Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2889/2008-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. A parte que articula factos ou omite factos, tentando dar uma imagem falsa da outra parte – como a de contratante incumpridora - e de si própria a de cumpridora escrupulosa, quando o inverso é que seja verdade, de modo que se tivesse desde início contado toda a verdade logo se veria que o incumprimento era seu, e grave, e tendo-se a outra parte limitado a defender-se do incumprimento daquela, litiga a primeira claramente de má fé.
II. Nestas circunstâncias, não parece minimamente aceitável que a parte que está de boa fé, ainda por cima, tenha que suportar todas as despesas que fizera com a lide, a que nunca dera causa, pelo que a parte que litiga sem boa fé deverá ser condenada, como litigante de má fé, a pagar à primeira a indemnização prevista nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 457º do CPC, inclusive as despesas com a lide (mandatário, peritos, técnicos, etc.)
III. Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
IV. O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo, por não estar depende de culpa do agente, nem sequer de qualquer específico elemento subjectivo, ainda que a presença ou a ausência de tais elementos possam contribuir para a definição das consequências do abuso.
V. As consequências do abuso de direito podem ser de natureza variada, podendo consistir na supressão do direito ou na cessação do concreto exercício abusivo, mantendo-se, todavia, o direito. Como podem consistir num dever de restituir, em espécie ou em equivalente pecuniário ou num dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos de responsabilidade civil, com relevo para a culpa.
(PR)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Judicial de Santa Cruz das Flores, A e mulher, intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra B e mulher, alegando, em síntese, que:
- São donos de um prédio que contém uma parcela destinada a café/bar, a qual é ocupada pelos RR., desde Março de 2007, sem qualquer título que o justifique e contra a vontade dos AA.
- Instados os RR., por diversas vezes, para procederem à restituição do dito espaço recusam-se a fazê-lo.
- Não fora a ocupação pelos RR. os AA obteriam com o seu arrendamento um quantia mensal não inferior a € 2.000,00, desde Abril de 2007.
Pediram a condenação dos RR. a: a) reconhecer que os AA são donos do prédio descrito em 1° da p.i.; b) restituir a parcela ocupada de imediato aos AA livre e desembaraçada de quaisquer ónus ou encargos; c) no pagamento da quantia mensal de € 2.000,00, a título de privação do rendimento que os AA obteriam caso pudessem dispor do espaço ocupado pelos RR., desde Abril de 2007 e até à efectiva entrega do mesmo; d) numa sanção pecuniária compulsória de € 50,00, por cada dia de atraso na entrega aos AA da parcela do prédio supra mencionado, após a citação e até à sua efectiva entrega; e no pagamento das custas e procuradoria.
Os RR contestaram, alegando, em síntese, que:
- Têm um contrato de arrendamento, desde 1 de Outubro de 1995, que se mantém válido.
- Sempre o R. tem pago a renda, inicialmente de € 750,00 e actualmente de € 1.000,00.
- Em Março de 2007, o R., cansado de solicitar a passagem de recibos referentes à renda mensal, não procedeu à liquidação da renda no escritório do A., tendo-a, antes depositado no Banco.
- Os AA litigam de má-fé, uma vez que conscientemente alteraram a verdade dos factos.
Concluem pela improcedência da acção e pela condenação dos AA, como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor dos RR., em quantia que compreenda as despesas do processo, inclusive os honorários da mandatária.

Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador, especificada a matéria assente e elaborada a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidindo:
a) Declarar que os AA são donos do prédio descrito em 1° da p. i.; b) Condenar os RR. a restituir, de imediato, aos AA a parcela que ocupam, do prédio descrito em 1° da p. i, livre e desembaraçada de quaisquer ónus ou encargos; c) Condenar os RR. a pagar aos AA, pela ocupação da parcela referida na alínea anterior, uma contrapartida financeira de € 1.000,00, por mês, desde Abril de 2007, até efectiva entrega do local; d) Condenar os RR., a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento de uma quantia € 50,00, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de entrega aos AA da parcela do prédio referida na alínea b), tendo como termo inicial desta sanção 60 dias, após o trânsito em julgado da sentença; e) Absolver os RR. dos demais peticionado e f) Absolver os AA do pedido de condenação como litigantes de má-fé.
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Inconformados com a decisão, vieram os RR interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
A) Os Apelados, na qualidade de proprietários do prédio sito na Rua das Flores, freguesia e concelho de Santa Cruz das Flores, assinaram um escrito de arrendamento em 1 de Outubro de 1995, que titulava a ocupação pelos apelantes duma parte do rés-do-chão do referido prédio, destinado a café/bar.
B) Apesar desse contrato, os ora apelados alegaram na petição inicial que os apelantes ocupavam abusivamente, sem qualquer título ou justificação o referido espaço, omitindo, deste modo, factos relevantes para a descoberta da verdade, fazendo-o duma forma deliberada e consciente com o propósito de obter um objectivo que não o conseguiriam se tais factos não fossem omitidos.
C) Os apelados ao agirem como agiram fizeram-no com manifesta má fé, pelo que devem ser condenados em multa e indemnização, esta a ser paga aos apelantes em valor que deve ser prudentemente arbitrada por esse Tribunal.
D) Os apelados, perante a junção aos autos do escrito de arrendamento que na petição omitiram existir, vieram, em resposta à contestação, arguir a nulidade do contrato.
E) A conduta dos apelados constitui abuso do direito na modalidade -venire contra factum proprium - na medida em que existe uma clara contradição do seu comportamento anterior susceptível de basear uma situação jurídica de confiança - a assinatura do contrato de arrendamento escrito - e uma conduta actual dos mesmos contrária àquela, ao arguir a nulidade do contrato, tentando agora prevalecer-se duma nulidade formal a que deram azo, violando uma situação objectiva de confiança dos apelantes que sempre agiram de boa fé e em conformidade com esse contrato, pagando, inclusive, as respectivas rendas.
F) Esse abuso do direito, apesar de não alegado pelos ora apelantes em primeira instância é de conhecimento oficioso, pelo que nada impedia que o Tribunal o conhecesse e julgasse, antes deve ser tido sempre em consideração oficiosamente no processo, o que a sentença ora recorrida não apreciou nem julgou, em desrespeito pelo art. 334° do C.C.
G) Violou, por isso, a douta sentença recorrida, o artigo 457° do C.P.C, e o artigo 334° do C. C.
Termos em que deve a douta sentença recorrida ser revogada, julgando-se ao invés, os apelados como litigantes de má fé e, consequentemente, serem os mesmos condenados em multa e indemnização a pagar aos apelantes e ainda ser julgada como provado que os apelados agiram em todo este processo com abuso de direito, não apreciando, consequentemente, o Tribunal, a nulidade formal pelo facto de terem sido os apelados quem a ela deram azo, não podendo prevalecer-se dessa nulidade, com as legais consequências.
Os AA contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo do seguinte modo:
1 - Em 1 de Outubro de 1995 o contrato de arrendamento comercial só é válido se celebrado por escritura pública.
2 - A inobservância da forma legalmente prescrita é nula e de nenhum efeito (art. 220.° do C. Civil).
3 - Sendo nulo o contrato, e sem título que legitime a ocupação do espaço por parte dos RR., a acção própria é a acção de reivindicação.
4 - A ser válido o escrito entre A. e R. nos termos deste, e sendo o contrato  por  5   anos,  até  30  dias  antes  do  seu termo  mediante  simples comunicação podia o A. denunciá-lo. O A. denunciou-o e o R. não lho entregou!
5 - Por isso, quem age de má fé ao esconder tal facto são os RR . e não o A..
6 - Não há abuso do direito quando o A. se limita a reivindicar o que é seu, nos termos legalmente previstos, não servindo este para sanar vícios de forma, colocando em evidente crise a segurança e a certeza do comércio jurídico.
7 - E se assim fosse porque não notificaram os RR. os AA. para a outorga da respectiva escritura pública?
8 - E se o acordo escrito entre as partes fosse válido os RR. não teriam que o entregar ao A. quando este lho pedisse até 30 dias antes do seu termo?
9 - Por tudo isso, e do que não restam quaisquer dúvidas é que bem andou o Meritíssimo Juiz "a quo" cuja sentença se dá por integralmente reproduzida por não merecer qualquer reparo ou censura.
Termos em que deve a douta sentença recorrida ser mantida, julgando-se totalmente improcedente o recurso.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.
As questões a resolver são as inerentes:
a) À litigância de má fé e
b) Ao abuso de direito.
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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que se aceitam e consideram definitivamente assentes:
(…)
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III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Suscitam os RR, ora apelantes, através do presente recurso, duas questões essenciais, que se prendem com uma invocada actuação dos AA na presente acção, por um lado com litigância de má fé e por outro com abuso de direito.
Dizem que os AA, ora apelados, litigam de má fé, porque, na qualidade de proprietários do prédio sito na Rua das Flores, freguesia e concelho de Santa Cruz das Flores, assinaram um escrito de arrendamento em 1 de Outubro de 1995, que titulava a ocupação pelos apelantes duma parte do rés-do-chão do referido prédio, destinado a café/bar. E, apesar desse contrato, os ora apelados alegaram na petição inicial que os apelantes ocupavam abusivamente, sem qualquer título ou justificação o referido espaço, omitindo, deste modo, factos relevantes para a descoberta da verdade, fazendo-o duma forma deliberada e consciente com o propósito de obter um objectivo que não o conseguiriam se tais factos não fossem omitidos.
Deste modo, concluem que os apelados ao agirem como agiram fizeram-no com manifesta má fé, pelo que devem ser condenados em multa e indemnização.
Dizem que os apelados actuaram com abuso de direito, visto que, perante a junção aos autos do escrito de arrendamento que na petição omitiram existir, vieram, em resposta à contestação, arguir a nulidade do contrato.
A conduta dos apelados, no dizer dos apelantes, constitui abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que existe uma clara contradição do seu comportamento anterior susceptível de basear uma situação jurídica de confiança - a assinatura do contrato de arrendamento escrito - e uma conduta actual dos mesmos contrária àquela, ao arguir a nulidade do contrato, tentando agora prevalecer-se duma nulidade formal a que deram azo, violando uma situação objectiva de confiança dos apelantes que sempre agiram de boa fé e em conformidade com esse contrato, pagando, inclusive, as respectivas rendas.
Colocam, assim, os recorrentes, à apreciação do tribunal de recurso o regime de dois institutos jurídicos, que frequentemente se entrecruzam na mesma acção, sem que, todavia, se confundam.
Com efeito, a litigância de má fé, em processo, distingue-se do abuso do direito ainda que possa haver áreas de coincidência entre os dois institutos, ao nível das consequências. Nessas áreas, a litigância de má fé deve prevalecer, como instituto especial, sobre o abuso de direito, de ordem geral.
Mas tal coincidência, por regra, não se verifica, quer em termos processuais, quer em termos materiais.
Em termos processuais, é necessário ter presente que a litigância de má fé tem de ser apreciada imediatamente, na própria acção, podendo oficiosamente ser declarada, enquanto o abuso do direito, para além de poder ser apreciado nas mesmas condições, pode ainda ser considerado em acção própria, instaurada para o efeito.
Em termos materiais, a litigância de má fé está sujeita às restrições impostas pelo art. 456º do CPC, o que se não verifica com o abuso de direito.
Por isso, se passa à análise, em separado de cada um destes institutos, com eles confrontando a actuação processual dos AA, a fim de se poder concluir se agiram, ou não, com má fé por um lado e se com abuso de direito por outro.
a) Quanto à litigância de má fé:
A litigância de má fé tem na sistemática processual uma noção específica que se aproxima da considerada má fé civil, apesar de manter um cunho próprio, pois assenta no que Alberto dos Reis chamava de deveres de colaboração e de probidade[1]
As violações a esses deveres serão relevantes apenas ao nível doloso ou da negligência grave (lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes), tal como consagrado no novo processo civil (cfr. art.s 455º e ss. do CPC e 102º/a) do C C Judiciais).
Antes da reforma de 1995/96 propendia-se, inequivocamente, para a aproximação da má fé ao dolo, invocando-se a índole característica do processo[2].
Passou-se, na nova sistemática processual civil, na conjugação com o novo modelo processual de responsabilização e cooperação inter-subjectiva, a tipificar aqueles comportamentos processuais passíveis de obter um juízo de reprovação, abrangendo-se não só condutas dolosas como também as gravemente negligentes, determinantes de lesões na esfera jurídica das demais partes processuais, bem como da simultânea violação de interesse públicos, base da multa a que dão também lugar.
Prevê-se, dessa forma, a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão, de modo doloso ou gravemente negligente, a omissão grave do dever de cooperação e o uso reprovável dos instrumentos processuais.
A uma previsão da "utilização maliciosa e abusiva do processo"[3] juntou-se agora um juízo de reprovação de atitudes processuais gravemente imprudentes, numa procura de elevação dos padrões éticos judiciários.
Para melhor concretização ainda, diga-se que há uma correspondência entre este art. 456º/2 e os art.s 266º e 266º-A, todos do CPC, que se referem aos deveres de probidade, cooperação e à boa conduta processual das partes e que constitui como que o inverso do art. 456º[4].
O dever da boa fé processual está, assim, instituído como um princípio geral do processo civil, segundo o qual os litigantes devem agir como pessoas de bem, isto é, usando, um para com o outro, de correcção, honestidade e lealdade.
A violação destes incontroversos deveres, se dolosa ou gravemente negligente, é susceptível de consubstanciar uma conduta de má fé na litigância, nos termos do art. 456º/2 do C.P.C. quando a parte assuma qualquer dos comportamentos aí previstos, ou seja: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave no dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Com arredo de dúvida, deriva do normativo em exame que, para que se esteja em face de litigância de má fé, é forçoso que o litigante, com dolo ou culpa grave, tenha assumido um, ou vários, dos comportamentos valorizados no mesmo normativo. Em qualquer das situações avalizadas na lei, a litigância de má fé se afinca, pois, ou num comportamento processual deliberadamente aleivoso e abusivo do recurso à lide ou, pelo menos, num comportamento patentemente temerário ou desleixado em relação aos elementares deveres de boa conduta processual.
E, como comenta Teixeira de Sousa, “qualquer das referidas modalidades da má fé processual pode ser substancial ou instrumental: - é substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (art. 456º, n.º 2, al. a», alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (art. 456º, n.º 2, al. b», isto é, violar o dever de verdade (...); - é instrumental se a parte tiver omitido, com gravidade, o dever de cooperação (art. 456º, n.º 2, al. c» ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (art. 456º, n.º 2, al. d)”[5] .
E quer para a litigância de má fé dolosa, quer para a de má fé meramente culposa e quer ainda uma e outra seja substancial ou instrumental, prevê a lei a condenação, do impertinente ou malicioso litigante, em multa, a fixar nos termos do art. 102º, do Código das Custas Judiciais, e ainda em indemnização à parte contrária, caso por esta seja pedida.
Indemnização que pode consistir, de harmonia com o estipulado no art. 457º do Código de Processo Civil, no reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos, no reembolso das despesas e na reparação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé.
O montante da indemnização será encontrado segundo o prudente arbítrio do juiz, isto é, segundo critérios de razoabilidade e de equidade.
Mas não se pode, em todo o caso, olvidar que, numa relação adequada entre os direitos, ónus e deveres das partes, em que não é lícito demandar ou deduzir oposição com má fé ou negligência grosseira, não se poderá também instituir uma sistema de responsabilização processual de tal ordem que implique para aquelas um complexo, de compromissos e inibições processuais, incompatível com o interesse privado que cada uma aspira, legitimamente, alcançar com a sua litigância.
Assim, o dever de dizer a verdade, de cooperar com a efectiva realização da justiça nunca significaria impor à mesma parte um comportamento processual contrário ao seu interesse.
A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que no caso concreto o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais.
No entanto, ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica coloca uma limitação: que o exercício seja sincero, que a parte seja coerente e esteja convencida da sua pretensão.
Por outras palavras, uma coisa é o direito abstracto de acção ou de defesa, outra o direito concreto de exercer actividade processual.
O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana.
O segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica; e uma dessas limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão.
Se a parte procedeu de boa fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação.
Mas se procedeu de má-fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita, impondo o art. 456°, n° 1 do CPC que a parte que litigar dessa forma seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
Assim, as partes têm o dever de não formular pedidos ou aposição a esses pedidos cuja falta de fundamento não deviam ignorar; não alterar a verdade dos factos, não articular factos contrários à verdade, não omitir factos relevantes para a decisão da causa; não fazer do processo um uso manifestamente reprovável e não requerer diligências meramente dilatórias; isto é, têm o dever de proceder de boa fé (art. 456°, n° 2 do CPC).
Acontece que, em consequência da degradação dos padrões de actuação processual a que se tem assistido ultimamente e do realce que se impõe dar ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, o legislador, na revisão do CPC de 1995, foi mais longe que o anterior.
E ampliou o âmbito de aplicação do referido instituto, assumindo claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má fé, enquanto até então só uma conduta dolosa dava lugar a uma condenação dessa natureza.
Deste modo a parte que articula factos ou omite factos, tentando dar uma imagem falsa da outra parte – como a de contratante incumpridora - e de si própria a de cumpridora escrupulosa, quando o inverso é que seja verdade, de modo que se tivesse desde início contado toda a verdade, e só a verdade, e logo se veria que o incumprimento era seu, e grave, e tendo-se a outra parte limitado a defender-se do incumprimento daquela, litiga claramente de má fé.
Nestas circunstâncias, não parece minimamente aceitável que a parte que está de boa fé, ainda por cima, tenha que suportar todas as despesas que fizera com a lide, a que nunca dera causa, pelo que a parte que litiga sem boa fé deverá ser condenada, como litigante de má fé, a pagar à primeira a indemnização prevista nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 457º do CPC, inclusive as despesas com a lide (mandatário, peritos e técnicos, etc. a liquidar oportunamente).
No caso vertente os AA vieram alegar na acção, que os RR. desde Março de 2007 que detinham e ocupavam abusivamente uma parcela do rés-do-chão do prédio  descrito nos autos, destinada a café/bar, de que os AA são donos e legítimos proprietários,  sem que para tal tivessem qualquer título, justificação e contra a vontade, autorização e consentimento dos AA; estando, assim, os AA impedidos de utilizarem, usarem ou fruírem daquela parte da casa, pois a abusiva ocupação dos RR. não permite que a utilizem em benefício próprio, promovendo ou rentabilizando-o por qualquer outra forma,
Alegando mais que não fora a ocupação pelos RR. os AA obteriam com o seu arrendamento quantia mensal não inferior a 2.000,00 €, quantia que obteriam a partir de Abril de 2007,  da qual estão privados e de cuja privação são os RR. os únicos culpados, devendo como tal ser condenados a pagar a título de enriquecimento sem causa, até à efectiva entrega do espaço aos AA., já que os RR instados por várias vezes para proceder à restituição do espaço atrás referido recusam-se a fazê-lo.
Ora, os AA ao apresentarem este quadro factual como causa de pedir da acção, configurando a actuação dos RR como a de uns ocupantes abusivos do seu prédio, por alegadamente para tal não possuírem qualquer título, justificação e actuarem contra a vontade, autorização e consentimento dos AA e por outro lado fazendo-se passar por vítimas por estarem impedidos de utilizar e de fruir em benefício próprio do prédio, promovendo ou rentabilizando-o por qualquer outra forma, deturparam flagrantemente a realidade dos factos, sobretudo por omissão de outros factos, que bem conheciam e que não podiam deixar de alegar para que o tribunal fosse colocado perante a versão real dos eventos e não em face de uma versão adulterada.
Na verdade, os AA bem sabiam que desde o ano de 1995, os réus ocupam uma parcela do rés-do-chão, do prédio descrito em 1), com a área de 80 m2, destinada a café/bar, em consequência de no dia 1 de Outubro de 1995, o autor e o réu terem celebrado um acordo, sob a forma escrita, com o seguinte teor:
"Contrato de arrendamento do estabelecimento da Praça entre J e G.
1 - Fica ao cuidado de G toda a existências de Stock's, fiados e dívidas referentes ao café.
2 - Entrega uma quantia de 1.500.000$00 referente a Stock's, fazendo este pagamento de três em três meses na quantia de 500.00$00.
3 - Paga uma renda de 150.000$00 mensais.
4 - Paga a luz, empregado e respectiva caixa, etc.
5- As máquinas existentes no café e pertencentes a J são: 1 máquina de café, 1 moinho, 1 registadora, 2 refrigeradoras, toda a manutenção destas máquinas fica à responsabilidade de G.
6 - Comprando a J todos os produtos que ele tenha, na qual a qualidade e preço sejam iguais à concorrência.
7 - Este contrato dá-se por cinco Anos.
É de salientar que ao fim deste tempo avisar 30 dias antes se pretender alguma modificação, qualquer das partes pode avisar previamente para alteração ou término do mesmo."
Como também sabiam os AA que por tal ocupação os réus pagam uma contrapartida financeira, inicialmente no valor de € 750,00 e actualmente de € 1.000,00.
A realidade dos factos não é, assim, a que os AA traçaram de uma ocupação abusiva, sem título e danosa para os AA, mas antes a de uma ocupação consentida, acordada e até documentada por escrito e com contrapartida financeira para os mesmos AA, o que é uma realidade totalmente distinta daquela que os AA invocaram na acção.
De resto, em resposta à contestação, os AA, colocados perante o documento escrito e a versão apresentada pelos RR, mudam de estratégia, alegando agora a nulidade do contrato por os AA serem casados em regime de comunhão geral e o arrendamento de bens imóveis carecer de consentimento de ambos os cônjuges, ainda que reconheçam que o A marido até Março de 2007 tolerou a ocupação do imóvel por parte dos RR.
Quer dizer: os AA vieram intentar uma acção de reivindicação do prédio dos autos, invocando uma ocupação abusiva quando sabiam que esta se não verificava, porque existia um acordo para a ocupação se ter verificado e, em todo o caso, a ocupação ter sido tolerada de 1995 a 2007.
O que significa que os AA vieram litigar na acção de má fé, pois que de contrário não tinham dado uma versão torcida dos factos alegados e omitido outros que bem conheciam e que modificavam radicalmente a versão que resolveram apresentar.
Justifica-se, assim, a sua condenação como litigantes de má fé, em multa e em indemnização à parte contrária.
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b) Ao abuso de direito.
Estipulava-se no art. 13º do Código Civil de 1867 (Código de Seabra) que “quem, em conformidade com a lei, exerce o próprio direito, não responde pelos prejuízos que possam resultar desse mesmo exercício”.
Traduzia o normativo citado a consagração do princípio, vindo do direito romano, de que “qui suo iure utitur neminem facit iniuriam ou neminem laedit”.
Em face da norma em referência, a consagração do instituto do abuso de direito no nosso ordenamento jurídico, não se fez sem polémica, ainda que já na vigência do velho código a figura fosse defendida por alguma doutrina e se verificassem casos, ainda que raros, da sua aplicação na jurisprudência.
Coube ao Prof. Vaz Serra, no ante-projecto do Código Civil de 1966, apresentar o articulado relativo ao abuso de direito, distribuído por oito longos preceitos, onde, entre o mais, se previa, no art. 2.º, n.º 2, como situação de abuso de direito, “a obtenção astuciosa de sentença ou outras decisões judiciais injustas, mediante actos antijurídicos ou afirmações conhecidamente falsas”[6].
De tal projecto e após as várias revisões Ministeriais, resultaria um único artigo, o art. 334º do CC, numa acepção ampla, perspectivando a figura pelo prisma da responsabilidade civil e a sua subordinação os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Com efeito, nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Perante o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.
Assim, os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.
Os limites impostos pela boa fé são excedidos, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito.
O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem.
Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso de direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
Para Manuel de Andrade «há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual»[7].
De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede[8].
Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”[9].
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante[10].
Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
Como figuras integradoras de comportamentos típicos de abuso de direito poderão mencionar-se, entre outras que aqui não importa considerar, as seguintes:
a) Ovenire contra factum proprium”:
Um dos mais típicos actos abusivos gira à volta da expressão latina “venire contra factum proprium”, ou, abreviadamente, “venire”, que, pela sua musicalidade e expressividade, adquiriu o estatuto de figura sacramental ou fórmula sacrossanta, não fosse ela de origem canónica.
Na sua estrutura, o venire pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o factum proprium) é contraditada pela segunda (o venire), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito.
O venire tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando constante e arbitrariamente de condutas, mormente que sejam nocivas o seu semelhante.
Descendo ao concreto das situações e respigando casos analisados pela jurisprudência, será abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium:
- O facto de um senhorio incentivar a instalação, pelo inquilino, de uma indústria doméstica para depois, com esse fundamento, lhe mover uma acção de despejo[11];
- Ter o promitente interessado obtido o cumprimento de um contrato-promessa para, depois, vir arguir a sua nulidade[12];
- Alguém ter celebrado um contrato e ter providenciado para o seu cumprimento durante 30 anos, para depois se apresentar a alegar a sua nulidade[13];
b) A “inalegabilidade”.
A inalegabilidade formal ou, simplesmente inalegabilidade, consiste no exercício do direito do que vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé, colocando-se na situação de, por exigências do sistema, não se poder aproveitar da invalidade desse negócio jurídico.
O negócio que não respeite a forma legal fica afectado de nulidade, nulidade essa que é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, sendo declarável, de ofício, pelo tribunal (220.° e 286.° do CC).
Na inalegabilidade, começa-se por uma concretização do venire contra factum proprium, pois que, num primeiro tempo o agente daria ensejo a uma nulidade formal de determinado negócio jurídico, dele se prevalecendo e mantendo-o enquanto conveniente lhe fosse, para quando lhe deixasse de convir proceder à invocação da nulidade e se libertar do negócio. Verificar-se-ia em tal situação uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia contemporizar.
Serão exemplos desta figura de abuso de direito:
- Dispensar a forma escrita do contrato de seguro, por respeito para com uma situação de confiança criada e vir depois alegar a sua nulidade[14];
-Invocar a nulidade da locação financeira por vício de forma o locador que, conhecendo ab initio a situação, pautou a sua conduta de modo consentâneo com a validade do contrato[15];
- Num trespasse anterior ao Decreto-Lei n.º 64-A/2000 - e, portanto, sujeito a escritura - alguém invocar a sua nulidade formal, quando apenas pretenda evitar o pagamento da parte do preço, ainda em falta[16];
- Num arrendamento nulo por falta de forma, mas declarado nas Finanças e largamente executado, proceder a ulterior alegação da nulidade formal[17].
c)  A “Suppressio”
A suppressio (supressão) verifica-se quando o exercitante deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé.
A suppressio abrange manifestações típicas de "abuso do direito" nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, crie a convicção de jamais vir a ser exercida, por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
O exercício retardado de certos direitos, em conjunturas de instabilidade, poderia dar lugar a graves injustiças. Por isso, é de penalizar o comportamento do agente que por inacção não exercitou no tempo devido o direito que lhe assistia, protegendo-se o beneficiário, na sua confiança de que não haveria tal exercício.
Assim, haverá abuso de direito na modalidade da supressio:
- Invocar ao fim de 20 anos a nulidade de uma doação[18].
- Alegar a nulidade de um crédito ao consumo, invocando a falta de indicação, no contrato, do nome do fornecedor, muito tempo depois da conclusão e reconhecendo a falta de meios para pagar[19].
d) O “tu quoque”
 Tu quoque (também tu!)[20] exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso: ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.
Respigando casos desta original figura de abuso de direito, apontam-se os seguintes:
- Por falta de obras, um armazém torna-se inutilizável com a chuva; instado a fazer obras, o senhorio nega-se; o locatário desocupa, por isso, o local; o senhorio move um despejo com base no encerramento[21];
- Num contrato-promessa, o Réu assina, faz reconhecer a assinatura e manda ao Autor, pedindo-lhe que assinasse e fizesse reconhecer a sua; o Autor perde o documento e alega a invalidade por não ter assinado[22];
- Um condómino recusa-se a assinar a acta da assembleia de condóminos e depois procura prevalecer-se disso para a impugnar[23].
Da obrigação de indemnizar no abuso de direito:
O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo, por não estar depende de culpa do agente, nem sequer de qualquer específico elemento subjectivo, ainda que a presença ou a ausência de tais elementos possam contribuir para a definição das consequências do abuso.
A declaração do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos. Verificando-se tais pressupostos, o abuso do direito é declarado pelo julgador mesmo quando o interessado não o tenha expressamente pedido, sendo, neste sentido, de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, efectivamente, nesta matéria, ponderar oficiosamente os valores fundamentais do sistema, sem estar vinculado às alegações jurídicas das partes.
As consequências do abuso de direito podem ser de natureza variada, podendo consistir na supressão do direito ou na cessação do concreto exercício abusivo, mantendo-se, todavia, o direito. Como podem consistir num dever de restituir, em espécie ou em equivalente pecuniário ou num dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos de responsabilidade civil, com relevo para a culpa.
Pode, assim, afirmar-se que o abuso do direito em determinados casos pode conduzir à supressão do direito envolvido na situação. E embora podendo dar lugar a deveres de indemnizar, o abuso do direito não é, em si, um instituto de responsabilidade civil no nosso ordenamento jurídico.
E pode ocorrer nas mais diversas situações jurídicas, como no âmbito de contratos, civis e comerciais, como em sede dos Direitos Reais e do Direito da Família.
Em qualquer delas está subjacente a ideia de que o abuso de direito integra o exercício de determinado direito, contrariando os valores fundamentais do sistema expressos, essencialmente, pela boa fé, não entendida como a posição da pessoa que, por pura ignorância, actua por forma a prejudicar outrem, e sim da pessoa que, cumprindo os deveres de diligência e de cuidado, actua sem consciência de lesar direitos alheios.
Como instrumentos úteis de aferir da boa fé necessária a ver-se concretizada uma situação de abuso de direito temos os da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente.
A tutela da confiança tem lugar quando uma pessoa tenha desenvolvido uma actuação baseada numa confiança alicerçada em razões atendíveis e que não possa ficar sem efeito sem causar prejuízo.
Como ao proteger-se a confiança de determinada pessoa, por regra, se prejudica outra, esta deve, de algum modo, ser a que tenha dado origem à situação gerada.
Por isso, que a tutela da confiança pela utilização do instituto genérico do abuso de direito se verifica particularmente nos tipos mais restritos de actos abusivos do venire contra factum proprium, da inalegabilidade, do tu quoque e da surrectio.
A primazia da materialidade subjacente significa que nas soluções de direito para cada caso concreto, através dos preceitos legais, a aferição das condutas tem de ser feita, por imposição da boa fé, em termos materiais, de acordo com as consequências que envolvem. Assim, não é suficiente indagar se a conduta da pessoa se apresenta em conformidade formal com a ordem jurídica, sendo ainda necessário verificar se, no plano material, ficam efectivamente protegidos os valores em presença, se dignos de protecção.
O abuso do direito implica, deste modo, uma ponderação global da situação em jogo, sendo que deve ser chamado para a solução de casos excepcionais, em que a solução de direito estrito repugne ao sistema.
O abuso do direito pode ser fonte de responsabilidade civil desde que no exercício abusivo se verifiquem os demais requisitos ou pressupostos do dever de indemnizar, ou seja, dolo ou a mera culpa, o dano e o nexo de causalidade entre a actuação abusiva e o dano.
Antes de mais, só haverá lugar a responsabilidade civil por abuso de direito, se além dos demais requisitos, alguém for lesado pelo exercício abusivo do direito, isto é, se houver dano como consequência do acto abusivo.
Por outro lado, tanto o acto ilícito como o acto abusivo são fonte do dever de indemnizar só quando o comportamento do agente viole voluntariamente o dever que sobre ele impende e seja, assim, passível de um juízo de censura a título de culpa.
Formulado positivamente, nos termos por que a lei identifica o acto abusivo, o dever de não abusar traduz-se, quando se exerça o direito de que se é titular, no dever de actuar segundo a boa fé, segundo os bons costumes ou segundo a finalidade económica ou social do mesmo direito; ou, numa palavra: dentro dos limites que para o direito em causa resultam do seu fundamento axiológico.
O que significa que ao dano, como pressuposto primário da responsabilidade civil por actos abusivos e a estes ligado em termos de causalidade adequada, se haverá de juntar, como requisito igualmente necessário e agora suficiente, a culpa do titular da prerrogativa individual abusivamente exercida. Ou, por outras palavras: que a indemnização baseada no abuso do direito tem por equivalente não só o prejuízo a reparar como também a culpa do lesante.
Sendo o acto abusivo equiparado no aspecto de ressarcimento ao acto ilícito, a obrigação de indemnizar será calculada nos termos gerais, havendo de cobrir, por regra, os danos efectivamente causados e apenas estes.
A indemnização será conferida, de preferência, em espécie, e só quando a reconstituição in natura se mostrar impossível ou extremamente gravosa para o autor do abuso, ou não reparar integralmente os danos, é que haverá que optar pela indemnização pecuniária (art. 566º do CC).
Para além da responsabilidade civil, ou mesmo a ela acrescida, poderão considerar-se outras sanções com vista a impedir que o titular do direito abusivamente exercido obtenha ou conserve as vantagens que obteve com a prática do acto abusivo e o farão reentrar, em última análise, no exercício legítimo do direito, tais como a nulidade, a anulabilidade, a inoponibilidade ou a rescindibilidade do acto ou negócio jurídico quando seja na sua prática que o abuso se verifique, até ao restabelecimento da verdade ou da realidade dos actos com ele conexionados, aceitando, por exemplo, a sua validade não obstante a falta da forma exigida, concedendo a exceptio doli generalis ou specialis, recusando a acção de anulação ou mantendo em vigor a relação[24].
Ora, no caso em apreço nos autos, verifica-se que os AA, ora apelados, depois de terem invocado na petição inicial a ocupação abusiva dos RR do prédio reivindicado na acção, devido a alegada inexistência de qualquer título que legitimasse a ocupação do referido prédio pelos demandados, confrontados com a contestação e o documento escrito pelo qual o A marido dava a estes o arrendamento do mesmo, mediante o pagamento duma contrapartida financeira, que, de resto, os apelados sempre receberam, vieram aqueles invocar a nulidade do contrato por vício de forma, por pretensa falta de autorização para contratar por parte da A mulher.
E na douta sentença recorrida, veio a considerar-se haver fundamento para a procedência da acção, não por se verificar qualquer ocupação abusiva da fracção ocupada, mas antes por se considerar o contrato nulo por não ter sido celebrado por escritura pública.
Sucede que, como bem salientam os apelantes, existe uma contradição directa entre a situação jurídica nascida com o contrato reduzido a escrito, aceite e querido à época pelos apelados, cuja validade nunca foi pelos mesmos posta em causa ao longo de doze anos, período durante o qual receberam, inclusive, as respectivas contrapartidas financeiras decorrentes da assinatura de tal contrato, e o comportamento presente dos apelados ao intentarem a presente acção e ao arguirem a nulidade desse acordo.
O comportamento dos apelados integra uma situação de abuso de direito, por a sua atitude tipificar o "venice contra facturum proprium”, por o A marido ter subscrito o acordo celebrado e por ambos o terem querido, deixando-o executar ao longo dos anos nos moldes e na forma como o foi estabelecido, dele colhendo a contrapartida económica acordada.
A conduta assumida pelos apelados entre 1995 e 2007, que foi de autorização e de tolerância para com os apelantes quanto à ocupação do prédio é contraditada por aquela que os mesmos apelados passam a ter a partir de 2007, exigindo a entrega do imóvel e vindo depois a reivindicá-lo através da presente acção.
Tipifica também a conduta dos apelados abuso de direito na modalidade de inalegabilidade formal, por terem vindo alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé, porque, tendo num primeiro tempo contribuído para que o negócio celebrado o fosse nos termos em que foi, dele se prevalecendo e mantendo-o enquanto conveniente se mostrou, vieram depois, quando lhes deixou de convir, proceder à invocação da sua nulidade, a fim do mesmo se poderem libertar. O que só pode ser havido como uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia contemporizar.
Exprime também o comportamento dos apelados uma situação de abuso de direito, expresso pelo “tu quoque”, porque a ser nulo o negócio eles mesmos contribuíram para a violação da lei, não podendo, por isso, sem abuso prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente.
E representa ainda o comportamento dos apelados uma manifestação típica de abuso do direito na modalidade da “suppressio”, porque a possuírem o direito que vieram invocar na acção, não quiseram exercê-lo durante alargado lapso de tempo, cerca de doze anos, sendo legítimo admitir que por tal facto se gerou nos apelantes a convicção de jamais viriam a exercitá-lo.
Este exercício retardado do pretenso direito, como se viu, tem de penalizar o comportamento dos apelados que por inacção não o exercitaram em tempo razoável, assim se protegendo os apelantes na sua confiança de que não haveria tal exercício.
Não se pode, pois, em face do que exposto fica, suscitar dúvida razoável de que a conduta dos apelados, quer a anterior (factum proprium), quer a actual (venireem contradição) são da responsabilidade dos mesmos apelados, que as assumiram com total liberdade de exercício e integram um comportamento contraditório, que se confronta com uma situação para que contribuíram, alimentando-a com o decorrer do tempo e o gerar de expectativas e que pelo exercitar da conduta posterior, de forma inopinada e frustrante de expectativas geradas e violador da confiança pela qual se deve nortear o comércio jurídico, não pode tal comportamento deixar de integrar os pressupostos da figura do abuso do direito.
Concluído que se mostra que se verifica uma situação de abuso de direito na pretensão que os apelados pretendem fazer valer na acção, não há que apreciar da invocada nulidade do contrato por vício de forma, nem na perspectiva alegada pelos apelados, da falta de consentimento da A mulher, nem da considerada pelo tribunal recorrido, da falta da escritura pública, porque, em qualquer situação, havendo abuso de direito a acção tem de improceder.
E dado que no caso, como se viu, o abuso de direito concorre com a litigância de má fé dos apelados, a indemnização a arbitrar aos apelantes tem de ser atribuída com fundamento nas regras previstas para a litigância de má fé.
Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.
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IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e revoga-se a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se os RR. do pedido e condenando-se os AA. como litigantes de má fé na multa de 10 (dez) UC e em indemnização aos RR, a liquidar oportunamente.
Custas nas instâncias pelos apelados.
Lisboa,  24 de  Abril de 2008. 
            Pereira Rodrigues
Olindo Geraldes
Fátima Galante
_________________________
[1] in "Comentário ao CPC", III, 4 e ss. e "CPC Anotado", I, 366.
[2] Vd. Paulo Cunha, "Simulação Processual e Anulação do Caso Julgado", 1935, 21/24, Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil", I, 382, e Luso Soares, "A Responsabilidade Processual Civil", 1987, em especial pp. 178/182 e 269/286).

[3] Manuel de Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", 1979, 356.
[4] Vd. Alberto dos Reis, "Comentário ao Código de Processo Civil", 3º, 1946, Manuel de Andrade, ob. loc. cit.; Elício de Cresci Sobrinho, "Dever de Veracidade das Partes no Processo Civil", 1992, 86/90; e Ac. da RE de 20/10/1977, CJ, 1246.
[5] In Estudos sobre o Novo Processo Civil, pg. 63.
[6] In BMJ, 85/335 e ss.
[7] Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., pg. 63-64.
[8]  "Abuso de Direito", in BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in Abuso de Direito, pg. 127.
[9] Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299.

[11] Ac da R Luanda de 17.07.1970, in Acórdãos da Relação de Luanda, 1970, 492-496.
[12] Ac da RC de 10.04.1984, in BMJ, 336/471.
[13] Ac da RL de 26.11.1987, in Apelação nº 13161/86, 1.ª Secção.
[14] Ac do STJ de 28.09.1995, in BMJ, 449/374.
[15] Ac da RL de 31.03.1998, in BMJ, 475/755.
[16] Ac da RP de 22.04.2004, in CJ, 2004, II, 188.
[17] Ac da RL de 29.04.2004, in CJ, 2004, II, 113.
[18] Ac da RP de 11.03.2003, in CJ, 2003, II, 173.
[19] Ac da RL de 01.04.2003, in CJ, 2003, II, 103.
[20] Tu quoque ! terá sido a exclamação de espanto e de crítica, proferida por JÚLIO CÉSAR aquando do seu assassinato, no Senado de Roma, quando se apercebeu de que o seu próprio filho adoptivo, BRUTO, se encontrava entre os conjurados.
[21] Ac da RP de 03.02.1981, in CJ, 1981, I, 146.
[22] AC do STJ de 12.07.2001, in CJ/STJ, III, 30.
[23] Ac da RL de 02.03.2004, in CJ, 2004, II, 69.
[24] Vd. Fernando Augusto Cunha de Sá, in Abuso de direito, Almedina, pg. 637 e ss.