Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2148/13.2JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RP201505202148/13.2JAPRT.P1
Data do Acordão: 05/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Estamos perante uma alteração substancial de factos se:
- da acusação consta que o arguido com a arma de fogo “efectuou 6 disparos”, e
- do acórdão condenatório ficou a constar que o arguido com a arma de fogo “ efectuou 8 disparos”, se assume manifesto relevo para a decisão da causa porque exaspera a ilicitude do facto e a intensidade do dolo, permite a indução de outros factos ou acções e, no que à subsunção jurídica se refere permite o eventual preenchimento das circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade e perversidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2148/13.2JAPRT.P1
Vila do Conde

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo comum coletivo nº 2148/13.2JAPRT, da Instância Central de Vila do Conde, 2ª Secção Criminal, Juiz 3, da Comarca do Porto, foram submetidos a julgamento os arguidos B… e C…, com os demais sinais dos autos.
O acórdão, datado de 17 de dezembro de 2014 e depositado no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“1. absolver o arguido C… da prática, em co-autoria com o arguido B…, de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. p. pelos artigos 131°, 132°, n.º 1 e 2, al. h), 22°, 23° e 26°, todos do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo artigo 86º, n.º 1, al. c), com referência ao artigo 3º, n.º 4º, al. a) da Lei n.º 5/2006, de 23.02.
2. condenar o arguido B…, como autor material, e em concurso real:
2.1. de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. p. pelos artigos 131º, 132º, n.º 1 e 22º e 23º, todos do Código Penal, na pessoa do ofendido D…, numa pena de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
2.2. de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. p. pelos artigos 131º, 132º, n.º 1 e 22º e 23º, todos do Código Penal, na pessoa do ofendido E…, numa pena de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão;
2.3. de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo artigo 86º, n.º 1, al. c), com referência ao artigo 3º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na sua actual redacção, numa pena de 2 (dois) anos de prisão.
3. Considerando a globalidade dos factos e a personalidade do arguido B…, o tribunal condena-o na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.
4. Absolver o arguido/demandado civil C… do pedido de reembolso formulado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E, bem como do pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes civis D… e E….
5. Julgar válido e procedente o pedido de reembolso formulado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E, e consequentemente condenar o arguido/demandando B… no pagamento do montante global de 1.659,56 € (mil seiscentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos).
A esta fixada quantia acrescem os juros legais de mora a contar da citação, até efectivo e integral pagamento
6. Julgar válido e parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes civis D… e E…, condenando o arguido/demandado civil B… no pagamento do montante de 1.000,00 € (mil euros), a título de danos não patrimoniais, ao demandante D… e o montante de 10.000,00 € (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais ao demandante E….
(...)
Custas pelo arguido B…, que se fixam em 4 (quatro) UC (artigo 513° do CPP).
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Custas pelo demandado civil B…, que se fixam no mínimo legal.
Valor do pedido de reembolso: 1.659,56 €.
Valor do PIC: 5.000,00 € (vide fls. 1071)
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Remeta ao Registo Criminal.
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Após trânsito em julgado do presente Acórdão, ao abrigo do disposto nos artigos 374°, n.º 3, al. c), 178°, n.º 1 e 186°, todos do CPP, decide-se declarar perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos a fls. 50, 51, 125, 243 e 256, bem como as armas apreendidas a fls. 110.
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Notifique, registe e deposite.
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Inconformado, o arguido B… interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
“1) Porque os factos elencados sob os nºs 7, 8, 15, 16 e 18 estão em oposição à prova efectivamente produzida ou, simplesmente, carecem de qualquer fundamento probatório;
2) Porque deve a redacção de tais factos ser alterada de acordo com o sentido proposto;
3) Porque tal como vem expressamente reconhecido na fundamentação da Decisão em apreço, o Tribunal, por total ausência de credibilidade, desconsiderou os depoimentos prestados em audiência de julgamento do assistente D…, do queixoso E…, da testemunha F…, companheira do queixoso E…, da testemunha G…, conhecido por "G1…", da testemunha H…, irmão dos ofendidos, da testemunha I…, esposa da testemunha H…, da testemunha J… e, bem assim, da testemunha K…:
4) Porque a decisão em apreço alicerçou a sua declara convicção no teor da prova pericial - balística, no recurso à prova indirecta, concretamente em presunções judiciais (15 Artº 349º C.C.) e ainda tanto o depoimento prestado pelo Snr. Inspector L…, como nos croquis elaborados pelo OPC - a Polícia Judiciária -;
5) Porque a prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como, aliás, o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão, pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio in dubio pro reo) antes conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:
6) Porque entendeu o Tribunal - ao contrário do constante da Acusação pública - que o ora Recorrente disparou oito tiros e não seis com base na indemonstrada presunção de que este procedeu a um segundo carregamento da arma que, de facto e confessadamente, empunhou no momento dos factos;
7) Porque do elenco dos factos provados, nem sequer consta que tenha o tribunal dado por provado que o Recorrente tenha procedido a um (novo) carregamento da arma;
8) Porque o Tribunal formou uma convicção que, como resulta do seu texto, não assenta em qualquer facto provado, antes consubstanciando uma mera íntima convicção desprovida do necessário substrato provatório objectivável e sindicável:
9) Porque tal mera suposição - indevidamente promovida a convicção judicial - veio a determinar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com reconhecido relevo para a decisão da causa;
10) Porque conforme ao disposto no art.º 358°, n.º 1 do CPP, ante tal alteração dos factos descritos na acusação, estava o Tribunal estritamente obrigado a oficiosamente comunicar tal alteração aos arguidos e conceder-lhes o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, o que só não requereram pela verificada omissão da obrigatória comunicação;
11) Porque Tal omissão, por violação do direito de defesa gera a nulidade da decisão, conforme ao disposto no art° 379°, n.º 1 - b) do CPP;
12) Porque tal como consta das conclusões de tal relatório, apenas foi possível concluir que a pistola FN/BROWNING VESTPOCKET examinada foi responsável pela deflagração de 6 cápsulas suspeitas -
13) Porque conclui o mesmo relatório que a arma de marca ASTRA CUB foi responsável pela deflagração das três cápsulas suspeitas enviadas referenciadas como 10,11 e 12;
14) Porque cada projéctil só pode ser disparado pela deflagração da única e respectiva cápsula, a verdade é que apenas pode resultar da prova pericial, invocada na decisão, que a arma FN/BROWNING procedeu, no máximo, ao disparo de seis balas (na acepção de a bala ser composta de cápsula e projéctil) e uma vez que 6 é o número máximo de cápsulas que é possível fazer corresponder a tal arma;
15) Porque se evidencia tanto o incontornável erro notório na apreciação da prova, como a contradição insanável da fundamentação e, por isso, também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
16) Porque nenhum elemento demonstra que o tiro que atingiu a mão do D… fosse proveniente da arma usada pelo Recorrente, antes se demonstrando que alguém mais procedeu a disparos com a arma Astra Cub e que, de igual forma pode ter atingido este ofendido;
17) Porque só por omissão de óbvia e pertinente diligência em inquérito, foi impedida a prova dos factos relatados pelo recorrente, ou seja que os disparos de arma de fogo (marca Astra Cub) foram efectivamente da autoria da testemunha H…;
18) Porque na total ausência de prova que o disparo que atingiu o ofendido D… tenha sido efectuado pela arma utilizada pelo Recorrente, impõe-se que seja absolvido da prática do crime pelo qual vem condenado e no que concerne a pessoa do ofendido D…, tal como se registou nas alegações orais da Digmº Snrª Procuradora da República e no que a este ofendido concerne, quando muito se equacionaria o crime de ofensas corporais;
19) Porque os disparos efectuados pelo Recorrente visaram repelir agressão actual e ilícita dos seus interesses juridicamente protegidos;
20) Porque a pena aplicada ao arguido é excessiva, o Recorrente não possui antecedentes criminais e nada permite afirmar que a sua conduta assenta numa personalidade desconforme aos valores das regras de vida em sociedade;
21) Porque a interpretação da norma contida no art.° 127 do CPP, sob pena de violação dos princípios constitucionais não permite que o Julgador forme a sua convicção contra a prova, com a falta de prova positiva dos factos imputados ao arguido;
22) Porque conforme ao disposto no art.° 13 da Constituição da República Portuguesa todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei, ninguém podendo ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão de qualquer argumento, não podia a Decisão em crise, ante a total ausência de credibilidade de todas as testemunhas arroladas pela acusação, ter igualmente descredibilizado a versão e relato efectuado pelos arguidos e, concretamente pelo Recorrente;
23) Porque a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão;
24) Porque a liberdade para a objectividade, não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros;
25) Porque para a formação da convicção do Tribunal, designadamente quando estejam em causa crimes de natureza e gravidade do que estes autos se reportam, é imprescindível a existência de um substrato probatório absolutamente necessário à objectividade em que sempre se deve alicerçar essa mesma convicção, terão de ser repelidas as meras intimas convicções, essas sim, não necessariamente fundadas e eventualmente divergentes daquelas primeiras, mas que de modo algum podem fundamentar qualquer motivação sobre a verificação e cometimento de um qualquer crime;
26) Porque existe total ausência de qualquer elemento probatório que validamente contradite a versão do arguido e muito menos que a demonstre como inverídica ou impossível e antes se verifique que os factos por eles alegados podem ter-se verificado, tem o Julgador de aplicar o princípio in dubio pro reo e decidir em benefício do arguido;
27) Porque não incumbe ao arguido o ónus da prova da sua inocência nem demonstração da prova daquilo que alega, ónus estes que exclusivamente impendem sobre a Acusação;
28) Porque a pena de prisão aplicável no caso do recorrente - apenas concebível em razão do exercício de raciocínio -, não poderá, razoavelmente, exceder o mínimo legal;
29) Porque a, sempre douta, Decisão em crise viola, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos art°s 127°, 358°, nº 1, 379, nº 1-b) e 410° do CPP e 13° e 32° da CRP
30) Porque a decisão em apreço está ferida de inconstitucionalidade nos termos do disposto no art° 13° e 32° da CRP
deve o Recorrente ser absolvido da prática dos crimes pelos quais vem condenado, com excepção do crime de detenção de arma proibida a punir com pena de multa, eventualmente pelo seu máximo legal, pelo que deve o presente recurso, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, ser provido como é de JUSTIÇA.”
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O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 2 de fevereiro de 2015 (cfr. fls. 2180).
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, no sentido da parcial procedência do recurso. Pronunciando-se pela nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal, arguida em sede de recurso; bem como pela deficiente subsunção jurídica dos factos, que entende não poderem integrar o tipo legal de crime de homicídio qualificado.
Cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente reafirmou a motivação apresentada com a interposição do recurso e manifestou a sua concordância com o parecer, quer quanto à existência de alteração não substancial dos factos, seus efeitos e consequências, bem como quanto à integração da conduta do arguido no crime de homicídio qualificado.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
I. Nulidade do acórdão, por alteração não substancial dos factos, com inobservância do preceituado no artigo 358º do Código de Processo Penal;
II. Vícios do acórdão: erro notório na apreciação da prova; contradição insanável da fundamentação; insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
III. Erro de julgamento de determinados pontos da matéria de facto provada, por errada apreciação e valoração da prova; violação do princípio in dubio pro reo;
IV. Atuação em legítima defesa;
V. Quantum da pena.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes do acórdão recorrido:
Factos provados
1. No dia 15 de Outubro de 2013, por volta das 20:00h/20:30h, o arguido B…, deslocou-se ao …, sito na Rua …, em Vila do Conde, utilizando para o efeito o seu veículo automóvel da marca FORD, modelo …, de cor branca, com a matrícula ..-..-QI.
2. Após parar o veículo, o arguido B… e D…, que ali também se encontrava na companhia de G…, também conhecido pela alcunha de "G1…", mantiveram uma altercação por breves momentos.
3. Depois de trocadas algumas palavras entre ambos, o arguido B… levantou uma bengala que transportava consigo na direcção do ofendido D…, tendo G… intervindo, acalmando o arguido.
4. Face ao descrito, de imediato o ofendido D… fugiu do local gritando e dirigiu-se na direcção da casa do seu irmão, E…, sita no referido ….
5. Passados alguns minutos o ofendido D… regressou à referida rua, acompanhado do seu irmão, o ofendido E… e de outros familiares.
6. Quando chegaram à referida rua ali se encontravam os arguidos B… e o seu genro, o arguido C…, este sentado "ao volante" do seu veículo automóvel, da marca Mercedes, modelo …, de cor cinza, com a matrícula ..-..-VI, o qual se encontrava imobilizado.
7. O arguido B…, fazendo uso de uma arma de fogo - pistola de marca "FN/BROWNING", com o número de série ……, de calibre 6.35m -, efectuou pelo menos 8 (oito) disparos na direcção dos ofendidos D… e E….
8. Com os disparos efectuados, o arguido B… atingiu:
- com um tiro, o ofendido E… na zona lombar direita, mais concretamente na face posterior do hemitorax, da região flanco, logo abaixo da 120 arco costal, com um trajecto de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima, de fora para dentro e da direita para a esquerda, atingindo o fígado e fincado o projéctil alojado nos planos mais craniais do lobo esquerdo.
- com um tiro, o ofendido D… na mão direita.
9. Aquando dos disparos efectuados pelo arguido B…, este encontrava-se a uma distância não inferior a 10 metros dos ofendidos D… e E….
10. Na sequência do ferimento sofrido, o ofendido E… deu entrada no Hospital da Póvoa de Varzim às 20h42m do dia 15 de Outubro de 2013, sendo transferido para o Hospital de São João, no Porto, onde foi intervencionado cirurgicamente para extracção do projéctil, sendo posteriormente transferido para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde esteve internado até ao dia 25 de Outubro de 2013.
11. Da descrita actuação advieram ao ofendido E… as lesões descritas a fls. 421 e 422, mais concretamente, no tórax uma cicatriz ovalada, arroxeada, com 0,5cm de maior diâmetro, da face posterior do hemitorax, da região flanco, logo abaixo a 120 arco costal, que refere a porta de entrada de projéctil de arma de fogo, com um trajecto de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima, de fora para dentro e da direita para a esquerda e ainda duas cicatrizes resultantes da cirurgia a que foi sujeito para extracção do projéctil.
Tais lesões determinaram 60 dias para a consolidação, consolidando-se em 14.12.2013, com afectação da capacidade de trabalho geral em 30 dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional de 60 dias.
12. Na sequência do ferimento sofrido, o ofendido D… foi assistido medicamente no Hospital da Póvoa de Varzim, onde deu entrada pelas 20h49m do dia 15 de Outubro de 2015, apresentando um ferimento na mão direita provocado por disparo de arma de fogo, tendo porta de entrada e saída do projéctil que lhe provocou fractura do colo do 3.° metacárpio.
Da descrita actuação advieram ao ofendido D… as lesões descritas a fls. 454 a 456, 820 a 822 e 951 a 953, mais concretamente no membro superior direito edema da mão, com hipersudorese da mesma e tremor fino; demonstrando dor na flexão dos dedos, com defesa (especialmente no 3.°) sem bloqueios mecânicos aparentes; apresenta deformidade rígida e dolorosa no dorso da mão; apresenta cicatriz do tipo quelóide no dorso da mão, com 0,5cm de diâmetro, no 2° espaço interdigital; apresenta na face cubital do punho, cicatriz com discreto quelóide com 0,5 por 0,3cm; demonstra dificuldade na mobilização do punho, dor e trémulo na mão.
Tais lesões determinaram 74 dias de doença com afectação da capacidade de trabalho geral.
13. No dia 17 de Outubro de 2013, os arguidos B… e C…, apresentaram-se voluntariamente às autoridades policiais, ocasião em que foi feita igualmente entrega de duas armas de fogo:
13.1 pistola de marca "FN/BROWNING", com o número de série ……, de calibre 6.35m, dotada de carregador próprio, destacável, com capacidade para seis munições;
13.2. pistola de marca "ASTRA", modelo CUB, número de série ……. e de calibre 6.35mm, dotada de carregador próprio, destacável, com capacidade para seis munições.
14. Os arguidos não possuem licença de uso e porte de arma, nem as armas referidas no ponto 13. dos factos provados se encontram registadas nem manifestadas no nome de qualquer um dos arguidos.
15. O arguido B…, ao disparar na direcção de cada um dos ofendidos D… e E…, representou como possível que os podia atingir em áreas anatómicas, causando-lhes lesões das quais poderia advir a morte daqueles, e actuou conformando-se com tal resultado, o qual só não ocorreu por razões alheias à sua vontade. 16. O arguido B… sabia que as armas de fogo são instrumentos particularmente perigosos e aptos a lograr atingir mortalmente terceiros, nomeadamente os aqui ofendidos.
17. Sabia o arguido B… que não podia deter a arma descrita no ponto 13.1. dos factos provados
18. Agiu o arguido B… de forma livre, deliberada e consciente, ciente da censurabilidade penal das suas condutas.
Mais se provou
19. A altercação referida em 2. foi motivada por uns desentendimentos relacionados com negócios de roupa à data existentes entre um dos filhos do arguido B…, conhecido por "B1…", e um dos irmãos do referido D…, de nome H….
20. A companheira do ofendido E… tem por nome F1….
21. O arguido B… não tem antecedentes criminais.
22. O arguido C… tem os seguintes antecedentes criminais:
22.1. Por sentença proferida no PCS n.º 272/01.3PABLC do 2º Juízo Criminal do TJ de Barcelos, transitada em julgado a 04.02.2003, condenado em pena de 150 dias de multa, pela prática, em 03.05.2001, de um crime de ofensas à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143º, n.º 1 do CP, pena essa declarada extinta por cumprimento.
22.2. Por sentença proferida no PS n.º 1944/03.3PAESP do 2º Juízo Criminal do TJ de Espinho, transitada em julgado a 19.02.2003, condenado em pena única de concurso de 120 dias de multa, pela prática, em 10.11.2003, de um crime de injúrias agravada, p. p. pelo artigo 181º, 182º, 184º e 132º, n.º 2, al. j) e de um crime de ameaça, p. p. pelo artigo 153º, n.º 1, todos do CP, pena essa declarada extinta por cumprimento.
22.3. Por sentença proferida no PCS n.º 610/03.4PAVCD do 1º Juízo Criminal do TJ de Vila do Conde, transitada em julgado a 30.05.2005, condenado em pena única de concurso de 1 ano de pena de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, pela prática, em 06.08.2003, de um crime de injúrias, p. p. pelo artigo 181º, um crime de ameaça, p. p. pelo artigo 153°, n.º 1 e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. p. pelo artigo 191°, todos do CP, pena essa declarada extinta por cumprimento.
22.4. Por sentença proferida no PAbr n.º 158/07.8 PAPVZ do 1° Juízo Criminal do TJ da Póvoa de Varzim, transitada em julgado a 27.11.2007, condenado numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 10 meses, pela prática, em 02.03.2007, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143°, n.º 1 do CP, pena essa declarada extinta a 13.07.2011.
22.5. Por sentença proferida no PCS n.º 30/07.1FAVNG do 1° Juízo Criminal do TJ de Vila do Conde, transitada em julgado a 09.02.2012, condenado numa pena de 320 dias de multa, pela prática, em 01.09.2007, de um crime de usurpação de direitos de autor, p. p. pelo artigo 195°, n.º 1 e 197°, n.º 1 do CDADC, pena essa substituída por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta a 31.07.2013.
Relativamente às condições sócio-económicas dos arguidos
23. O arguido B… é oriundo de uma família de etnia cigana. O seu trajecto educativo e de acompanhamento foi assegurado pelos pais, de acordo com os padrões de conduta que se inscrevem no quadro de valores veiculado por aquele grupo.
24. O arguido B… completou o 4° ano de escolaridade em regime de ensino nocturno, no qual ingressou com a idade de 15/16 anos. 25. Com 20 anos de idade o arguido B…, uniu-se de acordo com os costumes da etnia cigana com a sua companheira de nome M…, com quem veio a ter quatro filhos.
26. Durante mais de 30 anos o arguido e a sua companheira residiram em habitação própria, que adquiriram, sita em …, Póvoa de Varzim.
27. Desde há cerca de 4 anos, o arguido separou-se da sua companheira, ocasião em que passou a residir com uma filha e o genro na habitação destes, sita num bairro de habitação social, em Vila do Conde, pelo qual é paga uma renda mensal de 25,00 €.
28. Antes da aplicação ao arguido B… da medida de coacção de OPH com VE, no âmbito dos presentes autos, o agregado familiar do arguido B…, constituído por si, pela referida filha e genro, tinha como rendimentos mensais o montante de cerca de 300,00 € a título de RIS e os provenientes da venda em feiras realizadas em Vila do Conde, Espinho, Braga e Aver-o-Mar.
29. Actualmente o arguido B… cumpre a medida de coacção de OPH com VE, no âmbito dos presentes autos, na residência da sua ex-companheira, onde igualmente residem uma outra filha e o marido desta, o co-arguido C….
30. O actual agregado familiar onde se insere o arguido B… conta como fonte de rendimento a reforma da ex-companheira do arguido, no montante mensal de cerca de 300,00 €.
31. O arguido C… é oriundo de uma família de etnia cigana. É o quarto filho de uma prol de seis, tendo o seu pai falecido aos 29 anos de idade. Viveu sempre com os pais e irmãos, nas cidades da Guarda, Viseu e Póvoa do Varzim.
32. O arguido C.. completou o 3º ano de escolaridade.
33. Com 18 anos de idade o arguido C… uniu-se de acordo com os costumes da etnia cigana, constituindo, a partir de então, o seu próprio agregado familiar, passando a residir na cidade de Vila do Conde com a sua companheira e o seu filho.
34. O arguido C… esteve, desde 2005, em acompanhamento no ex-CAT de …, no Porto, face ao seu consumo de heroína. Mantém acompanhamento, actualmente com periodicidade mensal no CRI Porto Central, onde mantém consulta regular de psicologia e medicação psico farmacológica.
35. O arguido trabalhou em feiras, acompanhado pela sua companheira, passando posteriormente a dedicar-se à venda ambulante de artigos variados e integrado no agregado familiar do pai da companheira, o co-arguido B….
36. À data dos factos objecto dos autos, o arguido C… vivia com a companheira num apartamento arrendado, integrado no conjunto habitacional do …, em Vila do Conde, beneficiando do RSI no valor mensal de 260,00 €.
37. Após o início dos presentes autos passou o arguido a residir em casa da mãe da sua companheira, em …, deixando de beneficiar do RS!.
38. Continua a dedicar-se à venda ambulante.
39. O arguido C… é considerado um individuo socialmente integrado, mantendo adequadas relações de vizinhança, quer na freguesia de …, onde actualmente reside, como no conjunto Habitacional do …, em Vila do Conde.
Do pedido de Reembolso formulado pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte E.P.E. (anteriormente designado Hospital de Santa Maria) (fls. 986 e ss.)
40. O demandante prestou a E… as seguintes assistências: 40.1. cuidados de saúde em episódio de internamento, do dia 21.10.2013 a 25.10.2013, que importaram no montante de 1.592,29 €.
40.2. cuidados de saúde em episódio de consulta e penso simples no dia 01.11.2013, que importou no montante de 35,70 €.
40.3. realização de MCDT's no dia 1.11.2013, que importou no montante de 31,57€.
Do pedido de indemnização civil deduzido por E… e D… (fls. 1068 e ss.)
41. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido B…, acima descrita, resultaram para os demandantes dores, angústia, ansiedade e medo, tendo o demandante E… temido pela vida.
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Factos não provados
Da acusação pública
i) Na ocasião descrita em 3. dos factos provados, o arguido B… tentou agredir com a bengala do ofendido D… e empunhou uma pistola de pequenas dimensões e de cor preta;
ii) O arguido B… encontrava-se a uma distância não superior a 5 metros dos ofendidos D… e E… quando efectuou os disparos referidos em 7. dos factos provados.
iii) O arguido B…, com a acção descrita em 7. dos factos provados, atingiu o farol traseiro esquerdo da viatura propriedade do arguido C…, com a matrícula ..-..-VI, referido em 6. dos factos provados
iv) As lesões sofridas pelo ofendido E… e descritas em 11. dos factos provados determinaram 69 dias de doença.
v) O arguido C… fez uso da arma de fogo que tinha na sua posse - pistola de marca "ASTRA", modelo CUB, de calibre 6.35mm e número de série ……. -, efectuando pelo menos três disparos na direcção dos ofendidos e de quem se encontrava à distância de 5 m.
vi) Com a descrita acção o arguido C… atingiu o capot da viatura automóvel da marca Fiat, modelo …, de cor cinza, com a matrícula ..-LJ-.., propriedade de N….
vii) Pretendeu o arguido C… atingir mortalmente os ofendidos D… e E….
viii) Bem sabia o arguido C… que as armas de fogo são instrumentos particularmente perigosos e aptos a lograr atingir mortalmente terceiros, nomeadamente os aqui ofendidos D… e E…, só não o tendo logrado por razões alheias à sua vontade.
ix) O arguido C… molestou fisicamente os queixosos D… e E…, infligindo-lhe as lesões por ele sofridas.
x) Agiram os arguidos em conjugação de esforços e direcção de vontades.
xi) Na ocasião descrita em 5. dos factos provados e por pessoa cuja identificação não foi possível apurar que acompanhava os ofendidos D… e E…, foram disparados tiros na direcção do local onde os arguidos B… e C… se encontravam.
xii) Face ao descrito em xi) o arguido B… procedeu conforme o descrito em 7. dos factos provados.
xiii) Após, um irmão dos ofendidos, de nome H…, dirigiu-se na direcção da viatura do arguido C… referida no ponto 6. dos factos provados e apontou a arma de fogo que empunhava à cabeça daquele arguido.
xiv) Perante o descrito em xiii), o arguido B… disparou mais tiros com a arma de fogo referida em 7. dos factos provados.
xv) Após os disparos efectuados pelo arguido B…, e porque o tal H…, na fuga que encetou tivesse caído no chão, aquele arguido abeirou-se do mesmo e retirou-lhe a arma de fogo por aquele usada, ficando na posse da mesma.
xvi) Esta arma (ponto xv) é a referida em 13.2. dos factos provados.
Do pedido de indemnização civil deduzidos pelos demandantes D… e E…
xvii) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido B…, acima descrita, os demandantes ainda hoje não trabalham nem sabem quando voltarão a trabalhar.
*
Motivação do tribunal
CRC de fls. 1227 a 1235 quanto ao arguido C… e de fls. 1236 referente ao arguido B….
Quanto às condições sócio-económicas, revelaram os relatórios sociais juntos aos autos a fls. 1374 e ss. e 1419 e ss.
Relatórios do IML de fls. 421 e ss., 454 e ss., 653 e ss., 820 e ss., 1498 e ss. e 1624 e ss. e 1629 e ss., dos quais foi possível dar como provados os factos acima descritos referentes à natureza, extensão e sequelas das lesões sofridas por D… e E….
Tanto das declarações do assistente D…, como do depoimento do queixoso E… não foi possível com a certeza e segurança bastantes descortinar a dinâmica dos factos objecto dos autos, quer no que se reporta à sucessão dos mesmos, quer no que tange à posição de cada um dos intervenientes (arguidos e queixosos) uns face aos outros, bem como no cenário em causa, isto, claro está, considerando a factualidade descrita na acusação publica deduzida. Na verdade, do confronto de ambos os relatos, não olvidando ainda o relato que em sede de inquérito foi feito pelo assistente D… (a cuja leitura se procedeu em sede de audiência de julgamento), resultam discrepâncias evidentes, insanáveis e cuja justificação não poderá residir no lapso de tempo entretanto decorrido (que não é significativo), nem tão pouco advogar-se que as mesmas se reportam a pormenores de irrelevante importância e, por tal, passíveis de escapar às malhas da memória dos queixosos, considerando a situação que, então, estes vivenciaram.
Com efeito, e com relevo para o que se pretende sustentar, ilustremos com alguns exemplos o que o assistente D… declarou em sede de audiência de julgamento:
- Regressado à rua onde estivera com o seu primo e o arguido B…, agora acompanhado do seu irmão E…, de repente, de trás da carrinha Ford saíram ambos os arguidos e o B… disparou logo um tiro na sua direcção que o atingiu nas costas da mão direita, estando aquele arguido a cerca de cinco metros de si;
- Na ocasião em que foi atingido estaria a cerca de 7 metros da entrada do túnel, a falar com o seu irmão E… junto ao passeio do lado contrário da rua em relação àquele onde tinha estado a conversar com o seu primo.
- Com o tiro desfaleceu, tendo sido amparado pelo irmão e começaram a correr para fugir dali, em direcção ao túnel, com o irmão sempre a ampará-lo.
- Os arguidos vieram sempre atrás, a disparar vários tiros, cujo número não sabe quantificar. Diz isto uma vez que quando saíram os dois arguidos de trás da carrinha Ford viu que o C… também tinha uma arma, a qual não sabe descrever.
- Logo que começaram a fugir, tendo dado dois ou três passos, e estando de costas voltadas para os arguidos, a correr, o seu irmão levou um tiro nas costas, na zona lombar.
Depois do tiro que atingiu o seu irmão ainda ouviu mais tiros.
Por seu turno, afirmou o queixoso E…:
- Acompanhando o seu irmão D…, que seguia a seu lado, foram ao encontro do arguido B…, passaram por baixo do túnel, desceram uns degraus, e chegados à rua onde tudo se terá passado, não viu lá ninguém: nem o seu primo "G1…." nem o arguido B…. Ficaram juntos aos degraus, perto dos caixotes do lixo.
- Viu apenas duas viaturas com a frente estacionada para "cima, em contramão": a carrinha branca do arguido B… e a mercedes do arguido C….
- Nisto, viu o arguido B…, do lado direito da rua, virado para o fim da rua, ficando com o túnel ao lado esquerdo, fora da sua carrinha, do lado do pendura, estando esta mais ou menos estacionada em lugar destinado a estacionamento.
- O arguido C… estava dentro do mercedes, que estava na estrada.
- O seu irmão D…, que ia um pouco mais à frente, um passo mais à sua frente, começou a apontar "está ali, está ali", e levou logo um tiro na mão, disparado pelo arguido B…, e caiu no chão.
- A testemunha e o seu irmão estariam a uma distância de cerca de 12 metros do local de onde o arguido B… disparou.
- A testemunha baixou-se para socorrer o irmão, e dando as costas para o local onde estava o arguido B…, levou também um tiro nas costas.
- Apanhou o irmão, e porque não sentiu que estivesse muito ferido, ainda conseguiu levar o irmão para o lado da sua casa, passando para baixo do túnel. Nisto chegou o irmão H… e levou-os ao hospital.
- Não sabe se o arguido C… disparou, só viu arguido B… a disparar. Este "começou a disparar e não mais parou"(sic)
- Não sabe precisar se os disparos eram de duas armas ou só de uma e não contou os tiros.
- Nunca viu o C… a sair da sua mercedes.
Em sede de inquérito havia aquele D…, na qualidade de testemunha, entre outras assinaláveis discrepâncias, afirmou:
- quando regressa à rua onde tudo tinha começado, na companhia do seu irmão E…, estava lá a viatura mercedes do arguido C…, estando este no seu interior;
- quando o seu irmão E… se dirige ao arguido B…, este começa a disparar, bem como o arguido C… que saíra da sua viatura e também estava na posse de uma arma.
- foi ele quem ajudou o seu irmão E… a levantar-se, ocasião em que o arguido C… pontapeia o seu irmão E… e os arguidos continuam a disparar;
- é ele quem arrasta o seu irmão E… e se refugia dentro da sua viatura Ford ….
De igual forma a testemunha F…, companheira do queixoso E…, apresentou um depoimento, também ele, destituído de credibilidade, face a contradições com as (também várias, dizemos nós) versões apresentadas por cada um dos queixosos, e sem qualquer razoabilidade, atentas as regras da experiência e as leis da geometria. Vejamos então, a título de exemplo:
- afirmou que ao chegar à entrada do túnel viu, do outro lado do túnel, na direcção deste e do outro lado da rua onde o túnel termina, o arguido B… com uma arma na mão e a disparar. Ora, nenhum dos queixosos colocou, nas versões que apresentou, o arguido B…, em tal posição e, por outro, quando perguntada pelo tribunal porque razão mais ninguém afirmou ter ali visto tal arguido, não soube esclarecer;
- mais adiante no seu depoimento afirmou que quando viu o arguido B… (o "B2…", como sempre ao mesmo se referiu), este vinha a descer do prédio da filha, que fica em frente ao túnel, com a arma na mão, mas não estava a apontar. Viu o B2… com uma arma na mão, mas não disparou, só depois da testemunha ter voltado para trás para levar os filhos é que ouviu os disparos.
- considerando ainda as medidas constantes do croquis junto aos autos a fls. 390 referentes à profundidade do túnel ali existente, à posição em que as viaturas que na rua se encontravam estacionadas (registadas em tal croquis com base na inspecção feita ao local pela testemunha L…, Inspector da PJ, bem como nas indicações feitas pelos queixosos aquando da diligência de reconstituição dos factos - cfr. depoimento daquela testemunha L…), não se mostra credível o depoimento da testemunha F… quando, a dado passo do seu depoimento, e afirmando que não chegou a entrar no túnel, tendo ficado à entrada do mesmo, disse ter visto a carrinha branca na rua, do lado de lá da rua (em relação à saída do túnel) e ainda que da entrada do túnel via os caixotes do lixo do outro lado da rua e a carrinha branca, bem como uma carrinha vermelha, do G1…, à frente da carrinha branca do arguido B…. Com efeito, a ser possível tal campo de visão, por que razão, considerando os depoimentos dos queixosos, tiveram estes necessidade de atravessar todo o túnel a fim de tentar avistar o primo "G1…" ou mesmo o arguido B… para esclarecerem a situação pendente e a altercação em momentos anteriores verificada?
Feita esta primeira resenha da prova testemunhal, passemos à análise crítica da demais recolhida na última sessão de audiência de julgamento, sendo que esta também em nada permitiu ao tribunal fazer a reconstituição "do puzzle" deixado em cima da mesa pelas supra apontadas testemunhas.
A testemunha G…, conhecido por "G1…", afirmou que depois da altercação entre o D… e o arguido B…, na qual se intrometeu, acalmando este, nada mais viu nem ouviu, só dando conta de que algo de mais grave se teria passado quando a sua esposa lhe transmitiu que no Bairro estava a polícia. Acresce que aquando da descrição do episódio que presenciou, em momento algum confirmou o que o ofendido D… declarou e que se encontra descrito na acusação, i. é, que o arguido B… empunhou, desde logo, uma arma de fogo de pequenas dimensões, afirmando que nessa ocasião "não viu ninguém com nenhuma pistola" (sic).
Da mesma forma, a testemunha H…, irmão dos ofendidos afirmou nada ter presenciado quanto aos factos em questão, tendo apenas chegado ao bairro já depois dos seus irmãos se encontrarem baleados, limitando-se a socorrê-los, levando-os ao hospital.
Por seu turno, o depoimento da testemunha I…, esposa da testemunha H…, por encerrar em si contradições com algumas testemunhas inquiridas - cfr. testemunha F… -, bem como com o depoimento por si prestado em sede de inquérito, o qual foi lido em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente quanto ao local em que se encontrava quando tudo começou, bem como na companhia de quem se encontrava, não mereceu qualquer credibilidade por parte do tribunal. Diga-se, contudo, que ainda que lançasse o tribunal mão deste depoimento para com base nele formar a sua convicção para a prova dos factos supra descritos, o certo é que tal depoimento é pobre e destituído de elementos relevantes para o apuramento dos factos, pois que, a este propósito apenas afirmou que "Quando ouviu uns disparos, vindos do outro lado do túnel, foi a correr na direcção deste e quando já estava a meio deste viu os cunhados do outro lado do túnel- o D… e o E… - baleados. Vê também os aqui arguidos, na rua, do lado de baixo, do lado direito. Não foi ao encontro dos cunhados - estes começaram a correr na sua direcção, tendo também começado a correr, para sair do túnel na direcção do café. Tropeçou e magoou-se. Como ouviu tiros pensou que tinha sido atingida por um tiro. Não viu arma nenhuma. Como começou a correr, de costas voltadas para o outro lado do túnel, não viu se os arguidos vinham ou não atrás de si. "E tão só.
Do depoimento da testemunha J…, conhecida por "J1…" apenas resultou que "ao que julga, no dia seguinte ao que aqui se discute, à entrada do túnel, junto ao café, encontrou uma coisa a brilhar - pensava que era ouro -, tendo ido à polícia entregar tais "coisas", as quais se revelaram tratar-se de dois projecteis. Ora, do confronto de tal depoimento com o prestado pela testemunha L…, Inspector da PJ, por este foi dito que na noite dos factos, na inspecção feita ao local, tais projecteis não foram localizados no local onde alegadamente foram encontrados, frisando que a inspecção que foi feita se alargou para além da zona de segurança preservada pela PSP, percorrendo toda a zona envolvente. Não consideramos assim credível que tais projecteis tenham escapado ao olho "aguçado e treinado" dos inspectores das autoridades policiais, ainda que de noite, no cumprimento de uma especifica função de localização de vestígios relacionados com os factos em investigação, mormente projecteis e/ou cápsulas e já não a uma comum cidadã que vai a passar no seu trajecto para casa.
Por último, refira-se que o depoimento da testemunha da defesa K… não se mostra credível, uma vez que o seu relato é, desde logo, diverso das declarações prestadas pelos próprios arguidos. Com efeito, o arguido C… declarou que a testemunha H… abriu a porta do seu carro, do lado do condutor, agarrou-lhe o colarinho e apontou-lhe a arma, sendo que a testemunha afirmou que um individuo se encontrava debruçado para dentro do "Mercedes" do arguido C…, que se encontrava sentado no lugar do condutor, pois que o vidro da porta desse mesmo lado encontrava aberto. Por seu turno, também o arguido B… declarou coisa diversa do que esta testemunha afirmou: esta referiu que o arguido B…, na ocasião que acabámos de sublinhar, se encontrava junto do tal individuo, em pé, sendo que o arguido B…, por sua vez, declarou que se encontrava atrás da sua carrinha, onde se tinha escondido, quando ouviu tiros vindos na sua direcção e só estes cessaram espreitou e então viu o H… junto ao carro do seu genro a apontar uma arma à cabeça deste. Por fim, mais uma discrepância que importa não deixar passar: afirmou esta testemunha que antes do que relatou ter presenciado não ouviu quaisquer tiros, sendo que ambos os arguidos declararam que antes da testemunha H… ter chegado junto do carro do arguido C… e lhe ter apontado uma arma, já havia disparado tiros na direcção dos arguidos. Demasiados desencontros com a própria versão dos arguidos, razão pela qual, também esta testemunha, não mereceu, por parte deste colectivo, qualquer credibilidade.
E a própria versão dos arguidos, porque desacompanhada de sustentação probatória, como acabámos de ver, não mereceu na sua globalidade, igual credibilidade.
Perante tais desconformidades, impõe-se ao tribunal atentar então, e apenas, nos dados objectivos resultantes dos exames de balística juntos aos autos a fls. 368 a 383, aos exames às armas apreendidas (fls. 110 a 112), aos exames às viaturas dos arguidos (fls. 113 a 119, 125) e às viaturas estacionadas no local aquando dos factos (vide fls. 239 a 242), ao levantamento do local esquematizado no croquis de fls. 390 elaborado pelo Inspector da Polícia Judiciária, a testemunha L…, e proceder à sua conjugação e leitura ao abrigo das regras da experiência e da normalidade das coisas.
Dos exames de balística efectuados resulta que da arma FN Browning usada, confessadamente pelo arguido B… na noite em causa nos autos, foram disparados 8 tiros (cfr. cápsulas designadas sob os n.os 3, 4, 5, 6, 7 e 8, e o projéctil retirado do corpo do ofendido E…. Já quanto ao projéctil retirado da viatura da marca mercedes do arguido C…, de tal exame resulta apenas que os mesmos foram "provavelmente" disparados por aquela arma, razão pela qual o tribunal considerou tal factualidade imputado ao arguido B… na acusação pública como não provada.
Deste mesmo exame (vide ponto 7. de fls. 370 e fls. 49 (e 262) e 50) foi possível ao tribunal, sem margem para qualquer dúvida, dar como provado que um dos tiros disparados pela arma FN BROWNING, na noite em causa empunhada e manuseada, confessadamente, pelo arguido B…, atingiu o ofendido E…, colocando em risco a vida deste (vide relatórios do IML), não fosse a pronta e adequada intervenção médico-hospitalar.
Considerando ainda o tribunal a posição dos ofendidos (espelhada na mancha hemática existente na viatura de marca VW, modelo …, encontrando-se este estacionado na posição registada no croquis de fls. 390), os quais se encontravam um junto ao outro (cfr, depoimento dos ofendidos e declarações do arguido B…), a posição do arguido B… (coincidente com a localização dos projécteis n.ºs 3, 4, 5, 6, 7 e 8), a direcção de um dos disparos efectuados por este arguido (não para o ar, como por este declarado, mas na direcção do ofendido E… - como já vimos, um dos disparos atingiu o corpo deste), dúvidas não ficaram no espírito deste tribunal colectivo que o tiro que atingiu a mão direita do ofendido D… foi disparado pela arma empunhada e deflagrada pelo arguido B….
Relativamente à distância que mediava o local onde os ofendidos se encontravam e o local a partir do qual o arguido B… efectuou os disparos, considerou o tribunal as medições constantes do croquis de fls. 390, conjugado com o depoimento a este propósito prestado pelo inspector da PJ, bem como com o depoimento do próprio ofendido E…, tendo aquele apontado uma distância nunca inferior a 10 metros e este uma distância de cerca de 12 metros.
Tomou em conta ainda o tribunal, para prova de que o número de disparos efectuados pelo arguido B… foi em número de (pelo menos) 8 (oito) e não apenas 6 (seis), como se encontra descrito na acusação, o exame de balística realizado e o depoimento da testemunha L…, inspector da PJ que esclareceu que a FN Browning permitindo um total de 6 munições, procedeu o arguido a um (novo) carregamento da arma.
Ponderando o tribunal criticamente a distância a que o arguido B… se encontrava dos ofendidos - a cerca de 10 metros -, que estes não se encontravam munidos de qualquer arma de fogo ou outra apta a lesar bens jurídicos protegidos do arguido B… (ou ainda de terceiro) (cfr, depoimento dos ofendidos coincidentes com as declarações dos arguidos), que o arguido se dirigiu àquele bairro, onde não residia, fazendo-se acompanhar, desde logo, de uma arma de fogo já devidamente carregada, com a qual disparou seis tiros e, esgotados estes, procedeu a novo carregamento da arma disparando então mais dois tiros, que o fez sempre na direcção dos ofendidos, que sabia as concretas características, perigosidade e potencialidades de tal objecto, dúvidas não nos restam que ao disparar tais tiros, como disparou, o arguido representou como possível provocar a morte àqueles ofendidos, conformando-se com tal possibilidade, só não tendo alcançado o resultado morte, no caso do ofendido D…, face à zona anatómica atingida - a mão -, e no caso do ofendido E…, atenta a pronta e rápida intervenção de terceiros que o socorreram e permitiram uma imediata e adequada intervenção médica.
Na verdade não se concede a inexistência de tal representação quando alguém dispara vários e repetidos tiros, volta a carregar a arma e volta a efectuar, pelo menos, mais dois disparos, a uma distância que não se pode deixar de considerar curta, sempre na direcção dos ofendidos, sendo que estes se integravam num grupo composto por várias outras pessoas, encontrando-se todos numa zona residencial, com áreas colectivas de lazer. Com tantos disparos, a tal distância, é muito provável e francamente possível que algum tiro atinja alguém, nomeadamente as pessoas na direcção das quais se direccionam os tiros... Certo é que um disparo com arma de fogo é apta a causar a morte ... Certo é ainda que o arguido tudo isto representou e se conformou com tal resultado, caso contrário não teria insistido na sua conduta criminosa ao efectuar um total de, não um, não dois, mas oito disparos!
E salvo o devido respeito por opinião contrária, não se diga que a circunstância do ofendido D… ter visto apenas a sua mão direita a ser atingida por um dos tiros, afasta aquela representação. Com efeito, os disparos efectuados pelo arguido B… nas concretas e apontadas circunstâncias são idóneos a produzir o resultado típico - a morte -, isto é, são, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, de natureza a fazer esperar que se lhes siga tal resultado, resultado este com o qual o arguido se conformou.
Ademais, considerando que os acontecimentos não são estáticos, a fatia da realidade dada como provada não se petrifica no tempo e no espaço, antes se trata de uma realidade dinâmica, com constantes movimentos dos seus personagens, neste caso tanto do arguido B… como dos ofendidos D… e E…, estes, ao dirigirem-se para a artéria onde se encontrava o arguido, ao tentar localizar este encontravam-se em movimento, e assim se mantiveram quando ouviram os tiros, não sendo, então, alvos estáticos, pelo que o apontar numa direcção permita, nesse dinamismo, atingir não uma zona anatómica especialmente sensível - como foi o caso do ofendido E… - mas qualquer outra, neste caso, a mão direita do ofendido D…. E tal "falha do alvo" que o arguido B… representou não dependeu da vontade do arguido.
E quanto aos disparos, pelo menos no número de três, imputados pela acusação pública ao arguido C…?
Existindo contradição entre as declarações do assistente D… e o depoimento da testemunha E…, declarando aquele primeiro ofendido que viu o arguido C… a disparar na sua direcção a arma de fogo que empunhava, afirmando o ofendido E…, em consonância, aliás, com as versões apresentadas pelos arguidos, que o arguido C… não disparou qualquer arma, encontrando-se dentro da sua viatura mercedes que na rua se encontrava imobilizada, não esquecendo que as testemunhas G… e H… afirmaram nada ter visto ou ouvido ou ainda que nenhuma arma foi vista na mão dos aqui arguidos (cfr. depoimento de I…), dúvidas sérias se criaram na convicção do tribunal sobre a factualidade descrita na acusação imputada ao arguido C….
E pese embora do exame de balística resultar que as cápsulas designadas sob os n.os 10, 11 e 12 "foram disparadas" pela arma Astra Cub, arma esta entregue nas instalações da PJ dois dias depois dos factos em causa nos autos, e porque o arguido B… confessou em julgamento que na noite em causa efectuou disparos com a arma FN Browning, tendo a outra arma analisada sido entregue às autoridades policiais podemos, sem mais, considerar provado que esta arma foi nessa apontada noite utilizada pelo arguido C…?
E a nossa resposta não pode deixar de ser negativa e pela seguinte ordem de razões:
- o queixoso D…, única pessoa que afirmou ter visto o arguido C… a empunhar uma arma de fogo, não soube, por qualquer forma, descrevê-la;
- o arguido C… negou ter utilizado tal arma, bem como qualquer outra, na noite em causa nos autos;
- das fotografias juntas aos autos a fls. 209, 210 e 212 a 215, atenta a direcção de "entrada" do "tiro", e do croquis elaborado pelo Inspector da PJ que procedeu à inspecção ao local logo após os factos, e da posição em que tal arguido se encontraria em relação a tal viatura quando os alegados tiros foram disparados ( considerando para este efeito as declarações e depoimento dos ofendidos), muito difícil se poderá concluir ter sido este arguido a efectuar tal disparo. Com efeito, como poderia o arguido C…, que com base naquela prova testemunhal se encontraria posicionado à frente de tal viatura e a disparar na direcção do túnel, logo para a sua frente, ficando com tal viatura na sua lateral/rectaguarda, ter provocado uma "entrada" de projéctil em tal viatura, no sentido "da frente para trás"?
- e isto sem esquecer ainda que o resultado do exame realizado ao projéctil encontrado em tal viatura apenas resultou como tendo sido "provavelmente" disparados por tal arma.
- por último se dirá que, se do exame de balística realizado resulta que as cápsulas n." 3, 4, 5, 6, 7 e 8 assinaladas no croquis de fls. 390, que constituem o grupo designado por "Grupo II", foram disparadas pelo arguido B… fazendo uso da arma "FN BRÜWNING", como poderemos colocar o arguido C… à frente de tal linha de fogo, no meio da rua, por forma a atribuir-lhe o disparo do tiro a que corresponde a cápsula "n.º 2"? Não nos parece credível que alguém, numa situação de "tiroteio" ali se viesse a posicionar, correndo o risco de ser atingido.
- Ademais, o resultado do exame realizado a tal projéctil "n.º 2"apenas resultou como tendo sido "provavelmente" disparados por tal arma "ASTRA".
Face a tudo o que dito ficou, sérias dúvidas sobre a autoria de tais disparos por parte do arguido C… pairam no ar, razão pela qual, em obediência ao princípio que norteia todo o processo penal- princípio in dubio pro reo -, se impõe dar como não provada a factualidade imputada a este arguido na acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
Considerando tudo o que dito ficou sobre a ausência de prova quanto à autoria dos disparos deflagrados pela arma apreendida "ASTRA" por parte do arguido C…, e considerando os resultados do exame de balística de fls. 368 e ss. do qual resulta que as cápsulas n. o 10, 11 e 12 foram disparadas por tal arma, impunha-se colocar uma questão, atento o alegado pelos arguidos na sua contestação: foi o irmão dos ofendidos, de nome H… quem, na noite em causa, deflagrou os tiros a que tais cápsulas correspondem, como vem alegado na contestação e declararam os arguidos em sede de audiência?
Pese embora aos arguidos não seja imposto qualquer dever de verdade, não estando os mesmos obrigados a prestar quaisquer declarações quanto aos factos objecto dos autos, o certo é que pretendendo os mesmos fazê-lo, o que pelos mesmos for dito pode e deve ser valorado pelo tribunal, contribuindo, ou não, para a formação da sua convicção. E no caso dos autos, ponderando todos os meios de prova produzidos, e porque o único ponto comum que existe entre todas as versões apresentadas (e cada uma das testemunhas inquiridas, como vimos, apresentou a sua, bem como o assistente) é que na noite em causa "se deu um tiroteio no …". Desta feita, as declarações de cada um dos arguidos, por si só, não foram suficientes para o apuramento da sublinhada factualidade alegada na contestação, e por estes apresentada nas declarações apresentadas em sede de audiência de julgamento.
Não obstante resultar do exame de balística que de ambas as armas apreendidas nos autos foram efectuados disparos, que o ofendido E… afirmou que o arguido C… permaneceu dentro da sua viatura mercedes que se encontrava estacionada precisamente junto ao local onde tais cápsulas foram apreendidas, que este arguido nega ter tido na sua posse, nessa noite, qualquer arma e com mesma tenha efectuado qualquer disparo, a existência no local de tais cápsulas só ali se poderia justificar face à existência de disparos por parte de outrem que não os aqui arguidos.
No entanto, não logrou o tribunal convencer-se que foi aquela apontada pessoa quem efectuou tais disparos e ainda que os mesmos tenham sido efectuados nas exactas e concretas circunstâncias de tempo (sequencial) descritas pelos arguidos nas suas declarações.
Também a versão alegada pelos arguidos de que a arma ASTRA que foi entregue na PJ foi aquela que retiraram ao H… (irmão dos ofendidos) quando este se encontrava caído no chão, depois de ter encetado fuga, findos os disparos, porque desacompanhada de qualquer outro meio probatório, não logrou convencer o tribunal. E não se diga que esta versão é a única explicação lógica para justificar o porquê da arma em causa ter sido entregue quando os arguidos ali se dirigiram, pois que atentas as inúmeras contradições, silêncios e faltas de memória que em sede de audiência de julgamento ficaram documentadas, por esclarecer ficou a "cadeia de custódia" de tal arma e as diligências feitas para a sua apreensão e entrega na PJ.
De realçar ainda o resultado vertido nos pontos pontos 9 e 10 do exame de balística de fls. 259, referentes aos projecteis (alegadamente, frisamos) encontrados pela testemunha J…, o qual coloca ainda mais neblina sobre todo este cenário, pois que apenas: "( ... ) permitem admitir que sejam provenientes de uma munição de marca Sellier & Bellot, de origem checa."
Quanto ao pedido de reembolso deduzido, considerou o tribunal os documentos juntos com o PIC deduzido a fls. 968 e ss.
Quanto às alegadas dores, angústias e temor sofridos pelos demandantes civis, teve o tribunal em conta as regras da experiência, a notoriedade de tal factualidade atenta as lesões por aquele sofridas e as extensões e sequelas das mesmas, estas melhor descritas nos relatórios do IML acima apontados.
No entanto, não lograram os demandantes provar qual o montante diário (ainda que médio) por si auferido em resultado do trabalho que habitualmente desempenhavam e que, em virtude e por causa da conduta do aqui demandado, deixaram de auferir, nem tão pouco se na data dos factos desempenhavam qualquer actividade profissional remunerada, ainda que por conta própria. Sendo o ónus da prova dos requisitos de que faz depender a lei a obrigação de constituir alguém na obrigação de indemnizar, nomeadamente o requisito dano, e não tendo feito tal prova, não pode, o tribunal, sem mais, dar como provada tal factualidade. Por outro lado, não resulta evidente qualquer nexo de causalidade quanto à inactividade laboral actual dos demandantes e a conduta do arguido B…, sendo ainda totalmente inexistente a prova quanto a tal factualidade alegada.”
*
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

I. A questão da nulidade do acórdão, por inobservância do preceituado no artigo 358º do Código de Processo Penal.
O arguido/recorrente alega ter sido condenado por factos diversos dos constantes da acusação, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigos 358º do Código de Processo Penal, o que acarreta a nulidade do acórdão, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. b) do mesmo diploma.
Vejamos.
O Ministério Público deduziu acusação, na qual imputa aos arguidos B… e C… a prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 al. h), 22º, 23º e 26º, todos do Código Penal; e, ainda, a cada um dos arguidos, em autoria material e em concurso real, um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86º, nº 1, al. c), com referência ao artigo 3º, nº 4, al. a), da Lei nº 5/2006, de 23.02.
A questão da alteração dos factos põe-se, contudo, apenas quanto aos dois crimes de homicídio, na forma tentada, de que foi acusado o arguido/recorrente B….
É que, a esse propósito, da factualidade descrita na acusação, que define o objeto do processo e limita o objeto do julgamento, consta (para além do mais) que:
“O arguido B…, fazendo uso de uma arma de fogo - pistola de marca "FN/BROWNING", com o número de série ……, de calibre 6.35m -, efetuou 6 (seis) disparos na direção dos ofendidos D… e E….”
Contudo, a este propósito, no acórdão recorrido foi dado como provado (no número 7) que:
“O arguido B…, fazendo uso de uma arma de fogo - pistola de marca "FN/BROWNING", com o número de série ……, de calibre 6.35m -, efetuou pelo menos 8 (oito) disparos na direção dos ofendidos D… e E….”
Em momento algum tendo sido dado conhecimento à defesa deste novo facto – oito disparos em vez de seis -, conforme se depreende das atas da audiência de julgamento.
Embora esta alteração fáctica não interfira com o preenchimento dos elementos dos tipos de crime de homicídio qualificado imputados ao arguido/recorrente, ocorrendo os crimes quer sejam seis ou oito os tiros disparados, o certo é que a alteração assume manifesto relevo para a decisão da causa. Tanto mais que a pistola em causa (como se refere na motivação do acórdão recorrido) permite apenas um total de seis munições, o que implica que, para disparar oito vezes, o arguido tenha necessariamente procedido a um (novo) carregamento da arma, entre o sexto e sétimo disparos. Circunstancialismo que, à partida, logo exaspera a ilicitude do facto, bem como a intensidade do dolo.
Contudo, e para além disso, a prova de que o arguido disparou oito tiros foi também, in casu, elemento essencial para que o Tribunal a quo pudesse induzir outros factos, que também deu como provados, como se alcança dos seguintes excertos da motivação:
“Ponderando o tribunal criticamente a distância a que o arguido B… se encontrava dos ofendidos - a cerca de 10 metros -, que estes não se encontravam munidos de qualquer arma de fogo ou outra apta a lesar bens jurídicos protegidos do arguido B… (ou ainda de terceiro) (cfr, depoimento dos ofendidos coincidentes com as declarações dos arguidos), que o arguido se dirigiu àquele bairro, onde não residia, fazendo-se acompanhar, desde logo, de uma arma de fogo já devidamente carregada, com a qual disparou seis tiros e, esgotados estes, procedeu a novo carregamento da arma disparando então mais dois tiros, que o fez sempre na direcção dos ofendidos, que sabia as concretas características, perigosidade e potencialidades de tal objecto, dúvidas não nos restam que ao disparar tais tiros, como disparou, o arguido representou como possível provocar a morte àqueles ofendidos, conformando-se com tal possibilidade, só não tendo alcançado o resultado morte, no caso do ofendido D…, face à zona anatómica atingida - a mão -, e no caso do ofendido E…, atenta a pronta e rápida intervenção de terceiros que o socorreram e permitiram uma imediata e adequada intervenção médica.
Na verdade não se concede a inexistência de tal representação quando alguém dispara vários e repetidos tiros, volta a carregar a arma e volta a efectuar, pelo menos, mais dois disparos, a uma distância que não se pode deixar de considerar curta, sempre na direcção dos ofendidos, sendo que estes se integravam num grupo composto por várias outras pessoas, encontrando-se todos numa zona residencial, com áreas colectivas de lazer. Com tantos disparos, a tal distância, é muito provável e francamente possível que algum tiro atinja alguém, nomeadamente as pessoas na direcção das quais se direccionam os tiros... ... Certo é que um disparo com arma de fogo é apta a causar a morte ... Certo é ainda que o arguido tudo isto representou e se conformou com tal resultado, caso contrário não teria insistido na sua conduta criminosa ao efectuar um total de, não um, não dois, mas oito disparos!” (Negrito e sublinhado nossos) .
Sendo ainda de notar, que também na parte da subsunção jurídica dos factos, o Tribunal a quo considera que a circunstância de o arguido ter procedido a um novo carregamento da arma, depois de disparar as primeiras seis munições, é uma das circunstâncias reveladora da especial censurabilidade e perversidade do agente (cfr. acórdão recorrido, no penúltimo parágrafo de fls. 1689 e fls. 1690).
É pois evidente que ocorreu uma alteração dos factos constantes da acusação e que essa alteração, ainda que não substancial, tem repercussões relevantes no processo.
Não pode assim o arguido/recorrente ser surpreendido com esses novos factos apenas aquando da leitura da sentença, momento em que deles já não se pode defender.
Impunha-se nesse ponto o exercício do contraditório, a fim de assegurar uma eficaz e integral defesa, que foi vedada ao arguido, pois estava dependente do prévio cumprimento do artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, que o Tribunal a quo omitiu.
Esta omissão determina a nulidade do acórdão, tornando-o inválido, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal. Perante o que se impõe a reabertura da audiência, para suprimento do vício apontado, após o que se seguirão os legais trâmites até à oportuna elaboração de novo acórdão.
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Face à declaração de nulidade do acórdão, fica prejudicado o conhecimento de todas as outras questões suscitadas no recurso.
De todo o modo, para evitar eventuais vícios e deficiências do acórdão que oportunamente vier a ser elaborado, alerta-se desde já que, na hipótese de nele também se considerar provada a factualidade constante do ponto 9 - “Aquando dos disparos efetuados pelo arguido B…, este encontrava-se a uma distância não inferior a 10 metros dos ofendidos D… e E…” -, deverá sanar-se a contradição entre ela existente e a motivação, na parte em que refere “Ponderando o tribunal criticamente a distância a que o arguido B… se encontrava dos ofendidos - a cerca de 10 metros -, (...)”. Posto é que, em casos como o dos autos, e como é sabido, a distância a que foram efetuados os disparos assume crucial relevância.
E, caso se venha novamente a provar, que o arguido disparou oito tiros, tendo procedido a um (novo) carregamento da arma, entre o sexto e sétimo disparos, deverá então averiguar-se a concreta movimentação dos ofendidos durante esse processo de novo municiamento da arma, designadamente das razões porque não lograram fugir para local onde estivessem protegidos dos disparos. (Cfr. artigos 410º, nº 2, al. b) e 426º, nº 1 do Código de Processo Penal)
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, na parte em que foi conhecida a questão por ele suscitada, declarando-se a nulidade do acórdão e devendo, em consequência, ser reaberta a audiência, para suprimento do vício supra apontado, com a oportuna prolação de novo acórdão.
(E, caso se venha novamente a provar, que o arguido disparou oito tiros, tendo procedido a um (novo) carregamento da arma, entre o sexto e sétimo disparos, deverá então averiguar-se a concreta movimentação dos ofendidos durante esse processo de municiamento da arma, designadamente das razões porque não lograram fugir para local onde estivessem protegidos dos disparos.
Assim como, na hipótese de no acórdão que vier a ser elaborado, se considerar também provada a factualidade constante do ponto 9 - “Aquando dos disparos efetuados pelo arguido B…, este encontrava-se a uma distância não inferior a 10 metros dos ofendidos D… e E… (...)”, deverá sanar-se a contradição entre ela existente e a motivação, na parte em que refere “Ponderando o tribunal criticamente a distância a que o arguido B… se encontrava dos ofendidos - a cerca de 10 metros”.
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Porto, 20 de maio de 2015
(Elaborado e revisto pela relatora (artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão