Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3221/10.4TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
USO DE ARMA DE FOGO
REGRAS DE SEGURANÇA NA UTILIZAÇÃO
REGRAS DE SEGURANÇA NO ACONDICIONAMENTO
Nº do Documento: RP201211123221/10.4TBSTS.P1
Data do Acordão: 11/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 77 DA L 5/2006 DE 23 DE FEVEREIRO
Sumário: I - As regras e procedimentos de segurança relativas ao uso de arma de fogo abrange o espaço temporal posterior ao fim da caçada.
II - Quem usava a arma tinha obrigação de retirar as duas munições que se encontravam no seu interior antes de a guardar.
III - Dado o perigo potencial da arma quem a guardou teria, também que certificar-se que o fazia em segurança não devendo confiar que o anterior utilizador o fizera em pleno.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 3221/10.4 TBSTS.P1
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5ª SECÇÃO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
B…, C… e C… intentaram a presente acção declarativa com processo ordinário contra a E…, COMPANHIA DE SEGUROS S.A. peticionando a condenação desta a pagar: à primeira, a quantia de 41.667 €, à segunda, a quantia de 36.667 € e ao último igual quantia, todas elas acrescidas dos respetivos juros legais a contar da citação.
Fundamentaram os Autores as suas pretensões no facto de o marido da primeira e pai dos segundos ter sido vítima de um acidente mortal com uma arma de caça pertencente a F… e por este guardada, sendo que o mesmo havia transferido a sua responsabilidade civil, como titular de licença para uso e porte de armas, para a ora Ré.
A Ré contestou, alegando que a arma do segurado da Ré foi encartada e colocada no veículo pela própria vítima, em violação dos procedimentos e manobras de segurança previstos no art. 41º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, invocando, por isso, em seu favor, a cláusula de exclusão prevista no art. 5º, f), das Condições Gerais da Apólice. Mais impugnou, por desconhecimento, a factualidade alegada na petição inicial.
Requereu ainda a intervenção acessória provocada do seu segurado, F…, intervenção que foi admitida.
Citado, o Interveniente não contestou.
Os Autores replicaram impugnando, por falso, o alegado pela Ré quanto ao circunstancialismo em que se deu o acidente.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, foi a Ré condenada a pagar aos Autores, no seu conjunto, como herdeiros de G…, a quantia de 25.000 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a presente data até integral pagamento; foi ainda condenada a pagar à Autora B…, a título de compensação pelo seu próprio sofrimento, a quantia de 10.000 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a presente data até integral pagamento; e, a pagar a cada um dos Autores C… e D…, a título de compensação pelo seu próprio sofrimento, uma reparação no montante de 4.000 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a presente data até integral pagamento.
Foi a Ré absolvida do remanescente dos pedidos contra ela formulado nestes autos.

Inconformados com tal decisão, dela vieram os Autores recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
1ª No dia 7 de Outubro de 2008 foram à caça, para uma Reserva … os seguintes amigos: G…; H…; I…; J…; K…, L... e F….
2ª No dia 8 de Outubro de 2008, no final da caçada os referidos caçadores, com exceção do F…, procederam à guarda das respetivas armas, guardando-as nas malas das viaturas (duas) que estavam no local da concentração.
3ª O F… quando estava a chegar perto do local da concentração deu pela falta de uma cadela que se tinha extraviado e foi à procura dela.
4ª Antes disso entregou a sua arma ao malogrado G… que a meteu no estojo que estava na viatura, e acondicionou-a nesse estojo e acondicionou-a no veículo de I….
5ª Entretanto a cadela apareceu e o F… com o outro companheiro regressaram ao local de encontro, tendo o G… dito ao F… que a arma dele já estava recolhida no veículo do I...
6ª Completo o grupo meteram pés ao caminho em direção à Trofa. E estavam a retirar as armas, os equipamentos e a caça dos dois veículos junto de uma entrada para uma garagem.
7ª E eis que chega um utilizador dessa garagem, motivo por que alguns dos companheiros de viagem do G… retiraram os apetrechos para não estorvarem a entrada.
8ª Certamente, entre o mais, o G… levava o estojo da arma, e a arma de F…, e eis que ao ela embater no chão se disparou atingindo o malogrado G… no tórax, ficando prostrado no chão na posição de decúbito dorsal.
9ª E aqui acabou uma vida, acabou a amizade que todos tinham em vida de G…, com um triste e lamentável sacudir de água do capote quando, além do tiro que matou o G…, um inspetor da P.J., chamado ao local, ainda verificou que a arma tinha outro cartuxo pronto a disparar.
10ª E é aí que começa o calvário de uma família que perdem o marido e pai.
Os grandes amigos “deslocaram-se” certamente, para Peniche, e o responsável por aquela tragédia, F… dizia que não era nada com ele.
11ª É uma regra de ouro que nas horas de almoço ou de qualquer suplemento de alimentação, como no final de cada caçada, são retirados todos os cartuchos de cada arma.
12ª O F… apenas entregou a arma a G… pedindo-lhe para a guardar, não lhe tendo dito se estava municiada ou não.
13ª E o G… também não lhe perguntou se a arma estava carregada ou não.
14ª E pode perguntar-se se era o dono da arma, F… que devia avisar o G… de que a arma ainda tinha cartuchos ou se era o G… que devia perguntar àquele se a arma já estava sem cartuchos?
15ª Segundo as boas regras – e já está profundamente entranhadas – cada caçador cumpre religiosamente o dever de descarregar a arma. E tanto assim é porque há poucos acidentes mortais nas caçadas.
16ª Habitualmente fazia-o o G…, o F… e todos os outros.
17ª Daí que não tivesse perguntado ao F… se tinha descarregado a arma, e, diga-se o que se disser, era ao F… que competia alertar o G… para o facto de a arma não ter sido descarregada.
18ª E, a não ser assim, o que seria iníquo, significava a completa subversão de uma regra de oiro que o S.T.J. consagrou, ou seja: - ninguém pode ser responsabilizado pela negligência dos outros.
19º A culpa pela produção do incidente com a arma de fogo é da responsabilidade pessoal do dono da arma, F… e, jamais, do malogrado G….
20ª O Tribunal não interpretou corretamente o disposto nos artigos 40º, 41º e 77º da Lei nº 50/2004, de 23/2, atualizado pelas Leis 59/2007 de 04/09 e 17/2009 de 06/05 do Regime Jurídico das Armas e Munições e os artigos 483º, 494º, 496º, 562º e 566º todos do Cód. Civil.
A final requer seja revogada a sentença, julgando-se o proprietário da arma o único causador do sinistro, condenando-se a demandada Companhia de Seguros nessa conformidade

A Ré E… – Companhia de Seguros S.A. apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
II
É a seguinte a factualidade julgada provada:
A) G… faleceu a 8 de Outubro de 2008, com 72 anos de idade e no estado de casado com B…, com a qual contraíra matrimónio em 1960 (alínea A) dos Factos Assentes, certidão do assento de óbito junto a fls. 22 e assento de casamento de fls. 26);
B) Sucederam-lhe como herdeiros legitimários, a sua mulher, B…, e seus filhos, C… e D…, conforme certidão da escritura de habilitação de herdeiros junta a fls. 23 a 25, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea A) dos Factos Assentes);
C) No dia 7 de Outubro de 2008, G… foi à caça para uma Reserva no … com os amigos H…, I…, F…, J…, K… e L… (alínea C) dos Factos Assentes);
D) No dia 8 de Outubro de 2008, no final da caça, cada um dos caçadores referidos em C) - exceção feita a F… - procedeu à guarda das suas armas, guardando-as na mala dos veículos para regressarem à Trofa (resposta aos nºs 1 e 2 da Base Instrutória);.
E) No final do dia de caça, a arma de F…, que tinha duas munições no seu interior, foi inserida no respetivo saco e colocada no veículo por G… (resposta aos nºs 19 e 20 da Base Instrutória);
F) As armas do falecido G… e do amigo F… foram colocadas no veículo do Sr. I…, com a matrícula ..-..-QB (resposta ao nº 3 da Base Instrutória);
G) Chegados à Trofa dirigiram-se à Rua …, onde se situa um terreno pertencente ao Sr. K… (resposta ao nº 4 da Base Instrutória);
H) Onde tinham deixado ficar os seus veículos (resposta ao nº 5 da Base Instrutória);
I) Para procederem à recolha e transferência de bens, pessoas e armas das viaturas em que tinham viajado para aquelas em que iriam regressar a sua casa (resposta ao nº 6 da Base Instrutória);
J) Aí, o falecido G… encontrava-se no passeio a separar o material que I… retirava do seu veículo e os restantes amigos retiravam do veículo ..-..-DD (resposta ao nº 7 da Base Instrutória);
L) Quando surgiu um indivíduo, M… conduzir a viatura de matrícula ..-..-VO (resposta ao nº 8 da Base Instrutória);
M) E que pretendia entrar para o pátio de acesso às garagens (resposta ao nº 9 da Base Instrutória);
N) Como a rampa estava ocupada com os pertences dos caçadores, o falecido G… decidiu afastar tudo o que impedia a entrada (resposta ao nº 10 da Base Instrutória);
O) Acabando por bater com a arma que transportava naquele momento, pertencente a F…, no chão (resposta ao nº 11 da Base Instrutória);
P) Provocando um disparo (resposta ao nº 12 da Base Instrutória);
Q) Que o atingiu no tórax (resposta ao nº 13 da Base Instrutória);
R) Ficando deitado no chão, na posição de decúbito dorsal, no passeio (resposta ao nº 14 da Base Instrutória);
S) Em consequência do disparo, G… sofreu:
1. a nível do tórax:
Paredes:
- ferida perfurante de forma oval na face anterior esquerda do tórax a quarenta e cinco milímetros do mamilo esquerdo, com vinte e oito milímetros por quarenta milímetros de maiores eixos, com perda de substância da parede torácica e profunda, com exposição do tecido pulmonar adjacente, com orla de queimadura avermelhada marcada que se estende de forma irregular e intermitente superiormente – orifício de entrada de projétil de arma de fogo;
- livores na face dorsal;
- perda de substância, nomeadamente segmentos de costelas e músculos;
- a nível do hemitórax numa área triangular de base superior com noventa e quatro milímetros de comprimento e cento e cinco milímetros de altura;
- diversos chumbos dispersos pelos tecidos adjacentes e de trajeto ascendente ao orifício descrito anteriormente;
- infiltração sanguínea dos tecidos;
- exposição do pulmão esquerdo;
- restos de fragmentos não identificados provavelmente correspondentes a fragmentos do estojo onde se encontrava a arma;
2. – coração:
- três lesões perfurantes no miocárdio a nível da aurícula esquerda com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, sem chumbos intracavitários;
- dois chumbos alojados à superfície do coração;
- coração sem sangue;
- hipertrofia ventricular esquerda concêntrica (alínea D) dos Factos Assentes);
T) As lesões descritas foram a causa necessária e suficiente da morte do G… (alínea E) dos Factos Assentes);
U) Antes de falecer, G… sentiu a iminência da morte (resposta ao nº 15 da Base Instrutória);
V) O que lhe causou a maior agonia, amargura e angústia (resposta ao nº 16 da Base Instrutória);
X) G… era uma pessoa saudável e fisicamente bem constituída, alegre e jovial (resposta ao nº 17 da Base Instrutória);
Z) Os Autores e o falecido constituíam uma família harmoniosa e feliz (resposta ao nº 18 da Base Instrutória).
AA) F… subscreveu o contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil/Uso e Porte de Arma, titulado pela apólice n.º ……………, conforme teor de fls. 50 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde, nas respetivas “Condições Gerais”, designadamente, se prevê:
. no art. 2º, como objeto do contrato, “a garantia da responsabilidade civil do segurado, emergente do uso e porte de armas ou sua detenção nos termos da legislação aplicável”;
. no art. 5º, sob a epígrafe “Exclusões”, na respetiva alínea f), a não cobertura dos “acidentes que forem imputáveis ao próprio lesado”. (alínea F) dos Factos Assentes).
III
Na consideração de que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC), é a seguinte a questão que importa decidir:
- Da responsabilidade exclusiva de F… na produção do acidente.
Questão que tem subjacente uma outra: a de a sua responsabilidade não sendo exclusiva, ser contudo, maior do que a que a decisão recorrida fixou.

Entendeu o Tribunal Recorrido relativamente à responsabilidade de F…, proprietário da arma em questão que o mesmo teve um comportamento integrador de uma responsabilidade objetiva:
“No caso, indemonstrada ficou a factualidade tendente a integrar a hipótese de efetiva violação, pelo respetivo proprietário e detentor da arma, do especial dever de cuidado que sobre ele recaía, não se podendo, por isso, enquadrar a situação no âmbito da responsabilidade subjetiva: com efeito, não se provou ter sido ele quem procedeu à guarda da sua arma em desconformidade com as regras relativas à respetiva segurança. (sublinhado nosso).
Todavia, nos termos do nº 1 do art. 77º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, os titulares de licenças e alvarás previstos na aludida lei são civilmente responsáveis, independentemente da sua culpa, por danos causados a terceiros em consequência da utilização das armas de fogo que detenham ou do exercício da sua atividade.
Para efeito de aplicação da aludida norma, deve entender-se por «detenção de arma» o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor (alínea g) do art. 2º da citada Lei).
(…) Assim, interpretando a norma em questão, impõe-se concluir que deter não implica, necessariamente, trazer consigo, bastando ao preenchimento do conceito que a arma esteja dentro da esfera de disponibilidade de alguém, com a possibilidade de dela fazer uso imediato.
Na hipótese em apreço, sendo certo que, no preciso momento em que se deu o acidente, o referido F… não tinha consigo a arma que vitimou G…, sendo este quem a “transportava” e quem, anteriormente, a havia inserido no respetivo saco e a havia colocado no veículo, a verdade é que também nada aponta para que a arma em causa tenha passado, por força da referida atuação de G…, da esfera de domínio do respetivo proprietário para uma nova esfera de domínio, a do G…, afigurando-se, pelo contrário, que não só não ocorreu qualquer entrega de arma com saída da arma da esfera de disponibilidade do seu proprietário (como acontece no caso da “cedência a título de empréstimo” - entrega de arma a terceiro, para que este se sirva dela durante certo período, com a obrigação de a restituir findo o mesmo), como o proprietário mantinha, aquando do acidente, capacidade de controlo e proximidade física com a mesma (…), a ela podendo, pois, aceder de forma direta, sem necessidade de qualquer intermediação, designadamente por parte de G…, encontrando-se, pois, em condições de dela poder fazer uso imediato.
Cremos, pois, configurada, relativamente ao aqui Interveniente F…, a hipótese de responsabilidade objetiva prevista no Regime Jurídico das Armas, na medida em que o dano causado a G… decorreu da utilização (em sentido amplo) - e risco a ela inerente – de uma arma de fogo pertencente a F… e por este detida”. (sublinhado nosso).
Com tal responsabilidade objetiva do proprietário F…, o tribunal recorrido considerou concorrer uma responsabilidade culposa do próprio lesado.
Assim se pronunciou:
“Poderá, porém, argumentar-se que essa responsabilidade objetiva se mostra excluída no caso pela conduta do próprio lesado, na medida em que foi este quem, no final do dia de caça, inseriu no respetivo saco e colocou no veículo a arma de F…, que tinha duas munições no seu interior, conduta esta objetivamente violadora das regras de segurança no transporte de armas de fogo, (sublinhado nosso) já que o art. 41º do aludido Regime Jurídico consagra um especial dever de cuidado quanto ao uso, porte e transporte das mesmas, exigindo-se, no seu nº 1, que o exercício destas atividades seja especialmente disciplinado e siga rigorosamente as regras e procedimentos de segurança, e, no seu nº 3, concretamente quanto à arma de fogo, que esta seja transportada de forma separada das respetivas munições, norma esta que não foi cumprida pela vítima”.
E, seguindo a jurisprudência mais recente que considera ser legalmente de admitir a concorrência entre o risco e a culpa (e que tem como paradigma o Ac. do STJ de 04.10.2007), veio a ponderar que:
“Ora, no caso, salvo melhor opinião, afigura-se-nos não se poder considerar que o acidente se deveu unicamente ao próprio lesado, G…, e que os riscos da própria arma, de forte potencial lesivo quando, como sucedeu no caso, municiada, foram para tal acidente indiferentes, isto é, que a típica aptidão da arma para a criação de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente, na medida em que a morte daquele aconteceu não só em consequência da omissão da aludida regra de procedimento, mas, necessariamente, também por força de a arma ter sido previamente municiada e não descarregada, até ao momento da intervenção ocasional da vítima, pelo respetivo utilizador (ainda que, face à ausência de qualquer alegação a respeito, não se saiba por quem), ou seja, ainda em consequência, no desenvolvimento, da concretização de perigo típico - e, por isso, previsível – da utilização (que inclui, necessariamente, o ato de municiar) de armas de fogo, perigo esse manifestamente não removido pelo proprietário e detentor da arma (responsável, em primeira linha, pela sua segurança), e que condicionou, permitiu, todo o restante desenvolvimento dos factos (sem a prévia criação do perigo o acidente nunca teria ocorrido), o que, a nosso ver, justifica a concorrência entre a “culpa do lesado” e a responsabilidade objetiva do detentor da arma (sublinhado nosso).
Acresce que, relativamente ao lesado, tão pouco se pode falar em “comportamento voluntário grave e indesculpável” ou “doloso”, na medida em que, designadamente, não se pode afirmar, por falta de uma mais pormenorizada alegação das circunstâncias em que tal atuação teve lugar, que o lesado sabia que a arma estava municiada, tendo conscientemente procedido à sua guarda em tais condições, “deixando” lá ficar duas munições (sublinhado nosso).
Após tal ponderação veio o Mmº Julgador a quo determinar a medida concreta da responsabilidade de F… e, consequentemente, da Seguradora aqui Ré.
Para o efeito e citando a norma do art. 570º do C.C. (“quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”) concluiu que “o lesado era pessoa imputável e que, apesar de se não ter considerado “grave e indesculpável” a sua culpa, a omissão verificada lhe é censurável, na medida em que, como caçador, tinha obrigação de conhecer e aplicar os procedimentos adequados ao afastamento do risco no transporte das armas de fogo, devendo, para tal, colocar a hipótese de a arma por si “guardada” se encontrar municiada, não se podendo, todavia, esquecer que a tarefa por ele levada a cabo surge como um ato isolado, correspondendo a um procedimento a que tão pouco estava obrigado, num quadro de permanente responsabilidade pela segurança da arma por parte do seu proprietário e detentor, F…”, julgando, a final acertado reduzir a responsabilidade de F… em 60%, ou seja, subsistindo a sua responsabilidade em 40%.
Na apreciação da justeza de tal fixação são estes os factos que importa considerar:
- No final da caça, cada um dos caçadores - exceção feita a F… - procedeu à guarda das suas armas, guardando-as na mala dos veículos para regressarem à Trofa;
- No final do dia de caça, a arma de F…, que tinha duas munições no seu interior, foi inserida no respetivo saco e colocada no veículo por G…;
- As armas do falecido G… e do amigo F… foram colocadas no veículo do Sr. I…;
- Chegados à Trofa (…) G… encontrava-se no passeio a separar o material que I… retirava do seu veículo e os restantes amigos retiravam do veículo ..-..-DD, quando surgiu um indivíduo, que pretendia entrar para o pátio e, como a rampa estava ocupada com os pertences dos caçadores, o falecido G… decidiu afastar tudo o que impedia a sua entrada.
- Acabando por bater com a arma que transportava naquele momento, pertencente a F…, no chão, provocando o disparo que o atingiu.

Perante tais factos pretendem os apelantes que o único responsável por tal tragédia é F…, dono da arma porque a entregou a G… pedindo-lhe para a guardar, não lhe tendo dito se estava municiada ou não, sendo uma regra de ouro que nas horas de almoço ou de qualquer suplemento de alimentação, como no final de cada caçada, são retirados todos os cartuchos de cada arma.
É certo que o G… não lhe perguntou se a arma estava carregada ou não, contudo, poderá perguntar-se se era o dono da arma, F… que devia avisar o G… de que a arma ainda tinha cartuchos ou se era o G… que devia perguntar àquele se a arma já estava sem cartuchos?
Concordamos com tal objeção.
Segundo as boas regras cada caçador deve cumprir o dever de descarregar a arma quando termina a caçada.
A responsabilidade de F… advém da norma do art. 77º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro que aprovou o “Novo Regime Jurídico das Armas e suas Munições”, a qual prescreve: “1 - Os titulares de licenças e alvarás previstos na presente lei são civilmente responsáveis, independentemente da sua culpa, por danos causados a terceiros em consequência da utilização das armas de fogo que detenham ou do exercício da sua atividade”.
E advém igualmente da norma do art. 41 do mesmo diploma legal; “1 - O uso, porte e transporte das armas de fogo deve ser especialmente disciplinado e seguir rigorosamente as regras e procedimentos de segurança”, porquanto, o uso a que a norma se refere não pode deixar de abranger o espaço temporal imediatamente posterior ao fim da caçada, pelo que, tendo a arma ainda duas munições no seu interior, a obrigação de as retirar cabia a quem usava a arma, que como é normal, era quem sabia que a mesma estava municiada.
Assim, ao contrário do Tribunal a quo, cremos que a violação da norma do art. 41º citado recai em primeira linha na pessoa de F…, pessoa que usava a arma com as suas munições, e que como bem observaram os apelantes devia, não só ter retirado as munições ou pelo menos, ter advertido o companheiro G… que a mesma continha munições no seu interior.
Responsabilidade essa que, deve ser imputada a F… a título de culpa, porque violado não apenas um dever geral mas igualmente um dever especial de cuidado, por parte de quem tinha particular obrigação de o acautelar (art. 483º C.C.).
Aceitamos atribuir ao infeliz G… uma quota parte da responsabilidade com uma culpa leve, na medida em que, sendo uma arma uma coisa tão potencialmente perigosa, ao inseri-la no respetivo saco e ao colocá-la no veículo cumpria-lhe igualmente certificar-se que o podia fazer em segurança, não se limitando a confiar que o seu anterior utilizador o fizera em pleno.
Tal responsabilidade não pode contudo ter a grandeza que o tribunal a quo lhe atribuiu.
Na ponderação dos dois comportamentos em presença a medida de responsabilidade do dono e utilizador da arma é maior.
Assim, temos como ajustado distribuir as responsabilidades em 80% para F… e 20% para G….
Nesses termos, aos Autores, no seu conjunto, como herdeiros de G…, assiste direito ao pagamento da quantia de 50.000€ (62.500€ x 80%); à Autora B… assiste direito a uma reparação no montante de 20.000€ (25.000€ x 80%), a título de compensação pelo seu próprio sofrimento; a cada um dos Autores C… e D… e a idêntico título, uma remuneração no montante de 8.000 € (10.000 € x 80%).
Sobre tais quantias são devidos os juros fixados como na decisão recorrida.
IV
Termos em que, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se em parte a decisão recorrida, condenando-se a Ré a pagar aos Autores, no seu conjunto, como herdeiros de G…, a quantia de 50.000€ (62.500€ x 80%); à Autora B… o montante de 20.000€ (25.000€ x 80%), a título de compensação pelo seu próprio sofrimento; a cada um dos Autores C… e D… e a idêntico título, uma remuneração no montante de 8.000 € (10.000 € x 80%).
Sobre tais quantias são devidos os juros de mora à taxa de 4%, como fixados na decisão recorrida.

Custas por apelantes e apelada na proporção de 20% e 80% respetivamente, atento o decaimento.

Porto, 12 de Novembro de 2012
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura
José Eusébio dos Santos Soeiro de Almeida