Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MÁRCIA PORTELA | ||
| Descritores: | EMBARGOS DE EXECUTADO DÍVIDA FRACIONADA EM PRESTAÇÕES INTERPELAÇÃO DO FIADOR PARA POR TERMO À MORA | ||
| Nº do Documento: | RP201506236559/13.5TBVNG-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 06/23/2015 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Legislação Nacional: | ARTº 782º DO CC | ||
| Sumário: | I - A doutrina tem maioritariamente entendido que, no caso de dívida fraccionada em prestações, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma das prestações, nos termos do artigo 781.º C.C., constitui um benefício que a lei concede ao credor e que deve ser exercido mediante interpelação do devedor. II - Este artigo tem natureza supletiva, podendo ser afastado por vontade das partes. III - Nos termos do artigo 782.º CC, a perda do benefício do prazo com a falta de pagamento de uma das prestações não se estende ao fiador. IV - Só assim não será se as partes tiverem convencionado o afastamento do regime constante do artigo 782.º CC, pois se trata de norma supletiva. V - A cláusula contratual que estabelece que a falta de pagamento importa a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades não é idónea para traduzir a renúncia ao benefício do prazo por parte do fiador. VI - Para a eventualidade de se ter convencionado o afastamento da regra constante do artigo 782.º CC, o fiador teria de ser interpelado para pôr termo à mora, a fim de obviar ao vencimento antecipado das prestações, não podendo tal interpelação ser substituída pela citação, já que esta não seria idónea para obviar às consequências não automáticas da mora do devedor. VII - Não tendo o regime do artigo 782.º CC sido afastado pelas partes (ou tendo-o sido, faltar a interpelação do fiador), o credor terá direito apenas às prestações vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, acrescida de juros, sem prejuízo da cumulação sucessiva de execuções (artigo 711.º CPC). | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 6559/13.5TBVNG-A. P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório B… e C…, residentes em …, .., ….-… …, deduziram os embargos de executado à execução comum que lhes move D…, S.A., alegando em síntese que os fiadores não foram interpelados por qualquer via para assim tomarem conhecimento do incumprimento, nem o mutuário deixou de pagar as prestações em 2009.08.30. E que se os oponentes tivessem sido interpelados para pagar as prestações em dívida podiam tê-lo feito, mas a exequente ao invés disso deixou que o imóvel se desvalorizasse, fruto da idade e da conjuntura do mercado, impossibilitando que os oponentes exercessem o seu direito de sub-rogação. Acresce que os oponentes não renunciaram ao benefício do prazo que o artigo 782.º CC lhes garante. Contestou o exequente, impugnando a matéria de facto articulada pelo embargante. Em audiência prévia foi proferido despacho saneador e fixados os temas da prova. Realizou-se a audiência de discussão, tendo sido proferida decisão que julgou os embargos improcedentes. Inconformados, apelaram os embargantes, apresentando as seguintes conclusões: «1. Os apelantes não podem concordar com uma decisão que os condena a pagar na qualidade de fiadores pelo incumprimento de um contrato de mútuo, para o que não foram interpelados; 2. A decisão do tribunal a quo vertida no ponto 5 é conclusiva e cotejada com a 2.ª parte do n.º 7 e com o n.º 8 merece ser alterado, já que apenas poderia ser dado como provado que o mutuário afiançado teve prestações em atraso em 2005 e que foram regularizadas em 2008; 3. As testemunhas quer da embargada, quer dos embargantes, bem como o novo contrato de reestruturação junto aos autos, confirmam isso mesmo; 4. Do cotejo dos pontos 6; 7 e 8 resulta que em novembro de 2008 o executado principal apenas tinha duas prestações em atraso a de setembro e outubro do ano 2008, já que as demais foram regularizadas, para logo a seguir em 12 se afirmar que a exequente comunicou em 26.11.2007 o incumprimento, a denúncia do contrato e a intenção de proceder à cobrança da divida através da Acão executiva, o que é matéria contraditória e tem de ser reapreciada; 5. Não se aceita que uma interpelação de 2007 tenha a virtualidade de comunicar incumprimento de 2008; 6. Do raciocínio logico e da prova produzida não se pode permitir tal conclusão, desde logo porque com o novo contrato de reestruturação de 2008 ficou tudo regularizado. 7. Tanto assim que a testemunha do banco/apelada Dra E… afirmou que o banco só enviou cartas em 2006/2007, apesar de ser procedimento do banco enviar carta aos fiadores a interpelar. 8. Por sua vez as testemunhas dos apelantes, familiares bem próximos dos fiadores e figuras presentes nas suas vidas, apenas conheciam a interpelação de 2007, afirmando não ter existido outra, pois se os apelantes dela tivessem tido conhecimento teriam tentado regularizar as prestações; 9. O tribunal a quo e a apelada reportam a denuncia do contrato a 26/09/2007, para justificar a existência de interpelação; 10. A assim ser teria de balizar nessa data a resolução, o que implicaria que não continuasse a debitar prestações através da autorização de debito directo, que como sabemos quando há resolução deixa de ter efeitos, já que e como dispõe o art.433.º CC a resolução é equiparada, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. 11. A apelada ao querer servir-se da comunicação de incumprimento ocorrida em 2007 deveria aí ter estancado os efeitos, calculado o valor da divida e proceder à cobrança, ao invés de continuar a debitar prestações, juros e respetivas despesas bancarias do conhecimento geral e bem patenteados nos documentos juntos aos autos, mantendo assim vivo um contrato a que quis por termo. 12. Ou então a entender-se que o contrato se manteve vivo e não foi ai resolvido, então obviamente não pode servir-se desta interpelação de 2007 para comunicar aos embargantes fiadores a denúncia do contrato. 13. Assim, no ponto 12 deveria dizer-se que em 26 novembro de 2007 o exequente comunicou aos embargantes o incumprimento do mutuário, que foi entretanto regularizado com o empréstimo contraído em 14/07/2008, não chegando assim a operar-se a resolução do mesmo; 14. Questão esta que não foi devidamente apreciada pelo tribunal a quo e cuja reapreciação da prova produzida, designadamente o depoimento de F… 14-05-2014 11:53:23, corroborado pelas testemunhas dos apelantes leva necessariamente a decisão diferente sobre a matéria de facto, pois são todos peremptórios em afirmar que os fiadores não foram notificados de mais nada, par além daquela carta de 2007; 15. Impõe-se assim diferente decisão, já que a questão da resolução contratual, abordada pelo tribunal a quo no ponto 12 se revela deficiente, obscura e contraditória com os pontos 7, 8, 9 e 10; 16. Dadas as dificuldades em afastar a necessidade de interpelação, já que a comunicação de 2007, não operou nessa altura a resolução, o douto tribunal a quo teve necessidade de recorrer à cláusula 24.º do documento complementar à escritura que serve de título executivo nos presentes autos, que dá como provada no ponto 13 e que diz o seguinte:” a execução, arresto, penhora ou outra qualquer forma de oneração ou alienação de bem hipotecado, assim como a falta de pagamento nos respectivos vencimentos, importam a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades garantidas e, consequentemente, a imediata exigibilidade desta escritura.” 17. E é com base em tal facto que na motivação alicerça toda a sua decisão, porem tal clausula não tem o condão de afastar a regra do art.782.º do Código Civil, doravante CC. 18. Sendo, que as próprias testemunhas da apelada reconheceram a necessidade de interpelação, tendo a testemunha E…, confirmado que é procedimento do banco, que há instruções nesse sentido. 19. Dispõe o art. 781.º CC: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.” 20. A norma refere-se ao “vencimento” imediato, tendo sido clausulado a “imediata exigibilidade”, o que desde logo impõe diferente apreciação. 21. Tal questão já foi amplamente abordado pela doutrina, designadamente pelo Professor Mário Júlio de Almeida Costa na sua obra Direito das Obrigações, 12.ª edição revista, 2011, Almedina, págs. 1016 e seguintes, que considera que mesmo para aqueles que defendem a tese do vencimento automático de que: “Mostra-se, todavia, mais razoável, também neste caso, a solução de que o credor tenha de interpelar o devedor para exigir antecipadamente as prestações vincendas. É a interpretação da lei que se impõe”. (sublinhado e negrito nossos). 22. De igual forma a jurisprudência, sendo que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 19.06.1995 se pronuncia quanto a essa querela doutrinária enunciada: «Ainda que se admita como exacta a interpretação do art. 781.º do C. Civil de que ‘vencimento imediato’ das prestações posteriores de uma dívida pelo não pagamento de uma delas, significa a ‘exigibilidade imediata’ que não dispensa a interpelação do devedor, o certo é que, como aquela regra não é imperativa, o posterior acordo das partes pode alterar o regime legal decorrente dessa interpretação». (itálico, sublinhado e negrito nossos). 23. Concluído do clausulado em causa não resulta a renúncia por parte dos fiadores ao benefício do prazo, que o artigo 782.º do Código Civil lhes garante (salvo convenção em contrário). 24. As partes nada estipularam sobre o vencimento das obrigações, sempre seria supletivamente aplicável o regime previsto no artigo 781.º do Código Civil; 25. Sendo certo que nem no requerimento executivo, nem em qualquer outro momento do processo é alegada a interpelação dos fiadores, nem é feita qualquer prova, quando os mesmos para alem do direito à informação bancaria, merecem igual proteção a do devedor principal, tendo a legislação consagrado normas neste sentido, veja-se a recente Lei n.º 58/2014, de 25 de agosto; 26. Tal interpelação tornava-se necessária, dando aos fiadores a possibilidade de, para além de pagarem as prestações vencidas, assumirem a posição do devedor principal, pagando as prestações que se fossem vencendo, ao invés de os onerar com a desvalorização da casa e com a multiplicação de prestações, despesas bancarias e respectivos juros. 27. Ao não ser afastado o regime legal previsto no artigo 782.º do Código Civil, não se estende aos fiadores a perda do benefício do prazo, a eles apenas poderão ser exigidas as prestações vencidas, sem qualquer tipo de antecipação por incumprimento do devedor principal, tampouco pouco ser exigida qualquer quantia a título de juros de mora. ASSIM DECIDINDO FARÃO V.EXAS INTEIRA JUSTIÇA!» A apelada pugnou pela manutenção do decidido. 2. Fundamentos de facto A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos: 1. Por escritura notarial celebrada no 5.º Cartório Notarial do Porto em 30 de Setembro de 2002, o executado confessou-se devedor ao exequente da quantia de € 57.361,76, que deste recebeu a título de empréstimo, no regime de crédito jovem bonificado, pelo prazo de 30 anos, obrigando-se o mutuário a liquidá-lo em 360 prestações mensais e sucessivas, de capital e juros. 2. Acordaram as partes que o capital mutuado vencerá juros à taxa de juros contratual nominal e inicial de cinco virgula três por cento, apurada e actualizável a qualquer momento com base na média aritmética das taxas “Euribor” a seis meses, contados desde o primeiro até ao antepenúltimo dia útil do mês civil anterior àquele em que ocorre a atualização, arredondada para um /quarto por cento superior, acrescida do “spread” inicial de um vírgula oito por cento também actualizável pelo Banco. 3. Para garantia e bom cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato foi constituída hipoteca sobre o prédio urbano identificado na referida escritura. 4. Os terceiros outorgantes B… e C… declararam que se constituem fiadores por tudo quando venha a ser devido ao “Banco” em consequência do empréstimo que o mutuário contraiu junto do mesmo “Banco” e aqui titulado, com expressa renúncia ao benefício de excussão prévia, dando já o seu acordo a qualquer modificações de taxa de juro e, bem assim, às alterações de prazo que venham a ser convencionadas entre o “banco” credor e devedor. A fiança ora constituída manter-se-á plenamente em vigor enquanto subsistir qualquer divida de capital, de juros ou de despesas, constituída por qualquer forma imputável ao indicado devedor. 5. Desde meados de 2005 que o embargante deixou de cumprir pontualmente com o pagamento das prestações a que se encontrava obrigado por via da celebração do contrato referido em 1. 6. Em 14 de Julho de 2008 por forma a regularizar as prestações em atraso o banco exequente concedeu ao embargante um novo empréstimo no valor de € 27.515,00. 7. Tal empréstimo permitiu liquidar dois contratos celebrados entre o banco exequente e o embargante - contratos n.ºs ……..13 e ……..62 e ainda amortizar a dívida resultante do incumprimento do contrato que está em questão nos presentes autos. 8. Em Novembro de 2008 encontravam-se já por liquidar duas prestações de Setembro e Outubro de 2008. 9. Até Junho de 2011 foram sendo efectuados débitos automáticos da conta do embargante por forma a liquidar as prestações já vencidas. 10. Deste forma foi possível liquidar todas as prestações em divida até Agosto de 2009. 11. A partir de Junho de 2011 o empréstimo passou para o contencioso externo, pelo que deixou de existir débito directo da conta do executado. 12. Em 26 de Novembro de 2007 o exequente comunicou aos embargantes o incumprimento do mutuário e a denúncia do contrato em apreço e a sua intenção de proceder à cobrança da dívida através da acção executiva. 13. Nos termos da cláusula 24.ª do documento complementar ao documento referido em 1 acordaram as partes “a execução, arresto, penhora ou outra qualquer forma de oneração ou alienação de bem hipotecado, assim como a falta de pagamento nos respectivos vencimentos, importam a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades garantidas e, consequentemente, a imediata exigibilidade desta escritura." 3. Do mérito do recurso O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões: — impugnação da matéria de facto; — saber se os fiadores respondem pela totalidade da dívida por ter sido convencionado o afastamento da norma constante do regime constante do artigo 782.º CC; — saber se ocorreu interpelação dos fiadores através das cartas datadas de 26 de Novembro de 2007, em que se exige o «pagamento da totalidade do contrato». 3.1. Da impugnação da matéria de facto Questionam os apelantes, com base no depoimento de testemunhas que indicam, o teor do ponto 5 da matéria de facto, por confronto com a 2.ª parte do ponto 7 e ponto 8 da matéria de facto provada, donde resulta que apenas se encontravam em falta as prestações de Setembro e Outubro de 2008. Pretendem assim que apenas se dê como provado, no referido ponto 5, que em 2005 o embargante teve prestações em atraso, mas que as mesmas foram regularizadas com um empréstimo efectuado em 2008.07.14. Tal pretensão carece de fundamento, porquanto a pretendida alteração resulta dos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada, não se tornando necessária a audição dos depoimentos indicados: 6. Em 14 de Julho de 2008 por forma a regularizar as prestações em atraso o banco exequente concedeu ao embargante um novo empréstimo no valor de € 27.515,00. 7. Tal empréstimo permitiu liquidar dois contratos celebrados entre o banco exequente e o embargante - contratos n.ºs ……..13 e ……..62 e ainda amortizar a dívida resultante do incumprimento do contrato que está em questão. Impugnam ainda, também com base em depoimentos testemunhais, o teor do ponto 12 da matéria de facto, por conjugação com os pontos 7, 8, 9 e 10, donde resulta que, em Novembro de 2008, o mutuário apenas tinha duas prestações em atraso — a de Setembro e Outubro de 2008 —, já que as demais foram regularizadas. Interrogam-se os apelantes como pode a apelada, logo a seguir, em 12, afirmar que comunicou, em 2007.11.26, o incumprimento, a denúncia do contrato e a intenção de proceder à cobrança da dívida através da acção executiva, como pode uma interpelação de 2007 ter a virtualidade de comunicar o incumprimento ocorrido em 2008. Entendem, assim, que o ponto 12 da matéria de facto provada deveria esclarecer que o incumprimento do mutuário foi regularizado, não chegando a operar-se a resolução do contrato. Na sua óptica, não havendo resolução nem interpelação, não poderiam ser executados. Mais uma vez não se mostra necessária a audição dos depoimentos das testemunhas indicadas. O ponto 12 da matéria de facto provada reporta-se a uma comunicação datada de 2007.11.26, encontrando-se, pois, cronologicamente deslocado. O seu lugar é entre os pontos 5 e 6 da matéria de facto provada. Não se acolhendo a censura dos apelantes ao teor do ponto 12, não se pode deixar de sublinhar que a súmula do conteúdo não corresponde com rigor ao teor da carta em questão. Por essa razão, o ponto 12 da matéria de facto passará a ser o ponto 5A, com a seguinte redacção: — A apelada enviou aos apelantes as comunicações datadas de 26 de Novembro de 2007, de que existe cópias a fls. 42 e 43, do seguinte teor: «Vimos por este meio confirmar que o contrato de Crédito Habitação de que V.Exa é Titular encontra-se já em fase de Contencioso. (…) Deste modo, informamos que o contrato acima referido foi Denunciado tendo paralelamente já sido dadas instruções para se proceder à cobrança da dívida, através do recurso a uma acção judicial, com as consequente execução das garantias associadas ao crédito em crise. De acordo com as cláusulas contratuais, é agora exigida a totalidade do valor do contrato, incluindo este o montante dos valores em atraso e o montante do capital em dívida até ao do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas. (…)» Mantém-se a matéria de facto provada à excepção do ponto 12, nos termos supra expostos. 3.2. Do artigo 782.º CC Os apelantes constituíram-se fiadores dos mutuários num contrato de mútuo celebrado com a apelada. A fiança traduz-se numa garantia pessoal, pois, nos termos do artigo 627.º, n.º 1, CC, o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor. Assim, o credor, para além da garantia que constitui o património do devedor, beneficia ainda do património de um terceiro, que passa a responder pela satisfação do crédito (responsabilidade pessoal pelo cumprimento de obrigação alheia). Dispõe o n.º 2 do artigo 627.º CC que a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o devedor principal, traduzindo-se a acessoriedade na estrita ligação entre a obrigação principal e a obrigação do devedor, por forma a que a obrigação do fiador acompanha as vicissitudes da obrigação principal desde o nascimento até à extinção — quanto à (in)validade veja-se o artigo 631.º CC, e quanto à extinção o artigo 651.º do mesmo diploma. Outra consequência da acessoriedade consiste na possibilidade de o fiador invocar perante o credor os meios de defesa do afiançado (artigo 637.º CC). De acordo com o artigo 634.º CC, a fiança tem o conteúdo das obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora e da culpa do devedor. Os mutuários obrigaram-se a restituir o capital mutuado em 360 prestações mensais, tendo, no entanto, entrado em incumprimento no ano de 2005. Estamos perante uma dívida fraccionada, liquidada em prestações, que convoca o regime do artigo 781.º CC, nos termos do qual, se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas. A doutrina tem maioritariamente entendido que, no caso de dívida fraccionada em prestações, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma das prestações, nos termos do artigo 781.º C.C., constitui um benefício que a lei concede ao credor e que deve ser exercido mediante interpelação do devedor (Antunes Varela, Direito das Obrigações, 6.ª ed., vol. II, pg. 52 e ss., Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., pg. 892 e ss.; Vasco da Gama Lobo Xavier, RDES, ano XXI, n.ºs. 1 a 4, pg. 201, nota 4; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, vol. I, pg. 317, apud Almeida Costa, op. cit.). E mesmo Galvão Teles (Direito das Obrigações, 7.ª ed., pg. 270 e ss.), que entende não ser essa a solução consagrada na lei actual, defende ser disciplina a consagrar de jure condendo. Como reconhece Galvão Teles, é muito mais razoável que o credor fique investido no direito de exigir o cumprimento imediato, a exercer mediante interpelação, do que estabelecer um vencimento ope legis que até pode nem interessar ao credor. Segundo Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. II, 7.ª ed., pg. 53-4: «O credor fica, por conseguinte, com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as prestações restantes, cujo prazo ainda não se tenha vencido. Assim se deve interpretar o texto do artigo 781.º, e não no sentido de que, vencendo-se imediatamente, ex vi legis, as prestações restantes, o devedor comece desde esse momento, ao arrepio da doutrina geral do art. 805.º, n.º 1, a responder pelos danos moratórios». E, acrescenta: «A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando todas as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui». Nas palavras do acórdão do STJ, de 2007.02.06, Alves Velho, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06A4524, É entendimento generalizado que a norma do art. 781º C. Civil, dispondo que “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importará o vencimento de todas”, visa proteger o interesse do credor que, perante a falta de pagamento de uma das fracções da dívida, pode ter razões para a perda de confiança na pessoa do devedor, confiança em que se apoia o plano de pagamento. Por isso, concede-se àquele o benefício de não se manter sujeito aos prazos escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações, perdendo este o benefício desses prazos. Quando tal suceda, o credor goza do direito de exigir o pagamento, não só da prestação em falta, mas ainda de todas as restantes, não vencidas, não se operando o vencimento destas ex vi legis, mas mediante interpelação do credor, nos termos gerais». No mesmo sentido, cfr. acórdãos do STJ, de 2008.10.16, Alves Velho, www.dgsi.pt.jstj, proc. 08A343; de 2007.05.10, João Bernardo, www.dgsi.pt.jstj, proc. 07B841; de 2006.11.14, Bettencourt de Faria, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06B2911; 2006.01.17, Azevedo Ramos, www.dgsi.pt.jstj, proc. 05A3869; da Relação Porto, de 2013.03.21, Pinto dos Santos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 144/09.3TBVLP.P1; de 2010.01.25, Abílio Costa, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 5664/08.4TBVNG.P1; da Relação de Coimbra, de 2013.06.04, Catarina Gonçalves, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 5366/09.4T2AGD-A.C1; de 2009.03.24, Emídio Costa, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 2316/08.9TJCBR.C1; de 2009.04.01, Jaime Ferreira, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 6195/06.2TVLSB.C1, de 2008.10.21, Emídio Costa, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 901/08.8TJCBR.C1. Em síntese, o regime consagrado no artigo 781.º CC não dispensa a interpelação do devedor para desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas Tratando-se de norma de natureza supletiva, como tem entendido a doutrina e jurisprudência, pode ser afastada por vontade das partes (artigo 405.º CC), consagrando-se o imediato vencimento das prestações vincendas com o incumprimento da primeira, independentemente de interpelação (cfr. acórdãos da Relação de Lisboa, de 2014.02.11, Rosa Ribeiro Coelho, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 12878/09.8T2SNT-A.L1, de 2011.12.15, Luís Correia Mendonça, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 271/04.3TVLSB.L1; da Relação de Coimbra, de 2013.06.04, Catarina Gonçalves, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 5366/09.4T2AGD). Analisado o regime estabelecido no artigo 781.º CC, importa sublinhar que ele não se aplica aos fiadores, por força do disposto no artigo 782.º CC. Dispõe este artigo que a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia. Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4.ª edição, pg. 652, «O artigo 782.º, quanto às obrigações a prazo, estabelece um princípio que é extensivo aos co-obrigados do devedor e a terceiros que tenham constituído qualquer garantia a favor do crédito. Não lhes pode ser imposta a perda do benefício do prazo (cfr. arts. 780.º e 781.º), o que traduz um desvio da regra do artigo 634.º» E em anotação ao artigo 782.º CC, op. cit., vol. II, 4.ª ed., pg. 33, comentam: «A perda do benefício do prazo também não afecta terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigação. A lei não distingue entre garantias pessoais e reais. É aplicável a disposição, portanto, não só ao fiador como a terceiros que tenham constituído uma hipoteca, um penhor, ou uma consignação de rendimentos. Qualquer destas garantias só pode ser posta a funcionar depois de atingido o momento em que a obrigação normalmente se venceria». A perda do benefício do prazo com a falta de pagamento de uma das prestações não se estende, pois, ao fiador, a não ser que tenha sido convencionado o afastamento do regime constante do artigo 782.º CC, pois se trata de norma supletiva (cfr. artigo 405.º CC) conforme têm defendido a doutrina e jurisprudência (veja-se acórdão da Relação de Lisboa, de 2014.02.11, Rosa Ribeiro Coelho, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 12878/09.8T22SNT-A.L1; de 2013.05.16, Catarina Arelo Manso, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 426-B/2011.L1; de 2011.11.17, Ezagüi Martins, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 1156/09.2TBCLD-D.L1; de 2009.11.19, Manuel Gonçalves, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 701/06.0YXLSB.L1); da Relação de Coimbra, de 2012.07.03, Carlos Querido, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 1959/11.8T2OVR-A.C1). Para a eventualidade de se ter convencionado o afastamento da regra constante do artigo 782.º CC, o fiador teria de ser interpelado para pôr termo à mora, a fim de obviar ao vencimento antecipado das prestações, não podendo tal interpelação ser substituída pela citação, já que esta não seria idónea para obviar às consequências não automáticas da mora do devedor. Nesse contexto, à falta de interpelação, o credor teria direito apenas às prestações vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, acrescida de juros, sem prejuízo da cumulação sucessiva de execuções (artigo 711.º CPC ) Veja-se, por todos, o acórdão da Relação de Lisboa, de 2011.11.17, Ezagüy Martins, supra citado. Estabelecido o quadro legal da responsabilidade do fiador, e retornando a caso concreto, a apelada defende que foi convencionado o afastamento da regra constante do artigo 782.º CC através da cláusula 24.ª do contrato, de teor seguinte: A execução, arresto, penhora ou outra qualquer forma de oneração ou alienação de bem hipotecado, assim como a falta de pagamento nos respectivos vencimentos, importam a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades garantidas e, consequentemente, a imediata exigibilidade desta escritura." Esta cláusula, na verdade, reproduz o teor do artigo 781.º CC, ao utilizar a expressão imediata exigibilidade, pois é este o alcance que a doutrina e jurisprudência atribuem à expressão «vencimento automático», não se podendo daqui extrair a renúncia do benefício do prazo por parte de fiador (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 2012.07.03, Carlos Querido, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 1959/11.8T2OVR-A.C1). Pelo exposto, esta cláusula não dá suporte à pretensão da apelada de que convencionou o afastamento da regra do artigo 782.º. Esgrime ainda a apelada com a interpelação de 2007. Perante o incumprimento dos mutuários, desde 2005, a apelada remeteu a eles e aos fiadores a comunicação referida no ponto 5 A da matéria de facto provada, datada de 26 de Novembro de 2007 (anterior ponto 12 reformulado). Em primeiro lugar importa determinar o alcance da referida comunicação, que utiliza indevidamente a expressão «denúncia», típica dos contratos de duração indeterminada, e que os apelantes consideram ser «resolução» (cfr. conclusão 10.ª). Nem uma coisa, nem outra. Com a comunicação em causa a apelada pretendeu desencadear o vencimento de todas as prestações do mútuo devido a incumprimento do mutuário. No entanto, já depois dessa interpelação, houve vários pagamentos e incumprimentos, tendo a execução sido instaurada apenas em 2012. Diz a apelada que nada a impedia de permitir a regularização do incumprimento com o consequente regresso do contrato à sua estrutura inicial, e que era expectável aos apelantes que a apelada viesse exigir a qualquer momento os montantes devidos. Não lhe assiste, porém, razão. Se é certo que nada impede o credor de renegociar contratos, a partir do momento em que o contrato regressou à sua estrutura inicial, a interpelação que tinha sido feita para desencadear a exigibilidade das prestações vincendas perdeu a sua eficácia, passando as prestações vincendas ao regime de vencimento normal, mês a mês. No sentido de que quando o credor receba prestação posterior a uma prestação em mora não pode exigir o vencimento antecipado das demais, fundando-se na mora no pagamento, veja-se Vasco da Gama Lobo Xavier, Revista de Direito e Estudos Sociais, XXI, pg. 251. Não tendo havido afastamento da regra constante do artigo 782.º CC, os apelantes não perderam o benefício do prazo, razão por que apenas lhes podem ser exigidas as prestações que se venceram pelo decurso do prazo e até à propositura da execução, acrescidas de juros. Assim, a execução deverá seguir pela quantia correspondente às prestações vencida e não pagas e respectivos juros de mora, à data da propositura da execução. 4. Decisão Termos em que, julgando a apelação parcialmente procedente, determina-se que a execução prossiga pela quantia correspondente às prestações que se venceram mensalmente, e em dívida, acrescida dos juros de mora. Custas pelo apelante e apelado na proporção do decaimento. Porto, 23 de Junho de 2015. Márcia Portela Francisco Matos Maria de Jesus Pereira _____________ Sumário 1. A doutrina tem maioritariamente entendido que, no caso de dívida fraccionada em prestações, o vencimento imediato das restantes prestações à falta do pagamento de uma das prestações, nos termos do artigo 781.º C.C., constitui um benefício que a lei concede ao credor e que deve ser exercido mediante interpelação do devedor. 2. Este artigo tem natureza supletiva, podendo ser afastado por vontade das partes. 3. Nos termos do artigo 782.º CC, a perda do benefício do prazo com a falta de pagamento de uma das prestações não se estende ao fiador. 4. Só assim não será se as partes tiverem convencionado o afastamento do regime constante do artigo 782.º CC, pois se trata de norma supletiva. 5. A cláusula contratual que estabelece que a falta de pagamento importa a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades não é idónea para traduzir a renúncia ao benefício do prazo por parte do fiador. 6. Para a eventualidade de se ter convencionado o afastamento da regra constante do artigo 782.º CC, o fiador teria de ser interpelado para pôr termo à mora, a fim de obviar ao vencimento antecipado das prestações, não podendo tal interpelação ser substituída pela citação, já que esta não seria idónea para obviar às consequências não automáticas da mora do devedor. 7. Não tendo o regime do artigo 782.º CC sido afastado pelas partes (ou tendo-o sido, faltar a interpelação do fiador), o credor terá direito apenas às prestações vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, acrescida de juros, sem prejuízo da cumulação sucessiva de execuções (artigo 711.º CPC). Márcia Portela |