Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
301/24.2JGLSB-A.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: PORNOGRAFIA DE MENORES
RESOLUÇÃO CRIMINOSA
MEDIDAS DE COAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 – A exata dimensão do bem jurídico protegido pelas incriminações constantes das alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 176.º do CP prende-se com a utilização indireta de menores, logo, com uma tutela indireta da liberdade e autodeterminação sexual do menor, visando, em primeira linha, a tutela da sua imagem associada a um interesse público de reduzir o consumo de pornografia infantil.
2 – Dada a configuração legal deste tipo de crime, o número de materiais pornográficos (ações de descarregamento, em grande quantidade, de ficheiros, nos quais se incluem ficheiros de pornografia infantil) não pode servir de critério de contabilização da prática de crimes, sem prejuízo de efetivamente relevar para a escolha e medida da pena, pois que aquilo que está em causa é uma repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa.
3 – A existência de perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas deve decorrer de factos concretos capazes de mostrar que a libertação, sem mais, do arguido poderia causar danos à ordem e tranquilidade da sociedade em geral, não se bastando em considerações de prevenção geral.
4 – A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coação constantes do catálogo legal.
5 – Às medidas de coação correspondem finalidades estritamente cautelares e não de satisfação de exigências de prevenção, geral e especial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No Juízo de Instrução Criminal do Seixal, após primeiro interrogatório judicial, foram impostas ao arguido AA, por despacho de 07.02.2025, as medidas de coação de:
a. TIR, já prestado;
b. Proibição de aceder o serviço de internet na sua residência;
c. Proibição de atendimento de menores de 14 anos no seu local de trabalho;
d. Obrigação de apresentações no posto policial da área da sua residência com periocidade trissemanal, a ter lugar às segundas, quartas e sábados em horário de expediente.
2. Recorreu o Ministério Público, retirando da respetiva motivação as conclusões que se transcrevem:
1. Perante os meios probatórios colhidos, resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido AA de 257 (duzentos e cinquenta e sete) crimes de pornografia de menores, pp. e pp. pelos artigos 176.°, n.° 1, alíneas c) e d), e 177.°, n.° 7, do Código Penal, pois que são 257 as vítimas, sem que se encontre fundamento, de facto e de direito, para uma diminuição da culpa ou para uma unidade de resolução.
2. Verificam-se, em concreto, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas.
3. O meio de vida do arguido, a escusa em apresentar uma justificação, a natureza do crime indiciado, o tempo que perdurou a atividade, a personalidade revelada pelo arguido, de propensão e de insensibilidade, tornam previsível que o arguido cometa factos da mesma natureza.
4. O crime de pornografia de menores, pela sua natureza e gravidade e no contexto de partilha em larga escala, causa enorme alarme social e gera na comunidade um elevado sintoma de insegurança e intranquilidade; os comportamentos criminosos que afetam os menores de maneira tão grave provocam justificado alarme na opinião pública e impõem uma atuação firme e eficaz do sistema penal.
5. As medidas de coação impostas ao arguido não se mostram eficazes para salvaguardar as exigências cautelares que assim se impõem, por não obstarem ao cometimento de novos factos da mesma natureza criminal pelo arguido, considerando essencialmente o modo como atuou e pode continuar a atuar, e não satisfazem as legítimas expetativas da comunidade na manutenção da ordem e da tranquilidade públicas.
6. A natureza e a gravidade dos factos imputados, o modo de atuação e a diversidade de meios para o cometimento, a personalidade revelada pelo arguido, a pena previsivelmente a aplicar face aos crimes que se entendem indiciados e as expetativas da sociedade na ação e eficácia da justiça, mostram que só a medida de coação de prisão preventiva se mostra idónea a afastar os referidos perigos e a salvaguardar as exigências cautelares pressupostas no caso concreto.
7. Ao assim não decidir, o douto despacho recorrido violou o disposto no artigo 176.°, n.° 1, alíneas c) e d), e 177.°, n.° 7, do Código Penal, e os artigos 193.°, n.°s 1 e 2, 202.°, n.° 1, alínea a), e 204.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
8. Deve, por tudo, o douto despacho recorrido ser nesta parte revogado e ser substituído por douto acórdão que dê como indiciada a prática pelo arguido de 257 crimes de pornografia de menores e que aplique ao arguido a medida de coação de prisão preventiva.
3. O arguido não apresentou resposta ao recurso.
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, secundando a posição expressa pelo Ministério Público em 1.ª instância.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (adiante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelo Ministério Público da motivação do recurso interposto, cumpre apreciar a seguinte questão:
• Da revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que antes considere indiciada a prática pelo arguido de 257 crimes de pornografia de menores e aplique a medida de coação de prisão preventiva.
2. Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido, conforme consta do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido (transcrição):
A detenção do arguido mostra-se válida e regular, tendo o mesmo sido apresentado adentro do prazo legal, pelo que a valido nos termos do disposto nos art.ºs 141º, n.º1, 193.º, 202.º n.º1 als. a) e b), 204.º, 257.º n.º 2 als. a), b) e c), e art. 1.º al. d), todos do C.P.P.
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O Ministério Público apresentou o arguido
AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de Lisboa, nascido em ...-...-1981, solteiro, assistente técnico, residente na ...,
Pela prática, como autor material e em concurso real, de:
- 257 (duzentos e cinquenta e sete) crimes de pornografia de menores, pp. e pp. Pelos artigos 176.°, n.° 1, alíneas c) e d), e 177.°, n.° 7, do Código Penal.
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Com base no seguinte acervo fáctico
1. O arguido AA, ao menos em ... de 2023, tinha residência na ..., local onde tinha acesso a equipamentos informáticos e à rede de internet mediante serviço contratado pelo arguido, de entre outros, às operadoras ... e ....
2. A partir de data não apurada, mas pelo menos desde o início de ... de 2023, o arguido utilizou a rede de internet para procurar, alojar e transmitir a terceiros imagens e vídeos de cariz pornográfico envolvendo menores de idade inferior a 18 anos.
3. Para tanto, o arguido era utilizador da plataforma ..., com os endereços de email ... e ..., com o telefone n.° ..., e com a data de nascimento ...-...-1981 (no formato americano), plataforma onde efetuou carregamentos de ficheiros de conteúdo pornográfico que representa menores.
4. Neste contexto, no dia ...-...-2023 o arguido carregou e disponibilizou 5 (cinco) ficheiros do tipo multimédia desse cariz, nos quais surgem seis crianças, designados e com conteúdo de seguida descritos:
i. ....MP4 - duração de lm:40s: visualiza-se uma jovem do sexo feminino, pré-adolescente, de fisionomia/etnia asiática, aparentando idade entre 11 e 14 anos, nua numa cama, defronte para uma câmara, a introduzir um vibrador na vagina e a acariciar-se.
ii. ....WMV - duração de 2m:16s: visualizam-se duas crianças do sexo feminino, aparentando idades entre os 10 e os 11 anos, em atos sexuais de sexo oral.
iii. ....MP4 - duração de 2m: visualiza-se, num plano grande, a introdução de um pénis numa vagina, não se conseguindo visualizar o corpo/cara, mas tratando-se de um corpo de criança.
iv. ....MP4 - duração de 4m:38s: vídeo que se inicia com a identificação "…"; visualizam-se atos de sexo anal, de um adulto com uma criança que aparenta ter a idade descriminada no início do vídeo, 11 anos.
v. ....AVI - duração de 2m:49s: visualiza-se uma criança aparentado ter entre 10 a 12 anos, em poses sexuais, a filmar-se a si própria defronte para uma câmara; visualiza-se a descrição do site ..., que corresponde à descrição "...".
5. No dia ...-...-2025, o arguido tinha residência na ..., onde tinha acesso a equipamentos informáticos e à rede de internet, e onde, nessa data, pelas 09h00, tinha alocados no seu desktop, com a referência ..., ficheiros do tipo multimédia relativos a menores envolvidos em comportamentos sexuais explícitos.
6. Nestas circunstâncias, o arguido tinha pelo menos 253 (duzentos e cinquenta e três) ficheiros na pasta de partilha da aplicação Emule, todos respeitantes a menores de 14 anos de idade, de entre eles dois daqueles mencionados em 4.
7. Estes ficheiros tinham imagens e filmes de pelo menos 253 crianças e jovens, duas das já mencionadas em 4., em exibição e manipulação de forma ostensiva e lasciva do corpo e dos órgãos sexuais, bem como em práticas sexuais de cópula, coito oral e coito anal, com adulto e entre si.
8. O arguido detinha os ficheiros multimédia nessa aplicação …, com o propósito de os partilhar e divulgar a terceiros, como fez nomeadamente no dia ...-...-2025.
9. O arguido sabia que os ficheiros guardados e divulgados expunham menores com idade inferior a 18 anos de idade, pelo menos 257 deles de idade inferior a 14 anos de idade, em imagens que mostravam zonas íntimas do corpo e a prática de atos sexuais, que estava proibida a sua detenção e partilha, e que com esta potenciava a divulgação, que se tratava de atos que põem em causa a formação da sua sexualidade e que tais materiais induzem a exploração desses menores, não obstante quis adquirir, armazenar para partilha e divulgar tais ficheiros, comandado apenas pela satisfação dos seus impulsos libidinosos.
10. Atuou o arguido sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que, agindo da forma descrita, praticava atos proibidos e punidos por lei penal.
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Pelo exposto, incorreu o arguido AA, como autor material, em concurso real, e na forma consumada, na prática de:
- 257 (duzentos e cinquenta e sete) crimes de pornografia de menores, pp. e pp. pelos artigos 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 177.º, n.º 7, do Código Penal.
Prova:
Pericial:
• Relatório de exame preliminar e registo, fls. 96-101, pen na contracapa
Documentos:
• Auto de notícia, fls. 5-7
• Relatório NCMEC, fls. 9-16
• Registo e auto de visionamento, fls. 8, 52-56
• Informação ..., fls. 27-31
• Informação segurança social, fls. 57
• Termo de consentimento, fls. 88
• Auto de diligência, fls. 91-92
• Auto de busca e apreensão, fls. 89-90
• Auto de notícia e detenção, fls. 102-109.
Nesta sede o arguido desejou prestar declarações quanto aos factos e quanto à sua situação pessoal, o que fez nos seguintes moldes:
Situação pessoal:
-reside maritalmente com a sua companheira há cerca de 21 anos, a namorada referida nos autos:
Tem de habilitações literárias o 9,° ano, encontrando-se inscrito num curso técnico- profissional, que ainda não se iniciou, e que lhe dará equivalência ao 12.° ano.
- Exerce actividade como ... do ..., em ..., tendo funções de atendimento ao público e BackOffice, onde reencaminha os mails para os ... e trata das ....
Quanto aos factos disse:
O computador e os ficheiros ali encontrados pertencem-lhe, e que acedeu aos seus conteúdos, sabendo que quando acedia lhe apareciam outros utilizadores com partilha de ficheiros e que o programa utilizado tem o chat para troca de impressões, o que nunca chegou a fazer.
Mais admitiu que quando acedia aos ficheiros era possível ver os utilizadores que estavam em linha e a descarregar.
No demais, referiu que há alguns meses que não mexia no computador, admitindo que terá começado a aceder a estes conteúdos no final do ano de 2023, não encontrando explicação porque é que decidiu aceder a conteúdos de natureza pornográfica envolvendo menores de idade nos termos descritos nos autos.
Tendo por base as declarações do arguido, bem como os demais dados já agremiados para o processo, entendemos mostrar-se fortemente indiciado que o arguido, através da sua conduta, divulgou e deteve, fotografias, filmes e gravações de conteúdo pornográfico envolvendo menores de 14 anos.
Trata-se de realidade subsumível no tipo criminal descrito pelo M.°P.°, e sujeito à agravação do n.° 7 do art. 177.°, do CP, uma vez que se trata de conteúdo pornográfico relativamente a vítimas menores de 14 anos.
Nestes termos, o crime em causa é punido numa pena mínima de 1 ano e 6 meses até o máximo de 7 anos e 6 meses.
A questão que se coloca, expurgada da realidade claramente obscena e repugnante que constitui o acesso e consequente divulgação de pornografia infantil, é a de apurar se estamos perante uma pluralidade de crimes de pornografia de menores ou perante um único crime.
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Com efeito trata-se de assunto que não tem sido tratado de forma uníssona pelos nossos tribunais, nem pela doutrina, havendo posições favoráveis à punição em situação de concurso de crimes e quem sufrague entendimento que estamos perante uma única actividade criminosa cuja pena será mais ou menos agravada em função da conduta do agente manifestada nos factos.
O tipo legal de pornografia de menores pode revestir qualquer ato que se enquadre nas quatro modalidades caracterizadoras, correspondentes às diferentes alíneas do n.° 1 do artigo 176.°, numa escala de valoração com punição idêntica e que vão desde a utilização de menor à detenção de materiais pornográficos com propósito legalmente definido.
Relativamente aos crimes ora imputados ao arguido, previstos nas alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 176.° do Código Penal trata-se de condutas que não comportam uma violação direta do bem jurídico liberdade e a autodeterminação sexual de um menor, estando, outrossim em causa “travar a proliferação da divulgação de condutas que atentam contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças, elas sim violadoras de bens jurídicos pessoais.’’1
Para além de uma tutela da liberdade e autodeterminação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência de material pornográfico, também se procura através da incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm.
Existe como que uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do direito de ver acautelado o seu bem-estar físico e psíquico, realidade que é coloca em causa por via da disseminação de material pornográfico.
Na alínea c) do n.° 1 ao se referir que quem produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título fotografias, filmes ou gravações pornográficas que utilizem menores, pretende-se abarcar acções típicas que permitam todo o tipo de disseminação, sem contrapartidas, dos referidos materiais, aí se englobando a venda, o empréstimo, o aluguer ou qualquer outra forma de transmissão dos mesmos, abarcando a divulgação destes materiais através de todos os meios de comunicação conhecidos.
A alínea d) refere-se à aquisição ou detenção com o propósito de distribuir, importar, exportar, divulgar exibir ou ceder de fotografias, filmes, ou gravações pornográficas.
Punindo-se quem actue com tal propósito, ou seja, trata-se de um elemento subjectivo do tipo de ilícito, estando-se, pois, perante um modo de actuação que prefigura o crime, adento desta qualificativa como um crime de resultado cortado ou parcial, em que o tipo objectivo ultrapassa em extensão o tipo subjectivo.
Exige-se, pois, a demonstração de que a aquisição ou detenção de fotografias, filmes, ou gravações pornográficas que utilizem menores, tem o propósito das mesmas virem a ser distribuídas, importadas, exportadas, divulgadas, cedidas ou exibidas. Trata-se, por isso, de um crime intencional.
Sobre esta matéria o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 17/05/20172 assumiu entendimento que:
"O crime de pornografia de menores visa, como se apontou, de forma mais direta ou indireta, defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, ou o seu livre desenvolvimento, de outro ponto de vista, bens jurídicos, de qualquer modo, de caráter eminentemente pessoal.
O número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi cometido - conforme critério estabelecido pelo art. 30°, n° 1 do Código Penal.
Por outro lado, dispõe o art. 30.° do Código Penal, no seu n° 2 que: "Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente." Acrescentando o seu n. " 3 que: "O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais."
Contempla, pois, o legislador exceções para situações em que a acentuada diminuição da culpa do agente justifica um ajuste da moldura abstrata aplicável à conduta, integrando num só crime continuado o que constituiria uma reiteração criminosa.
Posto isto, constituirá óbice à qualificação jurídica operada o facto de estarmos perante ilícitos que tutelem bens jurídicos eminentemente pessoais, inviabilizando a integração num só crime de trato sucessivo os diversos atos reiteradamente praticados numa dada circunscrição temporal, por constituírem uma unidade de resolução criminosa, tal como sucede no crime continuado?
Entendemos que não.
Com efeito, no caso do crime de pornografia de menores estamos perante um crime de perigo abstrato, punindo o legislador uma dada atividade pela sua potência idade lesiva do bem jurídico protegido, independentemente da produção de qualquer dano ou perigo de dano.
Antecipando-se a tutela dos bens jurídicos e prescindindo a previsão típica da ocorrência de dano, a questão que se coloca é se faz qualquer sentido “repartir” a atividade a sancionar por referência a cada ato isolado ou agrupar os atos em causa em função do número dos potenciais lesados.
A resposta, em nosso entender, deverá ser negativa, atentas as características dos chamados “crimes de atividade”, como é o caso do crime de tráfico de estupefacientes3.
Entendemos, por isso, que em casos de crimes de pornografia de menores estamos perante um único crime.
Em termos doutrinais encontramos posições sufragando igual entendimento.
Com efeito, Ana Paula Rodrigues4afirma que “Este tipo legal de crime visa tutelar bens jurídicos traduzidos no interesse da comunidade em proibir a circulação, venda, comercialização, a simples transmissão de registos audiovisuais de carácter pornográfico envolvendo crianças com idade inferior a 18 anos.
O legislador, através deste preceito visou, também, resolver o problema da criminalização do tráfico de fotografias, filmes e gravações pornográficas com crianças, baseado num bem jurídico supra individual diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma criança.
Assim, não se aceita que a norma proteja interesses exclusivamente pessoais, com a consequente multiplicação de ilícitos, nos termos do art. 30° do Código Penal.
Pelo exposto e em nosso entender, não obstante as imagens, na generalidade, conterem várias vítimas, comete um único crime quem as detém, exibe ou cede".
Por outro lado, Maria João Antunes5 refere que a inserção na secção dos crimes contra a autodeterminação sexual é significativa “de que o bem jurídico protegido pela incriminação pretende ser o livre desenvolvimento da vida sexual do menor de 18 anos de idade face a conteúdos ou materiais pornográficos.
É, porém, duvidoso que todas as condutas tipificadas sirvam a protecção deste bem jurídico.
Relativamente às condutas referidas no n. 1-a) e b), é questionável que a incriminação tenha ainda justificação por referência ao bem jurídico individual da liberdade e da autodeterminação, quando se trate de menor entre 14 e 18 anos de idade (supra art. 174° §§ 2 e 3)...
No que se refere aos n.°s 1-c) e d) e 3 do que se trata, verdadeiramente, é da criminalização do comércio de material pornográfico, entendido este numa acepção ampla, havendo uma tutela demasiado longínqua e indeterminada do livre desenvolvimento sexual do menor "de carne e osso"... para se poder afirmar que este é o bem jurídico individual protegido pela incriminação...
E assim, como parte dos autores atrás mencionados, entendemos que as alíneas c) e d), protegendo nuclearmente o interesse da comunidade em proibir a circulação, venda, comercialização, a simples transmissão de registos audiovisuais de carácter pornográfico envolvendo crianças com idade inferior a 18 anos, ou seja, criminalizando o comércio de material pornográfico com menores de idade inferior a 18 anos, não impõem a correspondência entre o número de menores utilizados nesse material e o número”.
José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro6, entendem que:
“No que concerne às condutas descritas nas alíneas a) e b) do n.° 1 do art. 176° do CP existe uma violação direta do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, o que implica que por cada menor utilizado ou aliciado para efeitos de espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas se consuma um crime. Assim, o número de crimes coincide com o número de vítimas usadas ou aliciadas.
Por seu turno, as alíneas c) e d) do n.° 1, os n°s 4, 5 e 6 do art. 176.° do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção e facilitação de acesso dos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, determinam que se conclua que o número de materiais pornográficos em causa releva para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados. Assim, existirá um só crime, independentemente do número de fotografias, filmes ou gravações. (...)”
Sufragamos igual entendimento, considerando-se que dada a configuração legal deste tipo de crime e os dados dos autos com ações de descarregamento, em grande quantidade, de ficheiros, nos quais se incluem ficheiros de pornografia infantil que o que está em causa é uma repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa.
Não fazendo, pois, sentido “dividir” a atividade a sancionar por referência a cada ato isolado ou agrupar os atos em causa em função do número dos potenciais lesados
Assim e não obstante o arguido ter partilhado e ter guardado uma multiplicidade de ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos em actos sexuais, entende-se que praticou um único crime de pornografia de menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176.°, n.° 1, alínea c), d) e artigo 177.°, n.° 7 do Código Penal.
Motivos pelos quais entendemos que o arguido se encontra fortemente indiciado da prática de um único crime de pornografia com menores, punido nos termos supra expostos.
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Feita a análise critica dos factos e a sua subsunção jurídica vejamos agora qual a medida ou medidas coativas a que os arguidos deverão ficar sujeitos.
Segundo decorre do disposto nos art.°s 191° e 193° do C.P.P as medidas de coação e garantia patrimonial, obedecem aos princípios da legalidade, e devem ser necessárias, adequadas e proporcionais aos princípios cautelares que ao caso se impõe, dependendo a sua aplicação, com excepção do TIR, da verificação em concreto de um dos perigos elencados no art.° 204° alíneas a) a c) do C.P.P.
O primeiro dos elencados perigos visa obstar ao comummente conhecido como periculum libertatis, ou seja, obstar a que o arguido se furte à acção da justiça por nas circunstancias em concreto haver perigo de fuga.
O segundo reporta-se ai ao perigo de perturbação do inquérito ou da instrução e perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e visa, no essencial, o perigo de o arguido interferir na investigação, nomeadamente quanto à recolha de prova, sua conservação e genuidade (perigo não referido pelo MP e que nessa medida não carece de apreciação por via do disposto no art.° 194°, n.°2 do CPP).
O ultimo dos mencionados perigos reporta-se ao perigo de continuação da actividade criminosa ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
O perigo de continuação da actividade criminosa reportar-se-á à prática de crimes da mesma natureza, impedindo a continuação da atividade criminosa de que os arguidos vêm indiciados, conforme se infere da referencia a tal perigo tendo por base a razão da natureza e das circunstancias do crime ou da personalidade do arguido.
Quanto ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, o mesmo deve decorrer de factos concretos capazes de mostrar que a libertação, sem mais, do arguido poderia causar danos à ordem e tranquilidade da sociedade em geral.
Revertendo de novo para o caso concreto há que sopesar
O facto de o arguido residir com a sua companheira.
Estar social, profissional e familiarmente inserido, ao que tudo se indicia contar com o auxilio do pai.
A sua postura perante as forças de segurança facilitando o acesso aos elementos de prova, mormente as buscas domiciliárias, onde veio a ser apreendido o computador e que disse de pronto ser seu tal como os ficheiros que acedeu e partilhou
A ausência de antecedentes criminais, realidade não despicienda atendendo à sua idade actual de 43 anos.
Há igualmente que sopesar o ilicito que temos por fortemente indiciado, a sua moldura penal e eventuais sanções, a indiciação relativamente ao período que perdurou a sua actuação e a persistência de intentos demonstrada, realidade reveladora de uma personalidade distorcida em matéria sexual, motivos pelos quais entendemos existir claro e concreto perigo de continuação da actividade criminosa que urge obstar.
Das medidas coactivas
Nestes termos, convocando as disposições conjugadas dos art°s 191, 192, 193, 195, 196, 198, 200°, n.°1 al e), art.° 204° al c), todos do C.P.P entendo que o arguido deverá ficar sujeito às medidas coativas de:
TIR já prestado.
Proibição de aceder o serviço de internet na sua residência, devendo comunicar-se às operadoras a medida ora decretada.
Proibição de atendimento de menores de 14 anos no seu local de trabalho, devendo comunicar-se ao diretor do seu local de trabalho.
Obrigação de apresentações no posto policial da área da sua residência com periocidade trissemanal, a ter lugar às segundas, quartas e sábados em horário de expediente.
por se entender ser as únicas adequadas a remover os perigos encimados e proporcional à gravidade dos ilícitos indicados nestes autos.
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Devolva-se o arguido à liberdade.
Notifique.
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3. Apreciando
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 16/2014 - Diário da República n.º 3/2015, Série I de 2015 - fixou jurisprudência no sentido de que: «É admissível recurso do Ministério Público de decisão que indefere, revoga ou declara extinta medida de coacção por ele requerida ou proposta.»
Sendo essa a leitura a realizar do art. 219.º, n.º 1 do CPP, certo é que só em casos excecionais o tribunal de recurso poderá divergir da decisão da 1ª instância, isto porque o recurso reporta-se a uma decisão pretérita, mas o efeito do seu eventual provimento implica a aplicação de uma nova medida de coação.
In casu a discordância do Digno recorrente relativamente ao decidido não se cinge às medidas de coação, mas também ao número de crimes imputados ao arguido, concretamente, um único crime de pornografia de menores, na forma agravada, p. e p. pelo art. 176.º, n.º 1, alínea c), d) e art. 177.º, n.º 7 do Código Penal, por oposição a duzentos e cinquenta e sete crimes desse mesmo tipo.
Melhor dizendo, mostra-se fortemente indiciado que o arguido, através da sua conduta, divulgou e deteve, fotografias, filmes e gravações de conteúdo pornográfico envolvendo menores de 14 anos.
Contudo, considera o Digno recorrente que inexiste fundamento, de facto e de direito, para uma alegada diminuição da culpa ou para uma unidade de resolução.
Ocorre que resposta a essa questão não passa por esse prisma, mas antes por observar qual a exata dimensão do bem jurídico protegido pela incriminação.
É que em causa está a utilização indireta de menores, logo, uma tutela indireta da liberdade e autodeterminação sexual do menor, ao contrário daquilo que sucede com os crimes de abusos sexuais previstos pelos arts. 171.º e 172.º, atos sexuais com adolescentes do art. 173.º, recurso à prostituição do art. 174.º ou lenocínio do art. 175.º, e com as condutas descritas nas alíneas a) e b) do n.° 1 do art. 176.º, todos do Código Penal, em que o número de crimes coincide com o número de vítimas.
“as alíneas c) e d) do n.º 1, os nºs 4, 5 e 6 do art. 176.º do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção e facilitação de acesso dos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, determinam que se conclua que o número de materiais pornográficos em causa releva para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados” (José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in “Crimes Sexuais”, Almedina, fevereiro 2023-4ª edição, págs. 283-284).
Ou seja, no caso das alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 176.º visa-se, em primeira linha, a tutela da imagem do menor associada a um interesse público de reduzir o consumo de pornografia infantil.
Nessa medida, também nós entendemos que o número de materiais pornográficos em causa não pode servir de critério de contabilização da prática de crimes, sem prejuízo de efetivamente relevar para a escolha e medida da pena.
Por conseguinte, sufragamos a posição assumida no despacho recorrido, no sentido de que apenas existirá um só crime, “considerando-se que dada a configuração legal deste tipo de crime e os dados dos autos com ações de descarregamento, em grande quantidade, de ficheiros, nos quais se incluem ficheiros de pornografia infantil que o que está em causa é uma repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa”.
Prejudicado que se mostra este segmento do recurso, vejamos se, ainda nessa perspetiva (um único crime de pornografia de menores, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 176.°, n.° 1, alínea c), d) e artigo 177.°, n.° 7 do Código Penal), é caso de aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
Como é sabido, as necessidades processuais de natureza cautelar a que as medidas de coação procuram dar resposta resultam da existência dos perigos elencados nas três alíneas do artigo 204.° do CPP, sendo que no caso dos autos o despacho recorrido fundamentou a aplicação das medidas de coação ao arguido apenas naquele a que se refere a alínea c) dessa disposição legal, especificamente, perigo de continuação da atividade criminosa que urge obstar.
Não relevou, ao contrário do Digno recorrente, a existência de um qualquer perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, o que justificou, ao consignar que o perigo em questão “deve decorrer de factos concretos capazes de mostrar que a libertação, sem mais, do arguido poderia causar danos à ordem e tranquilidade da sociedade em geral” (sublinhado nosso).
Porém, também não o concretiza o Ministério Público, pois que se perde em considerações de prevenção geral, esquecendo que “o perigo de perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas deve ser reportado a previsível comportamento no futuro imediato do arguido, resultante da sua postura ou atividade, e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reação que pode gerar na comunidade” (António Gama em comentário ao art. 204.º do CPP, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo III, Almedina, fevereiro 2022, pág.408, nota § 35).
Assim visto, e sopesando tudo aquilo que não deixou de ser considerado pela decisão recorrida (o facto de o arguido residir com a sua companheira; estar social, profissional e familiarmente inserido; a sua postura perante as forças de segurança facilitando o acesso aos elementos de prova; a ausência de antecedentes criminais; a moldura penal do ilícito em questão e eventuais sanções, a indiciação relativamente ao período que perdurou a sua atuação e a persistência de intentos demonstrada, realidade reveladora de uma personalidade distorcida em matéria sexual), afigura-se-nos que as medidas de coação impostas não se mostram desproporcionadas à gravidade dos factos e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Na verdade, da análise que realizamos do despacho recorrido não verificamos qualquer exceção, que permita ultrapassar a circunstância de que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coação constantes do catálogo legal, não subscrevendo nós a afirmação do Digno recorrente de que aquelas que foram impostas não se mostram eficazes para salvaguardar as exigências cautelares que aqui se impõem.
Com efeito, em conexão com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade está também o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, consagrado pelo artigo 193.º, n.º 2, do CPP e em conformidade com o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Por conseguinte, e sendo ponto assente que às medidas de coação correspondem finalidades estritamente cautelares e não de satisfação de exigências de prevenção, geral e especial, certo é que decorridos que se mostram quatro meses sobre a sua aplicação, não são conhecidos fundamentos para alterá-las.
Sopesando, e sem prejuízo da existência de novos elementos que justifiquem que o Ministério Público venha a requerer a aplicação da prisão preventiva, nenhum reparo cumpre realizar ao despacho recorrido, sendo o mesmo de manter.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Notifique.
*
Lisboa, 17 de junho de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral
Rui Poças
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1. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/06/2020, proc. 8225/18.6T9LSB.E1, Rel. Ana Brito, in www.dgsi.pt
2. Cfr. Processo nº 194/14.8TEL.SB.S1, Rel. Pires da Graça, disponível na Internet, in www.dgsi.pt
3. Este também visa, ainda que de forma indireta, a proteção de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a integridade física e mesmo a vida de cada um dos “protegidos”, até porque está em causa uma questão de saúde contudo, por força da estrutura conferida pelo legislador ao ilícito, punindo a atividade, demonstrada a venda de produto estupefaciente a diversos consumidores, o agente não é punido por um crime por referência a cada um dos adquirentes.
4. Cfr. Revista do CEJ, 1.º Semestre 2011, Número 15, Pornografia de menores: novos desafios na investigação e recolha de prova digital
5. Citação extraída do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/06/2020, proc. 8225/18.6T9LSB.E1, Rel. Ana Brito, in www.dgsi.pt
6. in Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Edições Almedina, Dezembro 2019, pag. 231