Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
82/13.5T2OBR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
REMUNERAÇÃO
GERENTE
ACORDO VERBAL
DELIBERAÇÃO NULA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP2015051282/13.5T2OBR.P1
Data do Acordão: 05/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A competência material, que é a questão que aqui nos traz, se afere pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos exactos termos, unilateralmente, afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado nos autos, e não pelo teor de quaisquer documentos que as partes juntem aos autos.
II - A prática seguida na sociedade ré, pelos seus gerentes, ao atribuírem a si próprios e sem precedência de deliberação social, uma remuneração de gerência, constitui violação manifesta do disposto no art.º 255.º n.º1 do C.S.Comerciais.
III - Sendo acordada entre os dois únicos sócios, verbalmente, e entre si, sendo de atribuir tal deliberação à sociedade, constitui ela deliberação nula que pode ser impugnada nos termos gerais.
IV - Não se pode ignorar que essa prática vigorou incólume durante cerca de 15 anos, certo é que a mesma, sem dúvidas, criou na autora legítimas expectativas e a confiança de que a ré jamais iria arguir a nulidade da deliberação e consequentemente recusar-lhe pagar a remuneração como sua gerente.
V - A invocação da nulidade da deliberação verbal dos gerentes da ré, na fixação de remuneração de gerência da autora, configura um de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 82/13.5T2OBR.P1
Comarca de Aveiro – Oliveira do Bairro – Instância Local – Secção Competência Genérica – J2
Recorrente – B…, Ld.ª
Recorrida – C…
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – C…, divorciada, residente na Rua …, …, …, Mealhada, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B…, Ld.ª, sociedade comercial por quotas, com sede na …, freguesia …, Oliveira do Bairro, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €9.900,00, respeitantes à remuneração da gerência até 23 de Janeiro de 2013, bem como as que se forem vencendo na pendência da acção, acrescidas de juros legais, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que é sócia da sociedade ré, que se dedica à actividade de restauração e de aluguer de espaços para festas, banquetes e afins, cujo capital social de 5.000,00, se encontra divido em duas quotas de €2.500,00, uma pertencente à autora e a outra a D…, seu ex-marido.
Mais, alega, que em assembleia geral de 29 de Abril de 1996, foram ambos os sócios designados gerentes, sendo que o art.º 4.º do contrato de sociedade prevê a remuneração da gerência ou não, conforme for deliberado em assembleia geral.
Alega, ainda, que na referida assembleia, que designou a gerência datada de 29 de Abril de 1996, os sócios acordaram receber remuneração pela gerência, não obstante tal deliberação não ter sido reduzida a escrito, que foi fixada em €1.000,00 brutos/mês.
Por fim, alega, que desde Novembro de 2010 - data da separação de facto dos sócios gerentes - a autora não mais recebeu remuneração e o que o seu ex-marido, sócio gerente, não permite a sua entrada nas instalações da sociedade ré.
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A ré, pessoal e regularmente citada, veio contestar pedindo a improcedência da acção.
Para tanto alegou que nunca existiu qualquer deliberação social quanto à remuneração dos gerentes da sociedade. Aduziu, também, que nunca existiu remuneração fixa dos gerentes, sendo que os proveitos retirados da actividade da ré se destinavam a pagar os custos de funcionamento da sociedade e os encargos e despesas normais do ex-casal e que a inscrição como sócios remunerados nas finanças se destinou a proceder a descontos para a segurança social e impostos, a fim de beneficiarem de pensão de reforma, o que era do conhecimento da autora.
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Foi proferido despacho saneador e dispensada a elaboração da base instrutória, atenda a simplicidade da matéria de facto controvertida nos autos.
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Por requerimento de fls. 191, veio a ré, na sequência da junção de documentos pela autora, em sede de audiência de julgamento - recibo de vencimento e declaração de vencimento de funcionário -, invocar a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, defendendo que a relação jurídica objecto da acção versava sobre um contrato de trabalho dependente.
Apreciando de tal questão, a 1.ª instância julgou improcedente a excepção invocada e, em consequência, declarou-se o tribunal competente em razão da matéria para conhecer e decidir da presente acção.
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Procedeu-se a julgamento da matéria de facto, após o que foi proferida sentença que “julgou procedente a acção, por provada e, em consequência, condenou a ré B…, Ld.ª, a pagar à autora a quantia de €9.900,00 e, bem assim, a remuneração de gerente, que se venceram na pendência da acção, à razão de €1.000,00 ilíquidos, acrescidas de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento”.
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Inconformada com tal decisão, dela veio a ré recorrer de apelação pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que julgue procedente a invocada excepção da incompetência em razão da matéria, absolvendo-se a ré da instância ou, caso assim não se decida, deverá ser a ré absolvida dos pedidos formulados pela autora.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida tanto no que se refere à decisão sobre a matéria de facto, como no que toca às questões de direito, tanto no que diz respeito à decisão que mereceram os seus pedidos.
2. Conforme se verifica da acta de audiência de discussão e julgamento de 04.03.2014, a autora juntou aos autos um recibo de vencimento referente a Abril de 2013 e uma declaração de rendimentos de funcionários, os quais figuram como docs. 1 e 2.
3. Da análise de tais documentos verificou-se que quanto ao doc.1, trata-se de um “recibo de remunerações”, cuja categoria profissional da autora não mencionada é de Chefe de Mesa, e o doc.2 trata-se de uma “declaração de rendimentos de funcionários”.
4. Com a junção de tais documentos pela autora, a tese que esta defende na P.I. desmoronou-se por completo. A ré, em resposta à junção de tais documentos, preconiza que o presente Tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer o objecto do processo, o que determinaria a absolvição da ré da instância.
5. É que, de facto, com a junção de tais documentos denota-se existir constituída uma relação jus laboral entre autora e ré, facto que também a douta sentença recorrida na parte atinente à “motivação de facto” faz alusão a essa relação laboral.
6. Assim, ao decidir-se na douta sentença pela improcedência da alegada excepção, andou mal o Tribunal recorrido, devendo ser revogada a douta sentença, julgando-se a incompetência em razão de matéria do Tribunal recorrido para decidir a questão objecto do processo, violando o disposto no artigo 64.º do CPC.
7. Consta dos pontos 21, 23, 24, 25, 26 e 27 dos factos provados que a autora após cessar a sua baixa médica procurou regressar às instalações da ré para exercer as suas funções e o gerente D… não permitiu que a mesma acedesse às instalações de estabelecimento da ré, comunicando por carta que pretendia receber a partir de 12.07.2012 o seu vencimento.
8. Ora, se tal tivesse ocorrido (impedimento de aceder ao estabelecimento da ré e exercício de funções), o que não é verdade e, como aliás a douta sentença recorrida o comprova, (em total contradição com a matéria dada como provada em 21 e 25), a ré B…, Ld.ª, nunca poderia ser responsável por tal acto alegadamente praticado por um dos sócios, e, como tal, nunca poderia ter sido condenada como o foi, erradamente.
9. Qualquer acção por tal alegado facto teria de ser intentada contra o sócio da ré e não contra esta.
10. Aliás, se bem analisarmos a matéria dada como provada no facto 27 dos factos provados, verifica-se que o sócio D… nunca impediu a autora de aceder às instalações da ré e tão pouco a impediu de exercer funções. Senão vejamos: “27. O sócio gerente D… não permite o exercício das funções da autora, por entender que devido às desinteligências do ex-casal que culminou com o divórcio, não existindo possibilidade de coexistirem naquele espaço”. E, da “motivação da matéria de facto”, a Meritíssima Juiz vem ainda reforçar mais a ideia e o facto de que a autora não foi impedida de exercer funções pelo sócio da ré D…, bem como não impediu o acesso às instalações do estabelecimento da mesma ré. De facto, refere o seguinte a este propósito: “no que tange à matéria vertida no nº 21 e 25 dos factos provados, o Tribunal sustentou-se no depoimento da testemunha E…, que declarou que a autora, sua mãe, não tinha capacidade para gerir o negócio, na admissão do sócio gerente D…, de que não existiam condições para coexistirem no mesmo local após o divórcio, e o facto de a autora se ter apresentado nas instalações da ré para exercer as suas funções de gerente… Perante este quadro factual, do sócio D… se recusar a exercer funções no mesmo espaço físico da autora, revela a não permissão desta no acesso às instalações da ré por parte da autora e impedimento da execução das suas funções como gerente”.
11. Ora, se o sócio da ré D… se recusou a exercer funções no mesmo espaço físico da autora, não se pode extrair, como erradamente o fez a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, que tenha impedido a autora do que quer que fosse. Consequentemente, os factos 21 e 25 e a 1.ª parte do ponto 27 dos factos provados, foram julgados incorrectamente.
12. Houve, assim, nítido e grave erro de julgamento e da apreciação da prova, com a consequente subsunção ao direito aplicável.
13. E, se qualquer obstáculo se tivesse verificado por parte do sócio da ré D… em relação à autora quanto ao acesso às instalações e exercício de funções, sempre esta disporia de meios legais coercivos para as afastar, o que não se verificou. Pelo exposto, a matéria dada como provada nos pontos 21, 25 e 1.ª parte do 27 dos factos provados, não poderá ser considerada como tal, antes e ao invés, deverá ser eliminada de tais factos. Também nunca foi junto qualquer recibo de vencimento pela autora referente à sua alegada remuneração como gerente, não foi junto pela mesma qualquer documento bancário que provasse que os alegados pagamentos eram efectuados para uma conta-ordenado sua, (como refere a filha dos ex-cônjuges, E…), não se provou que em momento algum a ré lhe tivesse feito qualquer pagamento. Provou-se apenas o alegado pela ré e que consta do facto 26 dos factos provados que “os proveitos que a sociedade ré obtinha destinavam-se a satisfazer os encargos da mesma com o seu funcionamento e respeitante à vida comum do ex-casal”.
14. Assim, também jamais se poderia dar como provada a matéria dos pontos 10 no que respeita a “pagamento de remunerações e atribuições a órgãos sociais”, 14, 15, 16, 17, 18 dos factos provados.
15. Conforme prescreve o pacto social da sociedade ré, a remuneração da gerência teria obrigatoriamente de ser fixada por deliberação social escrita, a qual depende de deliberação dos sócios reunidos em assembleia geral para o efeito - cfr. artigos 246.º, 247.º e 248.º do Código das Sociedades Comerciais.
16. 16.ª- No caso em apreço jamais existiu qualquer deliberação social nesse sentido.
17. E, as deliberações dos sócios só podem ser tomadas por alguma das formas admitidas por lei para cada tipo de sociedade- cfr. artigo 53.º, n.º1 do Código das Sociedades Comerciais. Sendo nulas, todas as deliberações dos sócios, cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios - cfr. artigo 56.º, nº1, al. c) do Código das Sociedades Comerciais. Bem como são nulas as deliberações dos sócios cujo conteúdo seja ofensivo de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios- cfr. artigo 56.º, n.º1, al. d) do Código das Sociedades Comerciais.
18. Deste modo e caso se entendesse que a tese preconizada pela autora na P.I. tivesse alguma correspondência com a realidade, o que não se concede, sempre o alegado acordo do sócio D… com a autora, a que se refere o artigo 19.º da P.I. é nulo, por violação de normas imperativas legais acima mencionadas.
19. Acresce que, como se deixou expresso, nenhuma prova efectiva ficou demonstrada pela autora de que invocado pagamento era feito pela ré, pois, a ser verdade também tais pagamentos seriam reflectidos e reportados na contabilidade, visto estarmos perante uma sociedade comercial com contabilidade organizada, sendo certo que o contabilista da ré refere expressamente não existirem registos contabilísticos de tais pagamentos o que bem se compreende dado o que ficou provado em 26 dos factos provados.
20. Tendo em consideração também que o sócio da ré D… jamais impediu que a autora acedesse ao estabelecimento comercial da ré e aí exercesse funções, (apenas ficou demonstrado que o mesmo sócio da ré apenas se recusou a exercer funções no mesmo espaço físico da autora, o que é substancialmente diferente de lhe barrar o acesso, expulsá-la do estabelecimento ou praticar qualquer acto impeditivo do exercício de funções), jamais podia ser dado como provado “que o não exercício das funções de gerente por parte da autora não lhe é imputável” e que a pretensão da mesma merece acolhimento.
21. Aliás, nenhum facto pode ser assacado à ré, bem como nenhuma imputação lhe poderá ser feita que pudesse determinar a sua errada condenação no pagamento do peticionado pela autora. Na verdade da parte da ré não houve qualquer actuação que a responsabilize seja a que título ou natureza for.
22. Sem prescindir ainda de tudo quanto já foi alegado, estabelece o artigo 16.º do Código das Sociedades Comerciais, o seguinte: “1- Devem exarar-se no contrato de sociedade, com indicação dos respectivos beneficiários, as vantagens concedidas a sócios em conexão com a constituição da sociedade, bem como, o montante global por esta devido a sócios ou a terceiros, a título de indeminização ou de retribuição de serviços prestados. 2- A falta de cumprimento do disposto no número anterior torna esses direitos e acordos ineficazes para com a sociedade.”
23. Como vimos e resulta dos autos, nada se encontra previsto no contrato de sociedade quanto a pagamento de retribuições aos sócios, nem existe deliberação social escrita nesse sentido, sendo a lei que impõe e sanciona a nulidade de deliberações dos sócios cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unanime dos sócios – cfr. artigos 53.º e 56.º, n.º1, al. d) do Código das Sociedades Comerciais.
24. Houve, assim, nítido e grave erro de julgamento, quer na apreciação dos factos, quer na subsunção ao direito aplicável.
25. A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 342.º, n.º1 do CC, 64.º do CPC, 16.º, n.ºs 1 e 2, 53.º, n.º1, 56.º, n.º1, als. c) e d), 246.º, 247.º e 248.º, estes todos do Código das Sociedades Comerciais.
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A autora juntou aos autos as suas contra-alegações pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. A ré é uma sociedade por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial de Oliveira do Bairro com o capitai social de €5.000,00, divido em duas quotas sociais iguais de €2,500,00 cada, pertencentes a D… e a C…, respectivamente.
2. A ré tem por objecto social a actividade de restauração e de aluguer de espaços para banquetes, festas e afins.
3. Os actuais sócios da ré são D… e a autora, que, respectivamente, adquiriram as quotas que eram de F… e G…, sócios fundadores daquela.
4. Prevê-se no artigo 4.º do contrato de sociedade que "A gerência da sociedade, remunerado ou não, conforme for deliberado em assembleia geral, fica a cargo de sócios e não sócios que sejam nomeados em assembleia geral, tendo sido já designados gerentes todos os sócio. Para obrigar a sociedade é necessária a assinatura de um gerente".
5. Por deliberação social de 29 de Abril de 1996, foram designados gerentes, os sócios D… e B….
6. Mantendo-se a designação dos identificados sujeitos como gerentes até à presente data.
7. A autora e o sócio-gerente D… casaram em 15.05.1982, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Baixo Vouga, Oliveira do Bairro - Juízo de Família e Menores, no processo n.º 942/10.5T20BR, transitada em julgado em 21.11.2011.
8. Antes de decretado o divórcio, autora e D… estavam separados de facto desde Novembro de 2010.
9. O padrão de vida que vigorou durante o matrimónio assentou num modelo de ascendência do marido sobre a mulher no que toca ao exercício de actividades empresariais.
10. Quando da designação dos gerentes, por estes foram repartidas as respectivas competências nos seguintes termos, de acordo com as orientações de D…: à gerente C…, aqui autora, caberia a organização e a realização do serviço à mesa no restaurante explorado pela sociedade; a D… caberiam em funções de gerência, designadamente a negociação e a celebração de contratos em nome da sociedade, a movimentação de contas bancárias da sociedade, a elaboração dos relatórios de gestão e contas, o pagamento de remunerações e retribuições a órgãos sociais e a trabalhadores, entre outras.
11. A autora, em nome da sociedade, nunca interveio sozinha em qualquer negociação, nunca reuniu sozinha, no exercício de poderes decisórios, com técnico oficial de contas da sociedade, com representantes da Administração Fiscal ou da Administração Autárquica Municipal ou outros responsáveis públicos ou privados.
12. A autora apenas trabalhava, na concretização da distribuição de competências da gerência, no restaurante, organizando e servindo à mesa, acatando as propostas de D… como sócio quer como gerente, designadamente no respeitante às matérias societárias.
13. Só o sócio D… praticava actos de gerência relacionados com a gestão bancária e financeira da sociedade.
14. As contas da ré são movimentadas exclusivamente por D… não detendo a autora junto das entidades bancárias.
15. Quando da sua designação como gerentes, em 29.04.1996, D… acordou com a autora que ambos receberiam remuneração como gerentes.
16. A remuneração da gerência, em 2010, computava-se em €1.000 brutos/mês.
17. Sobre essa quantia remuneratória mensal, a ré, através do gerente D…, descontava as contribuições destinadas à Segurança Social e que a esta entregava.
18. Que desde a data da separação de facto, ou seja, desde Novembro de 2010, que a ré, deixou de pagar à autora qualquer remuneração como gerente.
19. Por razões de saúde, a autora esteve incapacitada de prestar trabalho e de exercer as suas funções no período de 22.10.2011 a 29.08.2011.
20. A autora teve alta clínica em 30.08.2011.
21. A autora procurou de imediato regressar às instalações da ré por forma a voltar a exercer as suas funções e o gerente D… não permitiu então que a autora acedesse às instalações do estabelecimento da ré.
22. A autora voltou a adoecer e esteve incapacitada para o trabalho no período de 12.12.2011 a 11.07.2012 e teve alta clinica em 12.07.2012.
23. A autora, por carta registada com aviso de recepção datada de 25.07.2012. remeteu ao gerente da R. comunicação com o seguinte teor "Venho informar V.ª Ex.ª, para os devidos e legais efeitos, que cessou a minha incapacidade temporária para o trabalho, com efeitos a partir de 12/07/2012, conforme deliberação da comissão de verificação da Segurança Social que se junta. Pelo exposto deverá essa sociedade retomar o pagamento do meu vencimento integral como gerente a partir da data da alta".
24. A ré não pagou qualquer remuneração à autora de 01.09.2011 até 12.12.2011 e de 12.07.2012 até 30.01.2012. 25. O sócio gerente D… não permite que a autora aceda às instalações da ré nem que exerça as suas funções.
26. Os proveitos que a sociedade ré obtinha destinavam-se a satisfazer os encargos da mesma com o seu funcionamento e respeitantes à vida comum do ex-casal.
27. O sócio gerente D… não permite o exercício de funções da autora, por entender que devido às desinteligências do ex-casal que culminou com o divórcio, não existindo possibilidade de coexistirem naquele espaço.

Factos não provados:
- quer a aquisição das quotas da sociedade, quer a organização da mesma sociedade, sempre foi por ambos decidida. (art.º 14.º da contestação);
- Ambos (os sócios) até a autora ter abandonado de todo a sociedade, eram os rostos visíveis da ré, sem que algum deles tivesse maior ou menor preponderância dos actos da vida societária, excepto durante os períodos em que a autora esteve de baixa médica, em que o sócio da ré, D…, se viu obrigado a praticar todos os actos de gerência sozinho. (art.º 15.º da petição);
- O verdadeiro objectivo que sempre esteve subjacente à sua inscrição como sócios gerentes remunerados e a proceder aos devidos descontos para a segurança social e o pagamento dos impostos devidos, prende-se com a possibilidade de poderem os sócios vir a beneficiar de uma pensão de reforma quando atingirem o limite da vida activa laboral. (art.º 22.º da contestação).

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do N.C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações da apelante são questões a decidir no presente recurso:
1.ª – Da alegada incompetência em razão da matéria.
2.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
3.º - De Direito.
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1.ªquestão – Da alegada incompetência material do Tribunal.
Em sede de audiência de julgamento a autora juntou aos autos dois documentos que constituem um recibo de vencimento referente a Abril de 2013 e uma “Declaração de Rendimentos de Funcionário". Perante tais documentos veio a ré dizer que o Tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto do processo, o que constitui excepção dilatória e determina a absolvição da ré da instância.
A 1.ª instância decidiu sinteticamente e correctamente a questão, dizendo que “(…)No caso vertente, a autora alicerça a sua pretensão na circunstância de ter ser sócia gerente da R. e não ter percebido desde 2010 a retribuição correspondente às funções de gerente- que desde essa data se viu impedida de exercer por causa imputável à R..
Face aos factos vertidos na petição inicial e respectivo pedido, e tendo em conta as normas que distribuem o poder jurisdicional, entendemos que este tribunal é dotado de competência para apreciar a relação controvertida exposta pela A. na sua petição. A R. não alega a existência de qualquer relação jurídica laboral, como fundamento da acção.
A relação jurídica descrita na PI não contende com as normas de direito laboral, situando-se no domínio das leis societárias”.
Todavia, teima a ré em que o tribunal comum é materialmente incompetente para conhecer da presente acção, defendendo que essa competência é dos Tribunais de Trabalho, mas é evidente que não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos.
Como é sabido a competência do tribunal é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que ele se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
Aponta o Prof. Manuel Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 94, a competência em razão da matéria, “deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, sendo que “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois de uma competência “ratione materiae”. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes”../../../acapricho/Ambiente de trabalho/950-10.6TBFAF-A.G1.S1.DOC - _ftn2.
Está pacífico hoje na nossa jurisprudência e doutrina e, como se refere no Ac. do S.T.J. de 13.03.2008, in www.dgsi.pt, que “Para decidir a matéria da excepção, da incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa pretendi e, também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante”, adiantando-se ainda que ”no fundo, o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma de processo), ou seja, é a instância – no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante – que determina a resolução desses pressupostos”.
Ora, “in casu” temos que por via da presente acção a autora peticiona da ré, a condenação desta a pagar-lhe as remunerações de gerência não pagas e que se venceram até à data da p. i., no montante de €9.900,00 bem como as que se forem vencendo na pendência da presente acção, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A autora fundamenta esse seu pedido no facto de ser, face ao respectivo pacto social, gerente da ré e de ter sido reconhecido o direito a uma remuneração como gerente, no montante de €100,00 brutos/mês, todavia, de 1.09.2011 a 11.12.2011 e de 12.07.2012 até 30.01.2012, a ré não paga a remuneração devida à autora, assim como o outro gerente da ré não permite que a autora aceda às respectivas instalações.
E se dúvidas não restam de que a competência material, que é a questão que aqui nos traz, se afere pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos exactos termos, unilateralmente, afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado nos autos, e não pelo teor de quaisquer documentos que as partes juntem aos autos. Ou seja, para a determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo”, in “Comentário ao C.P.Civil”, vol.I, pág.110.
Vendo então o pedido e a causa de pedir apresentados pela autora na sua p. inicial, é manifesto que a mesma não chama, directa ou indirectamente, à colação qualquer relação jurídico-laboral, mas tão só uma relação societária, fundada no facto de ser gerente da ré, e como tal um membro do respectivo órgão directivo e representativo da sociedade. Pelo que, sem necessidade de outros considerandos, improcedem as respectivas conclusões da apelante, confirmando-se a decisão recorrida.
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2.ªquestão – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Vem a ré/apelante, além do mais, impugnar a decisão relativa a vários pontos da fundamentação de facto da sentença recorrida, ou seja, diz a apelante que ocorreu grave erro de julgamento na apreciação da prova produzida nos autos, relativamente aos factos dados como provados nos pontos 21.º, 25.º e 1.ª parte do 27.º, que deviam ter sido dados como não provados.
Na realidade, a 1.ª instância, além do mais, julgou provado que:
- A autora procurou de imediato regressar às instalações da ré por forma a voltar a exercer as suas funções e o gerente D… não permitiu então que a autora acedesse às instalações do estabelecimento da ré.
- O sócio gerente D… não permite que a autora aceda às instalações da ré nem que exerça as suas funções.
- O sócio gerente D… não permite o exercício de funções da autora (…).
E fundamentou a formação da sua convição quanto a essas decisões, escrevendo: “(…) No que tange à matéria vertida no n.º 21 e 25 dos factos provados, o tribunal sustentou-se no depoimento da testemunha E…, que declarou que a A., sua mãe, não tinha capacidade para gerir o negócio, na admissão do sócio gerente D…, de que não existiam condições para coexistirem no mesmo local após o divórcio, e o facto da A. se ter apresentado nas instalações da R. para exercer as suas funções de gerente (o que revela da sua parte a vontade e possibilidade de exercer funções na R. não obstante o divórcio). Perante este quadro factual, do sócio D… se recusar a exercer funções no mesmo espaço físico da A., revela a não permissão deste no acesso às instalações da R. por parte da A. e impedimento de execução as suas funções como gerente.
(…) na matéria vazada nos n.ºs 27 e 28, tomou-se em consideração o depoimento de E… e H… (…)”.
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Vejamos.
Como se sabe, no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil.
Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Decorre também do preâmbulo do DL 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Vendo ainda esse preâmbulo, dele consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Atendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável, cfr. entre outros, Acs. do STJ de 25.09.2006, de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt.
c) – Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Está assim hoje legalmente consagrada o dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Por outro lado, deve ainda a Relação, por força do disposto no n.º2 do art.º 662.º do C.P.Civil, “mesmo oficiosamente”: a), a renovação “da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”; b) a produção de novos meios de prova em segunda instância, “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”; c) a anulação da decisão da matéria de facto, mesmo oficiosamente, sempre que não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) se determine que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
No caso em apreço, vendo o teor das alegações da ré/apelante é manifesto que a mesma não cumpriu, minimamente, aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.
Na realidade a apelante limita-se a alegar que o sócio gerente D… não impediu que a autora acedesse às instalações do estabelecimento da ré e mesmo que tal tivesse ocorrido nunca a ré poderia ser responsável por um acto praticado por um dos sócios, e neste caso qualquer acção teria que ser intentada contra o sócio e não contra a ré. Não indicando em lado algum quais os elementos de prova constantes do processo que conduziriam a uma decisão diversa da que foi dada em 1.ª instância, nem por que razão, e que como tal deverão ser reapreciados.
Logo, não tendo a ré/apelante indicado quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida, sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto, e indicado com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição, não cumpriu os ónus de alegação que sobre si impendiam, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil, o que conduz a que se rejeite o recurso no que tange à impugnação da decisão da matéria de facto.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.
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3.ªquestão – De Direito.
Defende a apelante que ocorreu em 1.ª instância erro de julgamento quanto à condenação da ré no pagamento das remunerações de gerência à autora, por não existir qualquer deliberação social prevendo tal remuneração da gerência ou de sócios, sempre sendo esta nula, mesmo que existisse.
Além do mais, estão provados nos autos os seguintes factos:
“15. Quando da sua designação como gerentes, em 29.04.1996, D… acordou com a autora que ambos receberiam remuneração como gerentes.
16. A remuneração da gerência, em 2010, computava-se em €1.000 brutos/mês.
17. Sobre essa quantia remuneratória mensal, a ré, através do gerente D…, descontava as contribuições destinadas à Segurança Social e que a esta entregava”.
Inferindo-se ainda da factologia assente nos autos que desde Abril 1996 até Novembro de 2010, em execução do referido acordo, a ré, através do gerente D…, sempre pagou à autora a remuneração acordada e procedeu aos descontos para a Segurança Social, sem nunca ter posto em causa a legalidade da deliberação.
Efectivamente preceituam os art.ºs 246.º, 247.º e 248.º do C.S.Comerciais que, numa sociedade comercial por quotas, é por deliberação escrita dos sócios, reunidos em assembleia geral, que se pode fixar a remuneração da gerência.
Sendo que segundo o disposto no n.º 1 do art.º 255.º do C.S.Comerciais “Salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios”.
“In casu”, e estando as partes concordantes com tal facto, inexiste qualquer deliberação social a fixar a remuneração dos gerentes da ré. Pois que apenas se provou que aquando da designação de gerentes da ré, os sócios da mesma, verbalmente, acordaram em pagar uma remuneração aos seus gerentes de €1.000,00, ilíquidos, por mês, ou seja: - “Quando da sua designação como gerentes, em 29.04.1996, D… acordou com a autora que ambos receberiam remuneração como gerentes. A remuneração da gerência, em 2010, computava-se em €1.000 brutos/mês”.
Mais se provou que desde a data da separação de facto da autora e do seu ex-marido D… (o outro gerente da ré), ou seja, desde Novembro de 2010, que a ré, deixou de pagar à autora qualquer remuneração como gerente. E que portanto, a ré só não pagou qualquer remuneração à autora, como sua gerente, de 1.09.2011 até 12.12.2011 e de 12.07.2012 até 30.01.2012, tendo-o feito de Abril de 1996 a Setembro de 2011.
Dúvidas não restam de que a prática seguida na sociedade ré, pelos seus gerentes, ao atribuírem a si próprios e sem precedência de deliberação social, uma remuneração de gerência, ignorando o disposto no artigo 4.º do pacto social da sociedade ré, segundo o qual - “A gerência da sociedade, remunerado ou não, conforme for deliberado em assembleia geral, fica a cargo de sócios e não sócios que sejam nomeados em assembleia geral, tendo sido já designados gerentes todos os sócio. Para obrigar a sociedade é necessária a assinatura de um gerente”, constitui violação manifesta do disposto no art.º 255.º n.º1 do C.S.Comerciais, e sendo acordada entre os dois únicos sócios, verbalmente, e entre si, sendo de atribuir tal deliberação à sociedade, constitui ela deliberação nula que pode ser impugnada nos termos gerais, cfr. Ac. STJ de 31.03.1981, in BMJ, 305/323.
Todavia, e como resulta do mesmo Ac. do STJ “Tendo os dois únicos sócios de uma sociedade, agindo nessa qualidade, acordado verbalmente na atribuição de um quantitativo mensal a um deles, a título de remuneração de gerência, deve entender-se tal deliberação, embora nula, como da própria sociedade. Criando a sociedade, com este procedimento, a convicção no referido sócio de que se não serviria da nulidade para pedir o que justamente lhe estava a pagar, aquela, ao pedi-lo em juízo, abusa do seu direito, excedendo manifesta e intoleravelmente a boa-fé, os bons costumes comerciais e até o fim económico e social desse direito”.
O que transposto para o caso em apreço nos autos, implica que, não obstante a prática seguida pelos dois gerentes da sociedade comercial por quotas, ré, ora apelante, ser manifestamente contra legem, certo é que essa deliberação é atribuída à sociedade, que pode legitimamente vir arguir a sua nulidade por violação do disposto nos preceitos legais supra citados e nos art.ºs 53.º n.º1 e 56.º n.º1 al. d), ambos do C.S.Comerciais.
Contudo, não se pode ignorar que essa prática vigorou incólume durante cerca de 15 anos, certo é que a mesma, sem dúvidas, criou na autora legítimas expectativas e a confiança de que a ré, ora apelante, jamais iria arguir a nulidade da deliberação e consequentemente recusar-lhe pagar a remuneração como sua gerente.
Como se sabe o nosso ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento de outro e não pode deixar de a proteger, porque confiar e poder confiar são condições fundamentais para uma vida pacífica em sociedade e para a cooperação entre os homens. A confiança, como princípio ético, significa que cada um deve manter fidelidade à palavra dada e não frustrar a confiança de outro ou dela abusar, ressaltando assim a importância do valor objectivo contido nas palavras fidelidade e confiança, na elaboração do juízo valorativo do qual resultará a aplicação do regime da boa-fé.
Quem defrauda a confiança produzida por alguém em outra pessoa, especialmente à outra parte num negócio jurídico, viola uma exigência ética do Direito, porque o desaparecimento da confiança, pensada como um modo geral de comportamento, impede a paz jurídica e priva de segurança o tráfico interindividual, cfr. Karl Larenz, in “Derecho Justo – Fundamentos de Etica Juridica”, pág. 91.
Paredes meias com o princípio da confiança aparece-nos o princípio da boa-fé (sendo que a protecção da confiança constitui um dos elementos materiais da boa-fé) e da correlação destes dois princípios normativos – o da confiança e o da boa-fé – aparece-nos o instituto do abuso de direito, previsto no art.º 334.º do C.Civil, segundo o qual “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, mais concretamente numa das suas variantes que é a da proibição de actuações contraditórias (lícitas), denominado venire contra factum proprium.
A proibição do venire contra factum proprium é uma regra de conduta advinda da confiança, que conduz à obrigação de comportar-se em conformidade com a boa-fé objectiva. Ou dito de outro modo, o exercício do direito por alguém “em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”, cfr. Vaz Serra, in RLJ Ano 111.º, pág. 291 (em anotação ao Ac. STJ de 02.03.78).
“A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança.
Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa-fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito” cfr. Ac. STJ de 21.01.2003, in www.dgsi.pt.
Actualmente a nossa Jurisprudência vem maioritariamente reconhecendo a admissibilidade da invocação da figura do abuso de direito, por inobservância da forma legalmente prescrita, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa-fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.
Retornando ao caso dos autos, temos que vindo a ré, em sede de contestação, e reafirmando por via do presente recurso, que “caso se entendesse que a tese preconizada pela autora na p.i. tivesse alguma correspondência com a realidade, sempre o alegado acordo verbal do sócio D… com a autora, a que se refere o artigo 19.º da p.i. (remuneração da autora como gerente pelo montante de €1.000,00, ilíquidos, mensais) é nulo, por violação de normas imperativas legais”, configura, pelas razões acima explanadas, um caso de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que contraria toda a sua actuação anterior, cfr. art.º 334.º do C.Civil.
Pelo que, atentos os factos provados nos autos, e considerando que a invocação da nulidade da deliberação verbal dos gerentes da ré, na fixação de remuneração de gerência da autora, configura um de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, paralisando o exercício desse direito, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, que assim se confirma.
Improcedem as restantes conclusões da apelante.

Sumário: I – A competência material, que é a questão que aqui nos traz, se afere pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos exactos termos, unilateralmente, afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado nos autos, e não pelo teor de quaisquer documentos que as partes juntem aos autos.
II - A prática seguida na sociedade ré, pelos seus gerentes, ao atribuírem a si próprios e sem precedência de deliberação social, uma remuneração de gerência, constitui violação manifesta do disposto no art.º 255.º n.º1 do C.S.Comerciais.
III - Sendo acordada entre os dois únicos sócios, verbalmente, e entre si, sendo de atribuir tal deliberação à sociedade, constitui ela deliberação nula que pode ser impugnada nos termos gerais.
IV - Não se pode ignorar que essa prática vigorou incólume durante cerca de 15 anos, certo é que a mesma, sem dúvidas, criou na autora legítimas expectativas e a confiança de que a ré jamais iria arguir a nulidade da deliberação e consequentemente recusar-lhe pagar a remuneração como sua gerente.
V - A invocação da nulidade da deliberação verbal dos gerentes da ré, na fixação de remuneração de gerência da autora, configura um de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 2015.05.12
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues