Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4600/2007-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
TRANSFORMAÇÃO
SOCIEDADE UNIPESSOAL
ARRENDAMENTO
COMUNICAÇÃO
SENHORIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A transformação de uma sociedade comercial por quotas em sociedade unipessoal não implica a sua dissolução e a criação de uma nova sociedade;
2. Continuando a tratar-se da mesma pessoa jurídica, a referida transformação não implica cedência do gozo da coisa locada em que funciona a sede da sociedade a terceiros, pelo que não existe a correspondente obrigação de comunicação do facto ao senhorio. (A.P.)
Decisão Texto Integral: EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
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I – RELATÓRIO
Nº do processo: Apelação em Acção Sumária nº 4600/07 6 da 6ª Secção

a) MANUEL F, viúvo, residente (…) em Lisboa intentou contra FARMÁCIA M – UNIPESSOAL, Ldª, com sede (…) em Lisboa a presente acção visando a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes e o consequente despejo imediato do local arrendado.
Alega para tanto, e em síntese, que em 8 de Maio de 1952 deu de arrendamento as lojas com entrada pelos nº 36-B e 36-C do prédio urbano sito no (…) em Lisboa, pela renda mensal de 2.200$00, a T R M, por óbito de quem os respectivos herdeiros trespassaram o locado a T O M.
Mais alega que em 15 de Janeiro de 2001 entre o autor, a Farmácia M Ldª e o então arrendatário das mencionadas lojas foi feita a modificação do contrato de arrendamento passando a Farmácia M, Ldª a ser a arrendatária do locado.
Alega ainda que, por escritura de 30 de Março de 2006, a Farmácia M foi transformada em sociedade Unipessoal passando desde então a usar a firma “Farmácia M – Unipessoal, Ldª”, a quem foram transmitidos os direitos e obrigações relativos ao contrato de arrendamento já que Farmácia M, Ldª deixou de ter existência legal.
Que não lhe foi comunicada a transformação da Farmácia M, Ldª em sociedade unipessoal no prazo de 15 dias sobre tal facto, apenas vindo a ser feita a comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038º do Código Civil em 26 de Abril de 2006.
Mais alega o autor que, por esse facto, a transformação da arrendatária em sociedade unipessoal é ineficaz em relação a ele e que não reconhece a Farmácia M, Unipessoal Ldª como arrendatária.
b) A ré, devidamente citada, contestou o pedido formulado pelo autor, alegando não ter havido qualquer cedência da posição contratual da arrendatária com a sua transformação em sociedade unipessoal e que a comunicação feita ao autor se destinou apenas a dar-lhe conhecimento da nova designação da sociedade para efeito de emissão dos recibos de renda.
c) Foi então proferida decisão que, com base nos factos assentes julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
d) Inconformado com tal decisão, após decisão do pedido de aclaração, dela interpôs recurso o autor cujas alegações remata com as seguintes conclusões:
a) A carta de 26 de Abril de 2006 da ré comunica ao autor ora apelante a alteração da denominação social da Farmácia M, Ldª. Tal carta deveria ter chegado ao conhecimento do autor ora apelante até 15 de Abril de 2006, uma vez que a escritura de transformação social foi efectuada em 30 de Março de 2006.
b) Na transformação operada houve adjudicação de quota em partilha e foi alterada a anterior composição do capital social, ficando um só sócio como facilmente se alcança;
c) É óbvio que dessa transformação não resultaram para o autor quaisquer garantias adicionais, por ter passado a existir apenas um só sócio;
d) Alcança-se assim que o autor ora apelante tem todo o interesse em saber, no prazo legal, a transformação operada para efeitos de verificar a existência ou não da estabilidade do arrendamento;
e) Tal comunicação deveria ter sido feita dentro do prazo legal para ser apreciada pelo autor ora apelante, o que não foi feito;
f) Da mesma forma verifica-se nos autos ter existido emissão de nova certidão de denominação social diferente da anterior arrendatária. Assim,
g) É óbvio que a adjudicação de quota em partilha e a mudança de denominação social alteram os pressupostos em que foi celebrado o contrato de arrendamento. Por outro lado,
h) A ré apelada pedindo ao autor a passagem de recibos de renda em seu nome aceita implicitamente a necessidade de comunicar a transformação operada nomeadamente para efeitos contabilísticos e fiscais, Mas,
i) A douta sentença recorrida não teve em conta a situação facturada existente nos autos pois se limitou, e bem, a apoiar formalmente a legalidade da transformação operada. Mas,
j) Esta não foi contestada, uma vez que o que se alega na petição inicial é que a ré apelada comunicou ao apelante a transformação operada, mas fê-lo fora do prazo legal exigido na alínea g) do artigo 1038º do Código Civil. Por isso,
l) A douta sentença recorrida viola o disposto na alínea f) do artigo 64º do RAU e a alínea g) do artigo 1038º do Código Civil, por não decretar o despejo.”
e) A ré apresentou as suas contra alegações defendendo a manutenção do decidido e apresentando as seguintes conclusões:
“1. O apelante reduz o objecto do presente recurso à circunstância de a douta sentença recorrida não ter tomado em consideração que a "Ré/apelada comunicou ao apelante a transformação operada, mas fê-lo fora do prazo legal exigido na alínea g) do artigo 1038 do Código Civil. Por isso, ... viola o disposto na alínea f) do artigo 640 do R.A.U. e a alínea g) do artigo 10380 do Código Civil" (cfr. alíneas j) e I) das conclusões).
2. Tanto da alínea g) do artigo 1038º do Código Civil como da alínea f) do artigo 64° do R.A.U. resulta claramente que as respectivas previsões legais pressupõem que haja uma transmissão do gozo da coisa locada ou da posição contratual de arrendatário.
3. Para haver transmissão forçoso se torna que existam, pelo menos, duas pessoas - transmitente e transmissário.
4. No presente caso, a sociedade comercial por quotas denominada “Farmácia M, Ldª” foi transformada em sociedade unipessoal por quotas, tendo passado a usar a firma “Farmácia M, Unipessoal, Ldª”.
5. A sociedade manteve-se a mesma, não foi dissolvida para ser criada uma outra sociedade.
6. Está, portanto, excluída a hipótese de, por força da transformação, ter ocorrido a transmissão da posição contratual de arrendatária da sociedade. A sociedade era a arrendatária do locado e arrendatária continua a ser.
7. A sociedade também não subarrendou ou emprestou, total ou parcialmente, o prédio arrendado, pelo que, não estava obrigada a comunicar ao A./apelante, “dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos” (cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato).
8. Não tendo ocorrido cedência do gozo do locado nem transmissão da posição de arrendatária, a Sociedade não estava, obviamente, obrigada a observar o disposto na alínea g) do artigo 1038º do Código Civil nem assiste ao autor/apelante o direito de resolver o contrato de arrendamento ao abrigo do disposto na alínea f) do artigo 64° do R.A.U.
f) Colhidos os vistos legais dos Exmº Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre agora apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
São os seguintes os factos apurados e descritos na decisão recorrida:
1. O Autor, por escritura lavrada no dia 8 de Maio de 1952, no Quarto Cartório Notarial de Lisboa, deu de arrendamento as lojas com entradas pelos n.ºs 36-B e 36-C do prédio urbano situado no (…), na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa, inscrito no 5.º Bairro Fiscal de Lisboa, freguesia de São João de Deus, sob o Artigo (…), a T R M, pela renda mensal de 2 200$00 (dois mil e duzentos escudos) e demais condições que desse contrato constam;
2. Por óbito do anterior arrendatário, T R M, os seus herdeiros trespassaram as lojas 36-B e 36-C a T O M, por escritura de 7 de Dezembro de 1995, lavrada no Primeiro Cartório Notarial de Lisboa;
3. Em 15 de Janeiro de 2001, entre o Autor, a Farmácia M, Lda., e o então arrendatário das ditas lojas, foi feita a modificação do referido contrato de arrendamento, sendo a renda então fixada em Esc.: 200 000$00 (duzentos mil escudos);
4. Tal prestação mensal foi posterior e sucessivamente aumentada por aplicação do coeficiente legal de actualização, encontrando-se, nesta data, fixada em € 1.169,86 (mil, cento e sessenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos), que é a renda mensal que veio sendo paga pela Farmácia M, Lda.;
5. Esta sociedade, por escritura de 30 de Março de 2006, foi transformada em sociedade unipessoal por quotas e, desde essa data, passou a usar a firma Farmácia M, Unipessoal, Ldª;
6. As quotas da sociedade Farmácia M, Lda., a 30 de Março de 2006, estavam concentradas no sócio único A M, o qual transformou a mesma em sociedade unipessoal por quotas, através da referida escritura pública;
7. Para tal escritura de transformação foi necessário obter no Registo Nacional de Pessoas Colectivas um certificado de admissibilidade de firma (emitido a 22 de Fevereiro de 2006); e
8. Em 26 de Abril de 2006, a Ré dirigiu ao Autor uma carta, recebida por este na mesma data, com o conteúdo seguinte:
(…) Venho por este meio comunicar a alteração da denominação social de Farmácia M, Lda., para Farmácia M, Unipessoal, Lda..
A sociedade arrendatária é a mesma, apenas tendo sido alterada a sua denominação em consequência de adjudicação da quota em partilha conforme escritura celebrada em 30 de Março de 2006 (cópia em anexo).
Assim, solicito que os recibos de renda sejam emitidos de acordo com os seguintes elementos:
Farmácia M, Unipessoal, Lda.
Contribuinte n.º (…)
(…), 36 B/C
Lisboa”.

B) O DIREITO
1. Importa agora apreciar as questões a decidir tendo em conta o teor das conclusões apresentadas pela apelante que, como é sabido, definem o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões apresentadas, a questão a resolver é apenas a de saber se a transformação da sociedade por quotas “Farmácia M, Limitada” na sociedade por quotas “Farmácia M Unipessoal, Limitada” envolve a extinção da primitiva sociedade e a criação de uma nova sociedade e, se, portanto, ocorre cedência geradora da obrigação de efectuar a comunicação a que alude o artigo 1038º alínea g) do Código Civil.
2. A resposta a esta questão foi dada na douta sentença recorrida nos seguintes termos:
(…) a sociedade arrendatária é, depois da transformação, a mesma sociedade que era antes da transformação; existe só uma sociedade, pelo que não pode falar-se em transmissão de direitos e obrigações (o que implicaria a existência de mais do que uma pessoa jurídica). A sociedade manteve-se a mesma e não foi dissolvida para ser criada uma outra”.
“Não ocorreu qualquer cedência da posição contratual de arrendatária, pelo que a Ré não estava obrigada a fazer a comunicação a que alude o artigo 1038.º, al. g), do Código Civil: a comunicação que, de facto, veio a ser efectuada nada tem a ver com este preceito legal, e sim com a mera actualização da nova denominação social da Ré, permanecendo inalterado, de resto, o número de identificação de pessoa colectiva (NIPC: …).”
“A sociedade unipessoal por quotas pode resultar da concentração na titularidade de um único sócio das quotas de uma sociedade por quotas, independentemente da causa da concentração, efectuando-se tal transformação por declaração do sócio único da sua vontade de transformar a sociedade em sociedade unipessoal por quotas (artigo 270.º-A, n.ºs 2 e 3, do Código das Sociedades Comerciais)”.
“A transformação de uma sociedade (…) não importa a dissolução dela, a menos que assim o deliberem os sócios (artigo 130.º, n.º 3, do mesmo Código): não ocorre a alteração da personalidade jurídica da mesma, nem a transformação implica, em regra, a sua dissolução e a criação de uma nova sociedade comercial”.
Mais adiante, citando Miguel Pupo Correia (Direito Comercial, 5.ª Edição, SPB II Editores, Lda., Lisboa, 1997, págs. 607 e 608), escreveu-se na douta sentença recorrida: “(…) Alguns autores sustentaram a chamada teoria de novação, segundo a qual a transformação implicaria a dissolução da sociedade preexistente para dar origem a uma nova. Porém, a enorme maioria da doutrina – e a totalidade da mais recente – tem seguido a teoria da identidade ou continuação, ou seja, tem entendido que o acto de transformação se processa sem que se altere a plena identidade da sociedade e, designadamente, sem que ocorra a dissolução dela, constituindo tal acto uma emanação do princípio geral da liberdade dos sócios de alterarem o pacto social. (…).
É considerada também como transformação (…) a conversão em sociedade unipessoal por quotas de uma sociedade cujas participações sociais se tenham concentrado na titularidade de um único sócio, em virtude de ele ter adquirido todas as participações dos restantes, bastando para tal que declare ter esse propósito na escritura em que faça a aquisição da(s) participação(ões) restante(s), de modo que se torne sócio único (art. 270.º-A, n.ºs 2 e 3, CSC)”.
Ainda na douta decisão recorrida escreveu-se: “No caso dos autos, provou-se que as quotas da sociedade Farmácia M, Lda., em 30 de Março de 2006, estavam concentradas no sócio único A M, o qual deliberou transformar a mesma em sociedade unipessoal por quotas, através de escritura pública, passando ela a usar a firma Farmácia M, Unipessoal, Lda., desde essa data”.
“No caso dos autos, mostra-se afastada a hipótese de, por força da transformação operada, ter ocorrido transmissão da posição contratual de arrendatária: a sociedade era a arrendatária e arrendatária continua a ser; com a transformação, não foram transmitidos quaisquer direitos e obrigações, como é bom de ver, já que a sociedade continua a mesma; a transformação deu-se ao nível da sua forma societária (substancialmente, é a mesma entidade jurídica)”.
“Destarte, inexistindo fundamento legal para a peticionada resolução do contrato de arrendamento urbano, a presente acção só poderá improceder, com a consequente absolvição da Ré do pedido”.
3. É, na verdade claro, que face ao disposto no artigo 270º A e 270º G do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 130º nº 3 do mesmo diploma que a transformação de uma sociedade comercial não implica a sua dissolução e a criação de uma nova sociedade pelo que, tratando-se da mesma pessoa jurídica não houve cedência do gozo da coisa locada a terceiros estranhos ao contrato de arrendamento.
Não havia, portanto, lugar à comunicação a que alude o artigo 1038º alínea g) do Código Civil e não ocorre fundamento para o requerido despejo.
4. O artigo 713º nº 5 do Código de Processo Civil permite ao Tribunal da Relação que, em caso de confirmação integral e sem declaração de voto divergente, a decisão da primeira instância, quer quanto à decisão quer quanto aos respectivos fundamentos, os fundamentos do acórdão acolham, por remissão, os fundamentos da decisão impugnada.
É o que faz, face ao bem decidido na primeira instância.
O recurso não merece provimento.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em não conceder provimento ao recurso e, em conformidade, em confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 20 de Setembro de 2007
Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria da Graça de Vasconcelos Casaes Moreira Araújo