Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | DINA MONTEIRO | ||
Descritores: | ERRO DE ESCRITA LITERALIDADE LETRA RECTIFICAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/13/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | O artigo 6.º/1 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças segundo o qual “ se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por extenso e em algarismos, e houver divergência entre uma e outra, prevalece a que estiver feita por extenso”, vale para situações de ininteligibilidade, não para situações em que seja evidente o lapso da divergência em função do próprio texto exarado no título a impor, assim ,a faculdade de rectificação a que alude o artigo 249.º do Código Civil. (SC) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. RELATÓRIO ANTÓNIO e […] executados nos autos de execução para pagamento de quantia certa em que é exequente BANCO […] , deduziram oposição à execução, alegando, em síntese, que a livrança que serve de título executivo à execução não tem aptidão para os seus fins, ou seja, para a cobrança coerciva da quantia de € 54.077,53, uma vez que da mesma consta, em algarismos, a importância de € 51.423,69 e, por extenso, a importância de “cinquenta e um euros quatrocentos e vinte e três euros sessenta e nove cêntimos”, pelo que, nos termos dos arts. 6º e 77º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, a quantia que prevalece na livrança é a de “51.423.69” e de “quatrocentos e vinte e três euros e sessenta e nove cêntimos”. Terminaram pedindo que o valor da execução fosse reduzido a cinquenta e um euros, absolvendo-se do pedido na parte restante da quantia exequenda, por falta de título executivo válido. Notificada da oposição à execução, a exequente apresentou contestação alegando, em suma, que a indicação feita por extenso da quantia a satisfazer constante da livrança exequenda não se encontra feita em contradição com a indicação feita em algarismos, nem tão pouco aquela indicação foi feita por mais de uma vez, não existindo qualquer divergência ou qualquer repetição na indicação dos valores constantes da mesma, pois a forma como foi indicada por extenso a quantia em dívida pelos oponentes titulada pela livrança, revela tão só somente um erro de escrita, que apenas dá direito à sua rectificação, nos termos do art. 249º do Cód. Civil. Acresce que a quantia em dívida titulada pela livrança decorre da celebração de um contrato de abertura de crédito em Conta Corrente e respectivas Adendas que a sociedade executada, subscritora da livrança, e os executados ora oponentes, na qualidade de avalistas, assinaram, pelo que têm perfeito conhecimento das responsabilidades que assumiram, tendo os mesmos sido notificados do preenchimento da livrança através de carta registada com aviso de recepção, sendo pois manifesto que entenderam o sentido da declaração constante da livrança junto dos autos, sendo manifesto abusivo o direito que os oponentes pretendem exercer porquanto conduz a uma clamorosa ofensa da justiça por fundado numa mera formalidade desprezando toda a relação negocial e substancial estabelecida entre os devedores e o credor. Concluiu pugnado pela improcedência da oposição à execução. Proferido saneador sentença o Sr. Juiz de 1ª Instância decidiu pela improcedência da oposição à execução. Inconformados os Embargantes interpuseram recurso de Apelação no âmbito do qual apresentaram as seguintes conclusões: 1. Salvo o caso de situações de má – fé, a previsão da norma constante do art. 6º LULL pressupõe sempre a existência de um erro de escrita. 2. A Lei Uniforme sobre Letras e Livranças regulamentou expressamente estas situações de erro de escrita, uma vez que no seu art. 6º determinou que se “se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por extenso e em algarismos, e houver divergência entre uma e outra, prevalece a que estiver feita por extenso.” 3. A norma do art. 6º LULL, porque é uma norma especial, prevalece sobre a norma geral do art. 249º do CC, nas situações em que o erro de escrita que origina uma divergência entre a parte numérica e a parte extensa de uma letra ou livrança. 4. O art. 6º LULL não estabelece qualquer requisito no que respeita ao maior ou menor valor de amplitude da divergência entre a parte numérica e a parte escrita, como condição de aplicação da respectiva norma. 5. A livrança dos autos, que é o título executivo que serve de base à presente execução, atento o disposto no art.45º do CPC e no art.6º da LULL, é apta apenas para a cobrança coerciva de cinquenta e um euros. Concluem, assim, pela procedência do recurso, com a revogação da sentença proferida, proferindo-se acórdão que ordene o prosseguimento da instância executiva para cobrança da quantia de cinquenta e um euros. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. FACTOS PROVADOS 1. A sociedade Banco […] incorporou, por fusão, o Barco […] S.A. adquirindo, por esse facto, todos os direitos e obrigações da sociedade incorporada. 2. A exequente Banco […] intentou a acção executiva à qual os presentes autos se encontram apensos contra António […] munida de um documento onde se inscreve a frase "no seu vencimento pagarei/emos por esta única via de livrança ao Banco […] ou a sua ordem a importância de: cinquenta um euros quatrocentos vinte três euros sessenta nove cêntimos", com data de "emissão" de 97-0410 e de "vencimento" de 06-02-13, "importância" de 51.423,69, e a menção "titulação do contrato de conta corrente celebrado em 10.04.1997" (doc. fls. 15 dos autos de execução). 3. O documento referido em 2. encontra-se subscrito por António […] Lda. e, no seu verso, os aqui oponentes […] apuseram as respectivas assinaturas encimadas pela expressão "por aval à firma subscritora" (doc. fls. 15 dos autos de execução). 4. Foi celebrado entre o Banco […] e António […] Lda., em 10 de Abril de 1997, um acordo de denominado "Contrato de Abertura de Crédito Em Conta Corrente", cuja cópia se mostra junta a fls. 21 a 24 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual a primeira concedeu à segunda um crédito com o limite de 4.000.000$00 a ser movimentado sob a forma de conta corrente e destinado a apoio de tesouraria. 5. No documento referido em 4., consta da sua Cláusula Nona o seguinte: "As responsabilidades emergentes ou derivadas do presente contrato encontram-se tituladas pela livrança subscrita por ANTÓNIO […] LDA. e avalizada por […] a ser remetida ao Banco, mas apta para cobrir o montante da dívida e eventuais encargos, num total de 120% do valor do crédito ora concedido. & único – Pelo presente instrumento, fica o Banco desde já autorizado a proceder ao preenchimento da referida livrança pelo valor do saldo em dívida, apurada no encerramento da conta, com a data que lhe convenha e a exigir o seu pagamento no vencimento então aposto”. 6. O documento referido em 4. foi subscrito pelos ora oponentes na qualidade de avalistas. 7. Em 4.12.97 e 9.02.99 foram celebradas duas adendas ao acordo referido em 4., ambas também assinadas pelos ora oponentes, conforme resulta dos documentos juntos a fls. 25 a 32, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 8. O documento referido em 2: foi entregue à exequente para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do acordo referido em 4. 9. A exequente dirigiu aos ora oponentes, em 1 de Fevereiro de 2006, as cartas registadas com aviso de recepção cujas cópias se mostram juntas a fls. 35, 37 e 39, das quais consta, além do mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, o seguinte: “(…) Assunto: Contrato de Conta Corrente celebrado em 10/04/1997 com António […] Lda. (…) Exm°s. Senhores, (…) Assim, por incumprimento do provisionamento da conta I.O. para efeitos de débito das sucessivas prestações vencidas, comunicamos a V. Exas., que, nesta data, foi efectuado o preenchimento da livrança de caução em branco para o efeito avalizada por V. Exas. Nesta conformidade, nos termos do respectivo pacto de preenchimento constante aludido contrato, informamos que a mesma se encontra a pagamento na morada abaixo indicada com vencimento fixado para o próximo dia 13 de Fevereiro de 2006, pelo montante de € 51.423, 69 assim discriminado: Capital ....................................................................... EUR 49.879,79 Juros ………………………………………………………… EUR 1.237,30 Imp Selo…………………………………………………….. EUR 49,49 Selagem do título………………………………………. EUR 257,11 Caso o pagamento não ocorra na data de vencimento indicada, ver-nos-emos forçados a promover as diligências necessárias à cobrança coerciva do valor em dívida. (…) 10. Na data do vencimento aposta no documento referido em 2. não foi entregue à exequente qualquer quantia por força do mesmo. III. FUNDAMENTAÇÃO A única questão em apreciação neste recurso é a de saber se, face ao disposto no art. 6º da LULL e à inerente característica da literalidade dos títulos de crédito – determinação do seu conteúdo, limites e modalidade do direito, ou seja dizer-se, que só os elementos constantes do título podem servir para definir e delimitar o conteúdo de tal direito -, os mesmos são ou são susceptíveis de rectificação nos termos do art. 249º do CC o que, em termos do presente caso se reporta à conclusão quanto à aptidão, ou não, do título dado à execução para cobrar a quantia exequenda. Na situação em apreciação o Apelado apresentou como título executivo uma livrança, avalizada pelos ora Apelantes, em que consta, por algarismos, a importância de “ € 51.423,69” e, por extenso, a importância de “cinquenta e um euros quatrocentos e vinte e três euros sessenta e nove cêntimos”. Com base em tais factos, defendem os Apelantes que, face ao disposto no art. 6º da LULL o Apelado apenas tem título válido para a importância de € 51,00. Antes de mais cumpre transcrever o disposto nos arts. 6º da LULL e 249º do CC, para uma melhor compreensão da questão. O primeiro destes dispositivos tem a seguinte redacção: “Se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por extenso e em algarismos, e houver divergência entre uma e outra, prevalece a que estiver feita por extenso. Se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por mais de uma vez, quer por extenso, quer em algarismos, e houver divergências entre as diversas indicações, prevalecerá a que se achar feita em quantia inferior”. O art. 249º do CC tem a seguinte redacção: “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através de circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”. Esclarecendo, desde já, que as disposições relativas às letras se aplicam também às livranças, nos termos do art. 77º da LULL, temos de concluir que a indicação, por extenso, da quantia indicada em algarismos, no título em questão, não pode consubstanciar qualquer divergência ou desinteligência, capaz de fazer actuar o art. 6º da LULL. Com efeito, estamos apenas perante a omissão da expressão “mil”, após a indicação de “cinquenta e um” que encimeira a indicação da importância constante do título em apreciação. Esta omissão, porém, é perfeitamente compreensível no contexto, tratando-se, no fundo, de uma mera desconformidade decorrente da omissão de uma palavra que, qualquer declaratário normal, ao efectuar a leitura numérica respectiva, era capaz de compreender e perceber correctamente. Aliás, não faz qualquer sentido a leitura meramente literal efectuada pelos Apelantes, tanto mais que, sendo os mesmos avalistas do título em questão, sabiam perfeitamente do que se tratava e a que correspondia aquela mesma importância. Se atentarmos no título em apreciação, não podemos dizer que as duas expressões em referência sejam incompatíveis ou gerem confusão entre si, antes são perfeitamente perceptíveis no respectivo contexto. E, muito embora não possa ser discutida, nesta sede, as relações mediatas subjacentes a tal título, às mesmas se fará referência apenas para aquilatar do comportamento processual dos Apelantes e à sua falta de razão no presente recurso. Assim, tendo os ora Apelantes subscrito um contrato de abertura de crédito em conta corrente, e respectivas Adendas ao mesmo, sempre na qualidade de avalistas da empresa subscritora da livrança, sabiam perfeitamente que eram responsáveis pelo cumprimento das importâncias ali indicadas. Tendo ocorrido uma situação que determinou o preenchimento do título em referência, foram os mesmos notificados por carta registada, em que foi expressamente mencionado os valores que compunham a importância que veio a ser inscrita no título dado à execução, valores esses que não foram objecto de contestação, pelo que, nos termos do art. 236º do CC – respeitante ao sentido normal da declaração negocial -, os Apelantes sabiam que o valor inscrito na livrança era o valor correspondente às responsabilidades que assumiram. Tentarem fazer-se valer da omissão de uma palavra na indicação, por extenso, daquele título, omissão essa perfeitamente suprível no contexto, é um comportamento que merece um juízo de censura processual pelo menos no que se refere ao cuidado com que as questões devem ser tratadas em Tribunal por todos os intervenientes judiciários. Por fim, sempre se dirá, que o ordenamento jurídico não pode ser desenhado apenas por normas especiais, por um lado, e normas gerais, por outro, sem qualquer elo de ligação entre si, dicotomia esta levada a cabo pelos Apelantes como se o sistema jurídico não fosse uno e compatível no preenchimento dos espaços comuns, como o deve ser no caso da interpretação e integração das normas jurídicas, paradigma este que processualmente é reforçado pelos princípios de economia processual e justa composição dos litígios constantes do art. 266º do CPC (neste sentido, sempre se poderá consultar, entre outros, FERNANDO OLAVO, Direito Comercial, vol. II, 2ª edª., PÁG.S 26/27) Concluindo, entende-se que no presente caso não há lugar à aplicação do disposto no art. 6º da LULL, vocacionado para situações de ininteligibilidade e não para as situações de interpretação decorrentes de lapsos evidentes face ao contexto da declaração, que devem ser supridas por recurso ao disposto no art. 249º do CC. IV. DECISÃO Face ao exposto, julga-se improcedente a Apelação, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância. Custas pelos Apelantes Lisboa, 13 de Dezembro de 2007 Dina Maria Monteiro Luís Espírito Santo Isabel Salgado |