Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Nº Convencional: | JTRL00023012 | ||
| Relator: | RIBEIRO COELHO | ||
| Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL | ||
| Nº do Documento: | RL199505180084076 | ||
| Data do Acordão: | 05/18/1995 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Área Temática: | DIR CIV - DIR OBG. | ||
| Legislação Nacional: | CCIV66 ART610 - ART616. CCIV867 ART1033 ART1044. CPC67 ART193 N2 B. | ||
| Sumário: | I - Contrariamente ao regime do CC de 1867, na lei vigente, a impugnação pauliana não implica a reversão dos bens ao património do devedor, podendo o credor executá-los no património do obrigado à restituição. II - Não é inepta a petição se, sendo claro que o A. pretende a impugnação pauliana, pede a anulação do negócio celebrado em seu eventual prejuízo. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa Coube ao 3 Juízo do Tribunal Judicial de Sintra a acção declarativa com processo ordinário que a Caixa Geral de Depósitos propôs contra (J) e mulher (M), (Q) e mulher (C), (P) e mulher (N), (R) e mulher (S), Lda, onde foi pedida a anulação da escritura de hipoteca outorgada em 07/06/82, pela qual os dois primeiros réus, agindo em nome e representação da ré sociedade, constituiram segunda hipoteca, a favor dos segundos e terceiros réus, sobre um lote de terreno para construção sito na Agualva, já dado em primeira hipoteca ao Montepio Geral. Alegou, em sintese, que concedeu à ré sociedade empréstimos avalizados pelos RR. indicados em 2, 3 e 4 lugares, que seriam garantidos em 1 hipoteca pelo prédio que estava em construção pela sociedade; que os RR. foram protelando a escritura e entretanto constituiram hipoteca sobre o mesmo imóvel a favor da Caixa Económica de Lisboa anexa ao Montepio Geral, contra empréstimo que por esta foi concedido; que foi depois celebrada a escritura acima mencionada, dela resultando a impossibilidade de a A. obter satisfação do seu crédito, tendo os RR consciência do prejuízo que lhe causavam. Contestaram, em separado, os RR. (Q) e mulher e os RR. (R) e mulher. Foi depois proferido despacho saneador onde se entendeu que a p. i., contendo factos tendentes à demonstração da causa de pedir de uma acção pauliana, nada alegava que pudesse conduzir à anulação da escritura nela visada; que a impugnação pauliana não é geradora de nulidade, mas de ineficácia do acto impugnado, no que diverge do regime do CC de 1867; que, por isso, há contradição entre o pedido e a causa de pedir, causa de ineptidão da p. i.. Decidiu-se, em consequência, absolver os RR. da instância. Daqui agravou a A., que, alegando, formulou as seguintes conclusões conducentes à revogação do despacho: 1- Constam dos articulados todos os factos necessários e suficientes para a efectivação do pedido da acção pauliana, acção esta que a agravante expressamente caracterizou como tal no art. 18 da p. i. e como lhe foi reconhecido da douta decisão recorrida. 2- E como acção pauliana foi a mesma compreendida e contestada pelos RR. que o fizeram, nenhum deles tendo excepcionado a ineptidão da p. i.. 3- Concluso várias vezes o processo ao Meritíssimo Juiz recorrido, nunca por este foi levantada a questão da ineptidão da p. i., e deveria tê-lo sido se tivesse considerado a acção como anulatória dada evidente omissão de factos essenciais caracterizadores de tal pedido, que se não fez. 4- Efectivamente a fls. 121 ordenou-se a suspensão da instância até que tivesse sido registada a acção. 5- Só cinco anos decorridos, ao ser proferido o despacho saneador, o Senhor Juiz entendeu que, tendo a A. usado a expressão anular em vez de impugnar, teria praticado uma contradição entre o pedido e a causa de pedir geradora de ineptidão. 6- Mas não tem razão. 7- O presente processo é efectivamente uma acção pauliana, e não de anulação. 8- Os factos articulados são os próprios da acção pauliana, não sendo modificados pela circunstância de se ter usado impropriamente a palavra anulação. 9- A ora agravante, não tendo usado o rigor jurídico da terminologia agora usada pelo legislador, não ficou condenada a ver a sua petição qualificada de inepta. 10- A esta conclusão conduz o art. 664 do CPC ao estabelecer que o Juiz não está sujeito às partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, devendo a petição ter sido corrigida em conformidade. 11- As normas processuais invocadas afloram um princípio geral de Direito extensivo às normas substantivas e à teoria geral das obrigações, em que o uso de um nome para caracterizar um contrato não implica necessariamente que seja esse (vide arts. 293 e 295 do CC). 12- Que não houve erro, nem acerca da causa do pedido, nem do seu fundamento, nem do seu objecto, resulta da circunstância de a petição ter sido perfeitamente apreendida pelos RR., que a contestaram e que, excepcionando, nunca se lembraram de referir a nulidade agora invocada pelo despacho recorrido. 13- Sendo adequada a forma processual e legal e adequado o pedido para a pretensão que se fez valer, não é o facto de se ter trocado um nome por outro que pode obstar ao conhecimento do pedido. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. A A. Caixa Geral de Depósitos pediu a anulação de uma escritura de hipoteca com o fundamento de que desse acto resultava uma diminuição da sua garantia patrimonial quanto a um crédito de que é titular e de que é credora a sociedade ré, traduzida na impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito. O pedido visava o accionamento do mecanismo previsto nos arts. 610 e seguintes do CC, como expressamente se dizia no art. 18 da p. i. Os normativos pertinentes a este instituto não contêm a definição do mesmo, mas apenas os seus pressupostos e consequências, o que é natural visto que à lei não compete dar definições e conceitos, mas regimes que doutrinariamente serão elaborados consoante a leitura que deles for feita. Assim, depois de se falar em impugnação pauliana - art. 612 - e em impugnação "Tout Court" - arts. 610, 613, 614, e 615 -, vem o n. 1 do art. 616 deste Código dizer: "Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição." Deixou, pois, de se falar na rescisão do acto impugnado, ao contrário do que determinavam os arts. 1033 e segs. do CC de 1867. Também se não fala em nulidade ou anulabilidade do acto, ou qualquer outra consequência que envolva o desaparecimento do acto e dos seus efeitos translativos e vinculativos. E que a impugnação pauliana não assenta na existência de nulidade ou anulabilidade do acto resulta claramente do disposto no art. 615 do CC, em cujo n. 1 se prevê a impugnação ainda que o acto seja nulo; o contrário envolveria pesada contradição lógica e jurídica, especialmente porque se não compreenderia que o Tribunal decretasse a anulação de um acto cuja nulidade operara já de forma automática e com efeitos que urgiria fazer retroagir. Mas aquela antiga terminologia gerou a ideia de que o acto impugnado era anulado - cfr., designadamente, o acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 1966, publicado no BMJ n. 162, pg. 284, onde se regista, em todo o caso, uma forte imprecisão terminológica, pois nele se fala em rescisão, em anulação e em acção revogatória. Os próprios Pires de Lima e Antunes Varela não escapam a esta influência; na sua obra Noções fundamentais de Direito Civil, vol. I, 4 edição, pois usam a fls. 329 a seu respeito a expressão "anulação", a par de "rescisão" e "revogação". Desta concepção disse Vaz Serra, RLJ, ano 100, pag. 206; "...a concepção de que a acção pauliana é uma acção de nulidade pode considerar-se abandonada: o acto contra o qual a acção se dirige não é nulo, mas válido, visto não ter vício algum interno que obste à sua validade..." Isto permite dizer que na vigência do Código de Seabra já não era correcto pedir-se a anulação do acto que se impugnava, pois a solução dada pela lei era a sua rescisão; mas não se concluiria daí a irregularidade da p. i., que seria tratada de acordo com o pensamento do Juiz nesta matéria. Havia, em todo o caso, uma rescisão, com o consequente desfazer do acto, o que implicava que os bens alienados revertessem ao património do devedor, em benefício dos seus credores - art. 1044 desse Código. É aqui que se capta a profunda diferença que este instituto agora evidencia, pois, procedendo a impugnação, os bens podem ser executados no património do obrigado à restituição - o que significa que não revertem já para o património do devedor - e os respectivos efeitos só aproveitam ao credor que a requereu - o que significa que o eventual remanescente cabe ao obrigado à restituição, e não ao devedor. Tudo isto decorre do disposto nos ns. 1 e 4 do art. 616 do CC. Da p. i. que deu origem aos presentes autos, entrada em juízo em 14/11/85, vê-se que não terá havido uma correcta percepção da evolução legislativa e doutrinária entretanto havida, mas daí não decorre qualquer equívoco sério e razoável sobre o comando pedido ao Tribunal, já que o pedido de anulação da escritura é extraído da invocação, feita também em sede de formulação do pedido, de que estão verificados todos os pressupostos da impugnação pauliana. E as disposições legais invocadas no mesmo articulado foram as que regulam este instituto. Assim, há todos os elementos necessários para entender que a ora agravante pretende proceder com esta acção à impugnação pauliana, com o regime e os efeitos que segundo a lei vigente lhe são próprios; do mesmo modo há todos os elementos necessários para se compreender que a concreta formulação do pedido de anulação foi uma expressão imprópria devida a deficiência de patrocínio da parte, como se reconhece, com honesta e louvável humildade, nas alegações da agravante. Há ainda que salientar que nas contestações que se acham juntas a fls. 56 e 84 os RR. contestantes desenvolveram as suas teses, com perfeita clareza, no sentido da sem razão da A., ora agravante, cuja real pretensão bem entenderam, não tendo dúvidas de que era a impugnação pauliana que estava em jogo. E a sem razão que invocaram assentou, não em não ser cabida a anulação do acto, mas na falta dos pressupostos da impugnação pauliana. E em nenhuma delas se arguiu a ineptidão. Não se pretende com isto dizer que o Juiz não pode no saneador absolver o réu da instância por ineptidão da p. i. se a respectiva nulidade não foi arguida na contestação; poderá fazê-lo, certamente, desde que não esteja em condições de proferir a decisão pertinente devido a vício insuperável da forma como a questão a decidir lhe está colocada. Há que seguir a lição de Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, pg. 226: "Deve, pois, entender-se que só se verifica a hipótese da al. b) do n. 2 do art. 193, quando a contradição envolva verdadeira ininteligibilidade do pedido do autor." No caso em apreço percebe-se claramente que a Caixa pretende valer-se da impugnação pauliana, que só por erro derivado de uma duvidosa tradição jurídica procura fazer funcionar por via da anulação do acto. Com este alcance - o de se tratar de uma incorrecta e negligenciável concretização daquilo que é a essência da pretensão - deverá ser entendido o pedido de anulação que está formulado nos autos; assim se assegura uma leitura que não vai ao arrepio das expectativas das partes, alimentadas ainda por cima por uma pendência que vai já em mais de 8 anos, e se respeitam as conclusões a que conduz uma análise ponderada e atenta de todas as circunstâncias e antecedentes que ficaram mencionados. Por todo o exposto se revoga o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, declarando não haver ineptidão pelo motivo em causa, prossiga o saneamento dos autos e demais termos processuais aplicáveis. Sem custas. Lisboa, 18 de Maio de 1995. |