Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
323/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
CHEQUE
DOCUMENTO PARTICULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. O cheque, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária. É, apenas, um meio de mobilização de fundos depositados pelo sacador em estabelecimento bancário e não importa, em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias a favor de terceiro de quem é emitido.
2. Privado da sua eficácia cambiária, não pode o cheque ser qualificado como documento consubstanciador do reconhecimento de uma obrigação pecuniária, donde decorre que o cheque, enquanto mero documento particular ou quirógrafo, apenas servirá como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na acção.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - RELATÓRIO
M, instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra A e mulher M, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de €4.987,98, acrescida do montante de €1.272,55 a título de juros vencidos, e dos juros vincendos sobre o referido capital até integral pagamento.
Para tanto, alega, em síntese, que em 20.07.1996 emprestou aos RR. 3.000.000$00 para o R. marido acudir às necessidades do seu comércio de venda de jóias, pelo prazo de 10 meses, e que, findo tal prazo, os RR. entregaram-lhe apenas a quantia de 1.000.000$00, entregando-lhe ainda o R. marido, como garantia da quantia ainda em dívida, um cheque por si preenchido e assinado, no montante de 1.000.000$00 (equivalente a €4.987,98), que, conforme acordado com os RR., deveria ser paga no prazo de um ano. Alega ainda que, decorrido o referido prazo, os RR. não lhe voltaram a entregar qualquer quantia.
Regularmente citados os Réus contestaram, negando os factos alegados pelo Autor e terminam pugnando pela absolvição do pedido contra si formulado. Não foi fixada base instrutória, nos termos do art. 787°, do C.P.C.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, respondendo-se à matéria de facto.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu os RR do pedido.
Inconformado com a sentença, da apelou o A., apresentando as seguintes conclusões:
1. O entendimento adoptado na Sentença recorrida, de que competia ao Autor fazer prova dos factos que alegou como fundamento ao seu pedido só pode derivar de uma incorrecta compreensão do valor probatório em que se consubstancia o cheque emitido pelo Apelado marido seja enquanto título cambiado, seja enquanto quirógrafo;
2. O cheque, enquanto quirógrafo representa o reconhecimento unilateral de dívida.
3. A invocação do cheque como quirógrafo significa que se utiliza o mesmo como documento particular, sem as características que são próprias dos títulos de crédito. A ordem de pagamento dada ao banco e concretizada no cheque implica, em princípio, um reconhecimento unilateral da dívida. É ao devedor que, nos termos do art. 458° do C. Civil, incumbe a prova da inexistência ou da cessação da respectiva causa.
4. Se os Apelados ordenaram ao Banco onde dispõem de fundos que pagasse aquela importância em dinheiro ao Apelante era porque estavam juridicamente obrigados e assim se consideravam.
5. O devedor, neste caso, tem o ónus da prova da sua inexistência, originária ou subsequente.
6. O cheque na veste de quirógrafo, enquanto reconhecimento unilateral de dívida e promessa de pagamento, faz funcionar uma presunção da existência da dívida e da respectiva causa justificativa que liberta o credor da alegação fundamental subjacente e ao contrário, onera o devedor com a prova da inexistência originária ou subsequente dessa relação.
7. Impendia sobre os Réus, ora Apelados, o dever e a obrigação de alegar e provar a inexistência ou modificação das relações fundamentais que serviram de causa e motivação à emissão do cheque pelo Apelado marido, pelo que, não tendo aqueles logrado essa prova, há que concluir pela existência de uma dívida no montante de E 4.987,98 advinda do contrato de mútuo celebrado entre o Apelante e os Apelados.
8. A apresentação de cheque, emitido a título de garantia do contrato de mútuo, faz prova plena da efectiva entrega da prestação integradora do mesmo, transferindo-se, assim, para o devedor o ónus estabelecido no art. 347° do C. Civil.
9. O cheque sempre consubstanciará uma ordem de pagamento, tratando-se de um documento que titula e comprova a existência de um crédito e de uma obrigação pecuniária.
10. É forçoso concluir-se que o Autor provou a existência do empréstimo no montante de € 4.98798.
11. Competia aos RR provarem que tal não corresponde ao que efectivamente se verificou, ou seja, provarem a inexistência da relação fundamental.

Contra-alegaram os RR, tendo concluído:
1. O Autor funda o seu pedido condenação dos Réus no pagamento de 4.987,98 € acrescido de juros, no facto de ter emprestado aos Réus aquele montante pecuniário, por determinado prazo, e, decorrido este, os Réus não terem procedido à entrega da quantia em questão.
2. Não resultou, dos factos provados que o Autor tenha entregue aos Réus, conforme aquele alegou na p.i., qualquer quantia pecuniária, nem que entre as partes tenha sido celebrado qualquer acordo com vista a tal entrega e restituição.
3. Tendo o pedido do Autor por fundamento a entrega de determinado montante que este teria feito aos Réus, esta alegada entrega seria essencial e fundamental para a integração dos factos no contrato de mútuo invocado, pelo que, não tendo sido provada a entrega de capital realizada pelo Autor, a acção terá necessariamente que improceder.
4. O cheque não prova a existência do mútuo.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, importa decidir se o cheque, como quirógrafo, importa ou não em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias a favor de terceiro de quem é emitido.

II – FACTOS PROVADOS
1. O R. marido preencheu, assinou e entregou ao A. o cheque n° 3774406299, s/ o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A., balcão de Cascais, no montante de 1.000.000$00 (um milhão de escudos).
2. O A., tal como se comprometeu, nunca depositou nem levantou o referido cheque, acreditando que os RR. pagariam a quantia.

III – O DIREITO
O Autor funda o seu pedido – condenação dos RR. no pagamento de €4.987,98 acrescido de juros - no facto de ter emprestado aos RR. aquele montante pecuniário, por determinado prazo, e, decorrido este, os RR. não terem procedido à entrega da quantia em questão.
Atenta a causa de pedir invocada, verifica-se que o A. pretende a condenação dos RR com fundamento na existência de um de mútuo, (art. 1142°, do C.C.).
A sentença recorrida considerou que tendo o pedido do A. por fundamento a entrega de determinado montante que este teria feito aos RR., pelo que esta entrega seria essencial para a integração dos factos no contrato de mútuo invocado, não sendo provada a entrega realizada pelo A., deverá a acção improceder.
Diz o Apelante que o cheque, enquanto quirógrafo, representa o reconhecimento unilateral de dívida. A ordem de pagamento dada ao banco e concretizada no cheque implica, em princípio, um reconhecimento unilateral da dívida. É ao devedor que, nos termos do art. 458° do C. Civil, incumbe a prova da inexistência ou da cessação da respectiva causa.
Se os Apelados ordenaram ao Banco onde dispõem de fundos que pagasse aquela importância em dinheiro ao Apelante era porque estavam juridicamente obrigados e assim se consideravam, ou seja, porque deviam tal quantia.
Vejamos:
Dispõe o nº 1 do art. 458º citado que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
Almeida Costa refere, a este propósito, que “a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade da causa dos negócios jurídicos”. (1)
Trata-se aqui de uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e de inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Todavia, e embora sabendo que a questão não é pacífica (2), entendemos que um cheque não importa reconhecimento de uma dívida, pois que apenas enuncia ou contém uma ordem de pagamento. O cheque é um título cambiário que enuncia uma ordem dirigida a um banco, onde o emitente tem, ou deve ter, fundos disponíveis, para que pague à pessoa que apresente o cheque a quantia nele inscrita.
Mas, como refere o Ac. da RL, de 20.06.2002 (3) a obrigação de pagamento do montante nele inscrito apenas emerge do cheque, por si só considerado, quando é encarado e usado como título de crédito. “Como mero documento particular, despido da natureza e força que lhe são conferidas pela LUC (...) não pode ser reconduzido à previsão do art. 458º, nº 1, na medida em que não incorpora, por si só, qualquer reconhecimento de dívida (4)
Sabido que as letras, as livranças, os cheques não deixam de ser documentos particulares que contêm a assinatura do devedor, se acaso morrem as obrigações cambiárias que nasceram com a aposição da assinatura do devedor no título, então o que resta, para determinar se estamos ou não perante um documento particular que importa constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, é olhar para o que é já apenas um quirógrafo e verificar se nele estão impressos essa constituição ou reconhecimento.
Fica o quirógrafo, ou seja, o simples escrito particular assinado pelo devedor.
Conclui-se, por isso, que o cheque, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária. É, apenas, um meio de mobilização de fundos depositados pelo sacador em estabelecimento bancário e não importa, em si mesmo, a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias a favor de terceiro de quem é emitido.
Privado da sua eficácia cambiária, não pode o cheque ser qualificado como documento consubstanciador do reconhecimento de uma obrigação pecuniária, donde decorre que o cheque, enquanto mero documento particular ou quirógrafo, apenas servirá como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na acção.
Assim, no caso de esse documento não valer como cheque, ele, enquanto quirógrafo e nessa medida, não importa constituição de qualquer obrigação pecuniária entre exequente (tomador do cheque) e executado (sacador do cheque) porque a obrigação pecuniária constituída que importava era a proveniente da vinculação cambiária.
Do que se trata agora é tão-somente da relação fundamental que não foi constituída pelo cheque e que não pode obviamente considerar-se constituída pelo seu quirógrafo.
Estamos, no caso do cheque, face a um negócio abstracto; a abstracção significa que “ a causa é separada do negócio cambiário, decorre, não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornam inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais (5).
Esta separação da causa não permite concluir que, na base da emissão do cheque, se encontra uma relação fundamental em que o emitente é o devedor. Assim será na maioria dos casos, mas não é certo que assim seja sempre
Por isso, nos negócios abstractos, a emissão do cheque não pode valer como declaração tácita de reconhecimento de dívida porque, de modo algum, essa emissão constitui facto que, com toda a probabilidade, revele uma tal manifestação de vontade (artigo 217º do Código Civil).
O cheque não traduz reconhecimento de dívida é também o entendimento de Lopes do Rego quando refere: “em certos actos (v.g. no cheque) a constituição da obrigação cambiária não é atribuível à autonomia da vontade dos interessados (o cheque incorpora uma ordem de pagamento e não o reconhecimento de um débito), radicando, apenas na lei que cria para o emitente do título, posto em circulação, uma obrigação legal de garantir o respectivo pagamento ao legítimo portador (6).
No caso dos negócios unilaterais (promessa de cumprimento, reconhecimento de dívida: artigo 458º do Código Civil) não estamos face a negócios abstractos, mas face a negócios que "criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi (7).
O documento junto aos autos, enquanto quirógrafo, apenas nos diz que o R. marido ordenou ao BESCL que pagasse a quantia de 1.000.000$00 e entregou o dito documento ao A.
Será esta matéria suficiente para se ter por reconhecida a dívida por banda dos RR? Só assim seria viável a tese da Apelante, no sentido da inversão do ónus da prova, atendendo ao disposto no art. 458º do CC.
Parece-nos que não, atendendo a quanto ficou dito.
É certo que também ficou provado que o A., tal como se comprometeu, nunca depositou nem levantou o referido cheque, acreditando que os RR. pagariam a quantia.
Mas, o facto de o A. ter acreditado que a quantia em causa seria paga pelos RR. não significa que estes se tenham comprometido a pagar-lhe o que quer que fosse. O A. pode ter criado, erradamente, uma expectativa que depois não se concretizou.
Mesmo entrando em linha de conta com a defesa apresentada pelos RR, na contestação, que admitem que o A. terá feito um financiamento, a um terceiro, proprietário de uma ourivesaria e que era conhecido dos RR., isso não pode significar que, pelo menos, o R., ao emitir o cheque em causa, entregando-o ao A. e que este nunca movimentou, tenha reconhecido a dívida no montante dele constante.

2. Se não foi feita prova do reconhecimento unilateral da dívida, por banda do R. que emitiu o cheque, muito menos foi feita prova da existência de um contrato de mútuo entre o A. e os RR.
De facto, pese embora o A. tenha indicado a causa da emissão do cheque – um mútuo - a verdade é que não logrou fazer prova dos factos constitutivos do seu direito.
Assim sendo, improcedem as conclusões da alegação do Recorrente.

IV – DECISÃO
Termos em que, julgando improcedente a apelação, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2006.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)

____________________________
(1).-Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., 387

(2).-Com entendimento contrário ao aqui defendido, podem ver-se, entre vários outros, Acs. do STJ, de 11.05.1999, CJ/STJ, 1999, II, 88 e de 20-05-2004 (relator Luís Fonseca), www.dgsi.pt, e que o Apelante segue de perto.

(3).-CJ, 2002, III, 103

(4).-No mesmo sentido, vd. , entre outros, Acs. do STJ, de 20.11.2003, CJ/STJ, 2003, III, 154, de 30/10/2003 (Pires da Rosa), www.dgsi.pt e de 29.02.2000 (Silva Paixão), CJ/STJ, 2000, I, 124 e Acs. da RC, de 27.06.2000 e de 6.02.2001, CJ, 2000, III, 37 e da RL de 11.10.2001 (Fernanda Isabel Pereira) CJ, IV-120 e de 20/6/2004 (Salazar Casanova), www.dgsi.pt.

(5).-Lições de Direito Comercial, Ferrer Correia, Vol III, 1975, pág 48.

(6).-Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, 1999, pág 69.

(7).-Das Obrigações em Geral, Antunes Varela, 8ª edição, 1994, pág 444.