Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4494/2006-5
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
INQUÉRITO
NULIDADE
INDÍCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Na forma de processo abreviado não é obrigatória a fase de inquérito, pelo que a falta deste não integra a nulidade prevista no art. 119.º, al. d), do CPP.
II – Tal como no processo comum, também no processo abreviado e por maioria de razão, está vedado ao juiz, no momento de proferir despacho a designar data para julgamento, sindicar a existência ou não de provas simples e evidentes da prática do crime e da responsabilidade penal do arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No processo nuipc.º 124/05.8PCAMD do 1.º Juízo de Pequena Instância Criminal da Comarca de Lisboa, o Ministério público vem interpor recurso do despacho judicial que declarou nula a acusação deduzida sob a forma de processo abreviado contra o arguido FL (e na qual se lhe imputava a prática, em co-autoria material, de um crime de injúrias agravadas, p.e p. pelos art.s° 181º, 184º e 132º, nº2, al j), todos do Código Penal), rematando a concernente motivação com as seguintes conclusões:
1. Só existe falta de inquérito se a lei processual penal o impuser como fase obrigatória no processo abreviado - artigo 391°-A n° 1 e 262°, n° 2, ambos do Cód. Proc. Penal.
2. Ora, a lei processual penal, ao não impor a existência de inquérito no processo abreviado, aponta inequivocamente para a legalidade processual da acusação em processo abreviado sem a realização do mesmo.
3. No caso em apreço não houve falta de inquérito por a lei processual penal o não exigir, não se verificando, consequentemente, a nulidade prevista na al. d) do artigo 119° do Cód. Proc. Penal.
4. A prova constante dos autos é simples e evidente quanto à verificação de crime e de quem foi o seu agente, não se verificando, consequentemente, a nulidade prevista na al. f) do artigo 119° do Cód. Proc. Penal.
5. Desta forma, encontram-se preenchidos todos os requisitos do processo abreviado, não sendo de considerar, como tal, nulo o despacho de acusação proferido.
6. O despacho proferido pelo Mmo. Juiz é recorrível por nele se terem apreciado nulidades.
7. O despacho recorrido violou o disposto nos art.° 181° e 184°° do Código Penal e 119°, al. f), 311°, n.° 1 e 391°-A°, n.° 1 do Código de Processo Penal.
Por todo o exposto, o despacho ora impugnado deve ser revogado e substituído por outro que receba o despacho de acusação proferido e determine data para julgamento em processo abre­viado.
Termos em que se requer que o presente recurso seja jul­gado procedente e que, em consequência, seja o despacho a quo revogado e, em seu lugar, proferido novo despacho que receba o despacho de acusação proferido e determine data para julgamento em processo abreviado.
Assim decidindo farão V. Ex. JUSTIÇA”

Neste Tribunal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
Colhidos os vistos e efectuada a conferência prevista no art. 419º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

A DECISÃO RECORRIDA
A decisão proferida pelo Exmo. Juiz da 1ª Secção do 1º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que constitui o objecto do presente recurso, é do seguinte teor:
“Nos presentes autos, o arguido FL encontra-se acusado, em processo abreviado, por factos de 16/02/2005, da prática, em autoria material, de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos artigos 181°, 184° e 132°, nº 2, alínea j), todos do Código Penal.
A acusação data de 09/03/2005.
Tal ilícito é punido com pena de prisão até 4 meses e 15 dias ou multa até 180 dias.
Dos autos, consta:
A fls. 2, o oficio de remessa do auto de notícia ao D.I.A.P.
A fls. 3 e 4, o auto de notícia;
A fls. 5, o C.R.C. do arguido, obtido via informática;
A fls. 6 e 7, a acusação.
Terá havido inquérito?
Desde logo não se ouviu ninguém à matéria dos autos – arguido, agentes policiais, qualquer testemunha, perito, ninguém.
O artigo 272°, nº 1, do C.P.P. refere:
1. Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação.
O arguido não foi interrogado.
Tal constitui, conforme o refere o Acórdão nº 1/2006, do S.T.J., datado de 23/11/2005 e publicado no D.R. P Série A, de 02/01/2006, a nulidade prevista no artigo 120°, nº 2, alínea d), do C.P.P. Por outro lado, nenhuma testemunha foi interrogada quanto à matéria dos autos.
O artigo 262°, do C.P.P. refere:
1.O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
2.Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.
Não houve uma única diligência de inquérito realizada.
Não foram realizadas quaisquer diligências de inquérito posteriores à detenção.
Foi a acusação tão rápida que aconteceu na primeira data em que o inquérito foi concluso.
Na acusação refere-se que:
Sabia o arguido a qualidade de agente da P.S.P. do ofendido Bárbaro Leite Borges Santos, que se encontrava devidamente uniformizado e identificado, e que as expressões que utilizou para se dirigir e referir a tal agente da P.S.P. eram adequadas e susceptíveis de atingir, como atingiram, e de ofender a honra e consideração que lhe é devida, enquanto agente da P.S.P., e em especial, no exercício das funções.
O arguido agiu, em tudo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser proibida e punida por lei a sua conduta.
Perguntamo-nos onde obteve o Digno Magistrado do Ministério Público elementos para concluir de tal modo – não ouviu o arguido, a testemunha, ninguém.
Por outro lado resulta do artigo 391º-A, do C.P.P. que é necessário para uso da forma abreviada, a existência de “(…) provas simples e evidentes (…)”.
Onde estão?
Não houve recolha de qualquer prova.
Como afirmar haver prova simples e evidente?
São todos factos sobre os quais não recolhe qualquer prova. Acusa-se sem saber, minimamente, o que se passou.
Assim, verificam-se duas nulidades insanáveis – falta de inquérito e emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
Porquê falta de inquérito?
Como se sabe, no processo sumário encontra-se dispensada a fase de inquérito.
Ou seja, nesta fase processual NÃO HA INQUÉRITO, passa-se directamente para a fase de JULGAMENTO.
O que dizer dos presentes autos em que o processado integral de um processo sumário recebe imediata acusação sem a realização de uma única diligência de inquérito?
Se o sumário remetido ao D.I.A.P. não tem fase de inquérito – o que parece ser indiscutível – a acusação deduzida sem mais parece ter sido elaborada sem ser precedida de inquérito (mais não fosse a inquirição dos agentes policiais e, sendo possível, do arguido).
Quid juris?
Parece-nos, assim, haver nulidade do inquérito, nos termos do disposto no artigo 119°, alínea d), do C.P.P..
Ver, a este propósito, o Ac. da R.L., de 23/09/1992, Processo de Recurso n° 278333, R.L. de 15/12/1999, Processo de Recurso n° 52833.
Neste caso, importará, sempre, rejeitar a acusação porque se entende a mesma nula.
Ainda que se não entendesse assim, importa aqui transcrever – porque extremamente claro e doutamente redigido, sendo impossível ao subscritor dizer mais e melhor:
"Sumário:
1 - Recebidos os autos para julgamento em processo abreviado, o juiz, por força do disposto no art.391 °-D, do CPP, deve conhecer das questões a que se refere o art.311 °, n.° 1 do mesmo Código, nomeadamente das nulidades.
II - Para saber se o M ° P.° fez emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei, nulidade insanável prevista no art.119, al f), do CPP, deve o juiz apreciar os pressupostos que permitem a utilização de tal forma de processo, nomeadamente a simplicidade e a evidência da prova quanto aos indícios da verificação do crime e de quem foi o seu agente.
III - Tal sindicância traduz um juízo sobre a idoneidade da prova para sustentar a tese da acusação e não sobre o bem fundado da tese da acusação.
IV - A decisão quanto à falta de pressupostos legais do processo abreviado, declarada como nulidade, é irrecorrível quando proferida nos termos do art.391 °-D, n.º 1, do CPP.

Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 391º-D, do C.P.P., declaro a acusação de fls.6 e 7, dos autos, nula, por virtude do disposto nos artigos 119º, alínea d) e f), do C.P.P. e, consequentemente, determino a remessa dos presentes autos para o D.I.A.P. para os fins tidos por convenientes.
Notifique.
Após trânsito, remeta.”

O OBJECTO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:
1) Da admissibilidade do recurso interposto pelo Recorrente, porquanto o despacho recorrido apreciou nulidades que obstam ao prosseguimento do processo sob a forma abreviada.
2) Se a lei processual penal não impõe a existência de inquérito, como fase obrigatória, no processo abreviado, pelo que é inequivocamente legal a acusação em processo abreviado sem a realização do mesmo (artºs 391º- A, nº1 e 262º,nº 2, ambos do Código de Processo Penal);
3) Se o requerimento acusatório (objecto de apreciação na decisão recorrida) não padece da nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.P. (emprego de processo especial fora dos casos previstos), porquanto o arguido foi devidamente acusado em processo abreviado, já que a prova dos autos é simples e evidente quanto à verificação de crime e de quem foi o seu agente.
O MÉRITO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

1) DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO INTERPOSTO PELO RECORRENTE, PORQUANTO O DESPACHO RECORRIDO APRECIOU NULIDADES QUE OBSTAM AO PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO SOB A FORMA ABREVIADA.
Dispõe o art. 391º – D do Código de Processo Penal:
“ 1. Recebidos os autos, o juiz, por despacho irrecorrível, conhece das questões a que se refere o art311º,nº1, e designa dia para audiência.”
De uma leitura literal do artigo supra citado, poderíamos pensar que o despacho ora sob censura era insusceptível de ser atacado por via de recurso, porquanto seria um dos abrangidos pela excepção prevista na parte final do art. 399º do C.P.P., no qual se previne a possibilidade de a lei estabelecer a irrecorribilidade de algumas decisões judiciais.
Confrontando, porém, o cit. art. 391º – D do Código de Processo Penal com as normas que disciplinam a mesma matéria na forma comum (artºs 311º e 313º do citado diploma legal), verificamos que, no nº 4 do referido artº 313º, se consigna a irrecorribilidade do despacho que designa dia para audiência, estando, é certo, nesta norma legal, claramente definido o âmbito da sua aplicação – a irrecorribilidade só abrange a parte do despacho que designa dia para audiência e, já não, outras decisões que, concomitantemente com ela, tenham sido tomadas.
Este deve ser o sentido, em nosso entendimento, a dar ao artigo 391º - D, nº 1 do C.P.P..
Também ele, não obstaculiza o recurso do despacho que designa dia para audiência quando nele, e conjuntamente, se tiverem decidido nulidades ou questões prévias.
Consequentemente, consideramos admissível o recurso interposto pelo Ministério Público, da decisão que declarou nula a acusação, por virtude do disposto no artº 119º, als.d) e f) do C.P.P., e ordenou a remessa dos autos ao DIAP para os fins tidos por convenientes.

2) DA NÃO IMPOSIÇÃO, PELA LEI PROCESSUAL PENAL, DA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITO, COMO FASE OBRIGATÓRIA, NO PROCESSO ABREVIADO (artºs 391º- A, nº 1 e 262º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal.
A decisão ora sob censura julgou verificadas duas nulidades insanáveis (1) falta de inquérito e 2) emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei) na acusação que o Ministério Público deduziu contra o arguido FL, e na qual lhe imputou a prática, em co-autoria material, de um crime de injúrias agravadas, p.e p. pelos art.s° 181º, 184º e 132º, nº 2, al.j), todos do Código Penal .
Quid juris ?
Como é sabido, as nulidades insanáveis estão taxativamente indicadas no art. 119° do C.P.P.
E aí, na parte que ora nos interessa, prevê-se como nulidade insanável a falta de inquérito, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade (al. d) do citado normativo).
In casu, o M.m° Juiz a quo consignou no despacho recorrido que “não houve uma única diligência de inquérito realizada - ... não foi interrogado o arguido, nem inquiridas testemunhas”.
Prescreve o art. 391°- A, n.° 1, do Código de Processo Penal que :
"Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, face ao auto de notícia ou realizado inquérito sumário, pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, se não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido."
A lei processual penal não impõe, portanto, a necessidade de inquérito na forma de processo abreviado – artigo 391°-A n° 1 e 262°, n° 2, ambos do Cód. Proc. Penal. O requerimento acusatório tanto pode ser deduzido na sequência dum inquérito sumário, como exclusivamente com base no teor do auto de notícia.
Consequentemente, na forma de processo abreviado, não é obrigatória a realização desta primeira fase preliminar do processo constituída pelo inquérito, pelo que a sua falta não integra a nulidade prevista no artº 119º, al.d) do C.P.P.
Como bem observa o Digno Magistrado do Ministério Público nas suas alegações de recurso “.....o processo abreviado teve como principal objectivo a rápida submissão do caso a julgamento, caracterizando-se o respectivo procedimento por uma substancial aceleração nas fases preliminares, mas garantindo-se todo o formalismo normal do julgamento em processo comum, podendo ainda, antes disso, assistir ao arguido a possibilidade de requerer debate instrutório (art.° 391° - C do Código de Processo Penal)....
Consequentemente, e nesta parte, a decisão recorrida não pode deixar de ser revogada, por inexistir qualquer base legal que a sustente.

3) SE O REQUERIMENTO ACUSATÓRIO (OBJECTO DE APRECIAÇÃO NA DECISÃO RECORRIDA) NÃO PADECE DA NULIDADE INSANÁVEL PREVISTA NA AL.F) DO ARTº 119º DO C.P.P. (EMPREGO DE PROCESSO ESPECIAL FORA DOS CASOS PREVISTOS), PORQUANTO O ARGUIDO FOI DEVIDAMENTE ACUSADO EM PROCESSO ABREVIADO, JÁ QUE A PROVA DOS AUTOS É SIMPLES E EVIDENTE QUANTO À VERIFICAÇÃO DE CRIME E DE QUEM FOI O SEU AGENTE.
A decisão recorrida julgou ainda verificada, in casu, a nulidade prevista na al. f) do artº 119º do C.P.P., porquanto, o Ministério Público, ao ter acusado o arguido FL em processo abreviado, teria utilizado indevidamente tal forma processual, visto não ter havido recolha de qualquer prova e se ter acusado o arguido sem se saber minimamente o que se passou.
Quid Juris?
Nos termos do disposto no art°. 391º-A do C.P.Penal, o emprego da forma de processo especial (processo abreviado) tem lugar quando se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Tratar-se de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos.
b) Existirem provas simples e evidentes de que resultem indícios evidentes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
c) Não decorreram mais de noventa dias entre a data dos factos a dedução da acusação.
No caso em análise, o arguido foi acusado pela prática, em co-autoria material, de um crime de injúrias agravadas, p.e p. pelos art.s° 181º, 184º e 132º, nº 2, al.j), todos do Código Penal, crime este punível com pena de prisão de 1 mês e 15 dias a 4 meses e 15 dias ou multa de 15 dias a 180 dias.
O arguido foi detido em flagrante delito, pela autoridade policial, pela prática do crime que lhe é imputado.
E, por último, entre a data dos factos (16 de Fevereiro de 2005) e a dedução da acusação ( 9 de Março de 2005) não decorreram mais de noventa dias.
Assim, e quanto aos pressupostos referidos nas als.a) e c), o despacho recorrido nenhuma questão suscita quanto ao emprego da forma de processo especial (processo abreviado).
Quanto ao requisito mencionado na al.b), entende o Mmº Juiz a quo que, não tendo sido carreada para os autos qualquer provacomo afirmar haver prova simples e evidente?”.
Cumpria assim, para se decidir da existência ou não da invocada nulidade, apreciar previamente a prova existente e decidir se há provas simples e evidentes de que resultem indícios fortes de que se verificou o crime e de quem foi o seu autor.
Mas caberá ao Juiz, neste momento processual, sindicar se as provas são simples e evidentes?
A questão ora suscitada foi, desenvolvida e proficientemente, tratada no Acórdão da Relação do Porto de 11/05/2006, proferido no Proc. nº 0644078 e relatado pelo Exmº Desembargador PINTO MONTEIRO, cuja doutrina perfilhamos, razão pela qual nos limitaremos a reproduzir o essencial da argumentação nele aduzida.
« .... A tramitação deste processo suscitou algumas dúvidas, nomeadamente no que diz respeito às provas simples e evidentes e à entidade a quem cabe apreciá-las. Veja-se neste sentido, Leal-Henriques e Simas Santos, no Código de Processo Penal Anotado, 2.º vol., 2.ª edição, pág. 642, em anotação ao art. 391.º-A, e Anabela Miranda Rodrigues, em “A Celeridade no Processo Penal – Uma Visão de Direito Comparado – A Revisão do Código de Processo Penal.
A exposição de motivos parece inculcar a ideia de que a apreciação das provas simples e evidentes cabe, em primeira linha, ao Ministério Púbico. Na verdade, diz-se a determinado passo que “O procedimento é, porém, envolvido de particulares cautelas no que se refere às formalidades preliminares, em homenagem ao direito de defesa e ao princípio de igualdade de armas na fase preparatória. Estabelece-se assim, a possibilidade de o arguido submeter o caso a comprovação judicial e de, em debate instrutório, contrariar a decisão de acusação do Ministério Público. Neste caso, caberá ao juiz de instrução a apreciação da existência de indícios suficientes em ordem a submeter o caso a julgamento, num critério de exigência aferido em função da probabilidade de o ao arguido poder ser aplicada uma pena”.
No mesmo sentido, a quem também se suscitaram as mesmas dúvidas, aponta Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, em anotação ao artigo 391-º-A, segundo o qual a tramitação do processo abreviado, tal como se encontra regulado, lhe sugere algumas observações e reservas, particularmente no que diz respeito à existência de provas simples e evidentes de que resultem indícios da verificação do crime e de quem foi o seu agente, que fica ao critério do M.º P.º, sem possibilidade de eficaz oposição, desde logo do arguido, que só depois poderá requerer debate instrutório.
A verificação das provas simples e evidentes nos termos em que o arguido a pretende implica a apreciação, em primeira instância, pelo M.º P.º e por um juiz de instrução e, em caso de recurso, por um tribunal superior.
Ora, para aquilatar da existência de tais indícios permite o Código de Processo Penal, mesmo neste tipo de processo, a sua comprovação judicial, ou seja a realização de debate instrutório, nos termos previstos no art. 391.º-C daquele código, fase processual em que o arguido pode contrariar a decisão de acusação do M.º P.º., tal como refere Maia Gonçalves na anotação acima citada, que foi o que aconteceu nos presentes autos: o arguido requereu o debate instrutório, arrolando testemunhas que foram inquiridas, vindo, a final, a ser proferido despacho de pronúncia.
A existência da invocada nulidade tem de ser evidente, não podendo estar dependente da prévia apreciação da prova indiciária constante do inquérito para se decidir pela sua verificação, ou seja se se está perante o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
Caso a pretensão do recorrente, nos termos em que a coloca, fosse atendida, antes de o caso ser submetido a julgamento teríamos quatro apreciações da prova indiciária existente no inquérito para se determinar se houve ou não erro na forma do processo e, consequentemente, se se verifica ou não a invocada nulidade: por parte do M.º P.º, pelo juiz de instrução e por este tribunal, no caso de recurso. A estas três apreciações acresceria a do debate instrutório no caso de o mesmo ser requerido. Ora, um processo que se quer simples e rápido, como decorre da exposição de motivos do diploma legal que o criou, não se compadece com tal número de apreciações da prova indiciária, superiores às de um processo comum, em que, para além da apreciação do M.º P.º para se decidir pela acusação ou pelo arquivamento, apenas haveria uma outra, por um juiz de instrução, desde que requerida a abertura de instrução
Atenta a redacção do nº 3 do art º 311º do C.P.P., não é lícito ao juiz, no processo comum, confrontar a prova produzida durante o inquérito com a acusação proferida pelo Ministério Público, no sentido de concluir se esta se alicerça ou não em indícios suficientes da infracção imputada. Ora, se assim é no processo comum, por maioria de razão o mesmo deve suceder no processo abreviado, o qual teve como principal objectivo a rápida submissão do caso a julgamento, caracterizando-se o respectivo procedimento por uma substancial aceleração nas fases preliminares. Donde que, tal como no processo comum, também no processo abreviado e por maioria de razão, está vedado ao juiz, nesta fase processual (prolação do despacho que designa dia para julgamento) sindicar a existência ou não, nos autos, de provas simples e evidentes da prática do crime e da responsabilidade penal do arguido.
Assim sendo e, com o fundamento na inexistência de prova simples e evidente da prática do crime e da responsabilidade penal do arguido, é patente que a aludida nulidade da acusação não pode ser declarada.
In casu, o emprego da forma de processo especial (processo abreviado) foi, portanto, efectuado em estrita observância do disposto no cit. art°. 391º-A do C.P.Penal, razão pela qual não se verifica a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.P..
Eis por que o presente recurso procede, também, quanto a esta questão.
DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido e determinando que o mesmo seja substituído por outro que ordene o prosseguimento do processo sob a forma abreviada.
Sem custas.
Lisboa, 13 /02/07