Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1667/09.0YRLSB-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
MEDIDAS DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/29/2009
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECLARAÇÃO DE COMPETÊNCIA
Sumário: I - Decisivo para que haja um conflito negativo é que, pelo menos, dois tribunais se considerem incompetentes, independentemente da questão de saber qual o tipo de incompetência declarada, já que, a lei não distingue e não se vê razão para o intérprete distinguir.
II - A colocação dos menores em instituição de acolhimento fora da área do tribunal que decretou a medida e onde permaneçam por mais de três meses, não tem, para efeitos do nº4, do art.79º, o significado de mudança de residência por período superior a três meses.
III – Consequentemente, o 1º Juízo de Família e Menores de Loures é o competente para continuar a conhecer do processo de Promoção e Protecção em questão
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: 1 – Relatório.
O M.ºP.º junto do Tribunal da Relação de Lisboa, requereu a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre o Tribunal Judicial da Lourinhã e o 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores da Comarca de Loures, alegando que os Magistrados Judiciais dos referidos Tribunais se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecerem do Processo de Promoção e Protecção nº, em que é requerente o M.ºP.º, referente aos menores A, B e C.
2 – Fundamentos.
2.1. São relevantes para a decisão os seguintes factos:
1º - No 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures foram instaurados uns autos de Promoção e Protecção com o nº, em que é requerente o M.ºP.º, referentes aos menores A, B e C.
2º - Por despacho aí proferido em 19/1/09, determinou-se a remessa dos mesmos e respectivos apensos ao Tribunal Judicial da Comarca da Lourinhã, por ser, nessa altura, o territorialmente competente para a posterior tramitação processual.
3º - Por despacho proferido neste último Tribunal, datado de 18/2/09, ordenou-se a remessa dos referidos autos e respectivos apensos ao Tribunal de Família e Menores de Loures, a fim de aí serem tramitados os seus ulteriores termos.
4º - Não houve recurso, nem reclamação, de qualquer das aludidas decisões.
2.2. Dir-se-á, antes do mais, que se poderia colocar a questão de saber se estamos perante um verdadeiro conflito de competência, já que, se é certo que, transitado em julgado o despacho proferido pelo Tribunal de Família e Menores de Loures (TFML), declarando a sua incompetência territorial e ordenando a remessa do processo para o Tribunal Judicial da Comarca da Lourinhã (TJCL), este não podia declarar-se incompetente (cfr. o art.111º, nº2, do C.P.C.), é igualmente certo que o mesmo entendeu que territorialmente competente era o TFML, para onde ordenou a remessa dos autos, sendo que, tendo tal decisão também transitou em julgado. Ou seja, há duas decisões sobre competência, ambas transitadas em julgado, que são contraditórias.
Todavia, como defende o Professor Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol.1º, pág.373., numa situação dessas não se pode aplicar o disposto no art.675º, do C.P.C. - cumprimento da decisão que passou em julgado em 1º lugar -, porquanto, o art.115º, do mesmo Código, obsta a essa aplicação, antes havendo que aplicar o regime da resolução dos conflitos. Na verdade, nos termos do nº2, deste último artigo, «Há conflito, negativo ou positivo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão». Isto é, decisivo para que haja um conflito negativo é que, pelo menos, dois tribunais se considerem incompetentes, independentemente da questão de saber qual o tipo de incompetência declarada, já que, a lei não distingue e não se vê razão para o intérprete distinguir.
Deste modo, quando o citado art.111º, nº2, determina que a decisão passada em julgado resolverá definitivamente a questão da competência, apenas quer significar que, se o processo tiver de ser remetido para outro tribunal, nos termos do nº3, do mesmo artigo, não pode perante este tribunal levantar-se novamente a questão da incompetência. Só que, no caso sub judice, o que se passou foi que, apesar disso, o 2º tribunal também se considerou incompetente, tendo tal decisão transitado igualmente em julgado. O que nos reconduz a uma situação de conflito negativo de competência, por força do disposto no citado art.115º, nº2 e 3, já que, ambos os tribunais se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão e ambas as decisões transitaram em julgado.
Assim sendo, entendemos que não há que fazer funcionar o disposto no mencionado art.675º, antes havendo que dar ao conflito a solução que se considerar conforme à lei.
Haverá, pois, que decidir.
Tudo tem a ver com a interpretação do disposto no art.79º, nº4, da Lei nº147/99, de 9/1, que procedeu à aprovação da lei de protecção de crianças e jovens em perigo (LPCJP), em anexo àquele diploma e que dele faz parte integrante (cfr. o seu art.1º).
No despacho proferido pelo TFML, em 19/1/09, considerou-se que, tendo aí sido aplicada, a favor dos referidos menores, a medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição, nomeadamente, na instituição «Residência de Acolhimento », sita na L, onde os menores já se encontram desde 27/11/07, haverá que concluir que os mesmos se mantêm na mencionada instituição há muito mais de três meses, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.79º, da LPCJP, foi determinada a remessa dos autos ao TJCL, por ser o actualmente competente, em razão do território, para a posterior tramitação processual.
No despacho proferido no TJCL, em 18/2/09, seguiu-se o entendimento segundo o qual as medidas de colocação em instituição não configuram uma alteração de residência relevante para efeitos do nº4, do art.79º, da LPCJP, pelo que, competente para a tramitação do processo continua a ser o tribunal que aplicou a medida, ou seja, no caso, o TFML.
Vejamos.
Dir-se-á, desde já, que sufragamos este último entendimento, que, aliás, segundo cremos, é pacífico na doutrina e na jurisprudência, conforme autores citados naquele segundo despacho – Tomé d`Almeida Ramião, in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Anotada e Comentada, pág.103, e Beatriz Marques Borges, in Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, págs.261 e 262 – bem como a jurisprudência aí igualmente citada – Acórdãos do STJ, de 21/5/02, de 11/6/02 e de 22/2/05, e da Relação de Lisboa, de 21/4/05 e de 27/3/07, in www.dgsi.pt – a que acrescem, ainda, designadamente, os Acórdãos da Relação do Porto, de 5/11/01 e de 3/12/01, e da Relação de Lisboa, de 7/11/02, todos disponíveis também in www.dgsi.pt.
O art.79º, da LPCJP, subordinado à epígrafe - «Competência territorial» - consagra, no seu nº1, o princípio geral de atribuição de competência para a aplicação das medidas de promoção e protecção, determinando que essa competência pertence ao tribunal da área da residência da criança ou do jovem no momento em que é instaurado o processo judicial (cfr. o art.73º, da LPCJP). O que bem se compreende, pois que se está perante situações de perigo para o desenvolvimento da criança ou jovem, que há que superar de acordo com o seu superior interesse, pelo que, se impõe a aplicação de medidas céleres e eficazes, cuja escolha e implementação melhor serão conseguidas pelo tribunal da área da residência da criança ou jovem em perigo, já que se encontra em melhores condições para conhecer a realidade familiar e social em que aqueles se encontram inseridos, pois é nessa área que se encontram com maior frequência e estabilidade, onde estão radicados e desenvolvem habitualmente a sua vida.
Daí que, nos termos do nº4, do citado art.79º, se após a aplicação da medida a criança ou o jovem mudar de residência por período superior a três meses, o processo seja remetido ao tribunal da área da nova residência. Isto é, no fundo, trata-se da mesma ideia de que aquele tribunal é o mais apto para avaliar a situação, ou seja, agora para verificar o acompanhamento da medida, bem como, a sua revisão, alteração ou cessação, tendo o legislador considerado que o período de três meses revela alguma estabilidade e que sendo outro o meio social onde a criança ou jovem se encontram, o tribunal desta sua nova residência traz maior eficácia ao acompanhamento da decisão já proferida, dada a sua maior proximidade.
O disposto no nº4, do art.79º, é uma excepção ao que dispõe o nº5, do mesmo artigo, que considera em geral irrelevantes, mas ressalvando expressamente o disposto no nº4, as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração do processo. E é por força da divergência na interpretação daquele nº4, que contém uma norma inovadora, que surge o presente conflito de competência.
Do que se trata, pois, é de saber se a colocação dos menores em instituição de acolhimento fora da área do tribunal que decretou a medida e onde permaneçam por mais de três meses, tem, para efeitos do nº4, do art.79º, o significado de mudança de residência por período superior a três meses.
A nosso ver, e como já resulta do atrás exposto, a resposta não pode deixar de ser negativa, tendo em conta quer a letra, quer o espírito da lei. Na verdade, o nº4, do art.79º, exige que se verifiquem, cumulativamente, dois requisitos: por um lado, que tenha sido aplicada uma medida de promoção e protecção; por outro lado, que, após a aplicação daquela medida (sublinhado nosso), a criança ou jovem mude de residência por período superior a três meses. Ora, parece-nos evidente que uma coisa é mudar de residência após a aplicação da medida, e outra, bem diferente, é a mudança de residência por efeito de aplicação da medida, isto é, implicada na própria medida, como se diz no citado Acórdão do STJ, de 11/6/02. Logo, não se verifica, no caso, este 2º requisito, porquanto, os menores foram colocados na «Residência de Acolhimento », sita em, L, em execução de uma medida de acolhimento em instituição decretada pelo TFML. Ou seja, essa mudança de residência resulta da própria aplicação da medida, pelo que não se reflecte na competência do tribunal, o que, aliás, implicaria, se assim não fosse, que um tribunal viesse a atribuir, por sua iniciativa, a competência a outro tribunal para prosseguir a tramitação de determinados processos que lhe foram apresentados. Acresce que, nos termos do art.59º, nº2, da LPCJP, a execução da medida aplicada em processo judicial é dirigida e controlada pelo tribunal que a aplicou, ainda que se trate de medida de acolhimento em instituição e esta se localize fora da área do tribunal que a decretou.
No que respeita ao espírito da lei, como já se referiu, o nº4, do art.79º, quando consagrou a excepção aí prevista, fê-lo na perspectiva do interesse do menor, considerando que passando este a ter voluntariamente organizada a sua vida, com maior permanência e estabilidade, num determinado local diferente do anteriormente considerado, será aí que o tribunal poderá recolher melhores elementos e fazer um melhor acompanhamento do menor, em ordem a obter uma maior eficácia da providência e a conseguir a desejada recuperação do mesmo. Situação esta que, manifestamente, não se verifica quando a mudança de residência ocorre por tal ter sido imposto na execução da medida aplicada ao menor, faltando, pois, aí o argumento racional e teleológico.
Haverá, deste modo, que concluir que a permanência em local onde esteja e enquanto esteja a ser executada a medida aplicada, não constitui modificação de facto atendível para os efeitos previstos no art.79º, nº4. Que o mesmo é dizer que, no caso dos autos, a colocação dos menores na referida instituição de acolhimento, fora da área do tribunal que decretou a medida e onde se encontram há mais de três meses, não tem, para aqueles efeitos, o significado de mudança de residência por período superior a três meses. Consequentemente, o processo não tinha que ser remetido ao tribunal da área da nova residência, no caso, o TJCL.
3 – Decisão.
Pelo exposto, declara-se que o 1º Juízo de Família e Menores de Loures é o competente para continuar a conhecer do processo de Promoção e Protecção nº, em que são requeridos os menores A, B e C.
Sem custas.

Lisboa 29 de Setembro de 2009

Roque Nogueira