pois o depositário nada recebeu de que pudesse abusar; tendo sido já proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão n.° 8/2015, publicado no DR n° 106,1, de 2 de Junho de 2015), no sentido de que:
«A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a €7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n° 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.».
Conforme expresso no Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-2015, processo nº 92/09.7IDVIS.C2, relator Vasques Osório disponível em www.dgsi.pt: “São pois elementos objectivos do tipo de crime - Que o agente, estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal, i) prestação tributária deduzida nos termos da lei, ii) prestação deduzida por conta daquela prestação tributária, ou iii) prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar, de valor superior a € 7.550 [limiar de tipicidade foi introduzido pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro] omita, total ou parcialmente, tal entrega”;
No plano subjectivo trata-se de um crime doloso, sendo, contudo, desnecessário dolo específico. A falta negligente de entrega da prestação tributária deduzida pode, contudo, constituir contra-ordenação (cfr. artigo 114.° n.° 2 do R.G.I.T.).
Integram o património fiscal as receitas provenientes do cumprimento das obrigações tributárias.
Ora, a obrigação fiscal cujo pagamento se encontra omisso é o Imposto Sobre o Valor Acrescentado, vulgarmente designado de Í.V.A..
Este imposto importa - para todos os seus sujeitos passivos - a obrigação de entrega de uma declaração de I.V.A. (mensal ou trimestral consoante o volume de negócios) compreendendo o imposto cobrado e recebido dos clientes, bem como o imposto pago a fornecedores a quem esses mesmos sujeitos compraram serviços ou bens.
Apurando a diferença entre o I.V.A. cobrado e o I.V.A. pago pelo sujeito passivo a Administração Fiscal está em condições de aferir dos montantes que o sujeito passivo tem que entregar aos cofres do Estado ou, pelo contrário, a receber deste.
Atenta a sua natureza de imposto periódico, o I.V.A. é devido e torna-se exigível nas transmissões de bens no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente e, nas prestações de serviços, no momento da respectiva prestação; ou seja, com a prática do acto sujeito a imposto a obrigação de imposto nasce, torna-se certa e exigível (cfr. artigos 1,° e 7.° do C.I.V.A.).
O sujeito passivo, quando transmite um bem ou presta um serviço deve liquidar o imposto, pagando-o a parte com a qual negoceia.
Assim, ao liquidar e cobrar tais importâncias o sujeito passivo não adquire um direito próprio, antes funcionando como um intermediário cobrador do imposto e por via disso um fiel depositário de quantias que pertencem ao Estado, impondo o artigo 27.°, n.° 1, do CIVA a entrega do montante do imposto apurado (o «imposto exigível») no momento da apresentação das declarações a que se refere o artigo 41.° do mesmo Código.
Logo, se o sujeito passivo não entregar ao Estado o I.V.A. que recebeu nos termos supra referidos está a apropriar-se de quantias que não lhe pertencem.
Importa ainda salientar que, no caso específico do IVA, o tipo exige que o sujeito passivo tenha recebido a prestação tributária que tem a obrigação legal de liquidar, sendo que a não se entender como necessário ao preenchimento do tipo o prévio recebimento pelo sujeito passivo do imposto que deve entregar à administração fiscal, não se concebe a obrigação de entrega e muito menos a existência de abuso de confiança pois o depositário nada recebeu de que pudesse abusar; tendo sido já proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão n.° 8/2015, publicado no DR n° 106,1, de 2 de Junho de 2015), no sentido de que: «A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7,500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n° 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido».
Assim, não obstante o n.°7 do citado artigo 105.° do RGIT referir que, para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, a verdade é que tal surge no pressuposto de que, dentro dos prazos legalmente previstos, as prestações devidas ao Estado sejam superiores a €7.500,00.
Com efeito, se tendo sido apurado IVA a favor do Estado de valor superior a €7.500,00, mas o sujeito passivo não tiver efectivamente recebido o valor em causa, no momento da apresentação das declarações a que se refere o artigo 41.° do CIVA, não estão verificados os elementos objectivos do tipo de ilícito criminal em causa e foi precisamente isso que sucedeu no caso em apreço(cfr. nesse sentido Ac. da RE de 25-03-2014, processo nº 86/10.0IDSTB.E1, relator Carlos Berguete Coelho disponível em www.dgsi.pt).
(…)
Em face do entendimento exposto nos autos, torna-se imprescindível saber qual o valor da quantia devida a título de IVA, por facturação emitida no 2.º trimestre de 2015, que a sociedade arguida efectivamente recebeu até ao dia 15 de Agosto de 2015.
(…)
Assim, decorre dos factos provados que, até à data em que a declaração periódica tinha de ser apresentada (15 de Agosto de 2015), do total de IVA liquidado de €9.707,84, a arguida apenas tinha efectivamente recebido dos seus clientes a quantia de €5.422,96; tendo o remanescente de €3.612,63 sido recebido após o terminus do prazo para entrega da aludida declaração.
Ora, considerando que o tipo de crime, relativamente ao elemento objectivo, implica que o agente, omita, total ou parcialmente - estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal - prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar, de valor superior a € 7.500,00 e sendo nosso entendimento que tal recebimento, relevante para efeitos do preenchimento do tipo, terá que se verificar até ao terminus do prazo para apresentação das declarações a que se refere o artigo 41.° do CIVA, sendo a quantia recebida até tal momento inferior a €7.500,00 euros, não estão verificados os elementos objectivos do crime em causa dos autos, com consequente absolvição dos arguidos.
Porém, não estando preenchidos os elementos do tipo de crime previsto no artigo 105.° do RGIT, tal não significa que, em causa não esteja um ilícito, mas antes de natureza contra-ordenacional.
(…)
Conforme vimos, o preenchimento do ilícito criminal em apreço nos autos depende de o recebimento do montante devido pela cobrança do imposto ter ocorrido dentro do prazo legalmente fixado para que tal imposto tivesse sido entregue nos cofres do Estado e portanto, se tal recebimento por parte do obrigado à entrega só ocorreu depois do decurso do mencionado prazo, não se poderão considerar verificados os factos objectivos do ilícito criminal em causa nos autos.
Contudo, apurando-se saldo positivo a favor da administração tributária após confrontação do volume global do imposto liquidado e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (cfr. artigos 19.° a 25.° do CIVA), estará em causa a prática de um ilícito contra- ordenacional, nos moldes previstos no citado artigo 114.°, n.°3, 2.ª parte do RGIT (vide, neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28 de Janeiro de 2010; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de Outubro de 2008; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de Janeiro de 2012, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
Ora, conforme resulta do parecer da AT junto a fls.40 e ss, após a remessa da declaração periódica de IVA referente ao 2.º Trimestre de 2015, sem concomitante pagamento do montante de €9.707,84 de IVA liquidado, foi instaurado o correspondente processo de contra-ordenação, sendo que, decorridos 90 dias do termo do prazo legal da entrega da declaração foi instaurado automaticamente, por via informática, o processo de inquérito criminal, tendo o referido processo contra-ordenacional ficado suspenso, nos termos previstos no artigo 74.º, n.º1 do RGIT.
Estatui o citado artigo 74.º, n.º1 do RGIT que:
«1 - Se até à decisão se revelarem indícios de crime tributário, é de imediato instaurado o respectivo processo criminal.
2 - Se os indícios de crime tributário respeitarem ao facto objecto do processo de contra-ordenação, suspende-se o procedimento e o respectivo prazo de prescrição até decisão do processo-crime.».
Em face do exposto e concluindo-se pela não verificação do ilícito criminal, após trânsito em julgado da presente sentença cessa a suspensão do procedimento contra- ordenacional, devendo pois tal procedimento prosseguir.»

B – De jure:

A atual redação da Lei nº 5/2001, de 5 de Junho, resultante das alterações introduzidas pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, é a seguinte:
Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3- (…)
4 – (…)
5 – (…).
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Conjugando o teor dos números 1 e 7 do artigo 105º, acima reproduzido, conclui-se, imediatamente, pela génese dos valores a considerar para efeitos de integração no tipo legal de crime, que os mesmos devem ser considerados no tocante a cada declaração a apresentar à administração tributária, devendo cada uma das prestações efetivamente recebidas e em falta à data da referida apresentação ser superior a € 7.500,--, a fim de configurar crime de abuso de confiança fiscal.
Contribuindo para uma melhor compreensão do regime jurídico, no seu todo, importa recordar ainda, à semelhança do enquadramento realizado na primeira instância, que o abuso de confiança fiscal relativamente à falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500,-- é punível como contraordenação (n.º 1 do art. 114.º do R.G.I.T.).
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Para melhor compreensão do acima exposto, interessa compreender os mecanismos tributários subjacentes ao tipo legal de crime:
O imposto sobre o valor acrescentado (I.V.A.) incide sobre as transmissões de bens e prestação de serviços efetuadas em território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, e sobre as importações de bens – art. 1°, do Código do I.V.A. (CIVA) -. O mesmo visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico desde a produção ao trabalho, sendo a base tributável limitada ao valor acrescentado em cada fase. Assim, para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram o imposto que lhes foi faturado na aquisição de bens e serviços por outros sujeitos passivos – art. 9°, do CIVA –. Os sujeitos passivos deste imposto são, entre outras, as pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente exerçam atividades de produção, comércio e prestação de serviços, ou pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas atividades – art. 2°, 1 CIVA -.
O imposto é devido e torna-se exigível: nas transmissões de bens, no momento em que estes são postos à disposição do adquirente; nas prestações de serviços, no momento da sua realização – art. 7°, 1, CIVA –, não sendo necessário qualquer procedimento da Administração ou do sujeito passivo, sendo o facto tributário instantâneo – neste sentido, entre outros, A. Lobo Xavier, Manual de Direito Fiscal, l, a págs. 251 -: tal sucede, porque aquele que transmite o bem ou presta o serviço, denominado sujeito passivo, deve liquidar o imposto à contraparte, e esta deve pagá-lo juntamente com o preço do bem ou do serviço. No prazo legalmente estabelecido (data da entrega da declaração), o sujeito passivo deve então entregar ao Estado o que recebeu a título de imposto. Se o não fizer, está a reter quantias que não lhe pertencem, que lhe foram entregues com destino ao Estado.
Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram, o imposto que lhes foi faturado na aquisição de bens ou serviços por outros sujeitos passivos – art. 9°, CIVA -.
O dever de retenção que recai sobre o substituto, integra a obrigação tributária principal.
Nas situações de substituição, a relação de confiança reside no facto da prestação deduzida ou retida ter sido legalmente confiada à entidade substituta para que ela a devolva posteriormente. A relação de confiança é quebrada quando, usando uma linguagem civilista, há uma inversão do título de posse, e o arguido passa a dispor animo domini da prestação tributária.
A apropriação consiste na “não entrega”, total ou parcial, da prestação tributária.
Se é certo que, inicialmente, o agente (a sociedade arguida) obtém validamente a coisa, na qualidade de depositário tributário, possuindo-a e detendo-a licitamente - a título precário e temporário, - depois vem a alterar o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus, conforme Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2001, a págs. 588.
Porém, conforme já referido, no caso dos autos, até à data em que a declaração periódica tinha de ser apresentada (15 de Agosto de 2015), do total de IVA liquidado de €9.707,84, a arguida apenas tinha efetivamente recebido dos seus clientes a quantia de €5.422,96, tendo o remanescente de €3.612,63 sido recebido após o terminus do prazo para entrega da aludida declaração.
A data relevante, in casu, para o apuramento dos elementos objetivos do tipo legal de crime - bem como da condição objetiva de punibilidade - é 15 de Agosto de 2015, que corresponde ao dia em que à sociedade arguida competia entregar a declaração de I.V.A., bem como o montante que tinha efetivamente recebido a título desse imposto e estava obrigada a entregar, juntamente com aquela declaração. O momento importante para essa determinação só pode ser aferido, em concreto, por referência ao disposto no art. 41.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CIVA, isto é, ter esse recebimento ocorrido até à data em que a declaração periódica respetiva tivesse de ser apresentada, o que equivale a dizer, até ao dia 15 do 2.º mês seguinte ao mês do ano civil a que respeitam as operações.
Como refere Paulo Marques, Infracções Tributárias, Investigação Criminal, vol. I, ed. Ministério das Finanças, Direcção-Geral dos Impostos, 2007, págs. 136/137, O depositário terá que receber previamente uma coisa alheia, para se poder entender que inobservou o dever de restituição ao legítimo proprietário. passando a ser infiel depositário («inversão do título da posse»). Se a não tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega?
Só assim se justifica a tutela penal da falta de entrega do valor respeitante ao I.V.A..
Tendo a sociedade arguida apenas recebido no caso dos autos, a quantia de €5.422,96 até à data em que a declaração periódica tinha de ser apresentada (15 de Agosto de 2015) - do total de IVA liquidado de €9.707,84 –, conclui-se que esse montante é inferior a € 7.500,-- (valor que ntegra a condição objetiva de punibilidade).
Sublinha-se: competia à sociedade arguida entregar, juntamente com a declaração, a importância de €5.422,96 (valor do qual era mera depositária, segundo a doutrina fiscal).
Sendo esse montante inferior a € 7.500,--, a omissão de entrega dos valores efetivamente recebidos do valor global de I.V.A. liquidado - após a dedução dos montantes já pagos pelo mesmo imposto -, não integra crime.
Contrariamente à tese do recorrente, a notificação realizada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT apenas tem relevância no âmbito contraordenacional tributário, como resulta da própria norma: «A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito
Pelo exposto, o recurso improcede, confirmando-se a sentença recorrida.

Das custas:
Sendo o recurso julgado não provido e beneficiando o Ministério Público de isenção de custas (artigo 522º, 1, do Código de Processo Penal), não há lugar à responsabilidade tributária pelo decaimento no recurso.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, em conferência, negar provimento ao recurso do Ministério Público.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 10 de Maio de 2017.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa