Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1088/2007-9
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário: 1. A lei penal, ao fazer na parte final do n.º 1 do art. 48 do CP a exigência de que a pena de prestação de trabalho (em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social), em substituição da pena de multa, realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não se limita a acatar a possibilidade de cumprimento dessa pena em função das dificuldades económicas do/a condenado/a. Exige algo mais.
2. A substituição da pena de multa por prestação de trabalho está pensada para os casos de pequena criminalidade em que foi aplicada tão-somente uma pena de multa.
3. A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes por outros cidadãos (prevenção geral positiva), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos em geral. A reintegração do agente na sociedade não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal que é a protecção dos bens jurídicos (ao contribuir esta reinserção social para evitar a reincidência – prevenção especial positiva). A dissuasão (“intimidação”) do condenado é conatural à pena, e constitui também uma função da pena, que em nada é incompatível com a função positiva de ressocialização. É que não se trata de intimidar por intimidar, mas sim de uma dissuasão (através do sofrimento ou privações que a pena naturalmente contém) humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. E, no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
4. A dignificação da pena de multa, enquanto medida punitiva e dissuasora, deve comportar um sacrifício mesmo para os economicamente mais favorecidos, pelo que só o cumprimento da pena de multa poderá afastar a ideia de uma “quase absolvição”, ou de impunidade resultante da suspensão da execução da pena de prisão.
(Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório

1. O arguido C., não se conformando com o despacho judicial de 04.10.2006 proferido no Processo 1/99.0 FBLSB da 1ª secção da 7ª Vara Criminal de Lisboa que indeferiu, parcialmente, requerimento que havia formulado e em que era requerida a substituição da multa complementar referente à pena unitária de 3 (três) anos de prisão e 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 80,00 (oitenta euros), ou seja, € 8.000,00 (oito mil euros), a que correspondem 66 (sessenta e seis} dias de prisão subsidiária, pena de prisão aquela que ficou suspensa pelo período de 5 (cinco) anos, em que foi condenado por crimes de associação criminosa, previsto e punido pelo art. 89.º n.º 1 e 2 da Lei 15/2001 de 5/6 e de contrabando qualificado, previsto e punido pelos art. 21.º e 23.º alin. a), c), d) e h) do DL 376-A/89 de 25/10, dele veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1 - Os recorrentes foram condenados ao pagamento de penas de multa;
2 - Requereram a sua substituição por dias de trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do disposto no art° 48° do C.Penal, com o fundamento de patente e notória incapacidade financeira;
3 - O Meritíssimo Juiz a quo indeferiu tal pretensão com o fundamento de que a situação financeira não é pertinente na apreciação deste instituto, mas apenas relevante a realização adequada e suficiente das finalidades da punição:
4 - Nos casos vertentes, a substituição da pena de multa por dias de trabalho, dada a sua efectiva e manifesta visibilidade social, cumpre e realiza melhor as finalidades da punição, do que o pagamento da multa;
5 - O pagamento da "multa beneficia quem tem dinheiro e aí, sim, o crime compensa para quem tem posses;
6 - Onde reside aí a "...prevenção geral positiva .... ", se o condenado não é confrontado com a reprovação social e com a necessidade de se justificar perante a comunidade ?
7 - A debilidade económica dos condenados deve também ser factor complementar a tomar em conta na avaliação do instituto em apreço.
8 - O douto despacho recorrido violou o disposto no art° 48° do C.Penal, tanto na sua letra, como fundamentalmente no seu escopo.
Termina pedindo a revogação do douto despacho recorrido, ordenando-se a substituição das penas de multa em que os recorrentes foram condenados por dias de trabalho a favor da comunidade.

2. A Exma. Senhora Procuradora da República junto do tribunal a quo respondeu a tal recurso, concluindo pela manifesta improcedência do mesmo (cf. fls.707 a 710).

3. Neste Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto acompanhou a posição sustentada pelo Ministério Público na 1.ª instância.

4. Cumprido o disposto no art. 417 n.º 2 CPP e, colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

II – Fundamentação:

5. No requerimento que deu origem ao despacho recorrido eram formuladas, com interesse para a decisão do recurso, duas pretensões por parte do arguido, pretensões essas que apresentavam uma relação de subsidiariedade entre si:
- Que a pena de multa em que foi condenada pagar, fosse totalmente substituída por prestação de trabalho, na forma prevista no art. 48° do Código Penal. Se assim se não entendesse, o que não se esperava:
- Que lhe fosse autorizado o pagamento da multa, em prazo nunca inferior a dois anos, em prestações mensais e iguais.


Tais pretensões mereceram a seguinte decisão, recorrida:

“Esgrimem, invariavelmente, incapacidade para pagar a multa.

A Srª Procuradora tomou posição no sentido do indeferimento.

Nos termos do art. 48° do C.P., a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho. Exige, como requisito, que esta forma de cumprimento da multa realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, na apreciação deste instituto não são pertinentes considerações de ordem económica, i.e. de incapacidade ou dificuldade no pagamento da multa, o que consente a apreciação global desses requerimentos.

Ao convocar para este instituto a ponderação das finalidades da punição, o legislador obriga à ponderação de factores de prevenção especial de socialização – efeito da sanção no condenado, enquanto contramotivação à reiteração da conduta desviante – mas também, em plano de igualdade, factores de prevenção geral positiva – efeito da punição na sociedade. Importa aqui acautelar que os cidadãos adquiram e mantenham confiança na eficácia da norma e na capacidade do sistema de justiça para a aplicar, evitando a interiorização do adágio popular de que o crime compensa.

Ora, as condutas que conduziram à imposição de sanção pecuniária inscrevem-se na fenomenologia do contrabando, com pulsão delituosa patrimonial, e comportam danosidade social significativa, seja no plano interno, seja no plano mundial. Hoje mesmo, os media dão notícia de acordo entre uma das maiores empresas de tabaco (Philip Morris) e a União Europeia, relativa ao valor da indemnização a pagar pela primeira aos países integrantes da segunda por práticas facilitadores do contrabando, no valor global de mil milhões de dólares, correspondendo a Portugal 3%. Esse valor global fala por si quanto à dimensão deste problema e permite extrapolar relativamente ao lucro ilícito gerado.

Nessa medida, impõe-se que o sistema de Justiça não trate como infracção penal menor o que manifestamente não o é, pois de outra forma a prevenção geral positiva ficará fortemente comprometida.

Então, cumpre concluir, e quanto a todos os requerentes, que a substituição por dias de trabalho não realiza as finalidades da punição e rejeitar essas pretensões.

Pelo exposto, indefiro os supra indicados requerimentos de substituição da pena multa por dias de trabalho.”

E depois de indeferido o requerimento, nessa concreta pretensão, o tribunal a quo apreciou a pretensão subsidiária, pagamento da multa em prestações, que deferiu em moldes parciais, autorizando o pagamento em prestações mensais e sucessivas repartidas pelo número de meses em falta até se completarem dois anos sobre o trânsito em julgado da condenação.

6. Sem embargo dos vícios de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação, conforme o disposto no artigo 412.º n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP. E das conclusões acima transcritas, ressalta que o que está em causa é saber se o tribunal a quo deveria, ou não, ter deferido a pretensão formulada pelo recorrente a título principal, ou seja, a substituição da pena complementar de multa em que foi condenado por dias de trabalho, ao abrigo do disposto no art. 48.º do Código Penal.

Tal como refere o despacho recorrido, a lei penal, ao fazer na parte final do n.º 1 do art. 48 do CP a exigência de que a pena de prestação de trabalho (em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social), em substituição da pena de multa, realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não se limita a acatar a possibilidade de cumprimento dessa pena em função das dificuldades económicas do/a condenado/a. Exige algo mais.

No caso, estamos perante uma pena de multa complementar aplicada ao recorrente pela prática de um crime de contrabando qualificado, previsto e punido pelos art. 21.º e 23.º alin. a), c), d) e h) do DL 376-A/89, de 25/10, que foi integrada no cúmulo jurídico, de que resultou uma pena única composta por prisão e multa.

A substituição da pena de multa por trabalho, a que alude o art. 48 do Código Penal, não vem configurada como pena principal, ou pena de substituição, como sucede com a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, que se refere o art.58 do mesmo Código, (que está prevista como forma de substituição de penas detentivas de curta duração, em medida não superior a um ano), mas apenas para ser aplicada em fase de execução.

A substituição da pena de multa por prestação de trabalho está pensada para os casos de pequena criminalidade em que foi aplicada tão-somente uma pena de multa.
O requerimento para a substituição da pena de multa por dias de trabalho é apresentado no prazo de 15 dias, após a notificação do arguido para o seu pagamento, devendo o condenado indicar as suas habilitações profissionais e literárias, a situação profissional e familiar e o tempo disponível, bem como, se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho (cf art. 490 n.º1 do CPP).

Sem embargo do recorrente não ter dado cabal satisfação ao referido preceito, pois não indicou as suas habilitações e disponibilidade, no requerimento que formulou no tribunal recorrido, sabendo-se apenas que se dedicava à pesca, dir-se-á que condenação do recorrente refere-se a crimes de associação criminosa e de contrabando qualificado, crimes de grave danosidade social, tal como ressalta das impressivas considerações tecidas em sede de acórdão condenatório, cuja certidão consta dos presentes autos, a propósito da determinação das medidas concretas das penas, e não uma criminalidade menor, esta sim, o campo privilegiado de aplicação das chamadas penas substitutivas de prisão.

É certo que se reconhece que a condição económica do recorrente não será das melhores, a ser verdade o que alegou, (de que se encontrava desempregado, sobrevivendo da alimentação que seu irmão A. lhe dá, por algumas vezes o ajudar no restaurante que ele tem, em Vila Nova de Milfontes) e que o pagamento da multa em que foi condenada lhe acarrete dificuldades mesmo que com o recurso do mecanismo, deferido subsidiariamente, do pagamento em prestações. Neste segmento não se argumente, como o recorrente faz, que “só vem beneficiar quem tem dinheiro”. É que as condições económicas de cada arguido condenado foram tidas em consideração na fixação da taxa diária da multa, o que o recorrente bem sabe que aconteceu no caso dos seus co-arguidos (catorze deles viram as taxas diárias de multa fixadas em valores bem superiores à sua). Mas essas dificuldades existem relativamente ao cumprimento de qualquer pena em que fosse condenado.

Diz o recorrente que, no caso vertente, a substituição da pena de multa por dias de trabalho, dada a sua efectiva e manifesta visibilidade social, cumpre e realiza melhor as finalidades da punição, do que o pagamento da multa.

Não cremos que assim seja, por norma.

Com efeito, a prestação do trabalho, resultante da substituição da pena de multa, é fixada entre 36 e 380 horas, podendo ser prestado em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados e a duração dos períodos de trabalho não pode exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável (cf. n.º3 e 4 do art. 58 do CP, aplicável ut art.48.º n.º2 do mesmo diploma), sendo certo que o regime legal de trabalho suplementar por trabalhador é, em princípio, limitado a duas horas por dia normal de trabalho (cf. art.200.º n.º1, alin. c) do Código do Trabalho).

Afigura-se-nos que esta forma de cumprimento, no caso concreto, não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Na verdade, resulta do art. 40.º n.º1 do Código Penal que a aplicação de penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes por outros cidadãos (prevenção geral positiva), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos em geral.

A reintegração do agente na sociedade não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal que é a protecção dos bens jurídicos (ao contribuir esta reinserção social para evitar a reincidência – prevenção especial positiva).

A dissuasão (“intimidação”) do condenado é conatural à pena, e constitui também uma função da pena, que em nada é incompatível com a função positiva de ressocialização. É que não se trata de intimidar por intimidar, mas sim de uma dissuasão (através do sofrimento ou privações que a pena naturalmente contém) humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. E, no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial ( - Neste sentido, Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral – Questões Fundamentais, a pag.84.
).

Perante a criminalidade em questão, apreciada nos autos, o enfoque tido no despacho recorrido afigura-se-nos correcto, ao fazer referência ao delito patrimonial, à dimensão transfronteiriça desse tipo de criminalidade, ao lucro ilícito gerado – só ao grupo em que o recorrente se inseria foi apreendido tabaco me valor superior a um milhão e setecentos mil euros - de que foi feito eco no acórdão condenatório.

E assim sendo, caso a pretensão do recorrente obtivesse provimento, a legalmente exigida prevenção geral positiva seria arredada das preocupações que assistem à faculdade de substituição da pena de multa por dias de trabalho.

A dignificação da pena de multa, enquanto medida punitiva e dissuasora, deve comportar um sacrifício mesmo para os economicamente mais favorecidos, pelo que só o cumprimento da pena de multa poderá afastar a ideia de uma “quase absolvição”, ou de impunidade resultante da suspensão da execução da pena de prisão.

Acresce que o tribunal recorrido deferiu a pretensão subsidiária formulada pelo recorrente no sentido do pagamento da multa em prestações, por um prazo suficientemente dilatado. E, na eventualidade do pagamento da pena de multa não ser efectuado de forma voluntária ou coerciva, caso o tribunal conclua pelo incumprimento, não culposo, do pagamento daquela por parte do arguido, apreciando todo o circunstancialismo económico e financeiro deste e do respectivo agregado familiar, poderá suspender a execução da prisão subsidiária, por período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres e regras de conduta de conteúdo não económico e financeiro (cf. art.49.º n.º3 do CP).

Por isso que o recurso não merece provimento.

IV.

Pelo exposto, acorda-se, em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.

Custas a cargo da recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. art. 513 n.º1 e 514 n.º1 do CPP e 82 e 87 n.º1, alin. b) e n.º3 do CCJ).