Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO SAAVEDRA | ||
Descritores: | PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO ARQUIVAMENTO DOS AUTOS VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SITUAÇÃO DE PERIGO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - A exposição de uma criança, por qualquer forma, a uma situação de violência doméstica – sobretudo repetida ao longo do tempo – constitui, em si mesma, um perigo suscetível de reclamar a intervenção para promoção dos direitos e proteção dessa criança; II - Tendo sido comunicado ao Ministério Público pela CPCJ que uma criança, de 12 anos de idade, vem sendo exposta a uma situação de violência doméstica do pai sobre a mãe, no seio do agregado familiar que integra, e que esta entidade foi impedida de intervir por recusa de consentimento da mãe e da criança, competia ao Ministério Público instaurar processo de promoção e proteção para averiguação da concreta condição da criança e aplicação, sendo o caso, da medida de promoção e proteção adequada. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa. I- Relatório: O Ministério Público veio requerer, em 2.2.2022, ao abrigo dos arts. 3, nº 2, al. f), 11, al. c), 72, nº 3, e 105, nº 1, da Lei nº 147/99, de 1.9, e do art. 1918 do C.C., processo judicial de Promoção e Proteção relativamente a A, nascida em 3.7.2009, filha de João ..... e de Catarina ....., e residente em Santa Cruz, Lagoa. Invoca, para tanto e em síntese, que a sinalização da criança à CPCJ decorreu do facto daquela integrar um agregado em que eram conhecidos episódios de violência doméstica e que, em 30.6.2021, foi apresentada nova participação policial da qual consta que a progenitora afirmou ser vítima de violência doméstica com ocorrências cada vez mais graves desde que o marido deixou de poder sair da habitação por decisão judicial. Nesse dia 30.6.2021, a progenitora compareceu no local de trabalho com o olho esquerdo negro e com o braço esquerdo com hematomas, tendo confirmado ter sido agredida pelo companheiro, o que deu origem no DIAP ao Inquérito 460/21.6PGPDL. Mais refere que, no Proc. Comum (Tribunal Coletivo) nº 176/17.8JAPDL, o progenitor da menor tinha sido já condenado, por acórdão transitado em julgado em 14.5.2018, por dois crimes de violência doméstica em que eram ofendidas a mãe da menor e uma irmã desta, pena essa que integrou cúmulo jurídico e foi suspensa na sua execução por quatro anos e onze meses. Refere que a progenitora, após os factos referidos na participação policial de 30.6.2021, não assumiu a sua situação de vítima, tendo afirmado na CPCJ que o hematoma no olho foi provocado por um galho e negou que tivesse sido agredida pelo marido que, nessa altura, se encontrava em prisão domiciliária, e que a menor Clara não aceitou a intervenção da CPCJ tendo afirmado que não presenciou a agressão. Diz que embora se desconheça em concreto a situação da indicada menor, a sua exposição a contextos de violência doméstica, a confirmar-se, só por si consubstancia uma situação de perigo que fundamenta a instauração de processo judicial de promoção e proteção. Conclui, pedindo se declare aberta a instrução e, concluindo-se que a situação de perigo se confirma e subsiste, se aplique a medida de promoção e proteção que se verificar adequada. Em 4.2.2022, foi proferida a seguinte decisão: “O Ministério Público veio instaurar processo de promoção e protecção com vista à aplicação de medida de promoção e protecção à menor A, nascida 03/07/2009 (ou seja, presentemente com 12 anos de idade), fundamentando essa pretensão na circunstância de a “sinalização da criança à CPCJ decorreu do facto de integrar um agregado em que eram conhecidos episódios de violência doméstica” (destaque meu). Ora, começo por observar que a Digna Magistrada do Ministério Público parece esquecer que os perigos, a existirem, têm de ser actuais, não consentido a visão de que naqueles cabem situações passadas (algumas nem confirmadas), nem putativos cenários. Aliás, a própria “vítima” (a mãe da menor, Catarina .....) nega que tenha sido agredida pelo marido (artigo 7.° da petição e quanto ao evento de 30/06/2021, que a própria A afirma não ter presenciado!). Não podemos esquecer que é condição de legitimidade da intervenção de promoção e protecção, e para mais judicial, nos termos do art. 3.°, n.°s 1 e 2, al. g), da LPCJP, que os menores/jovens se encontrem em perigo, designadamente por existirem comportamentos que os afectem gravemente, isto é, que sejam um modo qualificado de concretizar esse perigo, não bastando uma medida mais ou menos ténue ou mediana dele. Naturalmente, sobre isso, decorre o balanceamento necessário entre a importância dos fins da intervenção, dirigida à tutela de interesses dos menores, TENDO SEMPRE presente que a intervenção a que haja lugar deve, entre outros, orientar-se, nos termos do art. 4.°, als. d) e e), da LPCJP, pelos princípios da intervenção mínima, proporcionalidade (incluindo necessidade e adequação) e actualidade, igualmente em óbvia decorrência de valores com a mesma guarida constitucional [arts. 18.°, n.° 2, 36.°, n.° 5 e 6, 67.°, n.°s 1 e 2, als. a) e c), todos da CRP]. Dito isto, nos próprios termos em que a questão vem colocada no requerimento inicial (que é inepto por falta de causa de pedir), não há qualquer situação de perigo que importe acautelar, tanto mais que a Digna Magistrada do Ministério Público acaba por referir que desconhece “em concreto a situação da criança A, a sua exposição a contextos de violência doméstica (a confirmar-se), só por si consubstancia uma situação de perigo que fundamenta a instauração de processo judicial de promoção e protecção”. Nesta lógica de ideias, todas as crianças em Portugal teriam que ter a seu favor um “processo de averiguação” de putativas situações de perigo (com intervenção judicial), pois, não sendo conhecidas (ou sequer sinalizadas), sempre podem existir... O que se pretende verdadeiramente, no âmbito dos processos de promoção e protecção, é actuar com mecanismos de protecção das crianças e de promoção dos seus interesses quando enfrentem perigos efectivos (não situações de risco, será esta a confusão de conceitos para alguns), mas de modo tão contido quanto possível, de forma a preservar a autonomia das famílias, que tem um elevado valor social e goza de forte tutela constitucional. É a esse fito que cabe entender (e respeitar, movendo-se os actores do sistema sempre por eles iluminados) os ditos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade e actualidade [art. 4.°, als. d) e e), da LPCJP]. Enfatiza-se que, face ao próprio reconhecimento vertido na peça apresentada, não existe qualquer perigo que importe acautelar, com a sequente intervenção judicial. Aliás, e no caso concreto, a putativa situação de violência doméstica não foi assumida pela vítima, e disso a Digna Magistrada do MP dá a devida nota. Sendo certo que a situação aqui trazida, à míngua de melhor e profusa alegação, naufraga diante do próprio reconhecimento plasmado no artigo 9.° da petição, sendo certo que a criança afirma não ter presenciado qualquer agressão. Assim, em face do exposto, é de não receber o requerimento inicial, ou melhor, nem mesmo declarar aberta a instrução e pelo contrário determinar imediatamente o arquivamento do processo, face à manifesta improcedência da pretensão de intervenção judicial de promoção e protecção, e em todo o caso nos termos do arts. 106.°, n.° 2, al. b) e 111.°, da LPCJP. Deste modo, e sem necessidade de maiores considerandos, determino o ARQUIVAMENTO do processo. Notifique o MP e comunique.” Deste despacho interpôs recurso o M.P., apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas: “ 1. A sinalização da criança à CPCJ decorreu do facto de integrar um agregado em que eram conhecidos episódios de violência doméstica, 2. tendo o seu progenitor sido já condenado por dois crimes de violência doméstica agravada, sendo ofendidas a progenitora e uma irmã da jovem, 3. sendo que, em 30/06/2021, foi apresentada nova participação policial, a qual fundamentou a instauração do processo na CPCJ, participação de onde consta que a progenitora afirmou ser vítima de violência doméstica com ocorrências cada vez mais graves desde que o marido deixou de poder sair da habitação por decisão judicial. 4. Nessa altura, o progenitor encontrava-se em regime de permanência na habitação no âmbito de um outro processo. 5. Embora se desconheça em concreto a situação da criança A, mas estando a mesma inserida num agregado onde são conhecidos episódios de violência doméstica, esta situação, só por si, consubstancia uma situação de perigo que fundamenta a instauração de processo judicial de promoção e proteção já que o art. 3°, n°. 2, al. f) da LPCJP refere que se considera em perigo a criança que está sujeita, tanto de forma direta, como indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional. 6. A confirmação, ou não, da concreta existência de perigo e consequente necessidade de intervenção judicial, só pode fazer-se, com os elementos disponíveis, após diligências de instrução. 7. Entendendo o M.P. que dos factos constantes dos autos não resulta a inexistência de fundamento ou desnecessidade de intervenção que determine o imediato arquivamento dos autos 8. antes configurando uma situação indiciadora de perigo que só posteriores diligências de instrução poderão levar a concluir que não se confirma ou não subsiste. 9. Pelo que, na opinião do M.P., perante os factos que constam dos autos, que só após a realização das competentes diligências de instrução se podem ou não confirmar, não poderia o Mmo Juiz concluir que não configuram uma situação de perigo, não receber o requerimento inicial e determinar, sem mais, o arquivamento do processo. 10. Devendo, antes, ser declarada aberta a instrução e ordenadas diligências instrutórias, designadamente solicitando-se à EMAT a realização de relatório de onde possa concluir-se se existe situação de perigo que fundamente a aplicação de medida de promoção e proteção. Assim, considera o M.P. que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 3°, n°s 1 e 2, al. f), 106, n°s 1 e 2, al. a) e 111, todos da Lei n°. 147/99, de 01/09 (LPCJP).” Não se mostram oferecidas contra-alegações. O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II- Fundamentos de Facto: A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório, retirando-se ainda do “Relatório de Intervenção” da CPCJ junto com a petição inicial que: 1) A situação da menor A, nascida em 3.7.2009, filha de João ..... e de Catarina ......, foi comunicada pela PSP de Lagoa à CPCJ em 5.7.2021, tendo em conta a violência doméstica existente, há vários anos, entre os pais com quem a criança vive; 2) Os pais foram convocados à CPCJ a fim de prestar o seu consentimento e a mãe não o prestou, declarando que o hematoma no olho foi provocado por um galho e negando que tivesse sido agredida pelo marido que, então, se encontrava em prisão domiciliária; 3) A menor A não aceitou a intervenção da CPCJ, afirmando que não presenciou a agressão. * III- Fundamentos de Direito: Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. Compulsadas as conclusões do recurso, cumpre apreciar se devem prosseguir os autos, com abertura de instrução, conforme requerido pelo M.P.. Vejamos. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e não podem destes ser separados, salvo quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial (art. 36, nºs 5 e 6, da C.R.P.). Incumbe ainda aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação até à respetiva maioridade ou emancipação (arts. 1877 e 1878 do C.C.). As crianças têm, por outro lado, direito à proteção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, em particular contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições, cabendo ao Estado, em especial, assegurar proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal (art. 69, nºs 1 e 2, da C.R.P.). Também a Convenção Sobre os Direitos da Criança (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20.11.1989, assinada por Portugal em 26.1.1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, de 12/9, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12.9) impõe que os Estados tomem medidas de proteção das crianças contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, quer se encontrem sob a guarda dos pais ou de qualquer outra pessoa a quem tenham sido confiadas (cfr. art. 19, nº 1), e prevê que as crianças apenas serão separadas de seus pais se essa separação se mostrar necessária “no interesse superior da criança”, como, por exemplo, no caso de os “pais maltratarem ou negligenciarem a criança” (art. 9, nº 1, da referida Convenção). Dispõe ainda o art. 1918 do C.C. que: “Quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais das responsabilidades parentais, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 1915.º, decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência.” A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 147/99, de 1.9 – LPCJP – com última atualização da Lei nº Lei n.º 26/2018, de 5.7), estabelece no nº 1 do seu art. 3, que: “A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.” Por sua vez, o nº 2 do mesmo normativo dispõe que se considera em perigo a criança ou jovem que se encontre, designadamente, numa das seguintes situações: “a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais; e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação. h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.” O art. 4 da LPCJP estabelece os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, entre os quais figura, na respetiva al. e), o da proporcionalidade e atualidade: “a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade”. A referida intervenção cabe, por sua vez, às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às comissões de proteção de crianças e jovens e aos tribunais (art. 6 da LPCJP), sendo que nomeadamente a levada a cabo pelas comissões de proteção depende do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto (art. 9, nº 1) e da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos (art. 10, nº 1). Por outra banda, a intervenção judicial terá lugar, remetendo a comissão o processo ao Ministério Público, quando, entre outros motivos, não seja prestado ou seja retirado o consentimento necessário à intervenção da comissão de proteção ou quando a criança ou o jovem se oponham à intervenção da dita comissão de proteção (art. 11, nº 1, als. c) e e), e 3, da LPCJP). Finalmente, ao Ministério Público cabe a iniciativa processual do processo judicial de promoção e proteção se, tendo recebido comunicação da CPCJ, considere haver indícios de situação de perigo para a criança ou jovem, suscetíveis de reclamar a aplicação de medida judicial de promoção e proteção (arts. 72, nº 3, 73 e 105, nº 1, da LPCJP). Revertendo para o caso em análise, constatamos que, de acordo com a alegação do Ministério Público no requerimento inicial, foi reportada à CPCJ a situação da menor A, nascida em 3.7.2009, em virtude de, vivendo esta com os progenitores, o pai da mesma ter já sofrido condenação por crimes de violência doméstica, nomeadamente contra a mãe da menor, e de ter sido instaurado um novo inquérito por crime idêntico em Junho de 2021. Resulta ainda dos autos que a situação foi comunicada pela PSP de Lagoa à CPCJ em 5.7.2021, tendo em conta a violência doméstica existente, há vários anos, entre os pais com quem a criança vive. Entretanto, por recusa de consentimento da mãe e da A, já com 12 anos de idade, – negando a primeira a agressão do marido que participara em Junho de 2021 e a segunda afirmando que não presenciou a agressão – ficou impossibilitada a intervenção da CPCJ que, assim, remeteu o processo para o Ministério Público. O Ministério Público, por sua vez, instaurou o presente processo judicial de Promoção e Proteção relativamente a A, invocando os arts. 3, nº 2, al. f), 11, al. c), 72, nº 3, e 105, nº 1, da Lei nº 147/99, de 1.9, e do art. 1918 do C.C.. Entendeu-se na decisão recorrida injustificada a instauração do mesmo, uma vez que não é invocado nem caracterizado qualquer perigo efetivo em que a criança se encontre e que cumpra acautelar, acentuando que a mãe nega a existência de agressão e a criança afirma não a ter presenciado. Não subscrevemos tal entendimento. Uma criança que cresce num ambiente de violência interparental é inevitávelmente afetada e considerada também ela vítima, tendo em conta as variadas formas pelas quais é possível a mesma estar exposta a este contexto, exposição a que está associado o desenvolvimento de certo tipo de problemas, com consequências mais ou menos graves para a criança([1]). “(...) quando há violência conjugal há sempre violência contra crianças, seja ela exercida de forma direta e/ou “indiretamente”. As crianças que crescem em convívio permanente com contextos de violência na conjugalidade são consideradas, por excelência, vítimas silenciosas da dinâmica parental disruptiva.(…).”([2]) Será, assim, da própria vivência da criança no seio de um agregado familiar em que existem episódios, mais ou menos frequentes, de violência entre os progenitores, que decorre a exposição desta, mais ou menos grave, ao perigo que essa violência representa. De acordo com a previsão do art. 152, nº 2, al. a), do Código Penal, o agente que pratique atos de violência doméstica, nos termos descritos no nº 1 daquele normativo, contra menor de 18 anos ou na presença de menor de 18 anos, sofre agravação na moldura penal da pena de prisão aplicável, a situar-se entre os dois e os cinco anos. “(…) A vitimação do menor ocorre, pois, quer nos casos em que as ofensas lhe são diretamente dirigidas, quer naqueles outros em que apenas presencia os comportamentos violentos. De facto, os maus tratos entre casais encerram também o risco de vitimação da criança, aumentando a probabilidade de esta se tornar vítima do mesmo tipo de crime, praticado pelo mesmo agressor(..) (“vitimação direta”), ou de sofrer traumas quando exposta a um contexto de violência doméstica, num quadro vulgarmente denominado de “vitimação indireta”. Fala-se, quanto a esta última, em crianças consubstanciadoras de mau trato psicológico, que aterroriza a criança, a oprime, a força a viver em ambientes hostis e perigosos e expõe a modelos negativos e violentos. A referida agravação da moldura penal contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º reflete, pois, o facto de o legislador ter sido sensível às nefastas consequências que um contexto de violência doméstica imprime nos vários domínios do desenvolvimento da criança/jovem vítima, quer ao nível físico, quer cognitivo, emocional, comportamental e social. Consequências estas que se podem manifestar de imediato ou, eventualmente, mais tarde, no decurso do respetivo processo de desenvolvimento ou já na idade adulta; constituindo fator de risco de psicopatologia. Segundo Ana Isabel Sani, «As crianças expostas à violência parental têm mais problemas comportamentais, exibem afecto significativamente mais negativo, respondem menos apropriadamente às situações, mostram-se mais agressivas com os pares e têm relacionamentos mais ambivalentes com as pessoas que delas cuidam do que as crianças de famílias não violentas» – op. cit. Tendo, assim, presente a gravidade dos comportamentos de quem violenta uma criança ou pratica atos de violência na sua presença, no contexto de que ora nos ocupamos, o legislador penal decidiu então agravar a moldura penal aplicável à conduta do agente, tendo ainda previsto, entre as demais penas acessórias elencadas nos n.ºs 4 a 6 do artigo 152.º e atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, que, segundo Maria Elisabete Ferreira(..), está em consonância com a tutela do superior interesse da criança.(…).”([3]) Explica-nos, a propósito, Ana Teresa Leal([4]): “(…) sempre que haja notícia de situação de violência doméstica em que no agregado familiar existam crianças, porque as mesmas podem estar, e por regra estão, numa situação de perigo, deve ser dado conhecimento à CPCJ e/ou ao Ministério Público, para que se proceda à abertura de um processo de promoção e proteção, no âmbito do qual, em situações graves, poderá ser aplicada uma medida cautelar de proteção da criança, nos termos do art.º 37.º, da LPCJP. Igualmente em situações graves, sempre que exista um perigo iminente para a vida ou integridade física ou psíquica da criança, podem as entidades com competência em matéria de infância e juventude ou a CPCJ, nos termos dos procedimentos de urgência previstos nos art.º 91.º e 92.º, da LPCJP, tomar as medidas necessárias à sua proteção, designadamente retirando-a da situação de perigo e integrando-a em casa de acolhimento ou em instalações da entidade que procede à sua retirada. Mesmo não havendo consentimento para a intervenção, por parte dos pais ou de quem tem a sua guarda e, enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança ou jovem da situação de perigo e asseguram a sua proteção de emergência.(…).” Do que se deixa dito resulta incontornável que a exposição de uma criança, por qualquer forma, a uma situação de violência doméstica – sobretudo repetida ao longo do tempo, como parece ser aqui o caso, de acordo com o que foi alegado – constitui, em si mesma, um perigo suscetível de reclamar a intervenção para promoção dos direitos e proteção dessa criança, nos termos do art. 3, nº 2, al. f), da LPCJP, na medida em que se considera em perigo a criança ou jovem que se encontre sujeita, ainda que de forma indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional. A circunstância de, depois de denunciada a agressão, a mãe negar a sua existência e a criança afirmar não a ter presenciado não significa, quanto a nós, o seguro afastamento de uma situação de perigo. Na verdade, tal comportamento ocorre com frequência em situações de violência doméstica, seja por dependência da vítima, económica ou outra, face ao agressor, seja por simples medo de represálias deste. Mesmo quando esse agressor não tenha diretamente ameaçado a vítima com qualquer rataliação no caso desta promover a intervenção de autoridades oficiais e/ou contribuir para a prova da existência dessas mesmas agressões. Acresce que, na situação em análise, foi impedida a intervenção da CPCJ por recusa de consentimento da mãe e da criança, o que motivou a intervenção do Ministério Público sem outros meios para averiguar maiores detalhes sobre a real condição da criança (cfr. art. 74 da LPCJP). Pelos mesmos motivos que, em abstrato, podem explicar a ulterior negação da agressão pela vítima, não se mostra no caso particularmente tranquilizador que tenha sido recusada a intervenção e acompanhamento da CPCJ. Deste modo, comunicado ao Ministério Público pela CPCJ que a criança em apreço, de 12 anos de idade, vem sendo exposta a uma situação de violência doméstica do pai sobre a mãe, no seio do agregado familiar que integra, e que esta entidade foi impedida de intervir por recusa de consentimento da mãe e da criança, competia ao Ministério Público instaurar processo de promoção e proteção para averiguação da concreta condição da criança e aplicação, sendo o caso, da medida de promoção e proteção adequada. Donde, cremos que se mostra suficientemente alegada nos autos a exposição da menor A a uma situação de perigo – violência doméstica do pai sobre a mãe, no seio do agregado familiar que integra – a justificar o prosseguimento dos autos, com abertura da instrução e demais trâmites, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 106 e ss. da LPCJP, sem prejuízo de vir a ser determinado o arquivamento do processo se vier a concluir-se que a situação de perigo, afinal, não se comprova ou já não subsiste (art. 111 da LPCJP). Não pode, pois, manter-se o decidido. * IV- Decisão: Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos. Sem custas. Notifique. * Lisboa, 8.3.2022 Maria da Conceição Saavedra Cristina Coelho Edgar Taborda Lopes _______________________________________________________ [1] Cfr. Margarida Santos, “Exposição da Criança a Violência Interparental: Perturbação de Stress Pós-Traumático”, Pós-Graduação em Proteção de Crianças em Perigo e Intervenção Local, ISCSP, págs. 2 e 3. [2] Ob. cit., pág. 3. [3] Cfr. “A tutela processual penal do menor «vítima» de violência doméstica. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual”, e-book do CEJ, Abril 2021, págs. 16 e 17. [4] In “Violência Doméstica – A Proteção da Vítima”, Jornadas sobre Violência Doméstica, Ordem dos Advogados, pág. 102. |