Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS ALMEIDA | ||
Descritores: | FURTO CRIME PARTICULAR ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/19/2008 | ||
Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO | ||
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Sumário: | I – O furto simples assume a natureza de crime particular quando a coisa furtada for de valor diminuto e for destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos seus familiares enunciados na alínea a) do artigo 207º do Código Penal. II – São pois três os requisitos exigíveis: o valor diminuto, a pretensão de utilização imediata e a indispensabilidade da coisa para a satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos indicados familiares. III – O ser indispensável para a satisfação da necessidade nutricional não requer que o alimento seja um bem de primeira necessidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | DECISÃO SUMÁRIA 1 – Os autos dão conta de que no dia 6 de Março de 2007 F... , serralheiro civil desempregado, nascido a 5 de Março de 1989, foi abordado por uma empregada do supermercado “Continente” existente no Centro Comercial Colombo num momento em que, ainda no seu interior, já tinha ultrapassado as caixas registadoras. Tinha em seu poder, na ocasião, um chocolate “Milka” de caramelo, com o preço de venda ao público de 1.09 €, e quatro chocolates “Milka”, cada um deles com o preço de 0.94 €, tudo no montante global de 4.85 €, mercadorias que o referido Frederico Ferreira terá retirado do interior daquele estabelecimento e que não terá pago. Os mencionados bens foram recuperados, naquela mesma ocasião, pela referida empregada. Foi então chamado ao local um agente da PSP que se encontrava a prestar serviço remunerado no piso 0 do Centro Comercial, o qual tomou conta da ocorrência e elaborou o “auto de notícia” de fls. 1 a 3 em que disse que não procedeu à detenção[1] do referido indivíduo por a procuração que lhe tinha sido entregue juntamente com a queixa, que foi então apresentada, «não estar conforme a lei». O processo não terá seguido, certamente por essa razão, a forma sumária. 2 – O “auto de notícia”, a queixa, a relação dos bens retirados e recuperados e a procuração foram assim remetidos ao Ministério Público. Depois de serem juntos o certificado de registo criminal, do qual não consta qualquer registo, e uma relação dos processos pendentes, na qual se diz que o referido F... tinha três processos nessa situação, um por furto de uma viatura automóvel e dois outros por furto em supermercado, foi deduzida acusação em processo abreviado na qual se lhe imputou a prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal. O Sr. juiz da 2ª secção do 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, a quem o processo veio a ser distribuído, juntou aos autos um longo despacho de seis densas páginas em que concluiu pela impossibilidade de o processo prosseguir sob a forma abreviada, julgou nula a acusação e o processado posterior e determinou a remessa dos autos ao Ministério Público. 3 – O Ministério Público, em processo comum, deduziu então acusação contra o mencionado F... pela prática do indicado crime de furto simples. Nessa peça processual imputou ao arguido os seguintes factos: 1. «No dia 06 de Março de 2007, cerca das 20h30, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "Modelo Continente Hipermercado, S.A.", sito no Piso 0 do Centro Comercial Colombo, em Lisboa. 2. Já no seu interior, retirou de um dos expositores um (1) chocolate MILKA caramelo, no valor de € 1,09 e quatro (4) chocolates MILKA, no valor unitário de € 0,94 e total de € 3,76. 3. Tudo no total de € 4,85. 4. Depois, deslocou-se para a zona das caixas de pagamento, onde passou sem efectuar o pagamento dos referidos artigos. 5. Depois de passar as caixas de pagamento, foi abordado por Anabela Cunha Avisado, vigilante naquele estabelecimento comercial, que lhe solicitou a entrega dos bens subtraídos, ao que ele acedeu. 6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente. 7. Com o propósito concretizado de fazer seus os referidos bens. 8. Bem sabendo que não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário; 9. E que a sua conduta lhe estava vedada por lei e era criminalmente punida». A Sr.ª juíza da 1ª secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa, a quem os autos haviam sido distribuídos, proferiu o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve: «Da legitimidade do Ministério Público: O Ministério Público deduziu acusação contra F ..., imputando-lhe a prática de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203º n.º 1 do Código Penal. Os factos imputados ao arguido consubstanciam-se nos seguintes: o arguido terá subtraído chocolates no valor de € 4,85 do supermercado pertencente à ofendida. Nos termos do artigo 207º n.º 1 b) do Código Penal o crime por que vem o arguido acusado reveste natureza particular quando a coisa furtada for de valor diminuto e destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a). Tendo em consideração o disposto no artigo 202º c) do Código Penal, a coisa furtada tem valor diminuto e, por se tratar de um género alimentício, é destinado à satisfação imediata e indispensável de uma necessidade do arguido. Assim, atenta a natureza do crime, verifica-se que o Ministério Público carece de legitimidade para deduzir acusação, que caberia ao ofendido após se ter constituído assistente (artigo 50º n.º 1 do Código de Processo Penal). Pelo exposto, não recebo a acusação deduzida por carecer o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal». 4 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho. A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões: «1 – O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal. 2 – O procedimento criminal respectivo pelo referido crime está dependente de queixa – artigo 203º, n.º 3, do Código Penal – a qual foi exercida pelo titular do direito (o ofendido). 3 – A coisa furtada, tratando-se de chocolates, apesar de ter valor diminuto (artigo 202º do Código Penal), não se destinava a utilização imediata e indispensável de uma necessidade do agente ou de qualquer das pessoas mencionadas na alínea a) do artigo 207º do Código Penal, tendo em conta que não são sequer um bem alimentício de primeira necessidade, nem resulta dos autos tal destino, pelo que os factos não cabem na previsão do artigo 207º do Código Penal. 4 – A acusação só pode ser rejeitada se se considerar manifestamente infundada – artigo 311º, n.º 2, al. a), do C.P.P. – o que não é caso dos presentes autos, uma vez que a mesma contém a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis e as provas que a fundamentam (artigo 311º, n.º 3, do C.P.P.). 5 – O despacho acusatório contém todos os factos constitutivos do crime em apreço e o Ministério Público tem legitimidade para acusar. 6 – O despacho recorrido violou o preceituado nos artigos 203º e 207º do Código Penal e 49º, 311º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, do Código de Processo Penal, motivo pelo qual deverá ser revogado e substituído por outro que receba a acusação e ordene o prosseguimento dos autos. Porém. Vossas Excelências, decidindo, farão como sempre, a costumada justiça». 5 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do Ministério Público. 6 – O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 63. 7 – Neste tribunal, a Sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto. II – FUNDAMENTAÇÃO 8 – Uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.ºs 1, alínea a), e 2 do artigo 420º do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão. 9 – A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se o Ministério Público tem legitimidade para promover este processo[2] por o crime imputado ao arguido ter natureza semi-pública ou se, como defende a Sr.ª juíza que proferiu o despacho impugnado[3], a não tem por o mencionado crime ter natureza particular. Para tanto o tribunal apenas pode atender aos factos narrados pelo Ministério Público na acusação e ao que deles se pode inferir, não podendo, como se sabe, apreciar os indícios recolhidos durante a fase de inquérito. De acordo com a alínea b) do artigo 207º do Código Penal, o furto simples, que, atento o disposto no n.º 3 do artigo 203º, tem, em geral, natureza semi-pública, assume a natureza de crime particular quando a coisa furtada for de valor diminuto e for destinada a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos seus familiares enunciados na alínea a) do mesmo preceito. São pois três os requisitos exigíveis: o valor diminuto, a pretensão de utilização imediata e a indispensabilidade da coisa para a satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos indicados familiares. Ninguém pôs em causa o valor diminuto dos cinco chocolates que terão sido subtraídos pelo arguido pois eles, mesmo tendo em conta o preço de venda ao público, tinham um valor muito inferior a 96 € [alínea c) do artigo 202º do Código Penal]. Dada a natureza do alimento e também, por certo, a idade do agente, parece que a recorrente também não põe em causa que, de acordo com as regras da experiência comum, se deva considerar que os chocolates se destinavam a ser consumidos a curto prazo pelo agente. Destinavam-se, por isso, à utilização imediata. A questão que a recorrente suscita é a de saber se eles eram indispensáveis à satisfação de uma necessidade do agente. Argumenta que o não eram por não serem «sequer um bem alimentício de primeira necessidade». Com esta afirmação a recorrente está, a nosso ver, e salvo o devido respeito, a introduzir um requisito adicional não previsto na indicada alínea b) do artigo 207º do Código Penal, cujo fundamento, a não constituir qualquer resquício de um moralismo injustificado, nem sequer se alcança. O ser indispensável para a satisfação da necessidade nutricional não requer que o alimento seja um bem alimentício de primeira necessidade. São coisas completamente diferentes. É apenas necessário que se trate de um alimento. Por certo que se em vez dos cinco chocolates o objecto do crime de furto fossem cinco latas de conservas, de valor equivalente, não se colocaria a questão. Daí que não se possa deixar de concordar com a Sr.ª juíza e, neste atribulado processo, cuja tramitação contraria todas as orientações de política criminal apontadas para a pequena criminalidade nos artigos 11º e 12º da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, se decida rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público por o mesmo ser manifestamente improcedente. III – DISPOSITIVO Face ao exposto, atento o disposto no artigo 417º, n.º 6, do Código de Processo Penal revisto, decido rejeitar, por ser manifestamente improcedente, o recurso interposto pelo Ministério Público. Sem custas. Lisboa, 19 de Setembro de 2008 (Carlos Rodrigues de Almeida) ____________________________________________________________ [1] Embora aí se afirme que o mencionado F... se encontrava “retido” pelos empregados da queixosa, não se pode deixar de entender que ele tinha sido detido ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 255º do Código de Processo Penal, a que se deveria ter seguido o procedimento indicado no n.º 2 do mencionado preceito legal. [2] E não a de saber se a acusação deduzida é ou não manifestamente infundada. [3] Proferido ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 311º do Código de Processo Penal e não invocando os poderes conferidos ao juiz pelos n.ºs 2 e 3 desse mesmo preceito legal. |