Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
258/2007-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ALIMENTOS
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. A concessão do direito a alimentos nas uniões de facto está dependente da verificação, entre outros, do requisito de a convivência marital na união se ter processado em condições análogas às dos cônjuges, o que não ocorre se o peticionário de alimentos não vivia em exclusiva união de facto com a autora da herança, antes vivendo também, há pelo menos 7 anos, em união de facto com outra mulher, da qual tem uma filha e com a qual continuou a viver após a morte da outra companheira.
II. Além disso, não justifica lhe seja reconhecido direito a alimentos aquele que, auferindo mensalmente a quantia de € 498,80, não efectuou prova de não possuir quaisquer outras fontes de rendimentos, não efectuou prova das despesas e encargos que possui, nem ainda de estar impossibilitado de beneficiar da prestação de alimentos por parte dos seus familiares mais próximos.

(P.R.)

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, ANTÓNIO intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra HERANÇA JACENTE por óbito de MARIA e ISSS-INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA, pedindo se reconheça o seu direito a alimentos da herança da falecida, bem como às prestações por morte no âmbito dos regimes de segurança social, alegando, em síntese, que:

Desde pelo menos há 22 anos que o A., que é solteiro, e Maria, que era divorciada, viviam numa situação análoga à dos cônjuges;

A sua companheira faleceu em 22 de Maio de 2001, deixando bens que se encontram por descrever no competente processo de Inventário, que corre os seus termos no tribunal.

A herança é composta por um prédio onde o A. actualmente reside.

Desconhece-se a existência dívidas, para além da correspondente a um empréstimo, contraído para a aquisição do prédio supra referido no valor aproximado de Esc. 44.000$00 (quarenta e quatro mil escudos) e de que é credor o Montepio Geral.

O A. tem duas filhas menores a seu cargo e que com ele residem, pelo que não lhes pode exigir alimentos.

Resta ainda, ao A., sua mãe, reformada, e três irmãos, um dos quais deficiente que também não estão em condições económicas de os prestar.

A HERANÇA JACENTE contestou, alegando que o A. vivia com a falecida e outra pessoa com quem ainda vive e de quem tem a segunda filha menor e que a herança não tem bens para pagar qualquer pensão ao A e que este, de qualquer modo, não necessita de alimentos por trabalhar e ter um vencimento de cerca de Esc. 100.000$00, devendo a acção improceder.

O ISSS contestou dizendo que o A não alegou factos que permitam concluir pela impossibilidade de prestação de alimentos e que desconhece as condições de vida do A, devendo a acção ser julgada de acordo com a prova que se vier a produzir.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador e elaborada a especificação e a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo as rés do pedido.

Inconformado com a decisão, veio o A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

1. Deve ser revogada a sentença ora recorrida, sendo proferido acórdão no sentido de:

2. Julgar procedente a Acção intentada pelo Autor ora Recorrente contra os RR., ora Recorridos, Herança por Óbito de Maria e ISSS-Instituto de Solidariedade e Segurança Social, e,

3. Consequentemente ser proferida sentença que declare o direito do Apelante a beneficiar de alimentos da herança da falecida, bem como às prestações por morte no âmbito dos regimes da Segurança Social.

4. A douta sentença recorrida ao decidir como decidiu violou por isso o art. 2020º do Código Civil e art. 6º da Lei n.º 7/2001, de 11/05, estando também ferida do vício de falta de fundamentação estatuído no art. 668º, n.º 1, alínea b).

Termos em que,

Deverá ser dado provimento ao presente recurso, anulando - se a decisão recorrida, com a consequente condenação dos ora Recorridos nos termos peticionados no presente articulado, como é de direito e de inteira JUSTIÇA

A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do mesmo, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber se deve declarar-se o direito do Apelante a beneficiar de alimentos da herança da falecida Maria, bem como às prestações por morte no âmbito dos regimes da Segurança Social.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

(…)

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Como é sabido, o legislador português tem vindo a adoptar medidas de protecção às uniões de facto, com vista a aproximar os seus efeitos dos da relação contratual fundada no casamento.

No que respeita ao direito a alimentos, veio a estipular-se no n.º 1 do art. 2020º (na redacção do DL 496/97, de 25/11) que “aquele que, no momento da morte da pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009º”, isto é, se os não puder reclamar do cônjuge, ex-cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos. Sendo que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, tal direito caduca se não for exercido nos dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão.

Temos, assim, que a concessão do direito a alimentos nas uniões de facto ficou dependente, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

“a) Que o membro da união de facto falecido, à custa de cuja herança os alimentos serão pagos, não seja casado à data da sua morte ou que, sendo casado, se encontre nessa altura separado judicialmente de pessoas e bens. Quer isto dizer, por conseguinte, que a pretensão alimentícia só pode ser exercida, neste caso, em relação à herança do companheiro ou companheira, que tenha falecido no estado de solteiro, viúvo, divorciado ou de separado judicialmente de pessoas e bens (não contra a herança de pessoa casada, ainda que separada de facto);

b) Que o requerente dos alimentos tivesse vivido maritalmente, há mais de dois anos, à data da morte do hereditando, com este;

c) Que a convivência marital entre eles se tenha processado em condições análogas às dos cônjuges;

d) Que o requerente não tenha possibilidade de obter os alimentos de que carece, nem do seu cônjuge ou ex-cônjuge, nem dos seus descendentes, ascendentes ou irmãos;

e) Que o direito seja exercido dentro dos dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão;

f) Que a necessidade do alimentando se refira aos meios de subsistência estritamente necessários para viver, e não para manter o padrão de vida que o requerente e o falecido mantiveram durante a união de facto...” (1).

Como se deixou enunciado, a ocorrência destes requisitos é cumulativa de modo que basta que um deles se não verifique para que o direito a alimentos, por parte do peticionário, comprovado se não mostre.

Para além do direito a alimentos, veio ainda o legislador tornar aberto às uniões de facto o direito às prestações previstas no DL 322/90, de 18/10 - direito às pensões de sobrevivência, de subsídios por morte e por assistência de terceira pessoa, por morte dos beneficiários do regime geral de segurança social - pois se estabelecia, no n.º 1 do art. 8º, que “o direito às prestações neste diploma e o respectivo regime jurídico, são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do art. 2020º do CC ". Sendo que o decreto que veio regulamentar este diploma, o Decreto Regulamentar n.º 1/94 de 18/1, era inequívoco, ao estipular, no seu art. 2º, o direito às prestações por morte no âmbito dos regimes de segurança social, “a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges".

Esclarecia, no entanto, o n.º 1 do art. 3º, do mesmo DL, que "a atribuição das prestações às pessoas referidas no artigo 2º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do art. 2020º do Código Civil”.

Idêntico regime se veio a estabelecer na Lei 135/99, de 28/8, em cujo art. 6º, nomeadamente se dizia que beneficia dos direitos previstos nas alíneas f) e h) do artigo 3.º da presente lei quem reunir as condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais civis.

A Lei 7/2001, de 11 de Maio, que substituiu aquela Lei, mas não alterou a respectiva regulação, veio, no entanto a tornar claro que os direitos às prestações por morte do beneficiário se efectivam através de uma única acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição, pondo assim fim a uma velha questão sobre a qual a Jurisprudência se mostrava dividida e que era a de saber se seriam necessárias duas acções quando eram solicitadas prestações sociais à Segurança Social através do então Centro Nacional de Pensões ou a outra instituição: uma, instaurada contra a herança, para se comprovar a inexistência ou insuficiência de rendimentos, e outra contra a instituição competente para conseguir obter as competentes prestações sociais, depois de obtido o reconhecimento do pedido efectuado na primeira acção.

Com efeito, o n.º 2 do art. 6º enuncia, expressamente, que «em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição», o que significa que o legislador pretendeu que tais direitos apenas fossem reconhecidos e efectivados ao membro sobrevivo da união de facto, através de uma única acção judicial contra a instituição competente para a respectiva atribuição.

Da conjugação dos normativos citados se conclui que os pressupostos necessários para alguém, que viveu em união de facto com o autor da herança, ter direito à pensão de sobrevivência e de outras prestações do regime de segurança social são os mesmos que para ser titular do direito a alimentos da herança, mas o direito às prestações da segurança social não fica condicionado ao reconhecimento prévio, através de acção judicial, do direito a alimentos da herança, bastando uma única acção movida contra a instituição a quem deva ser reclamada a pensão.

Acresce que compete ao peticionário de alimentos da herança, ou da pensão de sobrevivência e de outros benefícios sociais, produzir a alegação e prova dos factos pelos quais se possa concluir pela verificação dos requisitos necessários à concessão das prestações a que se arroga com direito, enquanto factos constitutivos desse mesmo direito.

Na sentença recorrida, entendeu-se que ao Apelante não assistia direito a alimentos da herança e à pensão de sobrevivência, porque o A vivia não só com a falecida Maria mas também com Eugénia de quem tem uma filha, situação de facto que contraria a vivência em situação análoga à dos cônjuges prevista no art. 2.020º do CC e que o Apelante também não alegou ser economicamente carenciado, limitando-se a requerer a declaração do seu direito a alimentos da herança e às prestações por morte da falecida.

Deste entendimento diverge o Apelante que alega que resulta da prova carreada para o processo que: o ora Recorrente viveu com a falecida em situação análoga à dos cônjuges durante 22 anos; tem a seu cargo duas filhas menores, sendo uma delas fruto da relação conjugal que manteve com a falecida Maria; o Recorrente, sendo trabalhador por conta de outrem, aufere cerca de € 498,80 mensais; o Recorrente está impossibilitado de beneficiar da prestação de alimentos por parte dos seus familiares mais próximos, uma vez que dos familiares que poderiam prestar alimentos um é falecido e o outro é deficiente.

Ora, não parece que o Apelante tenha razão.

Com efeito, aplicando os princípios acima descritos ao caso vertente tem de se aceitar que o Apelante não justifica lhe seja reconhecido direito aos alimentos que peticiona, pois que auferindo mensalmente a quantia de € 498,80, não efectuou prova de não possuir quaisquer outras fontes de rendimentos, não efectuou prova das despesas e encargos que possui, nem ainda de estar impossibilitado de beneficiar da prestação de alimentos por parte dos seus familiares mais próximos. Aliás, analisada a petição inicial constata-se que o Apelante não alegou sequer carecer de alimentos para a sua subsistência.

Como se defendeu no douto Acórdão do STJ de 23/09/1998, “a obrigação alimentar, decorrente da união de facto, consagrada no artigo 2.020.º do Código Civil, reporta-se tão somente ao estritamente necessário ao sustento, habitação e vestuário do alimentando”(2). O que parece irrefutável, pois que resulta da conjugação dos artigos 2003º e 2004º do CC, que é esse âmbito ou medida que estão expressamente contemplados na lei para as obrigações alimentares em geral. E é necessário ter presente que os alimentos que podem ser devidos em virtude da união de facto são os referidos nos artigos 2003.º e 2004.º do Código Civil e não os alimentos a que se refere o artigo 1.675.º do Código Civil (direito a alimentos inserido no cumprimento do dever recíproco de assistência entre os cônjuges).

No primeiro caso a noção de alimentos deve restringir-se, como dizem, P. Lima e Antunes Varela, aos “meios de subsistência estritamente necessários para viver, e não para manter o padrão de vida que o requerente e o falecido mantiveram durante a união de facto, como se depreende, aliás, logo da simples localização sistemática da norma – colocada, não nas adjacências do direito matrimonial ou à sombra de recíproco dever de assistência conjugal, mas no coração do título do Código que trata dos alimentos, no sentido técnico-jurídico da expressão”(3).

O segundo caso tem a ver com o dever de assistência conjugal referido no artigo 1.675.º do Código Civil, cujo n.º 1 diz que o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar. E tem-se entendido que na expressão “alimentos” cabe tudo quanto seja necessário, não apenas ao sustento, habitação e vestuário do titular do direito, como consta do artigo 2.003.º, n.º 1, mas tudo o que a plena comunhão de vida que o casamento cria entre os cônjuges, concretamente, a igualação do seu trem de vida económica e social, para usar a linguagem dos citados autores(4).

A obrigação alimentar referida no artigo 1.675.º do Código Civil constitui uma relação jurídica familiar que tem como fonte o casamento, enquanto a obrigação alimentar referida no artigo 2.020.º do mesmo diploma tem como fonte a união de facto, na medida em que tutela certos aspectos da união de facto e esta não constitui uma relação jurídica familiar.

Daí que a união de facto não é, (ou não é ainda) no nosso ordenamento jurídico, uma relação jurídica familiar e por isso não decorrem desta os direitos que a lei reconhece a quem vive e por que vive em união de facto. Como é sabido, não há ainda uma equiparação dos direitos e deveres no âmbito da união de facto aos derivados do casamento.

Como se refere no douto Acórdão da RC de 21-06-2005, “com estes diplomas (os acima citados) procurou-se, por imperativo de justiça social, acautelar alguns direitos fundamentais à custa do sistema ou sistemas de segurança social que dependem da contribuição dos cidadãos neles enquadrados. Daí que o que for atribuído ao companheiro sobrevivente de uma união de facto é pago pelos contribuintes da segurança social; serão então alguns a receber do que é produto do sacrifício de todos. E só isto (parece) bastaria para perceber que não é justo que o sacrifício de uns seja canalizado indiscretamente, não para sobrevivência digna, mas para comodidade de outros.

Num momento histórico da sociedade portuguesa, em que se impõem restrições que se antevêem duras à generalidade dos cidadãos em nome da segurança social, não seria seguramente justo que dos seus cofres saísse dinheiro para alguém que dele diz carecer, não para o que é necessário ao seu sustento, habitação e vestuário, mas, por exemplo, para fazer viagens ao estrangeiro, como fazia em vida de um falecido companheiro pensionista. Certamente que não é este o espírito do legislador que adoptou as medidas de protecção das uniões de facto constantes da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio”(5).

Por outro lado também não pode relevar, para o caso, o facto de o Apelante apenas auferir mensalmente a quantia de € 498,80 e ser de conhecimento público o inevitável aumento de custo de vida, pois que estando o Apelante a trabalhar e a auferir salário também é previsível que o seu salário vá evoluindo no sentido de acompanhar o crescimento desse custo de vida.

Além disso, e como bem se salienta na sentença, o Apelante nem sequer provou ter vivido em exclusiva união de facto com a autora da herança, pois se provou que, há pelo menos 7 anos que vivia com a falecida, Maria, e também com a Eugénia e que após a morte de Maria continuou a viver com a referida Eugénia, da qual tem uma filha.

O Apelante ao reclamar direitos da herança da companheira defunta, quando possuía, e possui, uma outra companheira sobreviva, não aclara sequer qual o papel, de uma e de outra, na sua economia doméstica, para se saber, afinal, quem dependia de quem. O que, à partida, não podia acreditar a sua pretensão.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas nas instâncias pelo Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES

_________________________

1 Código Civil anotado, vol. V (1995), págs. 620.

2 CJ/STJ, 1998, III, 13.
3 Código Civil anotado, vol. V (1995), págs. 620.
4 Código Civil anotado, 2.ª edição (1992), págs. 265.
5Acessível em http://www.dgsi.pt/rc.