Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS | ||
Descritores: | GARANTIA BANCÁRIA EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS INTERPRETAÇÃO TÍTULO EXECUTIVO PRESCRIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/02/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | 1º - As garantias bancárias, normalmente, contêm uma cláusula de pagamento à primeira solicitação do beneficiário e que representa, para o seu beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor; 2º - Não existindo tal cláusula, há que interpretar o contrato de garantia no sentido de se apurar a vontade das partes: fiança ou garantia autónoma; 3º - Na economia do Decreto-Lei nº 48 871, de 19 de Fevereiro de 1969, a garantia aí prevista no art.º 99º nº 1, reveste a natureza de garantia autónoma, surgindo para garantir o cumprimento de um contrato de empreitada de obras públicas ( o que significa que, ao menos num caso muito especial tal figura negocial é directamente admitida no nosso direito positivo); 4º - A garantia bancária é título executivo previsto na alínea c) do artigo 46º do C.P.Civil; 5º - Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal; 6º - Ao contrário do fiador, o garante não pode utilizar os meios de defesa do devedor. Faz parte da própria essência deste instituto a inoponibilidade das excepções que aproveitariam ao devedor principal. O garante só pode recusar-se a pagar a garantia logo que solicitada, se possuir provas inequívocas de abuso evidente ou de fraude manifesta do beneficiário; 7º - Estando o embargado em condições de accionar a garantia bancária em 1981 e tendo a execução sido instaurada em 6 de Março de 2003, decorreu o prazo ordinário de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, o que acarreta a prescrição do direito do embargado. (ISM) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa I - RELATÓRIO Banco […] SA, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que, com processo ordinário, lhe move o Instituto […] para haver daquele o pagamento de € 26.631,71, servindo de títulos executivos duas garantias bancárias, deduziu embargos de executado pedindo que se julgue extinta a execução. Em síntese, alegou que o direito do exequente prescreveu, pois as garantias foram prestadas em 13 de Outubro de 1977 e 14 de Dezembro de 1979 e a execução foi instaurada a 6 de Março de 2003. O exequente não tem legitimidade para reclamar o valor da referida garantia, por esta ter sido prestada à Comissão de Alojamento de Refugiados. As garantias não são títulos executivos por não constituíram garantias bancárias autónomas e muito menos à primeira interpelação, sendo antes verdadeiras fianças, como se infere no seu texto. As respectivas obrigações são indeterminadas e o embargante está impossibilitado de se sub-rogar. O embargado contestou pedindo a improcedência dos embargos, alegando, em resumo, que o prazo da prescrição só começou a correr a partir da data em que exigiu a quantia garantida ao executado, ou seja, em 30 de Outubro de 2002. O embargado é parte legítima por os programas habitacionais desenvolvidos pela CAR terem sido integrados no âmbito das actividades do FFH pela Resolução n° 99/78 do Conselho de Ministros. As garantias bancárias em causa são autónomas e à primeira interpelação. Só depois de cumprir a sua obrigação de garante é que o embargante poderá discutir qualquer pressuposto. Foi proferida sentença que julgou as partes legítimas e improcedentes os embargos. Não se conformando com a sentença, dela recorreu o embargante, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: 1ª - A sentença recorrida considera provados factos alegados nos artigos 11° a 21° do requerimento inicial de execução que o ora apelante impugnou no artigo 31° da sua petição inicial de embargos; 2ª - Tais factos nunca poderiam ter sido considerados provados, cabendo ao embargado o ónus de os provar, nos termos do disposto no artigo 342° nº 1do Código Civil; 3ª - Nos termos do disposto no artigo 815° n°1 do CPC, o embargante pode alegar, além dos fundamentos especificados no artigo 813°, todos aqueles que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração, direito que o embargante exerceu, nomeadamente impugnando a matéria de factos atrás referida; 4ª - Considerando provada tal matéria, a sentença em apreço violou o princípio do contraditório consagrado no n° 3 do artigo 3° do CPC, bem assim o princípio da igualdade das partes estabelecido no artigo 3°-A do mesmo Código; 5ª - Os eventuais direitos que pudessem assistir ao apelado, emergentes das garantias dos autos, mostram-se prescritos. 6ª - Começando a prescrição a correr quando o direito puder ser exercido (artigo 306° n°1 do CC), no caso dos autos foi pelo apelante alegado que o início do prazo prescricional teve lugar em 1982, ou seja, 4 anos após a data de adjudicação da empreitada, a qual teve necessariamente lugar antes de 1978; 7ª - Com efeito, é o próprio embargado a afirmar que a paralisação da empreitada ocorreu 4 anos depois da adjudicação (artigo 10° do r.i.), e é o próprio embargado a comprovar que a adjudicação teve lugar necessariamente antes de 1978 (artigo 4° do r.i. e documento 4 com este junto); 8ª - E é a partir da paralisação da empreitada, com levantamento da obra pelo empreiteiro do equipamento e dos trabalhadores, que se tem de contar o prazo prescricional, por ser esse o momento a partir do qual o direito podia ser exercido; 9ª - As garantias dadas à execução não constituem títulos executivos, por se tratar de fianças e não de garantias bancárias autónomas e por a determinação do valor das obrigações pecuniárias dela emergentes não depender de simples operações aritméticas(artigos 46°, alínea c) e 805° do CPC); 10ª - Do próprio texto das garantias resulta a necessidade de alegação e prova do incumprimento do empreiteiro, ou seja, de obrigação de outrem que não do garante, o que é comprovado pelo próprio articulado do apelado, ao longo do qual este se esforça por alegar e provar o incumprimento do empreiteiro e justificar os valores em dívida; 11ª - Nas garantias dos autos apenas se mostra exarado o valor limite até ao qual podem ser executadas, sendo necessário ao beneficiário, como no caso bem o entendeu o exequente, alegar e provar factos susceptíveis de justificar a dívida e o respectivo valor, o que não passa por simples operações aritméticas; 12ª - Do texto das garantias não consta a obrigação de o Banco pagar à primeira interpelação, nem que é vedado ao garante opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, além dos seus; 13ª - Mas ainda que se estivesse em presença de títulos executivos, o que não se concede, sempre seria lícito ao apelante impugnar, como fez, os factos constitutivos da dívida, o que integra o fundamento da inexigibilidade da obrigação exequenda, a ser apreciado e decidido nos embargos, pelo que estes teriam sempre de prosseguir para prova dos factos controvertidos; 14ª - A decisão de improcedência dos embargos ofende frontalmente o princípio do contraditório e da igualdade das partes, já antes invocados; 15ª - O segmento da decisão no qual se contém a asserção de que o disposto no artigo 653° do CC se não aplica à garantia autónoma não vem fundamentado, violando o estabelecido no artigo 158° do CPC; 16ª - Assistindo ao Banco garante o direito de regresso contra o ordenante em caso de execução da garantia, deixou de o poder fazer valer por força do tempo decorrido e da conduta do I.[…], que impossibilitou Banco de se subrogar nos seus direitos sobre o devedor; 17ª - Impossibilidade que resultou directamente do facto de IGAPHE não ter atempadamente reclamado o crédito, só o tendo feito mais de 15 anos depois da sentença de decretação da falência do empreiteiro; 18ª - Nos termos do artigo 653° do CC assistia ao Banco garante a faculdade de se exonerar das obrigações emergentes das garantias; l9ª - Desoneração essa a que o Banco procedeu através da sua carta de 19/11/2002, que operou por força do citado normativo legal. Termina pedindo que seja revogada a sentença recorrida, julgando-se no sentido da procedência das excepções e dos embargos. A parte contrária pugna pela manutenção da decisão recorrida. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO A- Fundamentação de facto A primeira instância considerou assente a seguinte matéria de facto: 1º - Banco […], a quem o executado/embargante sucedeu, prestou a favor da Comissão de Alojamento de Refugiados, do Ministério da Habitação, Urbanismo e Construção, cujos programas foram integrados no Fundo de Fomento da Habitação, a quem o exequente/embargado sucedeu, as garantias n°s PL-24 310, de 13 de Outubro de 1977, no valor de 5.248.474$00, e PL-30 241, de 14 de Dezembro de 1979, no valor de 90 704$50, “responsabilizando-se por fazer a entrega de quaisquer importâncias, dentro dos indicados montantes, que se tornassem necessárias se J. […] SARL faltasse ao cumprimento das suas obrigações ou com elas não entrasse em devido tempo, com referência ao contrato de empreitada de «Conjunto de 150 casas pré fabricadas (3° contrato)”, homologado por despacho do Primeiro-ministro de 3 de Novembro de 1978, nos termos melhor documentados a fls. 16 e 17 da acção executiva. 2º - Quatro anos após a adjudicação da empreitada, as obras encontravam-se paralisadas, tendo o empreiteiro levantado da obra o seu equipamento e trabalhadores. 3º - Estando apenas concluídos 104 dos 150 fogos previstos. 4º - Um grande número destes 104 fogos apresentava defeitos de construção, especialmente quanto a acabamentos, pinturas e faltas de equipamentos. 5º - Cerca de 46 fogos não estavam terminados. 6º - Mediante autorização de 10 de Abril de 1984 do M.E.S, a exequente procedeu à rescisão do contrato, o que foi notificado ao empreiteiro. 7º - Em seguida, a exequente procedeu à liquidação da obra do que resultou um crédito a seu favor no montante de 16 645 936$00. 8º - O exequente exigiu o pagamento ao empreiteiro, o que este recusou. 9º - Perante o definitivo incumprimento do empreiteiro, o exequente, por carta de 30 de Outubro de 2002, solicitou ao executado o pagamento das garantias, no montante global de 26 631, 71 euros, o que o executado recusou. 10º - A execução foi instaurada a 6 de Março de 2003. B- Fundamentação de direito A questão objecto do recurso, cujo âmbito está delimitado pelo teor das conclusões que o apelante formulou, consiste em qualificar os documentos transcritos como títulos executivos, o que passa por saber se eles tem essa aptidão e, além disso, em qualificar o negócio jurídico que contemplam, mormente se se tratam de garantias bancárias ou de fianças. Importa também saber se os direitos do apelado emergentes das garantias se mostram prescritos e se a obrigação exequenda é ou não exequível. Garantia bancária ou fiança? A qualificação dos documentos que serviram de base à execução numa ou noutra categoria vai determinar se os mesmos constituem ou não título executivo. Na verdade, se os documentos em que foram prestadas as garantias apresentarem o carácter acessório da fiança, não constituem título executivo contra o banco embargante e ora apelante. Se se considerar que os mesmos constituem uma garantia bancária à primeira solicitação, são títulos executivos previstos na alínea c) do art.º 46º do Código de Processo Civil. Vejamos. A garantia bancária é um contrato inominado admitido no nosso sistema jurídico ao abrigo do princípio da liberdade contratual ( art.º 405º do CC). O Prof. Galvão Teles define-o “ como a garantia pela qual o Banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato ( o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato “ (1). As garantias constantes dos documentos que serviram de base à execução constantes de fls. 83 e 84 foram prestadas por força do estatuído no Decreto-Lei nº 48.871, de 19 de Fevereiro de 1969 (2), ou seja, surgiram para garantir o cumprimento do contrato de empreitada celebrado entre a embargada e a sociedade empreiteira J. […]SARL De acordo com aquele diploma legal, o adjudicatário garantirá por caução definitiva o exacto e pontual cumprimento das obrigações que assume com a celebração do contrato da empreitada – art.º 97º, sendo a caução prestada por depósito de dinheiro ou títulos ou mediante garantia bancária, pela forma prescrita para a caução provisória – art.º 99º. O concorrente que pretender prestar caução bancária apresentará documento pelo qual um estabelecimento bancário legalmente autorizado garanta a entrega da importância da caução logo que o dono da obra, nos termos legais e contratuais, a exija – art.º 65º. Dada a função da caução – garantir o cumprimento do contrato ponto por ponto e nos prazos estabelecidos – o dono da obra poderá recorrer à caução, independentemente de decisão judicial, nos casos em que o empreiteiro não pague ou não cumpra obrigações legais ou contratuais líquidas e certas– art.º 97º nº 2. Voltando à questão inicial. No caso concreto existe uma simples fiança ou um contrato realmente autónomo, em face da relação obrigacional? É um problema a resolver em sede de interpretação da vontade das partes, atentas as circunstâncias da situação concreta e os usos comerciais, se os houver, sendo certo que não haverá lugar a interpretação da vontade das partes quando o banco se compromete a pagar “ à primeira interpelação”- “on first demand”.(3) As garantias bancárias, normalmente, contêm uma cláusula de pagamento à primeira solicitação do beneficiário e que representa, para o seu beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor. No caso das garantias a que se referem os autos tal cláusula não existe, havendo, pois, que interpretar o contrato de garantia no sentido de se apurar qual a vontade das partes: fiança ou garantia autónoma. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – art.º 236º nº 1 do Código Civil. Na interpretação da declaração de vontade das partes serão atendíveis todas as circunstâncias do caso concreto, todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.(4) O declaratário, devendo proceder de boa fé, é obrigado a investigar, tendo em consideração todas as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe.(5) O declaratário normal, instruído, diligente e sagaz na posição do exequente/embargado, entenderia a declaração de vontade do banco embargante inserta nos documentos de fls. 83 e 84, no sentido de o banco assumir perante o embargado o compromisso que a sociedade empreiteira J.[…]SARL executaria correctamente as suas obrigações, compromisso este que transitaria para o da execução de uma obrigação de pagar, logo que a embargada invoque a má execução do contrato. O banco podia ou devia contar com o sentido dado pelo declaratário normal ( art.º 236º nº 1, 2ª parte do Código Civil), colocado na posição do embargado, na medida em que sabia que a garantia bancária veio a ser-lhe solicitada por uma sociedade empreiteira que, mercê do contrato de empreitada de obras públicas, estava obrigada a prestar caução a favor do dono da obra. Por outro lado, o embargante, ao prestar a garantia bancária sabia não estar a assumir a obrigação de cumprir as obrigações contratuais da mencionada sociedade empreiteira. Por outro lado, o sentido dado pelo declaratário normal deverá achar-se expresso, embora só de maneira incompleta ou imperfeita nos próprios termos da declaração formalizada no próprio documento ( art.º 238º nº 1 do Código Civil). Neste último caso, pelos próprios termos das declarações expressas nos documentos de fls. 83 e 84 inculcam a ideia de o banco embargante estar a assumir uma obrigação própria, ou seja, uma obrigação independente da do empreiteiro. Sendo assim, e transcrevendo aqui o que foi escrito do douto acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 1993, (6) as garantias prestadas pelo banco embargante configuram-se, em concreto, como substitutivo de um depósito de dinheiro ou de títulos ( art.º 99º nº 1 do Decreto-Lei nº 48 871). Ora, e como pertinentemente observa Galvão Teles (7), historicamente a garantia bancária visou precisamente substituir o depósito de dinheiro ou de outros valores nas mãos do credor ( art.º 623º do Código Civil ), superando-se, por essa via, os inconvenientes da imobilização, porventura por grandes períodos, de significativas massas monetárias. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 9.1.96 (8) . Assenta-se, pois, e em definitivo que, na economia do Decreto-Lei nº 48 871, a garantia aí prevista no art.º 99º nº 1, reveste a natureza de garantia autónoma ( o que significa que, ao menos num caso muito especial, tal figura negocial é directamente admitida no nosso direito positivo). Conclui-se, pois, que a garantia prestada pelo banco embargante a favor do embargado reveste a natureza de garantia autónoma, agindo ele e o embargado com intenção de celebrarem um contrato dessa espécie. Ao contrário da fiança, aquela garantia, que inclui necessariamente a cláusula de pagamento à primeira solicitação, é autónoma e independente da obrigação garantida, não lhe sendo, pois, de aplicar por analogia as normas que dispõem para a fiança, designadamente a do artigo 653º do Código Civil. Sendo assim, isto é, sendo a garantia autónoma, os títulos apresentados revestem a natureza de títulos executivos, nos termos do artigo 46º alínea c) do Código de Processo Civil. A garantia bancária “ on first demand” é título executivo contra o banco garante. Por força do contrato de garantia bancária existente, o banco terá de honrar o compromisso assumido, cumprindo a obrigação de pagar a que se obrigou, como garante do incumprimento do devedor (9). Também José Patrício, entende que a garantia bancária é “exequível mediante simples, motivada ou potestativa comunicação, pelo beneficiário, do incumprimento da obrigação (principal) do mandante”(10). O documento particular que constitui a garantia bancária constitui título executivo, não podendo o banco garante opor ao beneficiário as excepções resultantes do contrato-base (11). A prescrição Importa agora resolver a segunda questão vertida nas conclusões, qual seja a de saber se os direitos do apelado emergentes das garantias se mostram prescritos. Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal (12). Ao contrário do fiador, o garante não pode utilizar os meios de defesa do devedor. Faz parte da própria essência deste instituto a inoponibilidade das excepções que aproveitariam ao devedor principal. O garante só pode recusar-se a pagar a garantia logo que solicitada, se possuir provas inequívocas de abuso evidente ou de fraude manifesta do beneficiário (13). Os casos em que os bancos se podem opor à execução de uma garantia autónoma, são muito reduzidos e tendem a uma certa tipificação doutrinal. a) Excepções literais Estas excepções não derivam do contrato base mas do texto da própria garantia e poderão decorrer: - da falta de apresentação, pelo beneficiário, de uma declaração expressa constante do texto da garantia; - da falta de indicação, pelo beneficiário, dos fundamentos que determinam a execução da garantia, quando a indicação desses fundamentos era exigida pelo texto da garantia; - da falta de apresentação, por parte do beneficiário, de documento exigido pelo texto da garantia e que constitua condição " sine qua non" da respectiva execução. b) Fraude Mesmo na hipótese de garantias bancárias à primeira solicitação, o banco pode recusar a sua efectivação sempre que tenha conhecimento de fraude, de má-fé evidente ou da violação de normas injuntivas que possam ser consideradas de ordem pública. c) Excepção do cumprimento da relação principal O Banco pode recusar-se a pagar sempre que tenha prova irrefutável de que o contrato base foi cumprido. Essa prova existirá quando o banco esteja na posse de declaração emitida pelo próprio beneficiário atestando o cumprimento da obrigação, sempre que tal cumprimento seja certificado por terceiro imparcial ou por peritos judiciais, ou quando os elementos ao dispor do banco possam presumir com toda a segurança esse cumprimento. Esta excepção não tem sido admitida quando os elementos ao dispor do banco não comprovem o cumprimento de todas as fases do contrato, quando o beneficiário não esteja ao correr desse cumprimento, ou quando o cumprimento, ainda que evidenciado, seja objecto de litígio entre as partes. d) Excepção da resolução por facto não imputável ao devedor Neste grupo de causas a jurisprudência é mais restritiva do que perante a hipótese de cumprimento da obrigação principal. Para além das dificuldades derivadas da existência de uma prova irrefutável, põem-se, ainda, os problemas substantivos inerentes à delicadeza do caso fortuito, da força maior ou da alteração das circunstâncias. Acresce a tudo isso, a necessidade de lidar com a distribuição do risco. e) Excepção de incumprimento do beneficiário Os Tribunais têm admitido esta excepção quando haja claro incumprimento do beneficiário, quando o beneficiário declare que não está em condições de cumprir, quando o beneficiário modifique unilateralmente os termos do contrato ou não acate regras fiscais locais (14). No caso dos autos o banco embargante não invocou nenhuma das excepções acima enunciadas, mas apenas a prescrição, enquanto excepção peremptória, dos direitos do apelado emergentes das garantias que prestou. Argumentou que, tendo a paralisação da empreitada ocorrido, segundo alega o próprio embargado, 4 anos depois da adjudicação da empreitada ( art.º 10º do requerimento executivo), ou seja, em 1981, é a partir dessa data que se tem de contar o prazo prescricional, por ser esse o momento a partir do qual o direito podia ser exercido. E, de acordo com os seus argumentos, bem desenhados nos artigos 1º a 8º da petição de embargos, sendo de 20 anos o prazo da prescrição ( art.º 309º do Código Civil) e tendo a execução sido instaurada em 6 de Março de 20003, há muito que decorreu o prazo de prescrição, pois a sociedade empreiteira faltou ao cumprimento das suas obrigações em 1982. Será assim? A prescrição é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei e que varia conforme os casos. O fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna ( o titular) indigno de protecção jurídica(15). Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis, ou que a lei não declare isentos de prescrição – art.º 298º nº 1 do Código Civil. Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – art.º 304º nº 1. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido – art.º 306º nº 1. Ou seja, conta-se desde o momento em que a obrigação se tornou exigível; dito de outra forma, o início da prescrição só pode ter lugar quando o direito está em condições de o seu titular poder exercitá-lo. Conforme consta dos factos provados, as obras paralisaram quatro anos após a adjudicação da empreitada, tendo o empreiteiro levantado da obra o seu equipamento e trabalhadores. Circunstância esta que, contrariamente ao que consta da sentença, foi alegada pelo embargante que a remeteu para o artigo 10º do requerimento executivo ( cf. artºs 1º a 8º da petição de embargos, maxime art.º 7º). De acordo com o próprio texto das garantias, o banco responsabilizou-se “ por fazer a entrega de quaisquer garantias que se mostrem necessárias se a referida firma faltar ao cumprimento das suas obrigações ou com elas não entrar em devido tempo”. Sendo assim, quando as obras paralisaram e a empreiteira levantou da obra o seu equipamento e trabalhadores, o que ocorreu em 1981, o embargado passou a estar em condições de exercitar o seu direito a accionar a garantia bancária perante o embargante. Não se compreende que o embargado, um instituto público, titular do direito, não querendo abdicar dele, descurou o seu exercício ou efectivação durante 22 anos. A execução foi instaurada em 6 de Março de 2003 e o executado, ora embargante só foi citado em 21 de Março de 2003 ( cf. fls. 99). Sendo assim, decorreu o prazo ordinário de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil. Terminando, para concluir: 1º - As garantias bancárias, normalmente, contêm uma cláusula de pagamento à primeira solicitação do beneficiário e que representa, para o seu beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor; 2º - Não existindo tal cláusula, há que interpretar o contrato de garantia no sentido de se apurar a vontade das partes: fiança ou garantia autónoma; 3º - Na economia do Decreto-Lei nº 48 871, de 19 de Fevereiro de 1969, a garantia aí prevista no art.º 99º nº 1, reveste a natureza de garantia autónoma, surgindo para garantir o cumprimento de um contrato de empreitada de obras públicas ( o que significa que, ao menos num caso muito especial tal figura negocial é directamente admitida no nosso direito positivo); 4º - A garantia bancária é título executivo previsto na alínea c) do artigo 46º do C.P.Civil; 5º - Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal; 6º - Ao contrário do fiador, o garante não pode utilizar os meios de defesa do devedor. Faz parte da própria essência deste instituto a inoponibilidade das excepções que aproveitariam ao devedor principal. O garante só pode recusar-se a pagar a garantia logo que solicitada, se possuir provas inequívocas de abuso evidente ou de fraude manifesta do beneficiário; 7º - Estando o embargado em condições de accionar a garantia bancária em 1981 e tendo a execução sido instaurada em 6 de Março de 2003, decorreu o prazo ordinário de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, o que acarreta a prescrição do direito do embargado. Por estas razões, merece proceder a excepção de prescrição invocada pelo embargante. Tanto basta para que se torne inútil a apreciação dos restantes argumentos vertidos nas conclusões. III - DECISÃO Pelo exposto, julgando-se procedente a apelação, julga-se procedente a excepção de prescrição e, consequentemente, procedentes os embargos, com a extinção da execução. Sem custas, por delas estar isento o apelado, nos termos do artigo 2º nº 1 alª a) do Código das Custas Judiciais. Lisboa, 02 de Junho de 2005 Ilídio Sacarrão Martins Teresa Prazeres Pais Pires do Rio ________________________________ (1).-O Direito, Ano 120º, III e IV, págs. 283 e segs. (2).-Diploma vigente à data da celebração das garantias bancárias em causa. (3).-Ferrer Correia, Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancária, in Revista de Direito e Economia, Ano VIII, 1982, págs. 250 e 251. (4).-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pág. 421. (5).-RLJ, Ano 104º-pág. 63. (6).-BMJ 423º- 491. (7).-Ob cit pág. 281. (8).-BMJ 453º- 428. (9).-Francisco Cortez, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, Julho 1992, págs. 503-610. (10).-Preliminares sobre a Garantia On First Demand”, ROA, ano 43, Dez. 1983 (11).-Ac. RP de 2.11.2000, in CJ 5/2000, pág. 177. (12).-Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 1988, pág. 609. (13).-“Garantias Bancárias –o contrato de garantia à primeira solicitação” – Parecer de Almeida Costa e Pinto Monteiro, in CJ 5/86, pág. 26. (14).-Manuel Castelo Branco, Garantia Bancária Autónoma, in ROA., Ano 53, 1993, Tomo I, pág.79 a 81. (15).-Manuel de Andrade, “ Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 3ª edição, 1972, pág. 445-446. |