Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7317/2006-3
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: ARRESTO
MEDIDA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. É admissível recurso do despacho que indefira a medida de garantia proposta de arresto preventivo face `regra geral de recorribilidade consagrada no art.º 399º ,n.º1 CPP uma vez que, encontrando-se o arresto preventivo inserido no Título III, e não no Título II, não é aplicável às medidas de garantia patrimonial o art. 219º, do CPP que apenas consagra a recorribilidade da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título .
2. O Código do Processo Penal prevê duas medidas de garantia patrimonial, ou seja, a caução económica (art. 227º) e o arresto preventivo (art. 228º), tendo ambas como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou do pagamento de qualquer dívida, indemnização ou obrigação civil derivadas do crime, sendo aplicáveis no decurso do processo pelo juiz e desde que se verifiquem os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial, e os pressupostos materiais que estão subjacentes à aplicação de tais medidas são os mesmos, isto é, desde que se verifique a probabilidade de um crédito sobre o requerido e fundado receio que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento.
3. Se a recorrente, ao formular o pedido de arresto, alega a sua qualidade de lesada, pode na fase processual própria vir a deduzir pedido de indemnização civil para ressarcimento dos eventuais prejuízos causados pela conduta do denunciado, (arts. 75º e 77º, nºs 2 e 3, do CPP), e por isso assumir a qualidade de demandante civil, e por outro, se o interesse em agir, ou seja, o interesse na revogação da decisão impugnada, não é um interesse meramente abstracto, interesse na correcção das decisões judiciais, mas um interesse em concreto, pelo efeito que se busca sobre a decisão em benefício do recorrente, aferindo-se esse interesse pelo sacrifício que a decisão para ele representa, no caso subjudice, o despacho recorrido implica sacrifício para a recorrente, pelo que tem legitimidade para recorrer da decisão impugnada, que lhe indeferiu o arresto preventivo, na medida em que está a defender um direito afectado pela decisão (art. 410º, nº1, al. d), do CPP).
4. Face à actual redacção do art. 228º, nº1, do CPP, na redacção dada pela lei nº 59/98, de 25AGO a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, já não tem natureza subsidiária ou supletiva relativamente à caução económica, podendo ser decretada nos termos da lei civil, a requerimento do Ministério Público ou do lesado. No caso de ter sido fixada previamente caução económica e não for prestada, o requerente do arresto fica dispensado da prova do fundado receio da perda da garantia patrimonial, sendo aplicáveis as normas dos arts. 406º e segs., do Código do Processo Civil, pelo que a prova do fumus boni iuri e do periculum in mora é feita no arresto e não no processo criminal (art. 408º, do CPC).
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

1. RELATÓRIO
1.1. Inconformada com a decisão do Mmº JIC de 26MAI06, que lhe indeferiu o seu requerimento em pede que seja decretado o arresto preventivo dos bens encontrados na disponibilidade do denunciado N…, veio a denunciante “C…”, interpor o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
«I – A agravante tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos do art. 401°/1/d) do CPP, que estabelece excepção à regra geral nos termos da qual apenas os sujeitos processuais serão partes legítimas em sede de recurso.
II — O art. 228°/1 do Código de Processo Penal não restringe a possibilidade de ser decretado arresto preventivo aos casos em que, tendo sido fixada caução económica, a mesma não seja prestada, apenas estabelecendo uma dispensa da prova do periculum in mora para esses casos.
III – A disposição referida acima está dividida em duas secções, divisão essa operada pela inserção de um ponto e vírgula, que demarca expressamente a primeira parte (relativa à generalidade dos casos, aos quais se aplicará a "lei do processo civil") da segunda (relativa aos casos em que tenha havido fixação prévia de caução económica e esta não tenha sido prestada, situações em que se dispensará a "prova do fundado receio de perda de garantia patrimonial").
IV — A interpretação do art. 228°/1 do CPP feita no douto despacho recorrido é incorrecta ou, pelo menos, desactualizada, pois não toma em consideração as alterações introduzidas ao texto do artigo pela Lei n°59/98, pelo que o mesmo despacho viola o já referido art. 228°/1 do CPC.
V — Os procedimentos cautelares gozam de autonomia em matéria de prova em relação às causas de que sejam dependência, porquanto a prova do direito invocado pelo requerente e do periculum in mora deve ser feita no próprio procedimento cautelar — cfr. art. 448°/1 do CPC, aplicável por força da remissão constante no art. 228°/1 do CPP.
VI — Consequentemente, o estado da acção principal e designadamente a quantidade ou qualidade da prova que já tenha sido produzida na mesma acção são irrelevantes para efeitos da apreciação do pedido de decretação de providência cautelar.
VI — Mal andou pois o Meritíssimo Tribunal a quo ao decidir rejeitar o arresto requerido pela agravante com fundamento em que seria prematuro decretá-lo, porque as investigações em sede de processo-crime ainda não se iniciaram, com o que violou o art. 228º/1 do CPP e os arts. 408°/1 e 384°/1 do CPC, aplicados por via da remissão efectuada pelo primeiro artigo citado.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento do procedimento cautelar, com a produção da prova requerida pela agravante, assim se fazendo a costumada Justiça».
1.2. Na 1ª Instância houve Resposta do MP o qual conclui, pela improcedência do recurso.
1.3. Nesta Relação do Exmº PGA emitiu douto Parecer no sentido de que o recurso deve ser rejeitado, nos termos dos arts. 401º, nº2, 419º, nº 4, al a), e 420º, nº1, do CPP, suscitando as questões prévias da inadmissibilidade do recurso, bem como da ilegitimidade do recorrente para recorrer, sendo de todo o modo, quanto ao fundo da questão, manifestamente improcedentes as conclusões da motivação do recurso interposto.
1.4. Foi cumprido o art. 417º, nº2, do CPP.
1.5. Foram colhidos os Vistos legais.
***
2. FUNDAMENTAÇÃO.
2.1. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso:
2.1.1. No DIAP de Lisboa corre termos o processo de inquérito NUIPC nº 1579/06.9TDLSB em que é queixosa “C…” e denunciado N…, o qual foi instaurado com base na queixa crime, com pedido de arresto, apresentada pela queixosa “C…”, na qual são descritos factos que, no entender da denunciante, integram a prática de crimes de abuso de confiança qualificado ou burla qualificada.
2.1.2. Com a denúncia, a queixosa "C…", requereu, nos termos do disposto no art. 228°, n°1 do CPP, o arresto preventivo da conta bancária titulada pelo denunciado N… na Caixa Económica Montepio Geral, bem como das contas bancárias que o mesmo possa ser titular no Banco Espírito Santo, Millennium BCP, Caixa Geral de Depósitos, Banco BPI, Banco Popular e Banco Português de Negócios, para garantia do crédito que alega deter sobre o denunciado.
2.1.3. O Mº Público deduziu oposição ao requerido por entender que a investigação ainda se encontra no início não tendo ainda sido recolhidos indícios suficientes da prática dos factos denunciados.
2.1.4. Por despacho de 26MAI06 o Mmº JIC indeferiu ao requerido com o fundamento de que: «Previamente impõe-se esclarecer que o arresto preventivo só pode ser decretado se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica (art. 228º do CPP), pelo que não faz sentido formular em primeiro lugar um pedido de arresto preventivo.
Em todo o caso sempre se dirá que concordamos com a Senhora Magistrada do Mº Público quando refere que se mostra prematuro o pedido do requerente, uma vez que a investigação ainda vai ser iniciada e, mesmo aceitando que a menor exigência de prova do receio de perda por parte do credor da garantia patrimonial do seu crédito, sempre uma decisão de deferimento (de prestação de caução) terá que ter algum suporte probatório.
Assim, sem prejuízo da, numa fase mais avançada, se vir a alterar este entendimento, decido indeferir o requerido».
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3. O DIREITO
3.1. O objecto do presente recurso, atentas as conclusões da respectiva motivação, cinge-se à seguinte questão:
- Se o art. 228°, nº1, do CPP, restringe ou não a possibilidade de ser decretado arresto preventivo aos casos em que, tendo sido fixada caução económica, a mesma não seja prestada, apenas estabelecendo uma dispensa da prova do periculum in mora para esses casos.
- No seu douto Parecer o Exmº PGA suscitou as questões prévias da inadmissibilidade do recurso, bem como da ilegitimidade do recorrente para recorrer
I – Conhecendo das Questão Prévias suscitadas pelo Exmº PGA
3.1.1. Da inadmissibilidade do recurso que indefira a medida de garantia proposta de arresto
Sustenta o Exmº PGA que «Sobre a admissibilidade de recurso de despacho que indefira a medida de garantia proposta de arresto: É o entendimento de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, fls.. 259 e 273, de Costa Pimenta in Código de Processo Penal Anotado, pág. 533. Porém, em sentido diverso, Simas Santos e Leal Henriques in Código de Processo Penal Vl. I, p. 1049, e Maia Gonçalves in CPP Anotado, 9a Edição, pág. 447. Contudo, estes autores argumentam de forma que consideramos insatisfatória, já que interpretam o art. 219° como nele se pretendesse apenas estabelecer um prazo mais curto para o conhecimento dos recursos sobre as medidas coactivas, não curando de dar o devido relevo á inserção de uma vírgula entre a palavra recurso e a expressão a julgar, esquecendo-se que, para que o preceito pudesse ser interpretado do modo que defendem, bastaria ao legislador aludir a " decisões sobre medidas coactivas ou de garantia patrimonial " em vez de decisões que apliquem ou mantenham tais medidas.
O art. 219º, do CPP, inserido no Capítulo IV, sobre a epígrafe «Dos Modos de Impugnação», do Título II – “Das medidas de Coacção”, do Livro IV, sobre a epígrafe «Das Medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial», consagra que «Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título há recurso, a julgar no prazo máximo de trinta dias a partir do momento em que os autos forem recebidos».
Por seu turno o Código do Processo Penal prevê no Título III – “Das Medidas de Garantia Patrimonial” – do Livro IV, a caução económica (art. 227º) o arresto preventivo (art. 228º).
Assim sendo, encontrando-se o arresto preventivo inserido no Título III, e não no Título II, não é aplicável às medidas de garantia patrimonial o art. 219º, do CPP, o qual só se aplica à medidas de coacção previstas no Título II.
Ora, o art. 399º, nº1, do CPP, inserido no Capítulo I, “Princípios Gerais”, do Título I, “Dos recursos Ordinários”, do Livro IX, “Dos Recursos”, estabelece como princípio geral que «É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei».
Neste sentido, in casu, o recurso é admissível precisamente porque se enquadra na regra geral do art. 399º, do CPP, não havendo qualquer disposição legal que afaste expressamente a irrecorribilidade de tal decisão.
3.1.2 Da ilegitimidade da recorrente, enquanto queixosa, para interpor o presente recurso.
De harmonia com o disposto no art. 401º, nº1, al. d), do CPP, «Têm legitimidade para recorrer:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) Aqueles que (…) tiverem a defender um direito afectado pela decisão»
Por seu turno, dispõe o nº2, do mesmo preceito legal que «Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
O direito afectado pela decisão implica que haja um prejuízo directo e efectivo e não meramente eventual.
A norma do nº2, significa, que para poder recorrer, além dos requisitos da legitimidade, deve ainda o recorrente ter necessidade de, no caso concreto, para realizar o seu direito usar do meio processual que é o recurso.
3.1.3. Na doutrina civilista o enquadramento jurídico do interesse em agir, ou é tratado como um pressuposto processual inominado e autónomo, (1) como uma condição da acção, (2) ou como o pressuposto processual da legitimidade (3).
Contudo, a doutrina que trata separadamente o interesse em agir da legitimidade, v. g. Anselmo de Castro e Manuel de Andrade, consideram que o interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. «É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse vago e remoto que seja; trata-se de algo intermediário: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece» (4)
«Do interesse em agir se distingue o interesse substancial: o interesse em agir é um interesse processual, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primária, e tem por objecto a providência solicitada ao tribunal, através da qual se procura ver satisfeito aquele interesse primário, lesado pelo comportamento da contraparte, ou mais, genericamente, pela situação de facto objectivamente existente.
O interesse em agir surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação.
Temos, portanto, que este pressuposto não se destina a assegurar eficácia à sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade: não fora exigido o interesse, e a actividade jurisdicional exercer-se-á em vão». (5)
3.1.4. Em processo penal o interesse em agir, a que alude o art. 401º, nº2, do CPP, é uma restrição à legitimidade para recorrer prevista no nº1, do citado normativo (6)
«O recurso ordinário é um recurso de renovação, visa a renovação da discussão, substituindo a decisão recorrida por outra. Com o recurso o recorrente visa a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra. Importa que o recorrente tenha interesse na revogação e na nova decisão»
Note-se, porém, que o interesse em agir, o interesse na revogação da decisão impugnada, não é um interesse meramente abstracto, interesse na correcção das decisões judiciais, mas um interesse em concreto, pelo efeito que se busca sobre a decisão em benefício do recorrente, salvo no que respeita ao Ministério Público. Assim, o arguido nunca terá interesse em recorrer com o fundamento de que foi feita má aplicação da lei, ainda que em seu benefício; o interesse do arguido afere-se pelo sacrifício que a decisão para ele representa». (7)
«Não se trata, porém, de uma necessidade estrita nem sequer de um interesse vago, mas de qualquer coisa intermédia: um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o seu recurso à arma judiciária. À Jurisprudência é deixada a função de avaliar a existência ou inexistência de interesse em agir, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao intérprete que terá de verificar a medida que o acto ou procedimento são impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo». (8)
3.1.5. Aplicando os princípios e conceitos supra enunciados ao caso subjudice, verifica-se que a recorrente “C…” tem a posição processual de queixosa tendo efectuado queixa crime contra o denunciado N…, descrevendo na sua queixa factos que, no seu entender integram a prática de crimes de abuso de confiança qualificado ou burla qualificada, e requereu ao tribunal que fosse decretado o arresto preventivo das contas bancárias tituladas pelo denunciado N… na Caixa Económica Montepio Geral, bem como das contas bancárias que o mesmo possa ser titular no Banco Espírito Santo, Millennium BCP, Caixa Geral de Depósitos, Banco BPI, Banco Popular e Banco Português de Negócios
Fundamenta o seu pedido de arresto preventivo, nos termos do art. 228º, nº1, do CPP, alegando no seu requerimento que é titular de um crédito sobre o requerido, bem como o justo receio de perda das garantias, designadamente porquanto o denunciado é cidadão tunisino, não tem nenhuma ligação a Portugal, sendo que o único bem que se conhece ao requerido no nosso País é a conta bancária para a qual transferiu o cheque € 150 000 provenientes da indemnização paga à requerente e na qual depositou o cheque no valor de € 375 000 sacado à sua ordem, mas destinado ao pagamento da parte remanescente da mesma indemnização, caso venha a transferir as quantias que depositou na sua conta do Montepio Geral, será impossível à requerente obter o pagamento do crédito que detém sobre o requerido.
O Código do Processo Penal prevê duas medidas de garantia patrimonial, ou seja, a caução económica (art. 227º) e o arresto preventivo (art. 228º).
Ambas as medidascaução económica e arresto preventivo - têm como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou do pagamento de qualquer dívida, indemnização ou obrigação civil derivadas do crime, sendo aplicáveis no decurso do processo pelo juiz e desde que se verifiquem os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial, e os pressupostos materiais que estão subjacentes à aplicação de tais medidas são os mesmos, isto é, desde que se verifique a probabilidade de um crédito sobre o requerido e fundado receio que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento.
Ora, por um lado, se a recorrente ao formular o pedido de arresto alega a sua qualidade de lesada, pode na fase processual própria vir a deduzir pedido de indemnização civil para ressarcimento dos eventuais prejuízos causados pela conduta do denunciado, (arts. 75º e 77º, nºs 2 e 3, do CPP), e por isso assumir a qualidade de demandante civil, e por outro, se o interesse em agir, ou seja, o interesse na revogação da decisão impugnada, não é um interesse meramente abstracto, interesse na correcção das decisões judiciais, mas um interesse em concreto, pelo efeito que se busca sobre a decisão em benefício do recorrente, aferindo-se esse interesse pelo sacrifício que a decisão para ele representa, no caso subjudice, o despacho recorrido implica sacrifício para a recorrente.
Assim sendo, temos de concluir que a queixosa "C…" tem legitimidade para recorrer da decisão impugnada, que lhe indeferiu o arresto preventivo, na medida em que está a defender um direito afectado pela decisão (art. 410º, nº1, al. d), do CPP).
3.2. Analisando, agora o objecto do recurso se o art. 228°, nº1, do CPP, restringe ou não a possibilidade de ser decretado arresto preventivo aos casos em que, tendo sido fixada caução económica, a mesma não seja prestada, apenas estabelecendo uma dispensa da prova do periculum in mora para esses casos.
3.2.1. Como é sabido as medidas de coacção são meios processuais de limitação de liberdade pessoal, e estão sujeitas aos princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade, da precariedade e, quanto à prisão preventiva da subsidiariedade (arts. 191º, nº 1, 193º, 215º e 218º, 202º e 209º, do CPP).
Com efeito, as medidas de coacção têm uma função cautelar tendo em vista assegurar os fins do processo, quer para garantir a execução da decisão final condenatória, quer para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento e como tal são limitativas da liberdade pessoal e patrimonial dos arguidos.
3.2.2. Como se disse, o CPP prevê duas medidas de garantia patrimonial, ou seja, a caução económica (art. 227º) e o arresto preventivo (art. 228º).
Ambas as medidas têm como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou do pagamento de qualquer dívida, indemnização ou obrigação civil derivadas do crime, sendo aplicáveis no decurso do processo pelo juiz e desde que se verifiquem os pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial.
A caução económica enquanto medida de garantia patrimonial, que se distingue da caução como medida de coacção, é aplicável relativamente a qualquer crime, independentemente da sua gravidade e da pena aplicável, desde que se verifique a probabilidade de um crédito sobre o requerido e fundado receio que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento.
Relativamente ao arresto preventivo, o art. 228º, nº1, do CPP, na redacção anterior à Lei nº 59/98, de 25AGO, consagrava que:
«1. Se o arguido ou o civilmente responsável não prestarem a caução económica que lhes tiver sido imposta, pode o juiz, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil».
Daí que, nos termos de tal disposição legal o arresto preventivo tinha natureza subsidiária relativamente à caução económica e por isso só podia ser decretado quando não tivesse sido prestada a caução económica anteriormente imposta, sendo revogado logo que fosse prestada a caução (art. 228º, nºs 1 e 5 do CPP), ou seja, para que fosse decretado o arresto preventivo, em primeiro lugar o requerente tinha que lançar mão da medida de caução económica nos termos do art. 227º, do CPP, e só no caso de esta ter sido fixada e não ser prestada é que o requerente podia pedir supletivamente, o arresto preventivo, em conformidade com o disposto no art. 228º, do CPP, na sua redacção inicial
3.2.3. Porém, o art. 228º, nº1, do CPP, foi alterado na revisão de 1998, por proposta do PSD (9) na especialidade, sendo a Proposta de alteração do artigo 228º (arresto preventivo) do seguinte teor:
«1. A requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial»
Tal proposta de alteração veio a ser aprovada, (10) e consequentemente passou ao texto definitivo, com a Lei nº 59/98, de 25AGO, tal como se encontra hoje prevista no art. 228º, nº1, CPP.
Assim, com a nova redacção, o facto de previamente ter sido requerida a prestação de caução só dispensa o requerente da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial. Não é um passo prévio.
Não obstante o nº5, do citado art. 228º, não ter sido simultaneamente alterado, prevendo que: «O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta», no entanto, a definição do âmbito do arresto é feita pelo n.º 1, devendo fazer-se uma interpretação do n.º 5 à luz da alteração posterior do n.º 1. Quer isto dizer que, caso tenha sido previamente imposta, o arrestado pode, prestando a caução, levar a que o arresto seja revogado. Se não tiver sido previamente imposta, pode requerer que seja fixada e, prestando-a, leva a que o arresto seja também revogado.
E compreende-se que assim seja. Com efeito, nos casos de responsabilidade meramente civil, o requerente, pode intentar a providência cautelar de arresto, desde logo e com urgência no Tribunal Cível para que os bens não se dissipem, desde que prove os respectivos fundamentos (arts. 406º, 407º e 408º, do CPC).
Se o dever de indemnizar se fundar em responsabilidade civil conexa com a criminal não fazia sentido que o lesado tivesse de praticar primeiro todos os actos para a prestação de caução económica, com a notificação do suspeito, dando-lhe a possibilidade de fazer desaparecer o que tivesse, ficando o lesado numa posição mais frágil.
Pelo exposto, face à actual redacção do art. 228º, nº1, do CPP, a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, já não tem natureza subsidiária ou supletiva relativamente á caução económica, podendo ser decretada nos termos da lei civil, a requerimento do Ministério Público ou do lesado. No caso de ter sido fixada previamente caução económica e não for prestada, o requerente do arresto fica dispensado da prova do fundado receio da perda da garantia patrimonial.
De acordo com o art. 228º, nº1, do CPP, na redacção dada pela lei nº 59/98, de 25AGO, a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo segue os termos da lei processual civil, sendo por isso aplicáveis as normas dos arts. 406º e segs., do Código do Processo Civil, pelo que a prova do fumus boni iuri e do periculum in mora é feita no arresto e não no processo criminal (art. 408º, do CPC).
Neste sentido procede o recurso
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4. DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedentes as questões prévias suscitadas pelo Exmº PGA, no seu douto Parecer, e julgar procedente o recurso interposto pela requerente “C…”, e consequentemente revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que ordene a tramitação da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, nos termos do art. 228º, nº1, do CPP, e 407º e 408º do CPC.
Sem tributação.



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1.-Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, II, 254

2.-Manuel de Andrade, in Noções de Processo Civil, pág. 81

3.-Castro Mendes, in .Lições, de Processo Civil.

4.-Manuel de Andrade in Lições de Processo Civil, 1ª ed. pág. 78

5.-Anselmo de Castro, in ob. cit., pág. 253 e Vaz Serra, in RLJ, Ano 110, pág. 160, com vista á interpretação do art. 662º, do CPC

6.-Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Ed. Verbo, 2000, pág. 326

7.-Germano Marques da Silva in ob. cit., pág. 330,

8.-Simas Santos e Leal Henriques, in ob. cit., 2000, II Vol, pág. 682

9.-Do Deputado do PSD, Antonino Antunes, in “Código de Processo Penal – volume II – Tomo II, Assembleia da República, Lisboa, 1999, p. 129 e 130

10.-A proposta de alteração do PSD foi aprovada, com votos a favor do PSD, do CDS-PP e do PCP e a abstenção do PS; (idem, p. 108).