Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
619/18.3T8AMD.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: CASAMENTO
ANULAÇÃO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O casamento civil e o casamento católico posterior com o cônjuge coexistem, contrariamente ao que acontecia à luz do Código do Registo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº 41967, de 22.11.1958, em que o casamento civil era “consumido” ou “absorvido” pelo casamento católico posterior.

2. Sendo invocada a existência de casamento anterior não registado e pedida a anulação do casamento civil posteriormente celebrado, é competente para conhecer da acção o respectivo juízo de família.


SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 26.03.2018, A. intentou no Juízo de Família e Menores da Amadora a presente acção declarativa de anulação de casamento, contra B. pedindo que: 1.- seja declarado anulado o segundo casamento celebrado pela Requerida em Portugal, porquanto o matrimónio foi realizado sem dissolução do primeiro casamento contraído entre a Requerida e o Requerente o que consubstancia um impedimento dirimente, nos termos do artigo 1601º do Código Civil; 2.- seja cancelado o registo do segundo casamento contraído entre a Requerida e MS. em Portugal, nos termos do artigo 91º, nº 1 alínea b) do Código do Registo Civil; seja o casamento celebrado entre o Requerente e a Requerida, em Barcelona, transcrito para a ordem jurídica portuguesa.

A fundamentar o peticionado, alega, em síntese:
No dia 1 de Fevereiro de 2006, foi celebrado casamento Islâmico entre o Requerido e a Requerida, em centro Islâmico sito na Av. Meridiana, 326, 1º 5º, em Barcelona, o qual, em 3 de Janeiro de 2007, foi inscrito no Registo Civil de Barcelona.

Ambos habitavam na mesma casa, partilhavam as suas vidas, dormiam na mesma cama, tinham relações sexuais, tinham a mesma economia familiar.

A Requerida, que regressou a Portugal em 2012, em 22 de Dezembro de 2014, casou, neste país, com MS, como consta do seu Assento de Nascimento, que junta.

Nos termos do disposto no artigo 1601º do Código Civil, é impedimento dirimente absoluto, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra, o casamento anterior não dissolvido, católico ou civil, ainda que o respectivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil.

Citada, a R. apresentou requerimento alegando que é verdade o alegado pelo A., pugnando pela invalidade do segundo casamento.
Em 19.11.2018, foi proferido o seguinte despacho: “A. veio instaurar a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B., pedindo que se anule o segundo casamento contraído pela R. com MS. em Portugal, que se cancele o registo do mesmo e que se transcreva o casamento celebrado entre o A. e a R. em Barcelona para a ordem jurídica portuguesa. Para tanto alega em síntese que as partes celebraram entre si casamento islâmico em Barcelona em 2006, o qual foi inscrito no Registo Civil de Barcelona, que nunca houve ruptura ou dissolução deste casamento, que em 2014 a R. casou em Portugal com MS. e que tal casamento é anulável nos termos dos artigos 1601º, 1631º e 1632º do C. Civil em virtude de existir um casamento anterior não dissolvido, verificando-se um impedimento dirimente. Regularmente citada, a R. não apresentou contestação, tendo apenas apresentado um requerimento em que afirma não ter noção que o casamento islâmico celebrado entre ela e o A. tinha efeitos no ordenamento jurídico português. Como resulta do assento de nascimento da R. de fls. 50 e do assento de casamento da mesma de fls. 53, está provado que a R. casou civilmente com MS. em 22 de Dezembro de 2014 na Conservatória do Registo Civil de Pombal e que a R. casou catolicamente com o seu cônjuge MS. em 18 de Julho de 2015 na freguesia de Campolide, concelho de Lisboa. Ou seja, a R. e o seu cônjuge MS. estão casados catolicamente um com o outro e é este o casamento que o A. pretende ver anulado. Em sede de competência material deste Tribunal, o artigo 122º/1, al. d), da Lei 62/2013 de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) dispõe que compete aos Juízos de Família e Menores preparar e julgar acções de anulação do casamento civil. Posto isto, não cabe na competência especializada deste Juízo de Família e Menores a tramitação da presente acção de anulação de um casamento católico. E compreende-se que assim seja dado que a anulação do casamento católico é da exclusiva competência dos Tribunais Eclesiásticos (artigo 1625º do C. Civil). Consequentemente, não sendo este Tribunal materialmente competente para anular o casamento católico que a R. contraiu com um terceiro, também não é competente para apreciar os outros pedidos deduzidos pelo A. na sequência daquele e tendentes ao cancelamento do registo desse casamento no Registo Civil e à transcrição do casamento celebrado entre as partes em Espanha para a ordem jurídica portuguesa, não cabendo nenhum destes pedidos na competência material deste Juízo de Família e Menores, tal como definida no citado artigo 122º da LOSJ no que toca ao estado civil das pessoas e família. A incompetência absoluta em razão da matéria é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso e importa o indeferimento liminar da petição inicial ou a absolvição do R. da instância (artigos 96º, al. a), 97º, 99º/1, 576º/1 e 2, 577º, al. a), e 578º do CPC). Pelo exposto, declaro este Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer desta acção e, em consequência, absolvo a R. da instância. …”.

Não se conformando com o teor da decisão, apelou o A., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. Os Pedidos do A. partem do pressuposto da celebração de dois casamentos civis contraídos sucessivamente pela R. com duas pessoas diferentes: o primeiro com o A., celebrado e transcrito e tornado público pelo respectivo registo na Conservatória dos Registos Civis de Barcelona, em Janeiro de 2007; o segundo contraído indevidamente pela R. e terceiro, MS. e registado na Conservatória em Portugal, em 18 de Dezembro de 2014.
2. Existiu também um casamento Católico, celebrado entre a R. e MS., em 26 de Julho de 2015 e averbado àquele casamento civil.
3. Porém o pedido de anulabilidade do A. incide sobre o prévio casamento civil celebrado entre a R. e MS., pois foi este que tornou público ter sido celebrado indevidamente um casamento civil entre a R. e terceiro, desrespeitando o primitivo casamento contraído entre o A. e a R.; e porque não é líquido, como parece poder depreender-se das conclusões do tribunal a quo, que apenas tenha sido celebrado entre a R. e terceiro, um casamento católico, fazendo depender da anulabilidade deste casamento a anulabilidade do casamento civil prévio havido entre os nubentes.
4. De facto houve dois casamentos celebrados entre a R. e terceiro, um civil, outro católico; mas a hipótese de anulabilidade que determinou o pedido do A. foi reportada ao casamento civil que se celebrou entre aqueles muito antes do casamento católico, pois foi esse que desrespeitou o impedimento do casamento primitivo da R.
5. Por outro lado, o averbamento do casamento católico sobre esse casamento não determina que os nubentes apenas tenham realizado o casamento católico sobre cuja anulabilidade proceda automaticamente a anulação do casamento civil prévio. Motivo pelo qual se deve reportar o pedido do A. sobre a possibilidade de anulação deste casamento e não do católico, torna legítima ser atendida a pretensão do A. acerca da competência do tribunal de família demandado.
Termina pedindo o provimento do recurso, devendo “ser atendida a pretensão do A. e também a pretensão manifestada pela Requerida em requerimentos juntos aos autos”.

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC), a única questão a decidir é se o tribunal de família é ou não competente para tramitar e conhecer da presente acção.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante é a já supra referida no relatório, bem como a que consta dada como provada no despacho recorrido:
1- A R. casou civilmente com MS. em 22 de Dezembro de 2014 na Conservatória do Registo Civil de Pombal;
2- A R. casou catolicamente com o seu cônjuge MS. em 18 de Julho de 2015 na freguesia de Campolide, concelho de Lisboa.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme dispõe o art. 211º, nº 1 da Constituição.

Este princípio constitucional tem tradução na norma geral sobre a competência material dos tribunais judiciais, que consta do art. 40º, nº 1 da LOSJ aprovada pela L. nº 62/2013 de 26.08 – “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” -, e, também, com redacção idêntica, do art. 64º do CPC.

A competência do tribunal comum é, pois, residual, sendo competente se um tribunal de outra ordem de jurisdição não for.

In casu, o tribunal recorrido entendeu não ser competente para conhecer da acção, por o ser o Tribunal Eclesiástico.

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado pelo demandante.

Refere o Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, que “a competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.

No caso, o A. alegou ter celebrado com a R., no dia 1.2.2006, casamento Islâmico, no centro Islâmico sito em Barcelona, o qual, em 3.1.2007, foi inscrito no Registo Civil de Barcelona, e que, em 22.12.2014, a R. casou, em Portugal, com MS., não obstante aquele primeiro casamento não ter sido dissolvido.

E terminou pedindo que seja declarado anulado o segundo casamento celebrado pela Requerida em Portugal, cancelado o registo deste casamento contraído entre a R. e MS. em Portugal, e transcrito para a ordem jurídica portuguesa o casamento celebrado entre o A. e a R.

Face ao pedido e aos respectivos fundamentos alegados pelo A., afigura-se-nos ser competente para apreciar a presente acção o tribunal recorrido, e não o tribunal eclesiástico, como entendeu o tribunal recorrido.

É certo que a R. casou catolicamente com o referido MS., em 18.7.2015, e que são os tribunais eclesiásticos os competentes para conhecer das causas respeitantes à nulidade do casamento católico (art. 1625º do CC).

Contudo, a R. casou civilmente, em momento anterior, com o referido MS., e é a esse casamento que se reporta o A., e cuja anulação requer.

Dispõe o nº 1 do art. 1587º do CC que o casamento é católico ou civil.

Como escreve Jorge Duarte Pinheiro, em O Direito da Família
Contemporâneo, 5ª ed,.pág. 324, “Desde a Concordata de 1940 até agora, tem vigorado, em Portugal, o sistema de casamento civil facultativo. … O nosso sistema de casamento civil facultativo enquadra-se na segunda variante, de dupla modalidade. O casamento civil e o casamento católico são dois institutos diferentes. Contudo, o casamento religioso não católico carece de autonomia enquanto modalidade, integrando-se no casamento civil, que comporta, assim, duas formas: a civil e a religiosa. As partes podem escolher entre o casamento civil por forma civil (perante o conservador do registo civil), o casamento civil celebrado por forma religiosa (perante ministro do culto de uma igreja ou comunidade religiosa radicada em Portugal) e o casamento católico (celebrado perante o pároco)” [1].

O art. 1589º do CC, sob a epígrafe “Dualidade de casamento”, estatui no seu nº 1 que “o casamento católico contraído por pessoas já ligadas entre si por casamento civil não dissolvido é averbado ao assento, independentemente do processo preliminar de casamento” [2].

O casamento civil e o católico coexistem [3].

Não era assim no CRC aprovado pelo Decreto-Lei nº 41967, de 22.11.1958, em cujo art. 206º se dispunha que “1.- O casamento católico celebrado entre os cônjuges já vinculados por casamento civil anterior não dissolvido será averbado à margem do assento deste, oficiosamente ou a pedido verbal de qualquer dos cônjuges, independentemente de processo preliminar. 2.- Efectuado o averbamento, os cônjuges serão havidos como casados apenas catolicamente desde a celebração do primeiro casamento”.
O n° 2 do referido artigo estipulava que o casamento civil era “consumido” ou “absorvido” pelo casamento católico, pelo que, a partir deste último passava a existir um único casamento, o católico, disposição que veio a ser suprimida do art. 220º do CRC de 1967 [4], em conformidade com a nova lei substantiva (artigo 1589º do CC de 1966) [5].

Todos os casamentos, independentemente da sua modalidade (civil ou católica) ou forma (civil ou religiosa), se regem, quanto aos efeitos civis, pelas normas legais (art. 36º, nº 2, da CRP, e art. 1588º).

E as normas que disciplinam o regime da relação conjugal não distinguem em razão do casamento que foi celebrado, produzindo o casamento civil sob a forma civil, o casamento civil sob a forma religiosa e o casamento católico efeitos civis idênticos.

Nos termos dos arts. 1601º, al. c), e 1631º do CC, o casamento civil é anulável se contraído com algum impedimento dirimente, nomeadamente, a existência de casamento anterior, católico ou civil, não dissolvido.

Já o casamento católico contraído por quem se encontre ligado pelo vínculo de um matrimónio anterior é nulo (Cân. 1085 — § 1, do Código de Direito Canónico).

Regressando ao caso sub judice, o que o A. pretende é a anulação do casamento civil, contraído pela R. em Portugal em 22.12.2014, em momento anterior ao casamento católico que veio a celebrar com o cônjuge.

Ora, face ao que supra se deixou dito, teremos de concluir que para a anulação do referido casamento civil são competentes os juízos de família e menores (art. 122º, nº 1, al. d) da LOSJ).

Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se o despacho recorrido, prosseguindo seus termos a acção.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se o Juízo de Família e Menores da Amadora competente para conhecer da presente acção.
Sem custas.
*



Lisboa, 2019.06.04

                                                          
(Cristina Coelho)

(Luís Filipe Pires de Sousa)                                                         
(Carla Câmara)


[1]Em sentido não inteiramente coincidente, ver Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em Curso de Direito da Família, Vol. I, págs. 186 a 196.
[2]Já nos termos do nº 2 do referido preceito legal, a lei não permite aos cônjuges ligados por casamento católico celebrarem casamento civil.
[3]Nas palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, na ob. cit., pág. 326, o casamento civil não é absorvido pelo casamento católico.
[4]Que correspondia ao art. 206º do Código revogado.
[5]Maria da Conceição Lobato Guimarães, Filomena Maria B. Máximo Mocica e Manuel Vilhena de Carvalho, em Código do Registo Civil Anotado, 2ª edição, pág. 203, tendo em conta o novo regime registral e substantivo, escrevem que “o casamento católico celebrado posteriormente ao civil não tem qualquer relevância jurídica e as decisões que sobre ele vierem a ser proferidas não afectam o casamento civil que subsiste ou é dissolvido independentemente daquelas”.