Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SIMÕES DE CARVALHO | ||
Descritores: | ATESTADO FALSO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/20/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. Para que o agente preencha todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito p.p. pelo art.º 260º,n.º1 C.P (crime de atestado falso) necessita de actuar, pelo menos prevendo que aquele atestado não corresponde à verdade, conformando-se, no entanto, com a sua realização, ou seja, basta que o agente actue com dolo eventual. 2. Além disto, exige-se que o atestado ou certificado seja “destinado a fazer fé perante autoridade pública ou a prejudicar interesses de outra pessoa”. Só nestes casos é que o agente que exarou falsamente o atestado será punido, pois de outro modo não se verifica um completo preenchimento do tipo. Porém, aquele não terá que ter um conhecimento disto mesmo. Ao agente apenas se exige dolo quanto à falta de verdade. 3. Importa salientar, de acordo com o que já supra se deixou expendido, que nos encontramos perante tipo legal de crime que deverá ser praticado por um específico agente: este tem um dever especial de dizer a verdade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa: No processo comum singular n.º 809/02.0JDLSB da 1ª Secção do 2º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença de 31-05-2006 (cfr. fls. 259 a 265), no que agora interessa, foi decidido: «Pelo exposto julgo a acusação procedente por provada e condeno I - O arguido N. pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º n.º 1 al. c) e n.º 3 do C.P. na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de 3,00 (três euros) o que perfaz a multa de € 420,00 (quatrocentos e vinte euros) e subsidiáriamente em 93 (noventa e três dias) de prisão. II - O arguido S., pela prática de um crime de atestado falso p. e p. pelo art.º 260º n.º 1 do C. Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) o que perfaz a multa de € 400,00 (quatrocentos euros) e subsidiáriamente em 53 (cinquenta e três) dias de prisão. Taxa de justiça quanto a cada um dos arguidos que se fixa em 2 UC., a que acresce 1% (art. 13º, 3 do D.L n.º 423/91 de 30/10) e procuradoria em 1/3 também por cada um. Fixo em € 163,17 (cento e sessenta e três euros e dezassete cêntimos), a cargo dos arguidos, o montante global de honorários aos Defensores, que combinarão entre si a divisão desses mesmos honorários e comunicarão ao tribunal qual o acordo a que chegaram, e que em caso de falta de acordo deverão solicitar a sua determinação à O. dos Advogados. Honorários ao intérprete, a cargo do arguido N., que se fixam em € 200,00 (duzentos euros). Boletins à D.S.I.C Notifique.» O arguido S. não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 272 a 278), extraindo da motivação as seguintes conclusões: (...) Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Excelências Mui Doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve ser absolvido o arguido S., pela sua conduta não preencher o tipo legal do crime de atestado falso.» Admitido o recurso (cfr. fls. 281), e efectuadas as necessárias notificações, apenas apresentou resposta o Mº Pº (cfr. fls. 286 a 289) que conclui: (...) Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista no processo (cfr. fls. 296), relegando o seu parecer para a audiência. Proferido o despacho preliminar e não havendo quaisquer questões a decidir em conferência, prosseguiram os autos, após os vistos dos Exm.ºs Desembargadores Adjuntos, para julgamento em audiência, nos termos dos Art.ºs 419º e 421º do C.P.Penal. Realizado o julgamento com observância do formalismo legal, cumpre agora apreciar e decidir. O objecto do recurso, em face das conclusões da respectiva motivação, reporta-se à seguinte questão: - pretensa circunstância de, tendo em conta os factos provados, não se mostrarem preenchidos em concreto todos os elementos constitutivos do crime de atestado falso p. e p. pelo Art.º 260º, n.º 1 do C. Penal, pelo qual o recorrente vinha acusado. No que ora interessa, é do seguinte teor a sentença recorrida: «Ficou provada a seguinte Matéria de Facto O arguido N.é de nacionalidade paquistanesa, encontrando-se em Portugal desde 2001, onde trabalha na construção civil. No início de 2002, em conversa com um indivíduo paquistanês, que apenas conheceu por "A", na zona do Martim Moniz, em Lisboa, este perguntou-lhe se estaria interessado em obter uma carta de condução portuguesa, sem necessidade de se sujeitar a qualquer exame de condução. Tendo concordado com o proposto entregou ao referido indivíduo 3 (três) fotografias, cópia do seu passaporte, atestado de residência de Junta de Freguesia da sua área de residência e a importância em dinheiro de € 225,00. Este, por sua vez, tratou de todos os restantes documentos exigidos e contactou o arguido S. que sem sequer requerer a presença do arguido N., lhe entregou o atestado médico de aptidão física e mental, para a condução de veículos em nome do arguido, constante de fls. 20, aqui dado por reproduzido. No dia 15 de Março de 2002 foi solicitado à Direcção Geral de Viação a troca da carta de condução paquistanesa em nome do arguido N. por uma portuguesa, tendo ali sido entregue a documentação exigida, composta por: Certificado de Embaixada do Paquistão a atestar a autenticidade da carta de condução, fotocópia do passaporte, atestado médico, atestado de residência e tradução da documentação. Foi igualmente entregue o impresso da Direcção Geral de Viação a solicitar a troca em questão. Decorridos cerca de dois meses veio o arguido a receber uma guia provisória, que o habilitava à condução de veículos automóveis. Por se suspeitar da genuinidade de tal documento (carta de condução paquistanesa), foi contactada a embaixada do Paquistão em Lisboa, que informou que o referido certificado a atestar a genuinidade da carta de condução é falso. Tendo-se solicitado à Embaixada de Portugal em Islamabad - Paquistão a confirmação da autenticidade da carta de condução, esta informou que a carta de condução paquistanesa é falsa. Ao facultar ao "A" os referidos documentos e fotografias para que este solicitasse a troca da carta de condução e entrega e apresentação de tais documentos, obtidos nas circunstâncias descritas, quis o arguido N. fazer crer junto das entidades oficiais que o referido documento era verdadeiro e que se encontrava habilitado à condução de veículos automóveis. Com tal documento, elaborado através da colaboração de terceiros indivíduos, não identificados, que sabia não ser genuíno, pretendeu o arguido N. obter vantagem indevida. O arguido S. fez constar no referido atestado médico factos, capacidades e qualidades que não verificou nem comprovou pessoalmente, contrariamente à verdade por si conhecida, já que desconhecia se a matéria que fez constar no referido documento era ou não verdadeira. Com tais condutas, colocaram os arguidos em crise a credibilidade, confiança e fé pública merecidas por tal tipo de documentos, sendo ainda susceptível de causar ao Estado ou a terceiros prejuízos não quantificados. Actuaram ambos, deliberada, livre e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas por lei. O arguido N.confessou os factos de que vem acusado. É servente da construção civil, auferindo cerca de € 380,00 por mês. Não tem antecedentes criminais. O arguido S.é médico, aufere proventos mensais na ordem dos € 1.000,00. Não tem antecedentes criminais. * Factos Não Provados Não se provaram os seguintes Factos: O arguido S. jamais se permitiu emitir um único atestado de robustez física sem proceder previamente ao exame médico de cada requerente. O arguido só emitiu o atestado de robustez física a favor do co-arguido N.depois de ter procedido ao exame médico do referido N.. Ou, então, depois de ter procedido ao exame médico de quem se fez passar por ele. * Os restantes factos alegados na contestação de fls. 107 não são relevantes para a decisão da causa. * Fundamentação da Prova (...) * O Direito Da factualidade provada resulta que o arguido S. declarou em atestado por si passado que o co-arguido N."tem aptidão física e mental para a condução de veiculos", quando nunca o examinou; ou seja fez constar em atestado declaração que não correspondia à verdade. Resulta também que o arguido N., sem que nunca tenha prestado quaisquer provas na data supra referida, fez apresentar na D.G.V. carta de condução paquistanesa falsa. Incorreram, assim, os arguidos na prática dos crimes de que vinham acusados. Quanto ao 1º arguido, o crime de falsificação de documento é punido com prisão de 6 meses a 5 anos ou multa de 60 a 600 dias, e face às exigências de prevenção é suficiente a pena de multa (art.º 70º do C.P.). Quanto ao 2º arguido, o crime por ele praticado é punido com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, e face e exigências de prevenção é suficiente a aplicação da pena de multa (art.º 70º do C. Penal). Na medida da pena há que ter em conta a culpa de cada um dos arguidos e as exigências de prevenção. A culpa, em qualquer dos casos, situa-se em grau médio, tendo ambos os arguidos agido com dolo directo e intenso, e as exigências de prevenção mostram-se normais. Ponderar-se-á também que ambos os arguidos se encontram inseridos socialmente, e ainda as respectivas situações pessoais. Assim, quanto ao 1º arguido, julga-se adequada a multa de 140 dias. Tendo em conta a situação económica, fixa-se a multa à taxa diária de 3,00 euros. Quanto ao 2º arguido, ponderando as circunstâncias acima referidas, entendemos adequada a pena de multa que se fixa em 80 dias. Tendo em conta a situação económica do arguido, fixa-se a multa à taxa diária de 5,00 euros. ...». E, por isso, foi proferida a decisão que se deixou transcrita no inicio do presente acórdão. Vejamos: O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões da motivação em que se resumem as razões do pedido. Sendo as conclusões proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Edição de 1981, Pág. 359). Assim, no que concerne à única questão suscitada, é forçoso, desde logo, salientar que o Art.º 260º, n.º 1 do C. Penal estabelece que o médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, ou pessoa encarregada de fazer autópsias, que passar atestado ou certificado que sabe não corresponder à verdade, sobre o estado do corpo ou da saúde física ou mental, o nascimento ou a morte de uma pessoa, destinado a fazer fé perante autoridade pública ou a prejudicar interesses de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Este artigo define um tipo especial relativamente ao tipo-base do Art.° 256° do mesmo Código, justificando-se a autonomia «dada a frequência da prática deste crime… A especialidade reside na pessoa do agente, no tipo de documentos abrangidos, na forma de falsificação incriminada - só falsidade intelectual - e na punição, que é mais branda» (cfr. Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, II Volume, 3ª Edição - 2000, Págs. 1146 e seg.) Como agente do crime, desde que não se trate de funcionários ou equiparados, encontram-se, de acordo com o que se deixou exarado, as pessoas ligadas às actividades médicas ou para-médicas. Além disso, tal como no crime de falsificação de documentos também aqui o bem jurídico-criminal corresponde à segurança e à credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Daí que o agente, ao criar um atestado falso, coloque em perigo de lesão este específico bem jurídico-criminal. Isto até porque não restam quaisquer dúvidas de que o atestado médico é um meio de provar o facto nele inscrito. Assim, conforme ocorre no crime de falsificação de documentos, o agente é punido logo que falsifica o atestado, independentemente da sua utilização. Deste modo, está-se, pois, em face de um crime de perigo, uma vez que o mesmo se consuma antes da efectiva lesão do bem jurídico. Sendo certo, porém, que tal ocorre apenas quando o atestado for utilizado para fazer fé perante autoridade pública ou para prejudicar interesses de outra pessoa. Por conseguinte, constitui objecto de acção o atestado ou certificado. Enquanto no certificado os factos descritos não tiveram a intervenção directa do certificador, ou este não teve deles um conhecimento directo, no atestado os factos descritos foram do conhecimento directo do atestador, ou ele interveio neles directamente, incorporando no documento o seu conhecimento. No entanto, o tipo legal de crime está construído equiparando-os, subjugando qualquer acto de falsificação ao mesmo regime. Outrossim, consiste a conduta típica no acto de exarar o atestado ou certificado por um agente com as características exigidas pelo tipo e que sabe que aquele atestado ou certificado não corresponde à verdade sobre o estado do corpo ou da saúde física ou mental, sobre o nascimento ou a morte de uma pessoa. Contrariamente ao que se verifica no crime de falsificação de documentos, o crime de atestado falso não constitui um crime intencional. E dizemos isto porque o falsificador apenas tem que ter conhecimento de que está a passar um atestado que não corresponde à verdade, presumindo-se o dolo desde que esse documento vise provar, atestar ou certificar factos perante a autoridade pública. Nesta conformidade, o dolo específico presume-se quando se tratar de documento que seja destinado a produzir prova ou atestar ou certificar factos perante a autoridade pública (cfr. J. Marques Borges, Dos Crimes de Falsificação de Documentos, Moedas, Pesos e Medidas, Pág. 94). Portanto, para que o agente preencha todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito necessita de actuar, pelo menos, prevendo que aquele atestado não corresponde à verdade, conformando-se, no entanto, com a sua realização, ou seja, basta que o agente actue com dolo eventual. Além disto, exige-se que o atestado ou certificado seja “destinado a fazer fé perante autoridade pública ou a prejudicar interesses de outra pessoa”. Só nestes casos é que o agente que exarou falsamente o atestado será punido, pois de outro modo não se verifica um completo preenchimento do tipo. Porém, aquele não terá que ter um conhecimento disto mesmo. Ao agente apenas se exige dolo quanto à falta de verdade. Por sua vez, importa salientar, de acordo com o que já supra se deixou expendido, que nos encontramos perante tipo legal de crime que deverá ser praticado por um específico agente: este tem um dever especial de dizer a verdade; além de que a sua conduta no caso em apreço não se resume a uma incorporação num escrito de um facto falso pois, também ele atesta falsamente (cfr. Helena Isabel Gonçalves Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos - Da falsidade Intelectual e da Falsidade em Documento, Edição de 1993, Pág. 244 e seg.). O médico não só atesta falsamente como declara falsamente: atesta falsamente porque atesta um facto falso e declara falsamente porque declara que atestou aquele facto falso, quando aquele facto ele não o poderia ter atestado. Nestes termos, quando o arguido S., na qualidade de médico, passa um atestado dizendo que um determinado indivíduo tem aptidão física e mental para a condução de veículos, implicitamente declara que o observou, tendo verificado o seu estado de saúde. Se, efectivamente, não o fez, como, de forma inquestionável, ocorreu no caso em apreço, o recorrente ao passar o atestado atesta não só um facto falso como faz uma declaração de ciência falsa. E não podemos deixar de salientar que, em nosso entender, um atestado médico falso não é apenas um atestado que não está em concordância com o verdadeiro estado de saúde do paciente, também é atestado falso aquele que tem um resultado final correcto, embora baseado num diagnóstico falso, ou então quando o médico passa o atestado sem sequer ter examinado o paciente (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Edição de 1999, Págs. 719 e segs.). Deste modo, só nos é, legitimamente, possível chegar à conclusão que, no caso sub judice, se encontram preenchidos todos os elementos (objectivos e subjectivos) requeridos para a consumação do crime de atestado falso p. e p. pelo Art.º 260º, n.º 1 do C. Penal pelo qual o arguido S. vem condenado, improcedendo, pois, o recurso por ele interposto. Pelo exposto, acordam os juízes em negar provimento ao recurso, confirmando, na sua plenitude, a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC. |