Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
619/08.1TVLSB.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
ALVARÁ
INCUMPRIMENTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-A designação ou nome juris atribuído pelas partes a determinado clausulado contratual é irrelevante para a sua qualificação jurídica, se o conteúdo contratual permitir a inserção numa outra figura jurídica.
II-É o conteúdo clausulado que permite chegar à interpretação da vontade das partes e dai partir para a qualificação jurídica da figura contratual a aplicar ao caso.
III-Quer o contrato de cedência de espaço, quer o contrato de cessão de exploração são contratos atípicos, regulados prima facie pelo conteúdo contratual estipulado pelas partes, desde que não viole normas imperativas e só depois pelas normas da figura contratual mais próxima e princípios gerias de direito.
IV-Na cessão de exploração do estabelecimento comercial, o titular do estabelecimento obriga-se a proporcionar temporariamente ao cessionário a fruição do estabelecimento, com a consequente funcionalidade e inerente explorabilidade deste, mantendo o cedente a titularidade do estabelecimento.
V-Integra tal figura contratual o acordo pelo qual o proprietário acorda equipar o espaço cedido para funcionar como pastelaria, instalando os equipamentos necessários ao uso, que ficarão sua propriedade, mediante a contrapartida de uma quantia paga pela cedência do espaço e uma renda mensal acordada entre as partes.
VI-Inexistindo alvará ou licenciamento para a laboração do estabelecimento, e incumprindo o proprietário a obrigação acessória a que se vinculou de obter tais licenças, conclui-se que não ocorreu a tradição da coisa ou direito, condição indispensável para que o direito pudesse ser exercido.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO:
H, instaurou, em 29/2/2008, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra L e mulher, E, , alegando, em síntese, que:
- Por escrito particular de 15/12/2005, cedeu aos Réus uma fracção, a fim de aí funcionar uma pastelaria, pelo preço de € 60.000, ficando estes obrigados a pagar-lhe em duas tranches de € 10.000 cada, e os restantes € 40.000 a pagar em 24 prestações mensais, sendo que, para além daquele valor, os Réus pagariam ainda até ao dia 8 de cada mês a quantia de € 1.200;
- Os Réus só pagaram a primeira tranche de € 10.000 e desde Abril de 2006, inclusive, só pagam € 800/mês; além disso, desde Dezembro de 2007 que não pagam qualquer valor, sendo responsáveis pelos pagamentos em falta;
- O Autor recebeu uma carta dos Réus, a 14/2/2008, onde estes denunciavam o contrato e se diziam credores do montante de € 20.000, entregando as chaves do estabelecimento.
Conclui pedindo a resolução do contrato e a condenação dos Réus a:
i) a pagar-lhe € 56.800, por incumprimento contratual;
ii) a pagar as despesas de água, electricidade, gás e outras, a liquidar em execução de sentença;
iii) tudo acrescido de juros vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, e
iv) a repor o estabelecimento no estado em que se encontrava ao tempo da cessão, nomeadamente a substituição dos vidros partidos.
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Os Réus vieram contestar e deduzir reconvenção, referindo, em resumo, que:
- O Autor obrigou-se a equipar o espaço, com todas as máquinas, utensílios e móveis, o que não aconteceu na totalidade e que levou à redução para € 800 do valor mensal devido;
- Afirmou que o estabelecimento dispunha de todas as autorizações legais para obter o alvará de funcionamento, o que não corresponde à verdade;
- Foram os Réus que suportaram as despesas com água, electricidade e gás;
- Após várias vicissitudes, que descrevem, por o Autor não ter pago as contribuições de condomínio, teve lugar penhora dos equipamentos do estabelecimento;
- Com o seu comportamento, o Autor causou aos Réus danos diversos, que descrevem.
Concluíram requerendo que se julgue improcedente a acção e que a reconvenção seja julgada procedente, condenando-se o reconvindo a pagar aos reconvintes a quantia de € 40.000, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros desde a citação, até ao efectivo pagamento.
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O A. replicou, dizendo que, em suma, que incumbia aos Réus obter as licenças para funcionamento do estabelecimento.
Quanto ao mais impugna a versão dos Réus.
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Cumprida a marcha processual, realizou-se audiência de julgamento.
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A final foi proferida sentença que decidiu:
Julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
-Condenar os Réus L e mulher, E a repor o estabelecimento identificado no ponto 3) dos factos provados no estado em que o mesmo se encontrava ao tempo da cessão, substituindo os vidros partidos melhor identificados no ponto 29) dos factos provados;
-Absolver os Réus do demais peticionado contra eles.
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Inconformado com o teor da sentença, dela recorreu o Autor, concluindo as suas alegações da forma seguinte:
1. Atentas que foram as razões alusivas à prova, documental – em especial os documentos 1 e 2 da contestação e testemunhal, em especial, das testemunhas I, A (esta última gravada) concluímos que:
2. a actividade desenvolvida pelos recorridos no espaço que lhes foi cedido pelo recorrente era uma actividade de pastelaria e não de snack-bar.
3. de onde, a essencialidade da fritadeira e do grelhador, tão discutida, ao desenvolvimento de tal actividade é, no mínimo, questionável
4. como questionável é também que essa essencialidade seja extensível ao próprio negócio celebrado entre as partes já que, tal como se pode inferir das palavras dos recorridos, aquando da sua contestação, no artigo 9º, nem sempre aqueles artigos foram considerados essenciais, tendo, porém, passado a sê-lo já depois da celebração do contrato celebrado entre recorrente e recorridos em 15/12/2005.
5. Em consequência, não se pode fazer depender a validade do contrato de um elemento que não é sequer essencial do mesmo e, continuando, não se pode portanto pretender justificar a ausência de pagamento das prestações por parte dos recorridos com base na ausência daquele equipamento
6. Não se pode considerar provado, face à correcta análise da prova documental junta aos autos como doc.1 e 2 da contestação, conjugada com a prova testemunhal, em especial da I e do A, que era obrigação do recorrente a colocação de tal equipamento no espaço por si cedido aos recorridos.
Veja-se a este respeito a transcrição do depoimento da testemunha I nas alegações supra referente ao CD 20090217113854_26947...14:15 a 15:20, onde se verifica que esta testemunha assistiu a uma conversa entre o pai do recorrente e a sua filha, recorrida, pela qual esta solicitava àquele o dito equipamento .
E veja-se também a transcrição do depoimento da testemunha A, nas alegações supra que, ao ser confrontado com o documento de fls 29, afirmou que a lista em causa lhe foi apresentada pelo pai do recorrente, conforme transcrição de CD 20090217120005_26947...05:10 a 05:26,
7. Ora tais factos assim demonstrados não podem pretender provar nenhum tipo de assunção de obrigação por parte do recorrente já que tais factos assim descritos, a ocorrerem conforme o relatado, tê-lo-ão sido praticados pelo seu pai, pessoa desprovida de qualquer legitimidade para, em nome do recorrente, praticar qualquer tipo de negócio ou assumir qualquer tipo de obrigação já que carecia de competente mandato ou confirmação do recorrente para o fazer. Ora, nem um nem outra sucederam.
8. Assim, da conjugação da análise da prova testemunhal e da prova documental referidas, não é possível considerar-se provado que impendia sobre o recorrente a obrigação de equipar o espaço cedido com a dita fritadeira e o dito grelhador os quais, aliás, não podem ser considerados elementos essenciais de uma pastelaria, pelas razões já aduzidas.
Não devendo ter sido provada, portanto, a responsabilidade do recorrente neste ponto.
9. Ainda atento o rigor da prova documental e testemunhal e as razões invocadas em sede de alegações supra, não se pode inferir que o recorrente tenha acordado com os recorridos uma redução da prestação mensal devida por estes àquele como contrapartida da utilização do prédio pelo mesmo cedido a estes.
10. Pelo que também neste ponto não se encontra justificação para a ausência de pagamento do devido pelos recorridos ao recorrente.
11. Recorde-se ainda, à cautela, que existe manifesta contradição entre aquilo que é a matéria considerada assente e provada pela douta sentença da qual agora se recorre pois aí se afirma ter sido celebrado um contrato de cedência de espaço em 15 de Dezembro de 2005 (cfr doc. 1 da PI; alínea A) da matéria de facto assente e ponto 2 dos factos provados da fundamentação da sentença), e a qualificação jurídica que a mesma vem, afinal, fazer daqueles mesmos factos, quando enquadra aquela figura contratual no âmbito do regime do contrato de cessão de exploração comercial em 2. da mesma fundamentação mas desta feita no enquadramento jurídico dos factos. Ora tal raciocínio é contraditório.
12.Quanto à qualificação da matéria de Direito - note-se antes de mais, que estamos perante um contrato celebrado em 15/12/2005 ao abrigo da liberdade contratual, de acordo com a possibilidade legal expressa pelo disposto no artigo 405º do Código Civil - resta concluir que foram violadas as regras jurídicas disciplinadoras do contrato de cessão de exploração comercial constantes no artigo 111º do Regime do Arrendamento Urbano, estando, portanto, perante um contrato de cedência de espaço que é um contrato inominado cujo regime se há-de encontrar no respectivo clausulado.
Assim sendo,
13. As partes, ao abrigo da liberdade contratual que a lei, pelo artigo 405º do Código Civil lhes confere, quiseram celebrar um contrato de cedência de espaço. Tal resulta claro e inequívoco do processo, não só a partir dos documentos apresentados (em especial o doc. 1 da PI) como também da vontade das partes expressa, por exemplo, na PI e na contestação (veja-se, quanto a esta última, nomeadamente, o disposto em 2º e 4º e, em especial, a confissão dos requeridos tal como resulta do artigo 1º da contestação).
14. Em cláusula nenhuma do respectivo contrato tido como provado celebrado entre recorrente e recorridos em 15/12/2005 (doc. 1 da PI) se pode inferir a obrigação do primeiro providenciar pelo alvará de funcionamento,
15. aliás, o contrato de cedência de espaço não sofre de nulidade apenas por falta de licença de utilização; mas só se esta se tornar impossível de obter ; consequentemente, as rendas devidas pela utilização do cessionário não são passíveis de ser anuladas. Cfr acórdão do tribunal da relação de Lisboa nº 1717/2007, de 08/05/2007 in http:// www.dgsi.pt
16. Consequentemente e por maioria de razão, os recorridos não se podem socorrer deste argumento, que é ilegal, para justificar a falta do pagamento do devido: € 56 800.00
17. Por último, o que se faz por cautela, ainda que não se considerasse este regime contratual como o regime regulador do contrato sub Júdice celebrado ao abrigo do disposto no artigo 405º do Código Civil, sempre se teria de ter em atenção que com o seu comportamento os recorridos, quando muito, teriam feito um uso de um prédio propriedade do autor nele instalando a sua pastelaria por largos meses avantajando daquele modo o seu património, visto desenvolverem assim uma actividade sem dispenderem de dinheiros seus para tanto; afinal, no espaço propriedade do recorrente quem, a suas expensas, acabou por equipar para uso dos recorridos,
18. vendo daquela forma diminuído e seu património em proveito exclusivo dos recorridos quem com isso viram, afinal e sem idónea causa justificativa dessa deslocação patrimonial, avantajado o seu património.
19. Sendo que tal realidade se subsume a um enriquecimento sem causa, previsto pelo disposto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil, quando muito, deveria o recorrente ver-se compensado pelos recorridos através do pagamento de uma indemnização por enriquecimento sem causa a qual nunca deverá ser inferior a € 56 800.00, aos quais deverão acrescer os juros de mora e vincendos até integral pagamento.
Concluem no sentido de ser dado provimento ao presente recurso.
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O Réu respondeu ao recurso, concluindo as contra-alegações da forma seguinte:
1- O Recorrente celebrou com o Recorrido um contrato de cessão de exploração do estabelecimento e obrigou-se a equipar o espaço com todo o equipado para funcionar como pastelaria.
2- Mas o Recorrido não equipou o espaço com todo o equipamento a que se obrigou, constante da proposta de venda nº 1874, e que prometeu ao Recorrido.
3- O Recorrente nunca entregou ao Recorrido o Alvará de funcionamento do estabelecimento para a actividade de pastelaria, a que, igualmente se obrigou, porque nunca o conseguiu obter, pois nem sequer tinha a fracção objecto do contrato REGISTADA em seu nome;
4- O Recorrente reduziu a renda do estabelecimento de 1.200,00 Euros, para 800,00 Euros, provando-se pelos documentos e pelo depoimento das testemunhas, M, pai do ora Recorrente e da I.
5- O recorrente não pagou contribuições de condomínio da fracção objecto do contrato o que originou um processo Executivo com penhora do equipamento existente no estabelecimento, impedindo o Recorrido do uso pleno desse equipamento.
Como ficou provado o Recorrente incumpriu, por sua culpa exclusiva o Contrato de Cessão de Exploração Comercial que celebrou com os Recorridos e a Sentença não violou qualquer disposição legal, nem de Direito Subjectivo nem de Direito Adjectivo.
Bem julgou, em nossa opinião, o Meritíssimo Juiz.
Deve ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a Resolver.
-Impugnação da matéria de facto.
-Contradição entre os factos provados e fundamentação jurídica.
-Qualificação do contrato e efeitos dele decorrentes.
-Do enriquecimento sem causa.

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III - Fundamentação.
1. Factos Provados:
1. Por escritura de 13/5/2005, o Autor adquiriu à sociedade E, a fracção designada pela letra AI, descrita na Conservatória do Registo Predial de na ficha mil trezentas e sessenta e sete, afecto ao regime de propriedade horizontal registada a favor do Autor pela Ap. 26 de 2008/04/11 (Alínea R da matéria de facto assente).
2. Em 15/12/2005, por escrito particular, entre Autor e Réu foi celebrado um “Contrato de Cedência de Espaço” (A).
3. Nos termos desse acordo, o Autor, na qualidade de proprietário, cedia ao Réu a fracção “A” do Bloco D do prédio urbano (B).
4. Espaço cedido a fim de funcionar como pastelaria (C).
5. O Autor assinou com os Réus o acordo, na qualidade de “Proprietário da Fracção AI do Bloco D do prédio urbano (Q).
6. O valor da cedência acordado entre Autor e Réu foi de € 60.000 (sessenta mil euros) (D).
7. No acto da assinatura do contrato, em 15/12/2005, o Réu pagaria € 10.000 (dez mil euros) (E).
8. Aquando da entrega do espaço cedido, em final de Janeiro de 2006, o Réu pagaria € 10.000 (dez mil euros) (F).
9. Os restantes € 40.000 (quarenta mil euros) seriam pagos pelo Réu ao Autor, durante 24 meses (G).
10. Ao montante de € 60.000 acrescia o pagamento da quantia mensal de € 1.200 (mil e duzentos euros), a pagar até ao dia 8 de cada mês (H).
11. O Réu pagou € 10.000 (dez mil euros), aquando da assinatura do contrato de cedência (I).
12. A partir de Dezembro de 2007 que o Réu não efectua qualquer pagamento ao Autor, situação que ainda hoje se mantém (J).
13. O Autor obrigou-se a equipar o espaço com todas as máquinas, utensílios, móveis, exaustor de fumos e equipamentos diversos constantes da proposta de venda nº 1874 (Resposta ao Quesito 5º da base instrutória).
14. O Autor não montou no espaço cedido 1 fritadeira dupla Mod. JB 7+7 L-Mon.S/T, que constava da lista de equipamentos que entregou aos Réus (7º).
15. Nem após as inúmeras solicitações verbais e apesar do Réu marido ter enviado ao Autor a carta de 12/12/2005 (9º).
16. Tais equipamentos eram essenciais para a exploração do estabelecimento de forma mais rentável.
17. O estabelecimento não tinha e não tem alvará de funcionamento.
18. O Autor não conseguiu obter o alvará, apesar de se ter comprometido com os Réus a tratar deste assunto.
19. Os Réus sempre insistiram com o Autor para este obter o alvará de funcionamento do estabelecimento que lhes cedeu.
20. Os contratos de fornecimento de água, electricidade e gás foram celebrados entre os Réus e os fornecedores destes bens e serviços (S).
21. O Autor aceitou reduzir a renda mensal acordada de € 1.200 para € 800 (1º e 12º).
22. Correu termos o processo nº por falta de pagamento das contribuições de condomínio da fracção AI, tendo ocorrido em 28/1/2008 a penhora dos equipamentos existentes no estabelecimento (T).
23. Em 12/2/2008, o Autor escreveu uma carta ao Réu onde, para além de solicitar o pagamento das quantias em divida, solicitava ainda a presença do Réu em dia e hora marcados, no local do estabelecimento a fim de aquele proceder à entrega das chaves ao Autor (K).
24. E ambos procederem a uma vistoria conjunta do estabelecimento, a fim de verificar o seu estado de conservação e de todos os equipamentos (L).
25. Em 14/2/2008, o Réu enviou uma carta ao Autor a denunciar o contrato (M).
26. E se dizia credor da quantia de € 20.000 (vinte mil euros) (N).
27. Tendo o Réu procedido à entrega das chaves do estabelecimento (O).
28. No dia e hora marcados pelo Autor para a vistoria do equipamento, o Réu não compareceu (P).
29. No decorrer da vistoria ao local encontrava-se partido um vidro de um dos expositores/montra frigorífica de bolos, e um dos vidros de uma das janelas do estabelecimento (3º e 4º).
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DE DIREITO:
Considerando que a matéria de facto foi gravada, podem as partes impugnar a sua fixação, para reapreciação em sede de recurso, impondo os arts.712º e 685-B do CPC, que sejam cumpridas por parte do recorrente certos requisitos, os quais constituem um ónus dirigido à apreciação das suas pretensões.
Assim, dispõe o art.712º do CPC, na sua alínea a), que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685-B, a decisão com base neles proferida.
E o art.685-B do CPC, na versão actualmente vigente, veio dispor o seguinte:
“1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2 do artigo 522º-C.
Por sua vez o nº2 do art.522ºC dispõe que, quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.
Foi exactamente para permitir que o recorrente pudesse cumprir este ónus, que o legislador lhe facultou, no seu art.685º, nº7, do mesmo Código, a concessão de um prazo adicional e suplementar para produzir as suas alegações.
Exige-se assim que, quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto, o impugnante:
-especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados
-fundamente as razões da discordância, especificando os concretos meios de prova em que se funde a impugnação
-efectue a localização na fita registadora por referência ao assinalado na acta de julgamento dos respectivos depoimentos
-se indique o sentido ou sentidos das respostas a dar, em substituição das já consideradas ou aquelas que pretende ver inseridas na matéria de facto dada como provada.

Ora no caso em apreço, a recorrente, em sede de conclusões do recurso (sendo que elas fixam e delimitam o objecto do recurso-art.685-Aº, nº1 do CPC), não especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem o sentido que entende deverem estes passar a ter.
Na verdade, o recorrente limita-se a uma afirmação genérica sobre um conjunto de factos que entende deverem ter sido julgados de facto e de direito, de um modo diferente, sem fazer qualquer referência a qualquer artigo da base instrutória.
Refere é certo o depoimento das testemunhas I e de A, para, usando apenas flashes dos respectivos depoimentos, pretender concluir por uma valoração global da prova em sentido diferente daquela que foi feita pelo tribunal, conjugando-a ao seu jeito, com o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente como documentos nºs 1 e 2 da contestação.
Na essência, o recorrente limita-se a fazer a sua própria apreciação da prova, em sentido diferente daquele que foi sufragado pelo Senhor Juiz do Tribunal a quo, pretendendo por esta via impor a sua própria valoração dos factos ao tribunal e fazendo comentários sobre os meios de prova produzidos, sem observar as exigências legais, com reporte à referência dos pontos de facto constantes da base instrutória.
O recorrente não concorda com a valoração feita por parte do tribunal da prova produzida em audiência, mas nessa parte entra no âmago da livre apreciação da prova por parte do tribunal recorrido, estipulada no art.655º do CPC, que não cabe a este tribunal de recurso sindicar.
Tanto mais, que é por demais manifesto que a recorrente não observou as exigências legais quanto à impugnação da matéria de facto.
Ora conforme vem sendo salientado pela jurisprudência e doutrina constantes e de que é exemplo o referido por Lopes do Rego, in Comentários ao CPC, 2ª ed., Vol.I, págs.468 e 592, em anotações, respectivamente aos arts.522º-C e 690º-A, do CPC, o pretendido pelo legislador não foi, pura e simplesmente obter a repetição do julgamento junto do Tribunal da Relação, mas antes a “detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento”.
A recorrente impugnou a matéria de facto, mas não observou o ónus de indicar os concretos pontos de factos que considera incorrectamente julgados.
É claramente maioritário o entendimento que vai no sentido de excluir o convite ao aperfeiçoamento das alegações e conclusões do recurso, já que não está previsto na lei, seguramente com o objectivo de desincentivar o uso de manobras dilatórias, que a lei quer evitar, como flui claramente do disposto no art.265º do CPC.
Esse entendimento, (já defendido no regime do CPC anterior à reforma e mantido pela redacção actual do art.685º-A), vem salientado por Moitinho de Almeida, in Ac. STJ, de 25-11-04, www.dgsi.pt, ao referir que o convite para o aperfeiçoamento das conclusões do art. 690º n.º 4 do CPC não tem lugar no âmbito do art. 690º-A do mesmo código. E explica que se o legislador o tivesse querido tê-lo-ia dito expressamente e não o fez por entender que tal convite se prestava a chicanas e atrasos processuais.
No mesmo sentido manifesta-se também o Ac. STJ, de 20-09-2004, em www.dgsi.pt, ao referir que, «.........Não é de atender à pretensão no sentido de ser aplicável o n.º 4 do art. 690º C.P.C. já que os ónus impostos à recorrente, e a que se fez alusão, visam o corpo da alegação, insusceptível de ser corrigido ou completado no nosso ordenamento processual pela via do convite».
E aí se indica, tendo-o como apoiante, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 5ª ed., Almedina, pág. 161, o qual sufraga o mesmo sentido.
Com o mesmo entendimento, salienta-se o Ac. STJ, de 31-05-06, em www.dgsi.pt para quem:
"1. Ao admitir a gravação da prova, o legislador não quis que esse mecanismo processual fosse transformado em expediente dilatório para retardar o trânsito em julgado da decisão final, o que facilmente aconteceria se a matéria de facto pudesse ser global e genericamente impugnada.
2. Para evitar isso, sujeitou o recorrente ao cumprimento de rigorosos ónus, cujo incumprimento determina a imediata rejeição do recurso, sem prévio convite ao aperfeiçoamento da alegação.
3. A especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados é um desse ónus."
A orientação acima exposta recebe ainda apoio, naquele mesmo autor - Lopes do Rego -, o qual cita e transcreve parte de um Acórdão do TC n.º 140/04 de 10 de Março que, embora aplicado ao processo penal, traz novas luzes sobre esta problemática e também ele vai no sentido do não uso do convite ao aperfeiçoamento.
Também Lebre de Freitas, em CPC Anotado, vol. 3, pág. 53 refere que o recorrente tem de indicar obrigatoriamente não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados como os concretos meios probatórios constantes da gravação
Coloca-se o enfoque no Ac. STJ, de 8-03-05, em www.dgsi.pt, ao referir que «......... não basta nem se pode admitir que o recorrente se limite a fazer uma impugnação genérica dos factos que impugna. Ele tem de concretizar um a um quais os pontos de factos que considera mal julgados seja por terem sido dados como provados, seja por não terem sido considerados como tal».
Mas também não é suficiente que ele especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. É preciso que ele indique, em relação a cada um dos pontos que considera mal julgados, quais os meios de prova que, em sua opinião, levariam a uma decisão diferente e quando esses meios de prova tenham sido gravados, o recorrente terá de indicar ainda quais os depoimentos em que fundamenta a sua impugnação, por referência ao indicado na acta da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 522.º-C do CPC, ou seja, terá de indicar o número da cassete em que o depoimento se encontra gravado e o local onde começa e acaba a gravação de cada um dos depoimentos por ele invocados.
(Neste sentido, cfr. ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/2008, Apelação nº1517/08, que, nesta parte, seguimos de perto)

No caso dos autos, não tendo a apelante cumprido os normativos indicados e nos termos acima expostos, vedado fica ao tribunal, sob pena de violação da lei imposta, conhecer do recurso ora interposto, concretamente, sobre a reapreciação e modificabilidade da matéria de facto.
Mas tendo presente esta imposição, dir-se-á ainda com mais enfoque que, tendo este tribunal procedido à audição dos depoimentos e analisado o teor dos documentos juntos aos autos, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenho errado no julgamento de facto.
Consequentemente, não se verificando nenhuma das demais circunstâncias previstas no art.712º do CPC, impõe-se considerar que o recurso improcede na parte relativa à impugnação da matéria de facto, que se considera definitivamente fixada.
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O recorrente defende que existe manifesta contradição entre a matéria de facto considerada assente e provada pela sentença objecto de recurso, na medida em que nesta se afirma ter sido celebrado um contrato de cedência de espaço em 15 de Dezembro de 2005 e depois na fundamentação jurídica enquadra aquela figura contratual no regime do contrato de cessão de exploração comercial.
Ora conforme vem sendo entendido reiteradamente pela jurisprudência, de que é exemplo o Acórdão nº 00B352 de Supremo Tribunal de Justiça de 25/5/2000, publicado in http://jurisprudencia.vlex.pt/ , em posição que acolhemos “A designação ou nomen juris que as partes atribuam a um acordo negocial, se relevante para a interpretação do real sentido e alcance das respectivas declarações de vontade, não pode de per si impor-se, em termos apoditícios, aos órgãos aplicadores do direito, designadamente quando pretendem camuflar um verdadeiro contrato de arrendamento comercial sob a capa de um simples contrato-promessa de arrendamento comercial”
Idêntico raciocínio se deve ter por aplicado aos autos.
Sempre entendemos que o nome dado pelas partes ao contrato é irrelevante, se o conteúdo contratual permitir a inserção numa outra figura jurídica.
É pois o conteúdo clausulado que permite chegar à interpretação da vontade das partes e dai partir para a qualificação jurídica da figura contratual, a aplicar ao caso.
Assim sendo, é irrelevante o nome que as partes deram ao contrato e não existe qualquer contradição entre a fixação da matéria de facto e a qualificação jurídica feita pelo julgador na ponderação do clausulado pelas partes.
Aliás, para evitar tais dúvidas, temos por mais adequado considerar provado em sede de fixação de facto, fazer referência ao conteúdo das cláusulas, para a final se integrar tal clausulado numa figura contratual
Dai que se considere mais adequado considerar apenas provado que as partes celebraram entre si um acordo que denominaram de “Contrato de Cedência de Espaço”, alterando o facto 2) que passará a ter a seguinte redacção:
2) “Em 15/12/2005, por escrito particular, entre Autor e Réu foi celebrado um acordo denominado “Contrato de Cedência de Espaço”, subordinado às cláusulas seguintes:
1ª- O proprietário, doravante designado primeiro contratante, equipa o espaço ora cedido para funcionar como pastelaria, instalando os equipamentos necessários ao uso, já acordados entre as partes, os quais são sua propriedade.
2ª- O segundo contratante recebe o espaço equipado nas condições constantes nas cláusulas deste contrato.
3ª- O contrato de cedência de espaço é feito pelo valor de 60.000,00 Euros, que serão pagos nas condições constantes da cláusula quarta.
4ª- Pagamentos inerentes ao contrato:
a) No acto de assinatura deste contrato o segundo contratante pagará ao primeiro contratante o valor de 10.000,00 Euros, servindo o contrato como recibo de quitação.
b) No acto da entrega pelo primeiro contratante ao segundo contratante do espaço ora cedido, que se presume até final de Janeiro de 2006, o segundo contratante pagará ao primeiro contratante outra tranche de 10.000,00 Euros, da qual receberá recibo.
c) Os restantes 40.000,00 do preço da cedência ora acordado serão pagos durante vinte e quatro meses.
d) A renda mensal será de 1.200,00 Euros a pagar após assinatura do contrato ou entrega da chave ao dia 8 de cada mês.
5ª- O segundo contratante toma consciência de que a falta de qualquer pagamento dos valores deste documento dá ao primeiro contratante a faculdade de resolver o contrato tomando para si todos os valores já recebidos, exigindo os que faltar receber e retomando a posse do bem cedido”
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Da Qualificação Jurídica:
O recorrente defende que o contrato celebrado entre as partes é um contrato inominado, celebrado no domínio da liberdade contratual prevista no art.405º do CC e não um contrato de cessão de exploração comercial.
Aceite que a designação do contrato não vincula o tribunal, nos termos expostos, impõe-se atender à factualidade que ficou provada, interpretar a vontade das partes e dai partir para a qualificação jurídica do mesmo, salientando desde logo, que, quer o denominado contrato de cedência de espaço, quer o contrato de cessão de exploração são contratos atípicos, regulados prima facie pelo conteúdo contratual estipulado pelas partes, desde que não viole normas imperativas e só depois pelas normas da figura contratual mais próxima e princípios gerais dos contratos.
Nesta linha de raciocínio, adoptamos na íntegra a qualificação jurídica feita pelo tribunal da 1ª instância, nos moldes que se passam a transcrever:
“Antes de mais, afigura-se-nos adequado centrar a questão jurídica que gira em torno do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial.
Um estabelecimento comercial é, ao fim de contas, uma empresa.
Acerca deste conceito, Orlando de Carvalho, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia, pp. 4, ensinava que “a empresa é, antes de tudo, um processo produtivo (concebida a produção em sentido amplo, de modo a abranger a produção, não só de bens ou de serviços, mas de qualquer valor acrescentado em termos de circuito económico) destinado à troca sistemática e vantajosa: ou seja, à formação de um excedente financeiro que garanta quer a auto-reprodução do processo, quer o estímulo a essa auto-reprodução (sabido que sem auto-reprodução, incluindo a necessária reprodução ampliada, não há sistematicidade, e sem estímulo à auto-reprodução, esta, como dispêndio de energias, não se efectua). Sendo isso, porém, a empresa é necessariamente uma estrutura, isto é, um complexo organizado de meios ou de factores com o mínimo de racionalidade e estabilidade que lhe garanta o mínimo de autonomia funcional (ou técnico-produtiva) e financeira (ou económico-reditícia) que lhe permita emergir na intercomunicação das produções (ou no mercado, lato sensu. O mercado é o lugar ideal da intercomunicação produtiva) como um centro emissor e receptor a se stante ...”.
Também sobre tal conceito, Paulo Tarso Domingues, Revista de Direito e Economia, Anos XVI a XIX, 1990 a 1993, pp. 547, explicita: “…Se é verdade que a empresa é uma organização (enquanto reunião, combinação e coordenação de factores produtivos que permite e visa, nos termos atrás referidos, a conclusão de um determinado processo produtivo), ela não se configura como uma organização abstracta. Ela é uma organização concreta, realizada, de factores produtivos que não têm necessariamente de ser bens corpóreos, muito embora ela suponha normalmente um conjunto, mais ou menos amplo, de elementos (mobiliário, máquinas, etc.) que a corporizam e sensibilizam, sendo, por isso, incorrecto concebê-la, num puro plano organizatório, como um bem incorpóreo puro. A segunda nota é que se empresa/organização supõe normalmente, como se disse - um determinado lastro corpóreo, (maior ou menor), i.e., um certo número de bens que a corporizam (que têm ou podem ter autonomia económica e jurídica, podendo por isso, isoladamente serem negociados), ela, contudo, não se confunde nem se identifica com tais bens, nem sequer, com a soma dos mesmos. A empresa tem outros elementos (despidos de autonomia jurídico-económica, como sejam o crédito, o bom nome, etc.), que são valores novos, “sui generis”, próprios da empresa (que resultam da complementaridade e da combinação dos diversos factores que a constituem) que se impõem, no mercado, como valores de acreditamento diferencial (valor de acreditamento enquanto valor de confiança pública, de confiança do público naquela empresa; diferencial, porque marca a diferença e diferencia aquela empresa relativamente a outras) e que, nesta medida, afirmam a empresa como um valor de posição no mercado (…) O estabelecimento, que no plano jurídico é também designado, em sinonímia, como empresa é, pois, um complexo organizado de bens ou serviços, juridicamente uma universalidade, actuante ou apta a entrar em movimento, relacionando-se com o público, a sua clientela, apta a gerar lucros”.
Como ensinam Ferrer Correia e Ângela Coelho, Revista de Direito e Economia, X/XI, pp. 282, “para se qualificar como estabelecimento determinada organização não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento.
Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento - que seja reconhecível o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento”.
Cessão de exploração do estabelecimento comercial é, pois, o contrato pelo qual se transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado.
A cessão de exploração, tal como o trespasse, implica a transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento comercial e que, transmitido o gozo do prédio, nele se continue a exercer o mesmo ramo de comércio ou de indústria - Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª ed., pp. 644.
Com a cessão ocorre unicamente uma alteração subjectiva da gestão do estabelecimento, tido como universalidade e da qual faz parte o próprio local onde o mesmo se encontra instalado, estabelecimento esse que continua a ser o mesmo e titulado pelo mesmo arrendatário sobre o qual, como se disse, continuam a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de arrendamento - Aragão Seia, ob. cit., pp. 648.
No art. 111º do Regime do Arrendamento Urbano (doravante RAU), é reconhecido que o valor dinâmico da exploração prevalece sobre o valor estático do imóvel, excluindo-se do âmbito do contrato de locação e sujeitando-o ao princípio geral da liberdade contratual, sendo-lhe inaplicáveis, portanto, as normas excepcionais de outros tipos contratuais, mesmo afins - cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/7/1987, Tribuna da Justiça, 36, 19.
Mesmo que o estabelecimento se encontre desfalcado de algum ou alguns dos seus elementos não essenciais haverá cessão de estabelecimento.
O que não pode faltar são os elementos essenciais à sua existência, que só caso a caso é possível precisar.
Para haver um contrato de cessão ou locação de estabelecimento comercial é necessário que exista um estabelecimento, bastando para tal que o complexo da organização económica que lhe subjaz, se não estiver em actividade, esteja apta a entrar em funcionamento, quer a respectiva exploração não se tenha iniciado nunca, quer esteja interrompida ou suspensa - vide o Acórdão da Relação do Porto de 2/7/1992, com o nº 9210158, acessível em www.dgsi.pt.
Feito este passeio pela doutrina e pela jurisprudência, podemos concluir que na cessão de exploração do estabelecimento comercial, o titular do estabelecimento obriga-se a proporcionar temporariamente ao cessionário a fruição do estabelecimento, o que implica a funcionalidade e inerente explorabilidade deste, mantendo aquele cedente a titularidade do estabelecimento.
Tendo presentes estas considerações teóricas, afigura-se-nos incontestável que a figura contratual acordada se encaixa no contrato de cessão de exploração comercial, tanto mais que contrariamente ao nome iuris que suporta, não foi cedido apenas o “espaço” pertencente ao recorrente, mas acordou dotá-lo de meios para funcionar como pastelaria, adquirindo o respectivo equipamento com vista ao inicio de tal actividade, estando por isso preenchidos os elementos que caracterizam a organização comercial, ou seja, o estabelecimento comercial, a funcionar como pastelaria.
E sendo assim, sufragando o entendido pela decisão objecto de recurso, “integrando-se este no ramo de pastelaria, fazem parte as respectivas licenças e/ou alvará, da competência de entidades públicas, pois só com a concessão das mesmas é configurável a aptidão de funcionamento desse mesmo estabelecimento, e correspondente fruição.
Diremos, assim, que, in casu, tratando-se de um estabelecimento destinado a pastelaria, é elemento essencial da sua própria estrutura orgânica e funcional, a titularidade das ditas licenças e/ou alvará, já que, sem elas, não é legalmente admissível a laboração.
Aliás, provou-se que tal incumbência cabia ao Autor, que afiançou aos Réus que tratava deste assunto, sem o conseguir, como vimos.
Conclui-se também, como o fez a sentença recorrida, que no momento do contrato de cessão de exploração, celebrado entre as partes, o Autor como cedente e os Réus, como cessionários, não se encontrava aquele estabelecimento devidamente licenciado, sendo que a cedência de um estabelecimento comercial destinado à restauração, envolve a entrega dos respectivos títulos legitimadores de tal actividade.
Portanto, sendo o Autor o proprietário da fracção em causa, competia-lhe proceder às diligências necessárias, junto das entidades públicas competentes, com vista à obtenção da licença/autorização e/ou alvará, e cumprimento das demais formalidades legais com vista à plena laboração do dito estabelecimento.
Olhando ao acordo celebrado e aos factos apurados, tem de se entender que o Autor, enquanto cedente, se vinculou a uma prestação acessória da principal, mas de facto com ela interligada e indispensável para concretizar a plena e perfeita execução da prestação principal.
Mais, provou-se ainda que a dado passo, por causa imputável ao Autor - não pagamento das prestações devidas a título de contribuição para o condomínio - os equipamentos existentes no estabelecimento em causa foram penhorados.
Perante estes factos e acontecimentos, impõe-se-nos concluir que o A., como cedente, incumpriu a sua obrigação de proporcionar aos cessionários a fruição do estabelecimento, mediante a legalização da laboração do mesmo, por acreditação junto das entidades públicas competentes, precipitando o contrato em clara ilicitude.
Assim, incumprindo o contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial em causa, e não obstante para tanto alertado pelos RR. pela carta de 12 de Dezembro de 2005 (vide resposta ao quesito 9º), este nada fez, não envidando qualquer esforço com vista ao dito licenciamento.
Em suma, estamos perante um caso em que não ocorreu a tradição da coisa ou direito, face à não entrega do alvará, condição indispensável para que tal direito pudesse ser exercido - ver ainda o art. 115º nº 2, alínea a) do RAU.
Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/4/1997, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, 1997, tomo II, pp. 39, “o alvará é, em geral, o título, diploma ou documento comprovativo da atribuição de certos direitos (...)”. O alvará comprova que determinada actividade comercial foi licenciada, ou seja, de que existe, das autoridades administrativas competentes, o reconhecimento de um dado direito de exploração. No caso, o direito reporta-se à exploração comercial de um estabelecimento na actividade da restauração.
Ora, tal direito - e o seu comprovativo, que é o alvará - integram o estabelecimento, sendo necessariamente objecto do trespasse (vide ainda o Acórdão da Relação de Lisboa de 10/3/2005, com o nº 260/2005-8, acessível em www.dgsi.pt).
Na falta do alvará, ou seja, em face de tal inércia do A., mantendo-se o contrato em causa eivado da ilicitude apontada, revelou-se adequado o procedimento dos RR., entregando o estabelecimento comercial ao A., quer por força da nulidade do contrato (art. 294º do Código Civil), quer por força da resolução do mesmo, por incumprimento definitivo do A. (art. 801º do mesmo Código)”.
Por assim ser assim, bem andou a sentença recorrida, ao absolver os RR. desse pedido, improcedendo o recurso com o fundamento assim invocado.
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Defendem os recorrentes que, a entender-se de outro modo, então têm direito a serem compensados pelo recorridos através de uma indemnização por enriquecimento sem causa, nos termos do art.473º do CPC, que nunca deverá ser inferior a 56.800,00 Euros.
Trata-se de matéria nova não apreciada em sede de 1ª instância.
Os recursos servem para apreciar a bondade das decisões proferidas pelo tribunal de instância inferior e não para apreciar questões novas suscitadas apenas em sede de alegações de recurso.
Entendendo o recorrente que lhe assiste o direito a ser indemnizado pelo enriquecimento sem causa, sempre poderá fazer valer a sua pretensão em acção a intentar para o efeito, que não ex novo em sede de recurso.
Consequentemente, não se conhece do recurso nesta parte, por ser legalmente inadmissível.
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Em razão do exposto, improcede na íntegra o recurso interposto pelo recorrente, sendo de manter a decisão recorrida, na íntegra.
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DECISÃO:
Nos termos expostos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, mantendo na íntegra a decisão objecto de recurso.
Custas a cargo do recorrente.

(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)

Lisboa, 14 Dezembro de 2010

Maria Amélia Ameixoeira
Caetano Duarte
Carlos Marinho