Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1573/17.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
TRANSPORTE
TÁXI
DOENÇA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201803141573/17.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º13/2018, FLS.139-155)
Área Temática: .
Sumário: I - O disposto nos artºs 46º e ss da Portaria n º 260/2014 de 15/12 (RTD), não padece de inconstitucionalidade orgânica, formal ou material.
II - Um veiculo com alvará de táxi pode transportar uma pessoa doente.
III - Não pode é transportar uma pessoa doente que no âmbito da prestação de cuidados de saúde, necessite durante o transporte de recursos humanos, veiculo e equipamento adequados ao seu estado ou condição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 1573/17.4T8PRT.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-JL Criminal-J5

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo de contra-ordenação nº GJ 56/2016-CO/RTD da competência do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica) foi aplicada á sociedade arguida, “B…, Lda. “, em cúmulo jurídico, a coima única de €3.000,00, dado que a empresa não possuía alvará para o transporte de doentes (coima de €2.000,00) e o veículo em causa não possuía certificado de vistoria para o transporte de doentes (coima de €2.000,00), o que constitui a prática de duas contra-ordenações previstas e punidas, respectivamente, nas alíneas a) e c), do nº 1, do artigo 46º, da Portaria nº 260/2014, de 15/12, que aprovou o Regulamento de Transporte de Doentes (RTD), com coima entre €1.000,00 e €25.000,00, cada infracção.
Inconformada com a decisão proferida, a arguida impugnou judicialmente essa decisão.
Veio então a ser proferida sentença que julgou o recurso de contra-ordenação totalmente improcedente e manteve a decisão recorrida, que lhe aplicou a coima em cúmulo jurídico, a coima única de €3.000,00, pela prática de duas contra-ordenações previstas e punidas, respectivamente, nas alíneas a) e c), do nº 1, do artigo 46º, da Portaria nº 260/2014, de 15/12, que aprovou o Regulamento de Transporte de Doentes (RTD), com coima entre €1.000,00 e €25.000,00, cada infracção.
Novamente inconformada veio a arguida interpor o presente RECURSO, cujos fundamentos sintetizou através das seguintes conclusões, que passamos a transcrever:
“I - Resulta da deliberação do Conselho Directivo Do INEM que a arguida impugnou judicialmente “que se consideram provados os seguintes factos:”
-que no dia 16/01/2015 pelas 11h30m, na Rua …, Porto, a arguida tinha em circulação o veículo com a matrícula .. – MO - ...”
-“ que o referido veículo, por conta a interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente D…, da habitação deste para o Hospital E…, no Porto.”
-“ O transporte de doentes era realizado pela arguida sem que esta possuísse alvará, emitido pelo INEM, I.P., para prestação da actividade de transporte de doentes.”
- “ e o mesmo transporte do doente era realizado sem que o referido veículo possuísse licença do IMTT, I.P. ( Instituto de mobilidade e dos transportes) , para o transporte de doentes.”
-“ A arguida agiu com consciência da sua conduta ilícita, sabendo que lhe era vedado o transporte de doentes sem alvará para exercer tal actividade e com veículo sem licença do IMTT, I.P., para o transporte de doentes.”
II - Mais refere a deliberação do Conselho Directivo do INEM que tais factos “constituem contra-ordenação prevista e sancionável pelos artigos 11º, nº1, e 46º, nº1 alínea a) do RTD (Regulamento de Transporte de Doentes) criado pela Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro,… e contra-ordenação prevista e sancionável pelos artigos 31º, nº1, e 46º nº1 alínea c) do mesmo regulamento,”
III - E que tais contra-ordenações, nos termos do disposto no artº 46º nº1 alíneas a) e c) da Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro , que criou o RTD, “são puníveis com coimas de mil a três mil euros para pessoas singulares e até ao limite de vinte e cinco mil euros para as pessoas colectivas .”
IV - A douta decisão em crise veio considerar totalmente improcedente a impugnação da arguida, mantendo, na íntegra, a deliberação recorrida.
V - A decisão proferida pelo tribunal a quo que a confirmou, encontram-se feridas de nulidade.
VI - É que a legislação invocada, designadamente os artigos 46º e ss do Regulamento do Transporte de Doentes, se encontram feridos de inconstitucionalidade.
VII - Ao abrigo do disposto na alínea d) do nº1 do artº 165 da Constituição da República Portuguesa, que determina as matérias que constituem reserva relativa de competência da Assembleia da República, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, salvo autorização ao Governo.
VIII - E dispõe a alínea b) do nº 1 do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa, que determina as matérias que constituem competência legislativa do Governo, que compete ao Governo fazer decretos-lei em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta.
IX - O Direito Contra-Ordenacional é matéria de reserva relativa da Assembleia da República, podendo no entanto o Governo, mediante autorização concedida para o efeito e nos limites dessas autorização, fazer decretos-lei sobre esta matéria.
X - Assim, para o Governo legislar sobre Direito Contra-Ordenacional terá que ter autorização da Assembleia da República, sendo a forma que o acto legislativo do Governo toma, o Decreto-Lei.
XI - As leis de autorização legislativa estabelecem os parâmetros ou limites da competência do Governo para a regulação da matéria que constitua reserva relativa da Assembleia da República, e se tais limites forem ultrapassados logo ocorrerá inconstitucionalidade orgânica pois se trata de invasão, pelo Governo, de área da competência legislativa reservada da Assembleia da República
Acontece que,
XII - O Governo, através da Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro, criou o Regulamento de Transporte de Doentes (RTD) que veio nos seus artigos 46º e ss dispor precisamente sobre ilícito de mera ordenação social e do respectivo processo, determinado, designadamente, quais os factos que constituem Contra Ordenações e as respectivas sanções, e com a fixação dos limites das coimas e a definição das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções.
XIII - Porém o Governo, no uso da devida autorização legislativa concedida para o efeito, através do DL 433/82 de 27 de Outubro, criou o Regime Geral das conta ordenações (RGCO).
XIV - E o RGCO relativamente ao montante da coima dispõe no nº 1 do artigo 17º que “Se o contrário não resultar de lei, o montante mínimo da coima aplicável às pessoas singulares é de (euro) 3,74 e o máximo de (euro) 3740,98.”
XV - Assim, apenas a Lei da Assembleia da República ou Decreto-lei emanado pelo Governo com autorização da Assembleia da República, com as respectivas limitações em matéria e tempo, poderão alterar o disposto neste preceito, sob pena de inconstitucionalidade.
XVI - No entanto o RTD no seu nº1 do artº 46 dispõe “ Para os efeitos previstos no presente diploma, constituem contra ordenações puníveis com coimas de mil a três mil euros, para pessoas singulares, e até ao limite de vinte e cinco mil euros, para pessoas coletivas:”
XVII - Assim, o artº 46 o RTD no seu nº1 veio, nomeadamente, alterar os limites da coima previstos no RGCO, no seu artº17º, designadamente o montante mínimo de (euro) 3,74 para os 1.000,00€ (mil euros) pelo que padece, desde logo por este motivo, de inconstitucionalidade.
XVIII - Neste sentido no acórdão TC nº 447/91 se decidiu que a moldura sancionatória fixada no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82 “tem de ser considerada como não derrogável por qualquer diploma posterior emanado do Governo sem competente autorização legislativa, na parte respeitante aos valores mínimo e máximo das coimas que nele se prevêem.
XIX - Conforme disposto alínea b) do nº 1 do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa, o Governo tem competência para legislar, fazendo decretos-lei, em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, nas quais se inclui conforme já exposto ilícito de mera ordenação social e do respectivo processo, ou seja, o Direito Contra Ordenacional, mas apenas mediante autorização desta.
XX - Porém no caso em apreço não existe Lei de Autorização concedida para o efeito, nem existe Decreto-Lei ao abrigo de autorização legislativa,
XXI - Temos antes uma Portaria, que constitui emanação do poder administrativo e não legislativo, a, designadamente, alterar os limites mínimos e os limites máximos das coimas estabelecido pelo RGCO.
XXII - Ao dispor sobre matéria da competência da Assembleia da República, através de uma Portaria, e não por Decreto Lei ao abrigo de autorização legislativa concedida para o efeito, o Governo violou a Constituição da República Portuguesa, designadamente o disposto na alínea d) do nº 1 do artº165º, alíneas c) e d) do artº 161º, alínea b) do nº1 e nº 3 do artº 198.
XXIII - Pelo que a Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro, designadamente o disposto nos artigos 46º e ss, se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica, formal e material, sendo por esse motivo nula e de nenhum efeito na parte em que dispôs sobre matéria de ilícito de mera ordenação social nomeadamente alterando o disposto no Regime Geral de contra Ordenações pois que emanou do Governo e dos seus poderes executivos, sem autorização legislativa da Assembleia da República, sendo que a Constituição atribui a este Órgão de Soberania a competência para legislar nas matérias sobre as quais incidem os preceitos em causa.
XXIV - Por esse motivo é nulo também o Auto de Notícia, a impugnada deliberação do Conselho Directivo do INEM, bem como a sentença do tribunal a quo que a confirmou.
XXV - Acresce que nos termos do art. 58º, nº 1 do RGCO, a deliberação do Conselho Directivo do INEM que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, a) a identificação dos arguidos, b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, d) a coima e as sanções acessórias.
XXVI -A deliberação do Conselho Directivo do INEM proferida no quadro de um procedimento contra - ordenacional deve ser devidamente fundamentada, mediante a enunciação concreta de factos susceptíveis de integrar os normativos (alegadamente) violados, alegando razões de facto e fundamentos de direito seguindo, basicamente, a estrutura da sentença penal, conforme o disposto na supra mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto - Lei n.º 433/82, de 27.10.
XXVII - A falta ou manifesta insuficiência de fundamentação constitui nulidade da deliberação do Conselho Directivo do INEM, nos termos do art.º 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP, ex vi do artº 41º, do RGCO.
XXVIII - A deliberação do Conselho Directivo do INEM ao invocar que o referido veículo, por conta a interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente, salvo o devido respeito, faz-se uso de um "conceito indeterminado".
XXIX - “Doente” é um conceito que necessita de ser adequadamente preenchido, tendo nomeadamente em conta a definição constante no artigo 2º do Regulamento de Transportes de Doentes aprovado pela Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro :
“Definições
Para efeitos do presente Regulamento entende -se por:
a) «Doente»: pessoa que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, requer, durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição;”
XXX - Porém, em nenhum momento, nem no Auto de Notícia, nem na decisão administrativa se faz referência a factos que possam preencher a definição de doente contida no referido RTD, designadamente que a pessoa transportada requeresse “durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição;”
XXXI - Aliás na deliberação do Conselho Directivo do INEM em crise é reconhecido que “ não foram disponibilizados elementos sobre o estado de saúde “ da pessoa transportada, pelo que também por este motivo padece do vício de nulidade uma vez que existe contradição entre os fundamentos e a decisão.
XXXII - E o auto de notícia, perfilando-se como uma acusação, apresenta-se amputado de factos, conclusivo, vago e genérico, viciado pela ausência de uma concreta factualidade.
XXXIV - Cabia à entidade administrativa a investigação, e a descrição de factos integradores daquele conceito contido no RTD, desde logo no auto de notícia, o que não aconteceu, pelo que a decisão é nula também por este motivo.
XXXV - A deliberação do Conselho Directivo do INEM considera a pessoa transportada como “doente” sem que fossem apurados e enunciados factos sobre o seu estado de saúde, e em tal fundamenta a sua decisão.
XXXIV - Pelo que, se a nulidade da decisão não fosse gerada pelo facto de os artºs 46º e ss do referido RTD serem nulos por violação da CRP nos termos supra expostos, sempre seria nula a deliberação do Conselho Directivo do INEM designadamente por violação do art. 58º, nº 1 do RGCO, e contradição entre os fundamentos e a decisão, bem como seria nulo o auto de notícia, por falta de fundamentação.
XXXV - É ao Médico, que cabe não só fazer o diagnóstico como estabelecer a terapêutica, pelo que é este quem poderia e pode determinar se o transportado carece ou não,durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição”, nos termos previstos no referido regulamento.
XXXVI - O RTD foi publicado a 16/12/2014, entrou em vigor a 16 /12/2014, e os factos em causa nos autos ocorreram a 16/01/2015.
XXXVII - A arguida transportava um passageiro na sequência do solicitado pela Seguradora ao abrigo do contrato outorgado, circulava com o tarifário devidamente assinalado para o efeito, exibiu no acto de fiscalização todos os documentos que considerava serem os necessários para efeito do serviço que se encontrava a prestar, designadamente o Alvará para transporte em Táxi e o contrato com a Seguradora que lhe solicitou o serviço.
XXXVIII - A sua conduta revela inexistiria consciência de que a sua actuação pudesse ser proibida pelo recém-publicado diploma, pelo que a sua falta, a existir, não seria censurável designadamente face ao facto de as imposições do RTD serem então muito recentes.
XXXIX - A censurabilidade é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, como é o caso, face à então recentíssima alteração legislativa e consequentemente sempre ficaria afastado o dolo por parte da arguida.
XL - E conforme previsto na lei, no caso de negligência os montantes das coimas são reduzidos a metade – logo a coima seria entre 500,00€ e 12.500,00€, nos termos do nº3 do artº17º RGCO e do artº 46º nº 2 do RTD.
XLI - Em face do que, nos termos do disposto na alínea c) do artº 27º do RGCO o procedimento contra-ordenacional já se encontraria extinto por efeito de prescrição pelo decurso do prazo previsto na alínea c).
XLII - Pelo que atentas as circunstâncias e os factos supra descritos, mesmo que se considerasse que com a sua actuação arguida violou os mencionados preceitos, a coima aplicada sempre seria uma sanção demasiado gravosa.
XLIII - Entende ainda a arguida que o disposto no RTD não poderá senão ser interpretado de uma forma restritiva, sob pena de se violar os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas.
XLIV - O disposto RTD deverá ser entendido de forma restritiva e no seio das obrigações do Estado em prestar cuidados de saúde aos cidadãos, através do Serviço Nacional de Saúde, designadamente quando o transporte do doente deva ficar ao seu encargo, e já não quando estes cuidados sejam da responsabilidade de entidades privadas.
XLV - A ser interpretado da forma como o faz a deliberação do Conselho Directivo do INEM em crise, nenhum cidadão poderia transportar um filho, um pai ou qualquer familiar ou amigo a uma qualquer consulta médica ou tratamento.
XLVI - O que claramente violaria a Constituição da República Portuguesa, não só materialmente, mas também organicamente uma vez que a Portaria em causa estaria a restringir direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas, o que está vedado pela lei fundamental.”
Conclui pela procedência do recurso e em consequência seja declarada nula a deliberação do Conselho Directivo do INEM e a sentença do tribunal a quo, ou caso assim não se entenda, deverá ser substituída por sanção de menor gravidade.
Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal “a quo”, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo que:
“- nem a decisão administrativa impugnada nem a sentença proferida enfermam de qualquer nulidade;
- o art. 46º do Regulamento do Transporte de Doentes não viola nenhum preceito constitucional, nomeadamente os preceitos ínsitos nos arts. 165º, n.º 1 e 198º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa;
- tal preceito não enferma de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo não ultrapassou a competência legislativa de que dispunha;
- o art. 46º do Regulamento do Transporte de Doentes não viola o disposto no art. 17º, n.º 1, do RGCO, antes define uma moldura penal que se contém nos limites dessa lei-quadro;
- a decisão administrativa e a sentença proferida não são nulas porquanto se encontram devida e suficientemente fundamentadas;
- o Tribunal da Relação só pode conhecer de direito, atento o disposto no art. 75º, n.º 1 do DL. n.º 433/82, de 27 de outubro;
- pelo que deve ter-se por definitivamente assente a matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença;
- e, atendendo ao facto dado como não provado, não é possível concluir pela falta de consciência da ilicitude e, consequentemente, pela exclusão do dolo da arguida;
- as coimas parcelares e a coima única aplicadas são adequadas à gravidade dos ilícitos; pelo que,
- deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão do Tribunal recorrido nos seus termos.”
Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, pelas mesmas razões.
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência. QUESTÕES A DECIDIR:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, sendo certo que, tratando-se de uma contra-ordenação, por força do disposto no art. 75º do RGCE., o tribunal de recurso está limitado ao conhecimento de questões de direito.
No caso em apreço, atendendo ao teor da decisão recorrida e às conclusões do recurso da impugnante, as questões a decidir são as seguintes:
- inconstitucionalidade orgânica da Portaria n.º 260/2014, de 15 de Dezembro.
- nulidade da decisão decorrente da falta ou insuficiência de fundamentação da decisão.
- falta de consciência da ilicitude.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
“Com relevância para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1º) No dia 16/01/2015, pelas 11h30m, na Rua …, no Porto, a arguida tinha em circulação o veículo com a matrícula .. – MO - ..;
2º) O referido veículo, por conta e no interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente D…, da habitação deste para o Hospital E…, no Porto;
3º) O transporte do doente era realizado pela arguida sem que esta possuísse alvará, emitido pelo INEM, I.P., para a prestação da atividade de transporte de doentes;
4º) E o mesmo transporte do doente era realizado sem que o referido veículo possuísse licença do IMTT, I.P. (instituto da mobilidade e dos transportes), para o transporte de doentes;
5º) A arguida agiu com consciência da sua conduta ilícita, sabendo que lhe era vedado efetuar o transporte de doentes sem alvará para exercer tal atividade e com veículo sem licença do IMTT, I.P., para o transporte de doentes;
6º) A arguida encontra-se licenciada para o transporte em Táxi pelo Alvará nº …..
7º) O serviço de transporte que a arguida realizava na data em causa nos autos era feito ao abrigo de contrato com seguradora, e
8º) Através do referido contrato, a arguida obrigou-se a transportar todo e qualquer passageiro sempre que tal serviço lhe seja solicitado pela Seguradora.
*
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que a arguida, ao transportar o referido passageiro, na sequência do solicitado pela Seguradora e ao abrigo do mencionado contrato outorgado, estava convencida de que nada mais precisava para o efeito do que o Alvará para transporte em Táxi que possuía.”
*
O Tribunal, atendendo igualmente às regras da experiência, fundou a sua convicção ao fixar os factos provados, desde logo, no conjunto dos depoimentos prestados, em audiência de julgamento, pelas seguintes testemunhas:
- F…, agente da PSP, o qual confirmou que, no referido dia, hora e local indicados na participação de fls. 69, no âmbito de uma fiscalização a táxis, direcionada para o transporte de passageiros, abordou o táxi, com a matrícula .. – MO - .., tendo pedido ao condutor os documentos do veículo, sendo que, na altura, o táxi levava um cliente.
Mais confirmou que, na altura, o condutor do táxi lhe referiu que fazia o transporte de uma pessoa sinistrada, sendo que o referido cliente levava uma guia de tratamento, a qual foi exibida ao depoente.
Tal testemunha referiu, ainda, que, dado que o condutor não exibiu o necessário alvará nem a respetiva licença para transporte de doentes, participou a situação ao INEM.
- D…, o qual confirmou que era o cliente que, no dia dos factos, seguia no referido táxi, sendo que, na altura, estava de baixa médica, pelo seguro, situação que durou 9 meses.
Tal testemunha esclareceu que, em Setembro de 2014, teve um acidente de trabalho, tendo sofrido lesões, designadamente uma entorse no joelho, sendo que, na altura dos factos, andava a fazer tratamento de fisioterapia a tal entorse no Hospital E…, no Porto.
Mais esclareceu que era o seguro que chamava o táxi para o ir buscar a sua casa e levá-lo ao Hospital e vice-versa, sendo que, no dia dos factos, mostrou a guia de tratamento ao agente policial.
- C…, funcionário da arguida, exercendo as funções de motorista de táxi, há cerca de 7 anos.
Tal testemunha confirmou que, no dia dos factos, era o condutor do referido veículo, tendo sido mandado parar pela polícia, sendo que, na altura, fazia o transporte de um cliente de uma seguradora.
As referidas testemunhas demonstraram estar recordadas dos factos e prestaram um depoimento esclarecedor e claro, razão pela qual mereceram a credibilidade deste Tribunal.
Além disso, atendeu-se ao teor dos documentos de fls. 69 (participação) e 70 a 74.
*
Quanto ao facto não provado, atendeu-se à inexistência de prova segura e convincente do mesmo de forma a merecer a credibilidade deste Tribunal.”
Decidindo.
O presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos arts. 75º, nº 1 e 41º, nº 1, ambos do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (adiante designado por RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP e decorre da condenação da arguida “B…, Lda.”, em cúmulo jurídico, a coima única de €3.000,00, dado que a empresa não possuía alvará para o transporte de doentes (coima de €2.000,00) e o veículo em causa não possuía certificado de vistoria para o transporte de doentes (coima de €2.000,00), o que constitui a prática de duas contra-ordenações previstas e punidas, respectivamente, nas alíneas a) e c), do nº 1, do artigo 46º, da Portaria nº 260/2014, de 15/12, que aprovou o Regulamento de Transporte de Doentes (RTD), com coima entre €1.000,00 e €25.000,00, cada infracção.
Defende a recorrente que a Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro, que aprovou o Regulamento do Transporte de Doentes (a seguir RTD), designadamente o disposto nos artigos 46º e ss se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica, formal e material, sendo por esse motivo nula e de nenhum efeito na parte em que dispôs sobre matéria de ilícito de mera ordenação social nomeadamente alterando o disposto no Regime Geral de contra Ordenações pois que emanou do Governo e dos seus poderes executivos, sem autorização legislativa da Assembleia da República, sendo que a Constituição atribui a este Órgão de Soberania a competência para legislar nas matérias sobre as quais incidem os preceitos em causa.
Segundo a recorrente, atento o disposto nos arts. 165º, n.º 1 e al. b) do nº 1 do artigo 198° da Constituição da República Portuguesa, o Governo estava impedido de, através de uma Portaria, alterar os limites mínimos e máximo das coimas previsto pelo art. 17º do Regime Geral das Contra - ordenações (RGCO), aprovado pelo DL. n.º 433/82, de 27 de outubro.
Por esse motivo é nulo também o Auto de Notícia, a impugnada deliberação do Conselho Directivo do INEM, bem como a sentença do tribunal a quo que a confirmou.
Vejamos se é assim.
A Lei 48/90 de 24.8.1990 (Lei de Bases da Saúde), dispõe na Base XXIII, o seguinte:1 - Estão sujeitas a regras próprias e à disciplina e inspecção do Ministério da Saúde, e, sendo caso disso, dos outros ministérios competentes, as actividades que se destinem a facultar meios materiais ou de organização indispensáveis à prestação de cuidados de saúde, mesmo quando desempenhadas pelo sector privado.
2 - Incluem-se, nomeadamente, nas actividades referidas no número anterior a colheita e distribuição de produtos biológicos, a produção e distribuição de bens e produtos alimentares, a produção, a comercialização e a instalação de equipamentos e bens de saúde, o estabelecimento e exploração de seguros de saúde e o transporte de doentes.” (sublinhado nosso).
Na sequência desta lei-quadro, veio o Governo através do Decreto - Lei n.º 38/92, de 28 de março, regular a actividade de transporte de doentes, estabelecendo as normas básicas de enquadramento da atividade de transporte de doentes, efetuado por via terrestre, como atividade complementar da prestação de cuidados de saúde.
No desenvolvimento dessas normas e, concretamente, em execução do disposto no n.º 2 do artigo 6.º daquele Decreto - Lei, que dispõe que “as características específicas dos veículos que podem efectuar o transporte de doentes serão fixadas por portaria conjunta dos Ministros da Administração Interna e da Saúde, a Portaria n.º 439/93, de 27 de abril, aprovou o Regulamento do Transporte de Doentes, o qual, para além do procedimento de concessão de alvarás, definiu os tipos, características e equipamento das ambulâncias, bem como os requisitos dos seus tripulantes. Este regulamento foi reformulado pela Portaria n.º 1147/2001, de 28 de Setembro, entretanto reformulada pela Portaria 260/2014 de 15.12, que aprovou o RTD, a cujos artigos 46º e ss a recorrente imputa a invocada inconstitucionalidade orgânica, formal e material
É em face deste quadro legislativo e das normas constitucionais invocadas que terá de ser apreciada a pretensão da recorrente.
Como salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, em primeiro lugar, haverá que referir que o Governo dispõe de competência legislativa concorrente com a da Assembleia da República, sendo-lhe lícito que crie contra - ordenações e que comine a sua prática com as coimas tidas por ajustadas.
Nesta matéria deve, com efeito, notar-se que o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, desde que respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contra - ordenacional e que as sanções aplicadas sejam “efectivas”, “proporcionadas” e “dissuasoras”, de modo a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (com efeito, a fixação de coimas com montantes irrisórios face ao benefício colhido da prática do ilícito contra -ordenacional tende a enfraquecer o próprio cumprimento da lei; assim, ver Paulo Otero / Fernanda Palma, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, pp. 562 e 563).
Neste sentido, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/00, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordãos/), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo.
No domínio do ilícito de mera ordenação social, cabe à Assembleia da República ou ao Governo, mediante autorização legislativa concedida por aquela, estabelecer apenas o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Dispõe o art. 165º da CRP, sob o título “Reserva relativa de competência legislativa”, no seu nº 1 alíneas c) e d) que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…)
- Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal;
- Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Por sua vez, o art. 198º da CRP, dispõe no sue nº 1 que “Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a)Fazer decretos - leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
b) Fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta;
c) Fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam (…)”.
O Governo pode fixar as coimas e outras sanções aplicáveis a certos comportamentos qualificados como contra-ordenações, com respeito, porém, do diploma que estabelece o regime geral de punição das contra - ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82).
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional 324/90 publicado no DR, II série de 19.3.1991, o qual cita o acórdão do mesmo tribunal 56/96: “O Decreto-Lei n.º 433/82 foi editado pelo Governo no uso de uma autorização legislativa conferida pela Lei n.º 24/82, de 23 de Agosto, quando ainda não vigorava a nova redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro). Por isso mesmo, e como pode ler-se nesse acórdão, o Decreto-Lei n.º 433/82 «não caracteriza com o rigor exigível certos aspectos do regime geral de punição dos ilícitos de mera ordenação social. Em particular, (…) permite a estipulação de sanções com uma dimensão nele não prevista (artigo 21.º) e sugere apenas os limites mínimos e máximo das coimas (artigo 17.º). Ora, daquele regime geral, por força do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, não pode deixar de constar um quadro rígido das sanções aplicáveis aos ilícitos de mera ordenação social, bem como uma referência, com valor taxativo, aos montantes mínimo e máximo das coimas» (…).”
O art. 17º do RGCO estabelece a moldura geral abstracta das coimas.
Dispõe no seu número 1, que se o contrário não resultar da Lei, o montante mínimo de coima aplicável às pessoas singulares é de €3,74 e o máximo de €3.740,98 e no seu número 2 que “se o contrário não resultar da lei, o montante máximo da coima aplicável às pessoas colectivas é de €44.891,81.
O mínimo e máximos previstos neste artigo só podem ser alterados por Lei da Assembleia da Republica, ou por acto legislativo por ela autorizado, dado o disposto no art. 165º al d) da CRP.
O Governo apenas pode, por decreto-lei, estabelecer um mínimo ou máximo superior se o fizer mediante autorização da Assembleia da Republica.
Tal significa que o Governo não podia estabelecer limite mínimo inferior ao estabelecido no Decreto-Lei n.º 433/82, nem limite máximo superior ao limite fixado neste último diploma, sob pena de inconstitucionalidade orgânica na diferença para menos ou para mais, respectivamente. Ver neste sentido o acórdão do TC já citado (324/90), no qual são citados na linha do aí decidido, os seguintes acórdãos do mesmo Tribunal Constitucional: os Acórdãos n.ºs 156/89, 221/89, 304/89, 414/89, 89/90, 90/90, 114/90 e 148/90 (in Diário da República, II Série, n.º 68, de 22 de Março, n.º 69, de 23 de Março, n.º 133, de 12 de Junho, n.º 150, de 3 de Julho, todos de 1989, n.º 165, de 19 de Julho, n.º 204, de 4 de Setembro, n.º 207, de 7 de Setembro de 1990).
No mesmo sentido, Ac T Const 157/96 de 7.2.96 in www.tribunalconstitucional.pt, nos termos do qual: “O Governo que dentro dos limites do regime geral definido pela Assembleia da República (é dizer dentro dos limites fixados pela lei quadro do ilícito de mera-ordenação social), pode definir contra-ordenações, criá-las ou eliminá-las e modificar a sua punição-quando estabelecer as sanções desses ilícitos (designadamente quando fixar as coimas que lhes correspondem), tem, por isso que mover-se dentro da moldura constante da respectiva lei-quadro. E assim, não pode fixar ás coimas limite mínimo inferior, nem limite máximo superior aos estabelecidos nessa lei-quadro.
Aplicando a jurisprudência do Tribunal Constitucional mencionada ao caso em apreço, temos de concluir necessariamente que a Portaria 260/2014 de 15.12, que aprovou o RTD (na sequência da Lei de Bases da Saúde e em execução do art. 6º nº 2 do Decreto-Lei n.º 38/92, de 28 de março), no desenvolvimento dessas normas não violou os limites mínimo fixado pelo art. 17º do RGCO, pois que ao fixar uma coima de limite mínimo superior ao limite mínimo fixado no regime geral não está a violar aquele regime geral.
Com efeito, relativamente ao art. 17º do RGCO, nada dizendo o nº 2 quanto ao valor mínimo da coima a aplicável às pessoas colectivas e às associações sem personalidade jurídica, deve entender-se que esse limite é o mesmo das pessoas singulares, isto é de €3,74 previstos no nº 1. Assim sendo o limite mínimo de €1000,00 euros fixado pelo art. 46º da Portaria 260/2014 de 15.12, porque não é inferior ao aludido limite mínimo, seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Governo não foi além da sua competência legislativa, na medida em que ao estabelecer tal limite mínimo, não fixou um limite mínimo á coima inferior ao limite mínimo fixado na lei-quadro.
Improcede, pelo exposto a inconstitucionalidade arguida, pois que o art. 46º do Regulamento do Transporte de Doentes não viola os preceitos ínsitos nos arts. 165º, n.º 1 e 198º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, não enfermando de inconstitucionalidade orgânica, tal preceito legal, uma vez que o Governo não ultrapassou a competência legislativa de que dispunha
Terá pois o recurso que improceder com este fundamento.
Vejamos agora a segunda questão suscitada pela recorrente que é a da nulidade decorrente da falta ou insuficiência de fundamentação da decisão da entidade administrativa.
Defende a recorrente que a deliberação do Conselho Directivo do INEM ao invocar que o referido veículo, por conta a interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente, usou de um "conceito indeterminado", já que “Doente” é um conceito que necessita de ser adequadamente preenchido, tendo nomeadamente em conta a definição constante no artigo 2º do Regulamento de Transportes de Doentes aprovado pela Portaria nº260/2014 de 15 de Dezembro.
E que cabia à entidade administrativa a investigação, e a descrição de factos integradores daquele conceito contido no RTD, desde logo no auto de notícia, o que não aconteceu, pelo que a decisão é nula também por este motivo.
Na sentença, esta questão, suscitada pela recorrente no recurso que interpôs da decisão administrativa, a questão foi apreciada da seguinte forma:
“Dispõe a al. a) do artº 2º do RTD que “ para efeitos do presente Regulamento entende-se por … «Doente»: pessoa que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, requer, durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição “.
Ora, resulta da participação de fls. 69, que "doente" é conceito preenchido conforme informação relatada pela entidade policial, que menciona que o Sr. D…, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, foi transportado da sua habitação para o Hospital E…, no Porto, a fim de realizar tratamento (fisioterapia).
Esta informação, apesar da arguida ter sido devidamente notificada para contestar, não foi contestada pela recorrente em sede de defesa (cfr., fls. 75 a 77).
Assim sendo, não existe a alegada nulidade, por falta de fundamentação, pelo que, nesta parte, igualmente, não se pode conceder provimento à referida impugnação.”
É que, por força do art. 58º, nº 1 do RGCO, a decisão da entidade administrativa que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, a) a identificação dos arguidos, b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, d) a coima e as sanções acessórias.
Na decisão de fls. 78, o INEM imputa á aqui recorrente os seguintes factos:
Decorrente da instrução dos presentes autos, consideram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 16/01/2015, pelas 11h30m, na Rua …, no Porto, a arguida tinha em circulação o veículo com a matrícula .. – MO - ..;
2. O referido veículo, por conta e no interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente D…, da habitação deste para o Hospital E…, no Porto;
3. O transporte do doente era realizado pela arguida sem que esta possuísse alvará, emitido pelo INEM, I.P., para a prestação da atividade de transporte de doentes;
4. E o mesmo transporte do doente era realizado sem que o referido veículo possuísse licença do IMTT, I.P. (instituto da mobilidade e dos transportes), para o transporte de doentes;
5. A arguida agiu com consciência da sua conduta ilícita, sabendo que lhe era vedado efetuar o transporte de doentes sem alvará para exercer tal atividade e com veículo sem licença do IMTT, I.P., para o transporte de doentes.”
Notificada (CFr. art. 50º do RGCO), a arguida deduziu impugnação judicial da decisão condenatória, no âmbito da qual, o tribunal recorrido veio, na sentença proferida a julgar provados os seguintes factos:
1º) No dia 16/01/2015, pelas 11h30m, na Rua …, no Porto, a arguida tinha em circulação o veículo com a matrícula .. – MO - ..;
2º) O referido veículo, por conta e no interesse da arguida, era conduzido por C…, que procedia ao transporte do doente D…, da habitação deste para o Hospital E…, no Porto;
3º) O transporte do doente era realizado pela arguida sem que esta possuísse alvará, emitido pelo INEM, I.P., para a prestação da atividade de transporte de doentes;
4º) E o mesmo transporte do doente era realizado sem que o referido veículo possuísse licença do IMTT, I.P. (instituto da mobilidade e dos transportes), para o transporte de doentes;
5º) A arguida agiu com consciência da sua conduta ilícita, sabendo que lhe era vedado efetuar o transporte de doentes sem alvará para exercer tal atividade e com veículo sem licença do IMTT, I.P., para o transporte de doentes;
6º) A arguida encontra-se licenciada para o transporte em Táxi pelo Alvará nº ……;
7º) O serviço de transporte que a arguida realizava na data em causa nos autos era feito ao abrigo de contrato com seguradora, e
8º) Através do referido contrato, a arguida obrigou-se a transportar todo e qualquer passageiro sempre que tal serviço lhe seja solicitado pela Seguradora.”
O Tribunal recorrido concluiu que “Ora, no que toca às duas citadas infrações contra - ordenacionais, atinentes à falta de alvará para a atividade de transporte de doentes e à utilização, na atividade de transporte de doentes, de veículo não licenciado, resulta da factualidade assente, designadamente dos factos 1º) a 5º), que a arguida, efetivamente, praticou tais contra - ordenações, dado que, no caso ora em apreço, se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo das referidas infrações contra - ordenacionais.
Com efeito, resulta da referida factualidade provada que, no dia 16/01/2015, pelas 11h30m, na Rua …, no Porto, a arguida fazia o transporte de um doente, utilizando o veículo com a matrícula ... – MO - .., sem que a mesma possuísse alvará para a prestação de tal atividade e sem que tal veículo estivesse licenciado para a afetação a tal atividade, tendo atuado de forma dolosa, pois conhecia os deveres impostos e decidiu agir em desconformidade com os mesmos.”
Vejamos se pode ser assim.
Como se pode ler no preâmbulo da Portaria n.º 260/2014, de 15 de Dezembro, que aprovou o novo e actual Regulamento do Transporte de Doentes, entrada em vigor em 17 de Dezembro 2014, “(…) torna-se premente rever de forma global o Regulamento do Transporte de Doentes, definindo -se novas regras, consentâneas com a necessidade de disciplinar, em concreto, e de forma distinta, o exercício da actividade de transporte de doentes urgentes e emergentes, por um lado, e por outro, o exercício da actividade de transporte de doentes não urgentes. No mesmo contexto, adoptam -se as regras constantes da norma europeia EN 1789 (relativa aos veículos de transporte sanitário e respectivos equipamentos -ambulâncias) que define e caracteriza os diversos tipos de ambulâncias, e regulamenta -se a utilização de veículos que permitem o transporte de doentes não urgentes — Veículos Dedicados ao Transporte de Doentes (VDTD). Define -se, também, um mecanismo que permite manter a atualização e uniformização das características gerais, técnicas e sanitárias tanto dos veículos que transportam doentes urgentes e emergentes, como daqueles que transportam doentes não urgentes, respeitando a legislação europeia, bem como as especificações conhecidas hoje sobre a matéria. Do mesmo modo, considerando o desenvolvimento verificado no domínio das competências exigíveis às tripulações dos veículos de transporte de doentes, entende-se igualmente imprescindível adequar o presente Regulamento à evolução e actualização dos cursos de formação específicos para o exercício desta actividade. Por fim, importa melhor definir a competência do Instituto Nacional de Emergência Médica no que respeita à fiscalização da actividade de transporte de doentes, impondo e clarificando procedimentos que permitam assegurar o cumprimento do disposto no Regulamento do Transporte de Doentes, quer por entidades públicas, quer por entidades privadas.”
A Portaria n.º 260/2014, de 15 de Dezembro, alterou assim o quadro legal das contra-ordenações em causa e ora em apreço, estabelecendo no seu art. 46.º que:
“1. Para os efeitos previstos no presente diploma, constituem contra-ordenações, puníveis com coimas de mil a três mil euros, para pessoas singulares, e até ao limite de vinte e cinco mil euros, para pessoas colectivas:
a) O exercício sem alvará da actividade de transporte de doentes;
b) A utilização, não autorizada, para outros fins de veículos afectos ao transporte de doentes;
c) A utilização, na actividade de transporte de doentes, de veículos não licenciados;
d) A violação dos condicionamentos previstos nos capítulos III e IV do presente regulamento;
e) O incumprimento do despacho que define os equipamentos mínimos das ambulâncias e VDTD;
f) O incumprimento do disposto no artigo 12.º;
g) O exercício da actividade de transporte de doentes por tripulantes que não estejam registados, pelas entidades transportadoras, perante o INEM.” (fim de transcrição).
Estabelece ainda o seu art. 2º o seguinte (que constituiu uma novidade, face á anterior Portaria (a Portaria n.º 1147/2001, de 28 de Setembro):“Para efeitos do presente Regulamento entende -se por: a) «Doente»: pessoa que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, requer, durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição; b) «Doente emergente»: doente que apresenta situação clínica com risco instalado, ou iminente, de falência de funções vitais; c) «Doente urgente»: doente que apresenta situação clínica com potencial de falência de funções vitais; d) «Ambulância»: veículo tripulado por, no mínimo, dois elementos habilitados para a prestação de cuidados, e destinado ao transporte de, pelo menos, um doente em maca; e) «Veículo dedicado ao transporte de doentes» (VDTD): veículo ligeiro, destinado ao transporte de doentes cuja situação clínica não impõe, previsivelmente, a necessidade de cuidados de saúde durante o transporte.
Daqui resulta que o RTD utiliza um conceito legal, que carece de ser concretizado, pois que nem todo o “doente” é considerado “doente” para efeitos de aplicação do diploma em causa, que regulamenta o respectivo transporte.
Doente, para efeitos da aplicação deste diploma, não é apenas qualquer pessoa que necessite da prestação e cuidados de saúde, mas sim pessoa, que necessitando de tais cuidados, necessite também, durante o seu transporte de prestação de serviços, de recursos humanos; veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição.
Ou seja, as especiais obrigações impostas na execução de serviços de transporte de doentes, pelo regulamento em causa, são apenas exigidas e obrigatórias a quem transporte “pessoa que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, requer, durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição”.
Porém, da sentença resulta apenas que a aqui recorrente (devidamente licenciada para o serviço de táxi) efectuava no dia 16.1.2015 (cerca de um mês após a entrada em vigor do novo Regulamento do Transporte de Doentes), o transporte de pessoa doente (que se deslocava para Hospital para se submeter a tratamento de fisioterapia), nada dizendo quanto às necessidades deste doente no âmbito do seu transporte, enquanto doente.
Resulta do RTD que, como vimos, este apenas impõe determinadas condições de transporte, relativamente a doentes que reúnam especiais necessidades de transporte a já não a quaisquer outros, através da restrição do conceito de doente que faz no seu art. 2º.
No caso em apreço é assim imputado á recorrente o transporte de um doente, sendo que aquela se encontra licenciada para o transporte em Táxi pelo Alvará nº …...
Ora, os táxis podem transportar pessoas doentes, desde que não se tratem de pessoas, que por força da sua situação de doença, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, requeiram, durante o transporte, recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição.
Não se sabendo se o doente em causa carecia de cuidados no transporte, a nível de recursos humanos (mero acompanhamento, acompanhamento por técnicos) ou de veículo adequado à sua condição, uma vez que nada é dito nessa matéria, não é possível subsumir os factos provados ao art. 46º da aludida Portaria.
Daí que a questão em apreço não seja de nulidade da acusação como imputa a recorrente, mas de ausência de elemento típico do ilícito imputado (ver neste sentido, o voto de vencido do Des. Carreto no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 4.12.2003, disponível in www.dgsi.pt).
E não estamos perante qualquer nulidade (sanável) emergente da deficiente indicação ao infractor de todos os elementos de facto necessários para conhecer da conduta ilícita imputada, e deles se defender, e a que se refere o Assento 1/2003 DR 25/1/2003, com o seguinte teor:
“Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra - ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra - ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”.

No caso são dados a conhecer á arguida os factos, só que tais factos não são susceptíveis de integrar os ilícitos contra - ordenacionais em causa.
Como dissemos, um veículo com alvará de táxi pode transportar uma pessoa doente. Não pode é transportar pessoa doente que no âmbito da prestação de cuidados de saúde, necessite, durante o transporte de recursos humanos, veículo e equipamento adequados ao seu estado ou condição.
Os requisitos impostos pelo RTD não são aplicáveis a todos os veículos que façam transporte de doentes, mas apenas àqueles que procedam ao transporte de doentes nas condições indicadas.
Não se sabendo se o doente em causa carecia de cuidados no seu transporte, ou seja os factos integradores do conceito de “doente” fornecido pela Portaria 260/2014, que fazem parte dos elementos típicos do ilícito contra-ordenacional em causa não se pode considerar preenchido o elemento típico da infracção, e não se imputando ao infractor o transporte de doente nessas condições, nem sequer de tal se pode conhecer e faltando á acusação um elemento típico da infracção, não existe ilícito, e se não existe ilícito a arguida não pode ser punida, e se não pode ser punida tem de ser absolvida.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões.
III. DECISÃO
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em dar provimento ao recurso e em consequência, absolver a recorrente da prática das contra - ordenações de que vinha condenada.
Sem custas.

Porto, 14.3.2018
Alexandra Pelayo
Élia São Pedro