Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CALHEIROS DA GAMA | ||
Descritores: | INSUBORDINAÇÃO POR OUTRAS OFENSAS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/28/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I - A palavra “caralho”, proferida por militar (Cabo da Guarda Nacional Republicana), na presença do seu Comandante, em desabafo, perante a recusa de alteração de turnos, não consubstancia a prática do crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar. II - Será menos própria numa relação hierárquica, mas está dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário”, em que expressões consideradas ordinárias e desrespeitosas noutros contextos, porque trocadas num âmbito restrito (dentro das instalações da GNR) e inter pares (o arguido não estava a falar com um oficial, subalterno, superior ou general, mas com um 2º Sargento, com quem tinha uma especial relação de proximidade e camaradagem) e são sinal de mera virilidade verbal. Como em outros meios, a linguagem castrense utilizada pelos membros das Forças Armadas e afins, tem por vezes significado ou peso específico diverso do mero coloquial. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório 1. No processo nº 1/09.3F1STC, findo o inquérito, que correu termos na Divisão de Investigação Criminal de Lisboa da Polícia Judiciária Militar, o Ministério Público do DIAP de Lisboa deduziu acusação, para ser julgado em processo comum e Tribunal Colectivo [Militar] contra o arguido A…, Militar da Guarda Nacional Republicana, com o posto de Cabo e em exercício de funções na Brigada Fiscal, com domicílio profissional no Subdestacamento de Vila..., titular do Bilhete de Identidade ooooooo, emitido em 00.00.0000, pelo Arquivo de Identificação da Guarda Nacional Republicana, imputando-lhe a prática de um crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar. O arguido requereu a abertura da instrução. Foi esta realizada e proferida, em 12 de Abril de 2010, pelo Mmº Juiz da Secção Militar do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, decisão instrutória que não pronunciou o arguido e ordenou, em consequência, o arquivamento dos presentes autos. 2. O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso, extraindo das suas motivações as seguintes conclusões: “A) A prova produzida em instrução não infirmou, de modo algum, aquela que foi produzida em sede de inquérito; B) Resulta suficientemente indiciado que o arguido proferiu as expressões constantes da acusação, as quais dirigiu ao ofendido, Sargento B…, Comandante Interino do Posto da Guarda Nacional Republicana; C) Na verdade, a palavra “caralho”, proferida pelo arguido, na presença do seu superior hierárquico, de forma alguma, poderia constituir um mero desabafo, antes, indignado, pelo facto de o seu superior não permitir a troca de serviço, visou o arguido atingi-lo na sua honra e consideração; D) Mas, então existe outro significado para a palavra, “caralho” em causa, dita naquele contexto, que não seja injurioso, ofensivo, de afronta, em relação à pessoa a quem é dirigida? Não perfilhamos de tal entendimento; E) A circunstância de o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal referiu que, quer o ora arguido, quer o senhor Sargento B… convivem no mesmo espaço de serviço, tal não retira ilicitude à conduta do arguido; F) tal também não pode ser interpretado, no sentido, como se nada se tivesse passado; G) Também resulta da prova produzida em inquérito, e não infirmada em instrução, nomeadamente do depoimento da testemunha Cabo C…, que ouviu o Cabo A… proferir palavras como “guitas são todos iguais” e mais qualquer coisa como “nulo” ou “zero”, o que reforça o depoimento do ofendido Sargento B… e constantes da acusação: ”guitas são todos iguais, foda-se não valem nada, é tudo a mesma merda, se participar de mim, você, para mim, é zero.” As quais visaram denegrir a honorabilidade e o posto de chefia do ofendido. H) No que diz respeito à expressão imputada ao arguido ”se participar de mim, depois logo falamos como homens”, embora tenhamos só as palavras do ofendido, as mesmas são de valorar, como sendo um depoimento verdadeiro. I) Com a decisão instrutória de não pronúncia, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação da prova produzida. J) Se o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal tivesse interpretado a prova produzida de acordo com as regras da experiência e da convivência social, em particular, no seio de forças militarizadas e em que o os princípios da hierarquia e da obediência são fulcrais, certamente teria decidido por pronunciar o arguido. Nestes termos, por tudo o que fica exposto, deverá revogar-se a decisão instrutória recorrida, e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de insubordinação por ameaças ou outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar. É este o entendimento que perfilhamos. Porém, Vossas excelências decidindo farão, como sempre, JUSTIÇA.” 3. Respondeu o arguido, extraindo as seguintes conclusões: “1.ª – A recorrente alega que a decisão em crise padece de erro na interpretação da prova, ainda que para o efeito sequer proceda à junção de todos os meios de prova que serviram de base à decisão em crise. 2.ª – Mas, ab initio, há que clarificar que a Digna Magistrada do MP não fez, aquando das suas Conclusões, qualquer menção a alegadas normas jurídicas violadas; 3.ª – Ou seja, não cumpriu o disposto no art. 412.º, n.º 2, al. a), do CPP; razão pela qual deve, na nossa modesta opinião e só por aí, ser rejeitado o recurso interposto. Caso não seja este o douto entendimento de V.as Ex.as, acresce que: 4.ª – Todas as alegações da Digna Magistrada, nomeadamente as constantes nas suas Conclusões, são no sentido de que a decisão em crise padece de erro notório na apreciação da prova, ainda que nem sequer faça a arguição da nulidade da decisão, pelo que se torna, inclusive, um pouco confuso alcançar outra cominação para esse alegado vicio; 5.ª – Ainda que nem sequer dos autos constem todos os elementos de prova, única situação que, no nosso modesto entender, poderia levar a 2.ª instancia sindicar-se o poder consignado no art. 412.º, do CPP. 6.ª – É assaz evidente, de todo o recurso apresentado, que a Digna Magistrada do MP se olvidou de que, além de ter de provar o erro notório alegado (o que não faz, até porque nem podia, ainda que se tivesse socorrido de todos os meios de prova, uma vez que é de louvar a decisão recorrida), 7.ª - Está assente que tal erro notório só existe, dentro do perímetro definido pela liberdade de apreciação e de julgamento das provas, maxime da prova testemunhal (art. 396.º CC e 655.º n.º 1 CPC), quando todos os depoimentos, fundados em conhecimento directo e imediato dos factos, apontarem num sentido e o Tribunal, sem justificação plausível, decidir em sentido diverso. (cfr. Ac. RE, Proc. 2251/07-2, de 13-12-2007); 8.ª - Sendo certo que, efectivamente, é a subversão do alegado no ponto anterior que a Digna Magistrada do MP procura quando alega que a palavra “caralho” tem de ser sempre entendida, seja em que circunstancialismo for, como ofensiva do bom nome honra e consideração quiçá de todos quantos estejam à volta de quem a proferiu, ainda que não lhes seja dirigida. Verdadeiramente é isto que pretende a acusação, pois que, 9.ª - Já em sede de inquérito sequer existia um depoimento que fosse que afirmasse que o arguido havia proferido qualquer expressão injuriosa ou difamatória para a pessoa do seu Comandante Interino. 10.ª – Em suma, o que a acusação pretende, com as suas alegações de recurso, é uma clara modificabilidade da matéria de facto provada, não obstante ser consabido que tal pretensão não colherá atenta a forma, logo à partida, como o recurso foi instruído; 11.ª – A par do facto de, apenas em instrução, o arguido ter prestado declarações (direito que lhe assiste, frise-se), situação fulcral para que o Meritíssimo Juiz a quo, usando do poder que a liberdade de apreciação das provas que a lei lhe confere, decidisse como o fez, apurando a verdade. 12.ª – Donde, atento o referido supra e o principio da livre apreciação das provas, forçoso é concluir que bem andou o Tribunal a quo ao decidir como o fez, pois, inexiste qualquer erro na apreciação da prova, nem o alegado pelo recorrente é susceptível, na nossa modesta opinião, para que V.as Ex.as, Venerandos Desembargadores, revoguem a decisão em crise e pronunciem o arguido pelo crime de que vinha acusado. 13.ª – Devendo, consequentemente, a decisão sob censura ser mantida nos seus precisos termos. Termos em que não deve ser dado provimento ao presente recurso interposto e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”. 4. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 313, e tendo subido os autos o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 319 e vº). 5. Foi cumprido o disposto no art. 417°, n° 2, do Código de Processo Penal. 6. Efectuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso. 7. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. II – Fundamentação 1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP). Não se vê que ocorra alguma das nulidades consideradas por lei como insanáveis. A questão a avaliar no presente recurso, resume-se em saber se os factos denunciados constituem (ou não) a prática do crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar, e se existem elementos suficientes que habilitem o julgamento com a probabilidade muito razoável de aplicação de uma pena ao seu autor. 2. Passemos, pois, ao conhecimento da questão sub judice. Para tanto, vejamos, antes de mais, quer o conteúdo da acusação pública quer o da decisão recorrida, que são do seguinte teor (transcrição): 2.1. A ACUSAÇÃO “No dia 04 de Agosto de 2009, cerca das 15h30, o ora arguido, Militar da Guarda Nacional Republicana, deslocou-se ao gabinete do 2º Sargento de Infantaria B…, Comandante Interno do aludido Subdestacamento da Guarda Nacional Republicana de Vila..., com o objectivo de solicitar autorização de troca de serviço, a ocorrer nos dias 8 e 9 do mês de Agosto de 2009, com o Cabo D…. O senhor 2º Sargento de Infantaria B…, Comandante Interno do aludido Subdestacamento da Guarda Nacional Republicana de Vila..., não autorizou tal troca de serviço. Referindo que a troca de serviço levaria a que o Cabo D… tivesse que trabalhar das 20h00 do dia 07 de Agosto de 2009 às 20h00 do dia 08 de Agosto de 2009, sendo que o serviço a efectuar no dia 8 de Agosto consistiria numa patrulha unipessoal, obrigando a um maior desgaste pessoal por parte do Militar. O ora arguido, dirigindo-se ao senhor Comandante Interino do Posto da Guarda Nacional Republicana de Vila..., 2º Sargento B… e na presença do Cabo R... C…, disse:“ não dá para trocar, então pró caralho” e de seguida disse-lhe:” se participar de mim, depois logo falamos como homens”. O senhor Comandante Interino, 2º Sargento B…, ordenou-lhe que se retirasse do seu gabinete, ao que o ora arguido retorquiu: ”guitas são todos iguais, foda-se não valem nada, é tudo a mesma merda, se participar de mim, você, para mim, é zero.” O arguido agiu do modo acima descrito, bem sabendo que as expressões que dirigia colocavam em causa a honra e a consideração que eram devidas, enquanto pessoa ao seu superior hierárquico. Com a conduta acima descrita, e no âmbito da mesma resolução criminosa, o arguido, quis ainda, provocar medo e inquietação no seu superior hierárquico. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, ciente que punha em causa a autoridade, a hierarquia e a disciplinar Militar e que tal conduta era proibida e punida por lei.” (fim de transcrição) 2.2. A DECISÃO INSTRUTÓRIA “O Tribunal é competente. O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem. Inexistem excepções ou questões prévias. Foi realizado o debate instrutório, no qual o Ministério Público pugnou pela manutenção do despacho final que proferiu. O arguido impetrou pela não pronúncia, face aos elementos existentes. A instrução visa a comprovação judicial da decisão tomada pelo detentor da acção penal no sentido de deduzir acusação. Tal decisão tem de ser alicerçada em indícios suficientes da prática pelo arguido da infracção que lhe é imputada. O arguido A…, veio apresentar RAI no qual, em suma, aduz que há elementos que, sendo carreados para o processo, devem ser concatenados com outros que dele constam e que, no seu entender, não foram devidamente apreciados, o que, a acontecer, inculca a decisão de não pronuncia. Neste contexto, o arguido admite que proferiu a palavra “caralho” mas jamais na forma e com o sentido ínsito no libelo, como que dirigido ao seu superior hierárquico, outrossim no sentido de desabafo, perante a recusa de alteração de turnos. Nos pontos 4º. a 6º. da RAI o arguido esclarece até os termos em que solicitou autorização para a troca de serviço. Daí que o arguido entenda não fazer sentido que o participante afirme, naquele seu escrito, aqueles motivos para a sua posição de recusa, já que os pressupostos não se verificaram. O requerente nega ter produzido as expressões que lhe imputam na acusação estranhando o depoimento do Sr. C…. A referência a “guitas” não teve o sentido de ofender, correspondendo a militares da GNR (por oposição a pica-chouriços os oriundos da extinta Guarda Fiscal, dizemos nós). O arguido refere ainda que não agiu dolosamente pois que as referidas expressões foram ditas em termos de desabafo, nem pretendeu ofender a honra e consideração do seu superior. Do proferimento daquela expressão e do calão que assume não resultou dano para o serviço, não se consubstanciando, assim, qualquer crime militar. Foram realizadas as diligências instrutórias requeridas. O JIC concatenou as declarações do 2º. SAJ. B… que disse manter o teor da participação (ficando consignado, certamente por lapso que a participação de fls. 5 a 7 são declarações). Insiste o Sr. B… nos problemas da troca de serviço. Remeteu para a participação, dizendo que, no dia seguinte, falou com o arguido que até disse compreender a situação. Inquirido, o Guarda E… (fls. 15 e 16), escriturário, disse que estava no atendimento ao público, a cinco metros do gabinete do Comandante, mas não ouviu a conversa na totalidade, só as palavras “caralho” e “guitas são todos iguais”. Até refere que o A… saiu do posto e voltou de seguida, para pedir desculpas pela exaltação e que com a palavra “caralho” não estava a dirigi-la ao Comandante. Referiu as boas qualidades profissionais do arguido. O Sr. E… aduziu, ainda, que no gabinete estava o Sr. C…. O Sr. C… (fls. 84 -25), também, estando lá, no gabinete (com 12 m quadrados segundo apuramos), não ouviu a conversa na totalidade mas sempre acrescentou que o arguido, exaltado, proferiu palavras ou para o SAJ. B… ou para a situação tais como “caralho” e, já no corredor, ouviu dizer “guitas são todos iguais” e mais qualquer coisa como “nulo” ou “zero”. O Sr. C… discorre sobre “guitas” e “pica-chouriços”. No demais, o depoimento é bem elucidativo do ambiente que se vive ali, pelo menos no momento. Abonou a testemunha o arguido profissionalmente. Veio o Sr. SAJ. B…, de novo, a declarações, um mês depois (fls.28/29). Agora, perante a pergunta feita da seguinte forma: quem estava presente quando o A… mencionou as seguintes palavras: “ Não dá para trocar então pró caralho” referiu que estava o Sr. C… e, no gabinete, no corredor, ou junto à porta, o E…. Agora também se lembrava melhor das palavras “se vai participar de mim, depois logo falamos como homens”. Afadiga-se a dizer quem estava presente, mas sempre perante a apostilha prévia das frases que consignou na participação, colocadas pelo inquiridor. Ouvido novamente, o Sr. C… (fls.31/32) diz que só ouviu “caralho” e repetiu tudo o demais que disse da primeira vez. Ouvido, novamente, o Sr. E… também só ouviu “caralho” e “saiu logo dali para não estar presente a mais nada” (fls.33/34). Tudo isto em 28/10/09. O Sr. A…, como arguido, disse não pretender prestar declarações (em 16/11/09). Em Instrução, o arguido declarou que foi solicitar a dita troca de serviço com o Cabo D…. E o proposto já tinha acontecido em outras vezes, com outros militares. Era porque tinha uma visita de familiares no dia em que estava a tentar/trocar, que vinham de longe. Proferiu apenas “caralho assim não dá!”. O SAJ mandou-o sair. Saiu. Depois mais tarde voltaram a falar: o SAJ disse-lhe “mandaste-me para o caralho” “eu não te admito, vou falar com o Major” e disse-lhe isto muito energéticamente (sic.) com as mãos no ar. Reconhece que também respondeu em voz alta, mas não disse: “se vai participar então logo falamos como homens”. Referiu ter falado em “atitude de guitas” versus pica-chouriços. Mais tarde, pediu para falar de novo e dar o dinheiro do almoço que devia. Falaram sobre stress. O SAJ disse-lhe “A… vá para casa e durma”. Entrou para a Guarda-fiscal em 1991. De 1992 a 2000 esteve em M..., A..., S... e agora está em M..., patrulhando o S... com o SAJ. O Cabo E… e o C… estavam ali no corredor, se calhar ouviram, pois a porta está sempre aberta. A testemunha Sr. F… confirmou que, em outros casos, o que o A… pediu foi autorizado, o último àquela data tinha sido em 01/02 Agosto de 2009. Está lá o SAJ. há 1 ano e agora não lhe parece que se dêem mal. A testemunha D… está em M... desde 1996 e acedeu ao pedido do A…. Não percebe o que aconteceu. Agora estão todos bem, a falar, a tomar refeições, inclusivé quando estão no S.... Cumpre apreciar e decidir. De tudo o que expusemos resulta que este incidente, não tem gravidade que o libelo lhe parece atribuir. Neste posto, como noutros certamente, ocorrem, por vezes mais do que o devido, situações de tensão e de troca de desabafos como aquele que se consegui apurar. O facto é que todos estes militares se dão bem, trocam piadas entre si almoçam juntos, quebram aquela rigidez que há décadas atrás existia sempre e, por vezes, quando se desentendem sobre bagatelas, a aproximação, a diluição foi tanta que soltam para o ar expressões equívocas e menos próprias numa relação hierárquica. Não temos por certo que o arguido, ao proferir a expressão “caralho” a tenha antecedido pela locução “não dá para trocar, então pró” pois só o participante a refere, o mesmo sucedendo à locução “se participar de mim, depois logo falamos como homens”. Só o Sr. B… assume que o arguido lhe disse “se participar de mim você, para mim, é zero”. Se isto foi realmente tudo assim o SAJ., B… certamente nunca mais dirigia a palavra ao cabo A… se não em objecto de serviço. Dizem as testemunhas que todos confraternizam e refeiçoam, designadamente quando em serviço no S.... Então é porque também ao Sr. B… sobrevieram dúvidas sobre o contexto, sobre o que foi dito e isso não pode ser ostensivamente ignorado. O Sr. B… não ficou com medo nem com inquietação, tudo o indica. E não havendo, no entender do JIC, indícios suficientes de que o arguido ao dizer “caralho”, no meio duma troca de palavras, o tenha feito para ofender deliberadamente o Sr. B…, entendemos que não há elementos, objectivos e subjectivos, suficientes para que seja expectável que, agora, quase um ano volvido, todos a agir como se nada tivesse acontecido, muitos com afectação de capacidades auditivas ou com audição selectiva (como acontecia já em Outubro e Novembro de 2009), consigam explicitar, em julgamento, o que é que aconteceu, realmente, naquele gabinete, na tarde estival de 4/Agosto de 2009 após o almoço. Tem o Sr. A… quase 42 anos, (DN 15/04/1968), dezanove na GNR sem aumentos. O Sr. SAJ. B… acaba de fazer 35 anos (10/04/1975). O Sr. C… 36 anos e o Sr. E… 40 anos. Ainda bem que, segundo relataram as testemunhas ouvidas agora em instrução, não valorizaram este incidente. Fica todo um trabalho ingente da Policia Judiciaria Militar, do DIAP e do TIC, patente nas dezenas de horas dispendidas, para aquilatar o que ocorreu naquele posto em 04/08/2009, às 15H30. Pelo nosso lado, não tenho indícios suficientes do proferimento cabal daquelas ditas expressões, muito menos das ameaças, ou ofensas do Sr. A… ao superior, pelo que não as conseguimos subsumir à previsão do art.º. 89º. nº.2, al. B) do CJM, concatenado com o art.º. 1º. do mesmo sincrético Diploma Legal. Diz-se e bem nos autos que indiciação suficiente é a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder (vidé o Ac. STJ de 10/12/92, proferido no procº. 427747). Perante os hiatos auditivos constatados não formulamos juízo de prognose favorável a tal consideração. Consequentemente, ao abrigo do estatuído no artigo 308º nº.1 do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido, ordenando o oportuno arquivamento dos autos.” (fim de transcrição) 3. Apreciemos: Nos termos do disposto no artº 286º nº 1 do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Estabelece o artº 308º nº 1 do CPP que “Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Critério semelhante está igualmente consagrado no artº 283º nº 2 do CPP ao estabelecer que: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. Como refere Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, III, pág. 179] “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”. E acrescenta ainda o referido autor “A referência que o artº 301º nº 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final”. Em suma será necessário fazer um pré-juízo sobre a criminalidade e existência dos factos, a partir do material probatório que consta dos autos. Estas as linhas gerais de orientação que o juiz terá de ter presente quando se lhe solicita a introdução de um feito penal em juízo. Será pois de harmonia com elas que as provas irão ser apreciadas. Assim, temos que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhes a prática de um crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar. Na sequência do que, a requerimento do arguido, foi aberta a instrução. Teve lugar o debate instrutório, após o que o Mmº juiz no despacho ora recorrido concluiu pela não pronúncia daquele. Vejamos então se existem nos autos indícios que permitam a sua pronúncia. Vinha o arguido A…, que é militar (com o posto de Cabo) da Guarda Nacional Republicana, acusado de no dia 4 de Agosto de 2009, cerca das 15h30, se ter deslocado ao gabinete do 2º Sargento de Infantaria B…, Comandante Interno do Subdestacamento da Brigada Fiscal da GNR de Vila..., com o objectivo de solicitar autorização de troca de serviço, a ocorrer nos dias 8 e 9 do mês de Agosto de 2009, com o Cabo D…, e, não ao não ter sido autorizada tal troca de serviço, o arguido, dirigindo-se aquele seu superior hierárquico lhe ter dito: “não dá para trocar, então pró caralho” e de seguida: “se participar de mim, depois logo falamos como homens” e já depois de lhe ter sido ordenado que se retirasse teria retorquido: ”guitas são todos iguais, foda-se não valem nada, é tudo a mesma merda, se participar de mim, você, para mim, é zero.” Da prova produzida retira o Mmº JIC, com o que se concorda que: “Não temos por certo que o arguido, ao proferir a expressão “caralho” a tenha antecedido pela locução “não dá para trocar, então pró” pois só o participante a refere, o mesmo sucedendo à locução “se participar de mim, depois logo falamos como homens”. Só o Sr. B… assume que o arguido lhe disse “se participar de mim você, para mim, é zero”. Se isto foi realmente tudo assim o SAJ., B… certamente nunca mais dirigia a palavra ao cabo A… se não em objecto de serviço. Dizem as testemunhas que todos confraternizam e refeiçoam, designadamente quando em serviço no S.... Então é porque também ao Sr. B… sobrevieram dúvidas sobre o contexto, sobre o que foi dito e isso não pode ser ostensivamente ignorado. O Sr. B… não ficou com medo nem com inquietação, tudo o indica. E não havendo, no entender do JIC, indícios suficientes de que o arguido ao dizer “caralho”, no meio duma troca de palavras, o tenha feito para ofender deliberadamente o Sr. B…, entendemos que não há elementos, objectivos e subjectivos, suficientes para que seja expectável que, agora, quase um ano volvido, todos a agir como se nada tivesse acontecido, muitos com afectação de capacidades auditivas ou com audição selectiva (como acontecia já em Outubro e Novembro de 2009), consigam explicitar, em julgamento, o que é que aconteceu, realmente, naquele gabinete, na tarde estival de 4/Agosto de 2009 após o almoço” Também da prova produzida mais retira o Mmº JIC, com o que igualmente se concorda que: “De tudo o que expusemos resulta que este incidente, não tem gravidade que o libelo lhe parece atribuir. Neste posto, como noutros certamente, ocorrem, por vezes mais do que o devido, situações de tensão e de troca de desabafos como aquele que se consegui apurar. O facto é que todos estes militares se dão bem, trocam piadas entre si almoçam juntos, quebram aquela rigidez que há décadas atrás existia sempre e, por vezes, quando se desentendem sobre bagatelas, a aproximação, a diluição foi tanta que soltam para o ar expressões equívocas e menos próprias numa relação hierárquica.” Ou seja, tal como na decisão revidenda do tribunal a quo também neste tribunal ad quem verificamos que o arguido admite que proferiu a palavra “caralho” mas jamais na forma e com o sentido ínsito no libelo, como que dirigido ao seu superior hierárquico, outrossim no sentido de desabafo, perante a recusa de alteração de turnos. De facto, não temos por certo que o arguido, ao proferir a expressão “caralho” a tenha antecedido pela locução “não dá para trocar, então pró” pois só o participante a refere, o mesmo sucedendo à locução “se participar de mim, depois logo falamos como homens”. Se bem compreendemos, parece que para a Digna Magistrada do MP a ser por alguém proferida a palavra “caralho” esta terá de ser sempre entendida, seja em que circunstancialismo for, como ofensiva do bom nome honra e consideração quiçá de todos quantos estejam à volta de quem a proferiu, ainda que não lhes seja dirigida (vd. conclusões C) e D) do recurso). Afigura-se-nos que, manifestamente, sem razão. Segundo as fontes, para uns a palavra “caralho” vem do latim “caraculu” que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande. Certo é que, independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra ao órgão sexual masculino, o pénis. E esse é o significado actual da palavra, se bem que no seu uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada. Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo. Por exemplo “pra caralho” é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (exº: "chove pra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga pra caralho"; "moras longe pra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno pra caralho"; "esse filme é velho pra caralho"). Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: “isto é mesmo bom, caralho”. Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se-á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A “vai pró caralho” e se alguma coisa não interessa: “isto não vale um caralho” e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via “como vai essa vida, onde caralho te meteste?”. Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação “carago”, não há nada a que não se possa juntar um “caralho”, funcionando este como verdadeira muleta oratória. Assim, dizer para alguém “vai para o caralho” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o caralho” ou simplesmente “caralho”, como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro caso a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés, no segundo caso a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionários da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010). Para a primeira hipótese vale aqui, entre outros e por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 1997 (in www.dgsi.pt) onde se expendeu em síntese que: “Integra a prática de um crime de injúrias, qualificado em razão da qualidade profissional do ofendido, subchefe da PSP, aquele que, ao dirigir-se-lhe, no exercício das suas funções, diz "vai para o caralho".” Refira-se também aqui, pelo seu interesse, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Janeiro de 2010 (in JusNet 287/2010), onde, a este propósito, se lavrou: “Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas - Para desenvolvimento do tema, veja-se Alessandro Groppali, "Introdução ao Estudo do Direito", 3ª Ed., pags. 31/35. As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes. As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social. As normas morais radicam numa noção de "bem" e de "mal", são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infractor, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais. Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coactivamente a sua observância, estipulando sanções para os infractores. Todos estes grupos de normas se reflectem, directa ou indirectamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral. Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art. 25º, nº 1 - Art. 25º, nº 1, da CRP: "A integridade moral e física das pessoas é inviolável". No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respectivo art. 70º, nº 1, que "A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral". O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal. Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjectiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objectiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo I, pag. 603, em anot. ao art. 180º.. A ofensa à honra ou consideração não é, no entanto, susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal. Posto isto, e já com vista à decisão da questão essencialmente colocada no recurso, importa que nos perguntemos se alguma das expressões proferidas pelo arguido tem a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes penalmente tuteladas, porque se assim não for, a sorte do recurso estará traçada, sem necessidade de maior indagação. Analisada a matéria de facto provada verifica-se que no essencial, para efeitos de imputação da prática do crime de injúria p. p. pelo art. 181º do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância, teve-se como assente que no decurso de uma discussão com o assistente, por telemóvel, o arguido dirigiu-lhe as seguintes expressões: "você tem um feitio do caralho"; "você é fodido e por causa disso é que não aluga o café"; "se aqui estivesse eu partia-lhe os cornos". Para que se tivesse verificado, em função de tais afirmações, um crime de injúria, necessário seria que pelo menos uma daquelas expressões consistisse numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tivessem esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração. É certo que a expressão "você tem um feitio do caralho" não é meramente indelicada; é verdadeiramente grosseira, constituindo utilização de linguagem desbragada, denotando profunda falta de educação por parte de quem a profere. Mas daí até que se possa afirmar um atentado à personalidade moral do interlocutor, medeia significativa distância. Aquela expressão não contende com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/04/2006, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0515927 (JusNet 1586/2006); não atinge aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/12/2007, in www.dgsi.trp.pt , proc. nº 0745811 (JusNet 7397/2007). Também a expressão "você é fodido e por causa disso é que não aluga o café" traduz grosseria e má educação; mas também esta, por razões em tudo idênticas, não assume carácter ofensivo da honra ou da consideração. No contexto em que foram proferidas, as palavras «caralho» e «fodido», não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal - Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 25/06/2003, in www.dgsi.trp.pt, proc. nº 0312710 (JusNet 4123/2003). Quanto à expressão "se aqui estivesse eu partia-lhe os cornos", também ela grosseira e de baixo jaez, assume essencialmente um significado de desafio ou de provocação; poderia fundamentar uma acusação por crime de ameaça, se tivesse sido deduzida, mas não releva como ofensa à honra ou consideração. Ora, sendo assim, na medida em que as expressões imputadas ao arguido, apesar de censuráveis do ponto de vista moral, não assumem relevância penal nos termos que lhes foram atribuídos, inútil se revela a tarefa de apreciação de todas as demais questões suscitadas no recurso, uma vez que claudica a própria possibilidade de imputar ao arguido uma actuação relevante do ponto de vista do direito criminal. O mesmo é dizer que o recurso se afirma manifestamente como procedente.” (fim de transcrição) O acima consignado aplica-se mutatis mutandis ao caso dos autos, se bem que aqui importa acrescentar algo mais já que neste os seus intervenientes são militares e estavam no exercício de funções, havendo uma relação de subordinação hierárquica. Os princípios de “disciplina” e “hierarquia” constituem a base institucional das Forças Armadas e das forças de segurança, relevando aqui as de cariz militar, como sucede com os elementos da GNR, e são seus alicerces estruturais. Os crimes essencialmente militares visam a tutela "dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas". No caso do crime de insubordinação, o interesse que directamente se visa tutelar é o da disciplina e do respeito pelo princípio da hierarquia. Nas organizações militares, a disciplina, manifestada através da hierarquia e da cadeia de comando, é indispensável para o seu funcionamento, constituindo, como se disse, um dos seus princípios estruturantes. Todo o militar está, pois, subordinado ao princípio de comando que comporta um especial dever de obediência. A Guarda Nacional Republicana - cuja origem histórica remonta a 10 de Dezembro de 1801 com a criação da Guarda Real da Polícia, e foi organizada com a actual denominação por Decreto de 03/05/1911 - é um Corpo Militar, tendo os seus elementos a condição de militares, com o inerente conjunto de deveres que tal acarreta, incluindo o fundamental da disciplina. Do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei nºs 298/94, de 24 de Novembro, 297/98, de 28 de Setembro, 188/99, de 2 de Junho, 504/99, de 20 de Novembro, 15/02, de 29 de Janeiro, 119/04, de 21 de Maio, 159/2005, de 20 de Setembro, 216/2006, de 30 de Outubro e 194/2008, de 6 de Outubro, consta, no art. 7º desse estatuto, sob a epígrafe "Dever de obediência": "1- A subordinação à disciplina baseia-se no cumprimento de Leis e regulamentos e no dever de obediência aos superiores hierárquicos, bem como no dever do exercício responsável da autoridade. 2- O militar da Guarda deve obediência às Leis e regulamentos e obriga-se a cumprir com exactidão e oportunidade as ordens e instruções dos seus legítimos superiores, relativas ao serviço". Estreitamente ligado a este dever de obediência está o dever de disponibilidade permanente, estabelecido no art. 9º, nº 1 desse estatuto: "Face à especificidade da missão, o militar da Guarda encontra-se permanentemente de serviço". Deste modo, impõe-se concluir que a forma como o arguido, que é Cabo, visou o seu Comandante Interino, um 2º Sargento, pode eventualmente ser ético-socialmente deselegante mas não é passível de reprovação penal militar. As expressões dos autos são equívocas e menos próprias numa relação hierárquica, mas estão dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário” em que expressões consideradas ordinárias e desrespeitosas noutros contextos, porque trocadas num âmbito restrito (dentro das instalações da GNR) e inter pares (o arguido, apesar de Cabo não estava a falar com um oficial, subalterno, superior ou general, mas com um 2º Sargento, com quem tinha uma especial relação de proximidade e camaradagem) e são sinal de mera virilidade verbal. Como em outros meios, a linguagem castrense utilizada na caserna pelos membros das Forças Armadas e afins, tem por vezes significado ou peso específico diverso do mero coloquial. In casu, tratou-se de mero desabafo entre amigos num quadro em que o arguido viu frustradas as suas expectativas. Um certo militarismo que enforma a mentalidade de alguns membros das forças armadas e equiparadas, tende para vincar, com demasia ou exclusivismo, os princípios da ordem, da autoridade formal, da hierarquia, da obediência cega, da dedicação sem limites, da coragem, da força e da destreza físicas, podendo levar a excessos. Excessos na linguagem e na abertura de procedimentos disciplinares ou penais, como, com o devido respeito, se nos afigura ter sucedido no contexto dos presentes autos. Destarte, por todo o exposto, entende-se ser a conduta do arguido não subsumível à previsão do invocado crime, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar. Daí que sem outras considerações se conclua que face aos elementos constantes dos autos neste momento, não há indícios suficientes do cometimento objectivo do crime de insubordinação militar por outras ofensas, não havendo por essa razão qualquer possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Assim, sendo, bem andou o Mmº Juiz ao não pronunciar o arguido A.... III – DECISÃO Em conformidade com o exposto, tudo visto e ponderado, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando, nos seus precisos termos, o despacho recorrido de não pronúncia do arguido A.... Sem custas, por não serem devidas. Notifique nos termos legais. (o presente acórdão, integrado por vinte e uma páginas com os versos em branco, foi processado em computador e integralmente revisto pelo desembargador relator, seu primeiro signatário – artº 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal) Lisboa, 28 de Outubro de 2010 Desembargador J. S. Calheiros da Gama Juiz Militar Major-General Norberto Bernardes |