Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5292/07.1TBCSC.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
NECESSIDADE DE CASA PARA HABITAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: É o senhorio que tem de alegar e provar factos que levam o tribunal a concluir que efectivamente necessita da casa para sua habitação.
Essa necessidade deverá ser real, séria e actual para que, justificando-se as exigências de habitação do senhorio, cesse o proteccionismo de que goza o locatário.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

 I - RELATÓRIO

Os autores E --- e C ---, intentaram acção de despejo com processo sumário contra D --- e F ---, alegando, em síntese, que são proprietários da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 3° piso, 1° andar esquerdo, composta por um fogo, com uma arrecadação com o n° 3, um piso (CV), com três divisões, uma cozinha, uma casa de banho e um vestíbulo, do prédio sito no Bairro ----, constituído em propriedade horizontal e descrito naquela Conservatória sob o n° . ….---, a qual foi dada de arrendamento aos réus.
Necessitam do mesmo para sua habitação, pois são emigrantes em F e pretendem regressar definitivamente a Portugal, uma vez que a A. é doente, está aposentada por invalidez e o seu estado de saúde exige uma regresso imediato e definitivo ao nosso país.
Terminam pedindo que seja decretada a legitimidade da denúncia do contrato de arrendamento urbano em causa, bem como a desocupação do locado.

Contestaram os réus impugnaram a factualidade constante da petição inicial, alegando ainda que os autores têm uma casa em Castelo… onde permanecem quando se deslocam a Portugal.

Os autores responderam à contestação, reiterando os termos da petição inicial, tendo os  réus arguido a inadmissibilidade de tal articulado de resposta.

Após os articulados, foi proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando os autores a apresentar nova petição inicial colmatando as deficiências de alegação referidas em tal despacho.
Apresentada nova petição inicial, foi cumprido o contraditório, tendo havido resposta por parte dos réus.

Entretanto, os réus requereram prova pericial a ser realizada pelo Instituto de Medicina Legal, relativamente ao estado de saúde da autora.
Foi proferido despacho que indeferiu a perícia pretendida pelos réus.
Não se conformando com tal despacho, dele recorreram os réus, tendo concluído pela necessidade de revogação do mesmo, por violação do disposto no artigo 578º nº 1 do  Código Civil.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e os réus absolvidos do pedido.

Não se conformando com a douta sentença, dela recorreram os autores, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª – Entre outros factos ficou provado que ambos os autores são emigrantes em F.
2ª – Também estão divorciados, apesar de ainda não terem feito a partilha dos bens do casal.
3ª – Finalmente, que a autora pretende regressar a Portugal e residir na fracção cujo despejo se pretende obter no presente contrato.
4ª – A douta sentença recorrida não deu como provada a necessidade dos autores de necessitarem de passarem a habitar a facção descrita em 1º dos factos dados como provados.
5ª – E isto devido à circunstância dos autores terem outra residência na povoação de ---, concelho de Castelo....
6ª – A circunstância de ambos os autores serem emigrantes e de a autora pretender regressar a Portugal e aqui instalar a sua habitação própria e permanente, deve ser considerada como suficiente para comprovar a necessidade de obter a restituição do locado.
7ª – Sendo tal posição jurisprudencial praticamente unânime.
8ª – Os autores têm o direito de instalar a sua residência em Portugal onde muito bem entenderem.
9ª – Outra interpretação não podendo ser retirada da alínea b) do nº 1 do artº 1102º do Código Civil.
10ª – Se o legislador quisesse que a posse de uma casa da ---, concelho de Castelo..., pudesse impedir a concretização da denúncia de um contrato de arrendamento para a habitação em Cascais, teria certamente colocado no aludido preceito, em vez da menção aos diversos concelhos, a referência ao território do continente.
11ª – Se não o fez, não pode o intérprete retirar do facto as competentes ilações.
12ª – Entendendo-se que só pode impedir a denúncia do contrato de arrendamento para a habitação de um imóvel sito em Cascais, a posse de uma casa própria na área da grande Lisboa.
13ª – E já não a de um imóvel situado na povoação de ---.
14ª – As normas do NRAU, mesmo que com uma redacção similar à usada no passado, devem ser interpretadas de uma forma actual, cumprindo o disposto no nº 1 do artº 9º do Código Civil.
15ª – A realidade do mercado do imobiliário é hoje totalmente diferente da existente há 20 anos atrás.
16ª – Havendo hoje no país e em todas as regiões, um número excessivo de imóveis devolutos à venda ou no mercado de arrendamento.
17ª – Não sendo hoje e ainda aceite que a função social de apoio ao arrendamento deva continuar a ser assegurada pelos senhorios.
18ª – Os quais têm em muitas condições menos capacidade económica do que os seus inquilinos.
19ª – Para que deva ser reconhecido a um emigrante o direito de denunciar um contrato de arrendamento para residência própria permanente, não é necessário alegar e provar a intenção do regresso.
20ª – Sendo o senhorio emigrante o mesmo tem o direito de fixar a sua residência no local que quiser.
21ª – Ficou provado que os autores não têm mais nenhuma casa na área metropolitana da grande Lisboa.
22ª – A autora tem o direito de fixar residência num local onde a doença de que padece lhe cause um menor sofrimento.
23ª – A autora tem o direito de fixa fixar residência num local onde tenha um mais fácil acesso a cuidados de saúde.
24ª – A autora tem o direito de fixar residência num local onde possa conviver e contactar com pessoas.
25ª – Os factos dados como provados relativamente à doença e ao estado de saúde da autora, bem assim os relativos aos transportes e distância para o hospital da povoação de ----, deverão determinar que se conclua que a casa que os autores ali possuem não tem condições para ali instalarem a sua residência.
26ª – A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto na alínea a) do artº 1101º e a alínea b) do nº 1 do artº 1102º, ambos do Código Civil.
27ª – Primeiro, ao não ser considerada como provada a necessidade dos autores em obter o despejo da sua casa para nela passar a residir a autora.
28ª – Depois, por ter considerado que a posse de uma casa na povoação de --- determinava a impossibilidade dos autores denunciarem o contrato para ali fixarem a sua residência.
Terminam pedindo que seja revogada a sentença e concedido provimento ao pedido dos apelantes.
A parte contrária contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

 II - FUNDAMENTAÇÃO

A - Fundamentação de facto
Mostra-se assente a seguinte factualidade:
1º - Encontra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial, mediante Apresentação n° 35, datada de 14 de Agosto de 1987, a aquisição, por compra, a favor de C ---, cc. E ---, da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 3° piso, 1° andar esquerdo, composta por um fogo, com uma arrecadação com o n° 3, um piso (CV), com três divisões, uma cozinha, uma casa de banho e um vestíbulo, do prédio sito no Bairro ---, constituído em propriedade horizontal e descrito naquela Conservatória sob o nº…- (artº 1° da petição inicial).
2º - Os AA adquiriram o imóvel aludido em 1º através de escritura pública de compra e venda outorgada em 14 de Agosto de 1987 - (artº 2° da petição inicial).
3º - Porque os AA, na época, residiam e trabalhavam em F decidiram dar de arrendamento o imóvel em questão - (artº 3° da petição inicial).
4º - Por acordo escrito datado de 16 de Dezembro de 1991, denominado "Contrato de Arrendamento de Prédio Urbano para Habitação", o A. cedeu aos RR. o uso e fruição da fracção autónoma referida em 1º, pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de Janeiro de 1992 e termo em 31 de Dezembro de 1992, sucessivamente renovado por iguais períodos, mediante o pagamento da contrapartida monetária mensal de 38 100$00, sujeita a actualização - (art. 4° da petição inicial).
5º - A referida contrapartida monetária é actualmente de € 257,60 -(artº 4° da petição inicial).
6º - Os AA contraíram matrimónio entre si no dia 9 de Novembro de 1974, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença de 26 de Junho de 2001, transitada em 11 de Setembro de 2001, proferida pelo Tribunal de Grande Instance de B…. - (artº 5° da petição inicial).
7º - A A. pretende regressar a Portugal e residir na fracção referida em 1º - (arts 6° e 7° da petição inicial).
8ª - A A. está aposentada por invalidez e padece de artrose crónica, necessitando de ser vista regularmente por um médico - (arts 18°, 19° e 21° da petição inicial).
9º - Para além do locado, os AA. apenas são proprietários em Portugal de um outro imóvel, na localidade de ---a, concelho de ---, a qual fica a mais de 30 km do hospital mais próximo e não tem transportes frequentes - (artº 20° da petição inicial);
10º - Tal imóvel é de construção antiga – (artº 20º da petição inicial).
11º - As dores que a A. sente são atenuadas com o clima do litoral português - (artº 21° da petição inicial).

B - Fundamentação de direito
 
Das conclusões dos apelantes – de que resulta delimitado o objecto do recurso, como decorre designadamente dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 4 do Código de Processo Civil – a questão central consiste em apurar, dado o circunstancialismo de facto dado como provado, se estão reunidas as condições para a concretização da denúncia do contrato de arrendamento dos autos, tendo em atenção a disciplina legal da norma complexa emergente da conjugação dos artigos 1101º e 1102º do Código Civil.

Entre os autores e os réus foi celebrado um contrato de arrendamento e os autores, na qualidade de senhorios, pretendem denunciar o contrato de arrendamento nos termos do artigos 1101º alínea a) do Código Civil, com o fundamento na necessidade do locado para habitação da autora E.
A denúncia do contrato de arrendamento é uma das formas de cessação do arrendamento previstas no artigo 1101° do CC, podendo ser efectuado, quer pelo arrendatário, quer pelo senhorio.
São casos de denúncia pelo senhorio as situações previstas no artigo 1101º do Código Civil interessando-nos considerar a alínea a) do nº 1 do citado preceito legal, que estabelece que o senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada quando houver necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1º grau.

É o senhorio que tem de alegar e provar factos que levam o tribunal a concluir que efectivamente necessita da casa para sua habitação[1] .
Essa necessidade deverá ser real, séria e actual para que, justificando-se as exigências de habitação do senhorio, cesse o proteccionismo de que goza o locatário.

Este conceito de necessidade, representa aquilo a que Pinto Furtado, chamou de "facto-conclusão "assente em dados apreensíveis pelos sentidos e ponderados segundo as regras da experiência, de acordo com as exigências normais da vida e do estado do denunciante" [2], referindo, posteriormente[3], que se trata de um "estado de carência económico-material; portanto, essencialmente um facto e, mais propriamente, um facto que não se evidencia directamente por si, mas como produto natural doutros factos (factos-meios ou instrumentais), de que é o corolário lógico - um facto-conclusão, em suma" .
A necessidade da casa como fundamento de despejo constitui excepção à regra que domina o inquilinato para habitação, devendo por isso, como já referido, ser uma necessidade real e séria que, para além de devidamente demonstrada, tem de traduzir razões ponderosas, visto que não basta aquela necessidade que roça a comodidade, e tem que simbolizar um estado actual ou pelo menos eminente[4].
Essa necessidade pode além do mais ser futura, desde que séria e comprovada e iminente[5].

Para que o senhorio possa denunciar o contrato de arrendamento para sua habitação, é necessário de acordo com o artigo 1102º nº 1, alíneas a) e b) do Código Civil:
Que seja proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos, ou, independentemente desse prazo, se o tiver adquirido por sucessão;
Que não tenha, há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respectivo concelho quanto ao resto do País, casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria.

A necessidade que integra a causa de pedir da acção, diz respeito e circunscreve a situação subjectiva trazida ao processo, por isso os requisitos do artigo 1102º, não se confundem com a causa de pedir, sendo dela autónomos.
A causa de pedir neste tipo de acção para denúncia de um contrato de arrendamento é a necessidade do prédio para habitação, e os requisitos do artigo 1102º, nº 1, alíneas a) e b), são apenas requisitos, condições da acção, ou pressupostos do exercício desse direito.

No caso dos autos, importa averiguar se os factos provados configuram uma situação de necessidade da casa arrendada para habitação, e uma vez demonstrada esta, cumpre verificar se estão preenchidos as condições de exercício do direito de denúncia--requisitos do artigo 1102º do Código Civil.

Em consonância com o que vem exposto vejamos quais os factos dados como provados, eventualmente relevantes para aferirmos da ocorrência da "necessidade" que vem consignada no artigo 1101º nº1 alª a) do Código Civil.

 Rememorando, pois, o núcleo essencial dos factos que ficaram apurados, temos que:
- A A. pretende regressar a Portugal e residir na fracção referida em 1º - (nº 7° da A- fundamentação de facto).
- A A. está aposentada por invalidez e padece de artrose crónica, necessitando de ser vista regularmente por um médico - (nº 8° da fundamentação de facto).

Com base neste acervo factual mínimo com o que se deixou dito sobre o que se devia entender como necessidade de habitação, é fácil concluir que não foi conseguida prova de modo a poder-se firmar tal juízo dedutivo.
O que os factos provados traduzem é a autora, emigrante em F, que quer voltar para Portugal e residir na casa dos autos, o que é perfeitamente compreensível.

Impondo a lei (artigo 1101º do Código Civil) o exercício do direito de denúncia para habitação por parte do senhorio por forma muito vinculada, a mera invocação de querer habitar a casa dos autos, por regresso a Portugal, nas condições apontadas, e considerar-se essa invocação como alegação suficiente para tal exercício, mais do que isso, para o sucesso de tal exercício, redundaria em perspectivar esse direito, mais como um direito potestativo, atenta a sua caracterização clássica, do que um poder vinculado, sujeito a condicionalismos estritos, o que se situaria nos antípodas da opção legal do legislador.

A este propósito dizia-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.7.92[6]: "Necessitar de um prédio é precisar dele, precisão que há-de traduzir-se na sua imprescindibilidade e que deve representar um estado de carência actual conexionado com a situação concreta existente quando o contrato de arrendamento foi celebrado.
Não sendo imediatamente apreensível a necessidade do locado para habitação a que corresponde o direito de denúncia pelo senhorio, carece de base factual que, valorada no plano legal, preencha o seu conceito técnico-jurídico."

Feita esta análise, podemos concluir que o pedido deduzido pelos autores não pode proceder; tal como foi decidido na douta sentença recorrida.
 
Terminando, para concluir:
- É o senhorio que tem de alegar e provar factos que levam o tribunal a concluir que efectivamente necessita da casa para sua habitação.
- Essa necessidade deverá ser real, séria e actual para que, justificando-se as exigências de habitação do senhorio, cesse o proteccionismo de que goza o locatário.

Julgando-se improcedente a apelação interposta pelos autores, torna-se inútil a apreciação do agravo interposto pelos réus, nos termos do artigo 710º nº 1, segunda parte do Código de Processo Civil.

III - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2010

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
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[1] Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano – Notas Práticas, Rei dos Livros, 1996, pág. 140 e 141; Ac. TRL de 21.6.1990, in CJ, 3/90, pág. 144; STJ, 7.10.1986, in  BMJ, 360-571; Ac. TRL de 27.4.1995, Cruz Broco, CJ, 2/95, pág.126; Ac. TRL de 20.6.1996,in  CJ, 3/96, pág. 124 e Ac. Tribunal Constitucional de 16.1.1996,  in DR. II, 30.4.1996, págs. 5803.
[2] Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, Almedina, 1984, pag. 449.
[3] Manual do Arrendamento, Almedina, 1996, pag. 763.
[4] Isidro de Matos, Arrendamento e Aluguer, Atlântida, 1968, pág. 243.
[5] Galvão Teles, Denúncia do Arrendamento para Habitação Própria, Parecer, CJ, 5/1983, pág. 11; Ac.do STJ, 7.10.86, Proc. n.º 073868, in www.dgsi.pt.
[6] BMJ 419º-pág. 844.