Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9103/2004-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: PENHORA
AUTARQUIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2005
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. Embora reconhecendo-se a penhorabilidade da parcela dos 15% do montante global das transferências a operar dos impostos do Estado para as autarquias, nos termos do art. 8º da Lei das Finanças Locais, há que ter em conta que essa penhora só se poderá efectivar-se mensalmente e sobre o valor dos duodécimos a transferir, em termos semelhantes à penhora de rendas ou vencimentos de carácter periódico.
2. É que, estando os montantes correspondentes à participação dos municípios nos impostos do Estado indiscutivelmente afectados aos fins específicos daqueles, de carácter e interesse público, não poderia admitir-se que, para satisfação dos, embora legítimos, interesses dos credores indubitavelmente reconhecidos, as autarquias ficassem, a dado momento, privadas da totalidade dos montantes destinados a assegurar as ditas finalidades de interesse público.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. O Município, executado no processo de execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, que corre termos no Tribunal Judicial da Amadora, em que é exequente a sociedade C, S. A., recorre do despacho de julgou improcedente a oposição que deduziu à penhora de “15% da quantia que o executado tem direito a receber a título de participação nos impostos do Estado”.
Alegou e, a final, concluiu:
A) A executada Câmara é o órgão executivo da autarquia local que se consubstancia no Município.
B) A Autarquia é uma pessoa colectiva de direito público.
C) A execução em apreço não visa a entrega de coisa certa nem se destina à efectivação de pagamento de dívida com garantia real.
D) A participação do município nos impostos do estado indicada à penhora e objecto da mesma constitui bem relativamente impenhorável – nº 1 do artigo 823° do Código Processo Civil
E) As receitas das autarquias resultantes das suas participações nos impostos do estado pertencem ao domínio privado indisponível daquelas, sendo, consequentemente impenhoráveis.
F) As verbas recebidas pelas autarquias, enquanto pessoas colectivas públicas, a título de participação nos impostos do estado, pertencem ao domínio privado indisponível das mesmas.
G) Que pela sua própria natureza se encontram natural e indubitavelmente afectas a fins de utilidade pública.
H) O disposto no artigo 8° da Lei das Finanças Locais (Lei 42/98 de 06/08) não consagra a penhorabilidade pelos tribunais desses bens por causa de dívidas, matéria que exigiria explícito acolhimento legal.
I) O regime legal coloca-se em plano diverso, verificada a existência de dívidas definidas nos termos do preceito em causa, pode o Estado deduzir uma parcela até 15% do montante global das transferências a realizar de acordo com o disposto no n° 4 do artigo 10° da Lei das Finanças Locais (Lei 42/98 de 06/08), isto é, mensalmente.
J) A lei não acolhe a possibilidade de os tribunais penhorarem as receitas em apreço, quer porque não fala nessa possibilidade, quer porque não atribui qualquer poder aos tribunais relativamente àquelas receitas.
K) A fórmula usada aponta para que seja o Estado e não a autarquia local o destinatário da previsão legal.
L) Se fosse a autarquia local, a lei falaria em afectar uma parcela a certo fim, e aí seria a autarquia local a poder proceder a tal afectação.
M) Falando a lei em deduzir, só pode deduzir quem transfere e nunca o beneficiário da transferência.
N) A lei estabelece um sistema, segundo o qual compete ao Estado, na base do conhecimento das dívidas mencionadas no artigo 80º da Lei das Finanças Locais (Lei 42/98 de 06/08), deduzir uma parcela até ao limite previsto no mesmo artigo.
O) Parcela essa que, portanto, não chega a constituir receita autárquica, ou seja, a integrar o património autárquico.
P) As participações das autarquias nos impostos dos Estado são bens que são postos ao serviço e no interesse público, como meio de garantir o funcionamento do serviço a fins de utilidade pública.
Q) E não apenas bens que têm uma função de mera produção de um rendimento ou uma utilidade económica, situação que os classifica como bens destinados a fins de utilidade pública - Cfr. o recente acórdão da Relação de Lisboa de 04/03/2004.
R) Efectivamente, os fins de utilidade pública só são obtidos através de uma série de actos e uso de bens (cfr. o recente acórdão da Relação de Lisboa de 04/03/2004), entre os quais, a nosso ver, se encontram as participações das autarquias nos impostos do Estado.
S) O despacho recorrido violou, entre outras normas, o artigo 823 nº 1 do C. Processo Civil;
T) Bem como operou, com o devido respeito, uma errada interpretação do art. 8º da Lei das Finanças Locais (Lei 42/98 de 06/08);

A recorrida contra alegou, pedindo a manutenção do decidido, invocando, basicamente, que:
- A penhora da parcela deduzida às transferências do Estado para a Executada ao abrigo do disposto no artigo 8° da Lei das Finanças Locais não constitui um bem relativamente impenhorável, para efeitos do disposto no artigo 823°, n° 1 do C.P. C;
- O facto de a Embargante / Executada constituir uma pessoa colectiva de direito público não é determinante para que todos os seus bens sejam impenhoráveis, pois tem de a Executada provar que os mesmos se destinam à prossecução do interesse público característica da sua natureza jurídica;
- O Tribunal a quo interpretou de forma correcta o disposto no artigo 8° da Lei das Finanças Locais, que se destina a gerar disponibilidade de satisfação dos créditos dos particulares que contratam com as autarquias, desta forma se assegurando o crédito destas no comércio jurídico, em nada beliscando o interesse público que as mesmas prosseguem;
- Encontram-se, in casu, reunidos os pressupostos de aplicação do referido preceito, que legitimam a actuação do Tribunal a quo, uma vez que a quantia exequenda foi devidamente reconhecida pela Executada e a penhora foi ordenada até o limite de 15% do valor total das transferências mensais do Estado para a Executada;
- De acordo com o Parecer junto pela Executada, é expressa a conclusão de que a parcela a deduzir pelo Estado das transferências para a Executada (art. 8° da Lei das Finanças Locais) não chega a constituir uma receita autárquica, ou seja, a integrar o património autárquico, pelo que não chega a pertencer ao domínio privado indisponível da Executada, ao contrário do que acontece com as restantes participações nos Impostos do Estado, que não se contesta que são postos ao serviço do interesse público prosseguido pela Executada;
- Destinando-se a parcela a que se refere o artigo 8°- da Lei das Finanças Locais à satisfação dos créditos dos particulares reconhecidos pelas autarquias, não poderá a mesma ser considerada impenhorável, sob pena de esvaziamento do conteúdo daquele preceito;
- Contradiz-se a Recorrente quando afirma que os tribunais não podem aceder às quantias deduzidas, mas pode o Estado deduzir a referida parcela às transferências mensais para as Autarquias, mediante a verificação das referidas dívidas, quando tal poderá ser levado a seu conhecimento por via judicial, uma vez que o legislador não especifica outra via para o efeito;
- Acresce que a própria Administração Central, através da Direcção-Geral das Autarquias Locais, sendo o destinatário da previsão do artigo 8° da Lei das Finanças locais, reconheceu a legitimidade da penhora da parcela em causa no âmbito dos presentes autos, ao efectuar a penhora, nos termos em que foram ordenados pelo douto Tribunal a quo, sem à mesma se opor.
O despacho recorrido foi sustentado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Para a apreciação do recurso importa considerar a seguinte factualidade processual:
- Em 25.03.2003, Construções, S.A., intentou execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra a “Câmara”, pedindo que esta fosse citada para pagar a quantia global de € 184 648,20 ou nomear bens à penhora suficientes para garantir o pagamento daquela quantia, juros, custas e demais encargos com a acção.
- A exequente fundou a execução nos autos de conciliação homologado pelo Ministro das Obras Públicas Transportes e Comunicações, em 17.10.2002, subsequentes a tentativas de conciliação extrajudicial relativa a três empreitadas, que ajustara com a executada, a saber:
a) “Empreitada para a realização de obras no caminho municipal 1132 - A. do Coelho – Cabeça da Serra”;
b) “Empreitada para a realização de obras no caminho da Ponte Guilherme”;
c) “Empreitada para a realização de obras no caminho municipal 1192 – Rio Torto – Monte da Ribeira”.
- O pagamento das quantias em dívida, relativas às ditas empreitadas, deveria ter ocorrido até 2.11.2002, o que não aconteceu.
- Posteriormente, a exequente, fazendo apelo ao disposto no art. 836º nº2 do CPC e no art. 8º da Lei nº 42/98, de 6.08, veio requerer que fosse oficiado à Direcção-Geral das Autarquias Locais, para proceder ao depósito da quantia exequenda - dizendo estimar ser aquela, na data, de € 270 255,55 – em resultado de dedução das transferências para a executada, resultantes da aplicação da referida Lei das Finanças Locais e do Orçamento de Estado, aprovado e em vigor em 2004.
- Por despacho proferido em 2.02.2004, fundado no disposto no art. 8º da citada Lei nº 42/98, foi ordenado que se procedesse “ à penhora de 15% da quantia que a executada tem direito a receber a título de participação nos impostos do Estado”.
- Em 14.04.2004, a executada veio deduzir oposição à penhora, invocando basicamente que as verbas que são recebidas pelas autarquias, enquanto pessoas colectivas públicas, a título de participação nos impostos do Estado, pertencem ao domínio privado indisponível das mesmas, uma vez que se encontram afectas a fins de utilidade pública, pelo que são impenhoráveis.
- Essa oposição veio a ser julgada improcedente, pelo despacho ora em recurso, com fundamento em que a impenhorabilidade legal dessas participações só existia para além de um limite de 15% do seu respectivo montante global, nos termos do art. 8º da Lei das Finanças Locais.

3. A única questão colocada no presente recurso traduz-se em saber se a participação dos municípios nos impostos do estado, a que se refere o art. 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, (Lei das Finanças Locais), constitui bem relativamente impenhorável, por virtude do disposto no art. 823º nº1 do CPC.
Sendo, em princípio, os bens do domínio público do Estado e das restantes pessoas colectivas de direito público impenhoráveis (art. 822º, al b), do CPC), a instauração de execução, no tribunal, só pode ter lugar no caso de impossibilidade de cobrança através da requisição prevista no nº 2 do art. 12º do DL nº 256-A/77, de 17 de Junho, ou seja, através das dotações destinadas ao pagamento de encargos resultantes de sentenças de quaisquer tribunais, obrigatoriamente inscritas no respectivos orçamentos, dotações essas que, anteriormente ficavam à ordem do Conselho Superior da Magistratura (cfr. art. 74º da antiga LPTA) e que actualmente são inscritas à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entidade a quem agora incumbe emitir as ordens de pagamento que lhe forem requisitadas pelos tribunais (cfr. arts. 170º e 172º da Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro).
Mas, para além dos casos de impenhorabilidade absoluta, estatui o art. 823º nº 1 do CPC, que estão isentos de penhora (impenhorabilidade relativa), (salvo situação que ora não interessa considerar), os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
Para o caso específico das autarquias locais e sob a epígrafe “Dívidas das autarquias”, dispõe actualmente o art. 8º da Lei das Finanças Locais (Lei nº 42/98, de 6 de Agosto) o seguinte:
Quando as autarquias tenham dívidas definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas junto dos credores (…), pode ser deduzida uma parcela às transferências resultantes da aplicação da presente lei, até ao limite de 15% do respectivo montante global”
E após se ter estabelecido no art. 10º, nº 1 do mesmo diploma, que os municípios têm direito a uma participação em impostos do Estado equivalente a 30,5% da média aritmética simples da receita proveniente do IRS, IRC e IVA, acrescentou-se no seu nº 4 que:
“Os montantes correspondentes à participação dos municípios nas receitas referidas no nº 1 são inscritas nos orçamentos municipais, (…) e transferidos por duodécimos até ao dia 15 do mês correspondente.”

Perante este quadro normativo, defende a recorrente que as verbas recebidas pelas autarquias, enquanto pessoas colectivas de direito público, a título de participação nos impostos do estado, pertencem ao domínio privado indisponível das mesmas e, consequentemente, são impenhoráveis.
Por seu turno, defende a recorrida, no seguimento do entendimento constante do despacho em recurso, que, destinando-se a parcela a que se refere o artigo 8° da Lei das Finanças Locais à satisfação dos créditos dos particulares reconhecidos pelas autarquias, não poderá a mesma ser considerada impenhorável, sob pena de esvaziamento do conteúdo daquele preceito. E com razão.
Perante a epígrafe e teor do citado art. 8º da Lei das Finanças Locais, preceito de carácter especial, dúvidas parece não poder haver que a parte das transferências financeiras para as autarquias, que está legalmente afectada ao pagamento das dívidas incontestáveis daquela, pode ser penhorada, desde que respeitado o respectivo limite e período de transferência, ou seja, a penhora embora podendo incidir sobre os ditos 15% do respectivo montante global a transferir, não poderá efectivar-se de uma só vez, mas sim em função dos duodécimos a transferir.
É que, estando os montantes correspondentes à participação dos municípios nos impostos do Estado indiscutivelmente afectados aos fins específicos daqueles, de carácter e interesse público, não poderia admitir-se que, para satisfação dos, embora legítimos, interesses dos credores indubitavelmente reconhecidos, as autarquias ficassem, a dado momento, privadas da totalidade dos montantes destinados a assegurar as ditas finalidades de interesse público.
Assim sendo, embora reconhecendo-se a penhorabilidade da parcela dos 15% do montante global das transferências a operar dos impostos do Estado para as autarquias, nos termos do citado art. 8º da Lei das Finanças Locais, há que ter em conta que essa penhora só se poderá efectivar-se mensalmente e sobre o valor dos duodécimos a transferir, em termos semelhantes à penhora de rendas ou vencimentos de carácter periódico.
Improcede, pelo exposto, a argumentação do recorrente, impondo-se negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido, embora com o esclarecimento de que a penhora ordenada só poderá ser efectivada parcelarmente, na medida dos duodécimos a transferir, nos termos do art. 10º, nº 4, da dita Lei das Finanças Locais.

4. Termos em que se acorda em negar provimento ao agravo e manter o despacho recorrido, com a ressalva acima enunciada.
Custas pelo agravante.

Lisboa, 2 de Junho de 2005.

Maria Manuela Santos e G. Gomes
Olindo dos Santos Geraldes*
Fátima Galante
* Votei vencido, por considerar que devia ter sido dado provimento ao recurso, dado o princípio da impenhorabilidade relativa consagrado no nº1 do art. 823º. do C.P.C.